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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.32 no.64 Uberlândia jan./abr 2018  Epub 20-Set-2020

https://doi.org/10.14393/revedfil.issn.0102-6801.v32n64a2018-17 

Artigos

Para além do corpo belo: notas sobre corpo e educação a partir da leitura foucaultiana do Alcibíades

Beyond the beautiful body: notes on body and education from the foucault’s reading of the Alcibiadis

Au-delá du beau corps: notes sur le corps et l’éducation à partir de la lecture foucauldienne de l’ Alcibiade

Avelino Aldo de Lima Neto* 

Hugo Filgueiras de Araújo** 

*Doutor em Educação pela Université Paul Valéry - Montpellier III e pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Professor de Filosofia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN). E-mail: ave.neto@hotmail.com

**Doutor em Filosofia pelo Programa Integrado UFPB-UFRN-UFPE. Professor do Curso de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia (PPGFIL) da Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail: hugofilguaraujo@hotmail.com


Resumo

Este artigo objetiva apresentar algumas contribuições da leitura foucaultiana do Alcibíades, de Platão, para pensar as relações entre o corpo e a educação. Centramo-nos sobre a discussão de Foucault em torno noção de cuidado de si. Exploramos aí a vinculação perdida entre a subjetividade e o conhecimento, outrora presente na filosofia socrático-platônica. Inicialmente, detemo-nos nas características da relação entre Alcibíades e Sócrates; posteriormente, apresentamos as relações entre educação, espiritualidade e erotismo ressaltadas por Foucault em sua leitura do Alcibíades; por fim, haurimos algumas implicações para pensar o fenômeno educativo na atualidade, principalmente no que concerne à recuperação do corpo como lócus no qual se efetua a subjetivação.

Palavras-chave: Cuidado de si; Alcibíades; Sócrates; Corpo; Educação

Abstract

This paper aims to present some contributions of the Foucaultian reading of Plato's Alcibiades to think about the relationship between the body and education. We focus on Foucault's discussion of self-care. We explore the lost connection between subjectivity and knowledge, that we can find in the Socratic-Platonic philosophy. At first we expose characteristics of the relationship between Alcibiades and Socrates; Later, the relations between education, spirituality and eroticism highlighted by Foucault in his reading of Alcibiades. Finally, we have drawn some implications for thinking about the educational phenomenon nowadays, especially regarding the recovery of the body as a locus in which subjectivation takes place.

Keywords: Self-care; Alcibiades; Socrates; Body; Education

Résumé

Cet article présente quelques contributions portant sur la lecture foucauldienne de l’Alcibiade de Platon pour penser la relation entre le corps et l'éducation. Pour cela, nous nous concentrons sur la discussion de Foucault autour de la notion de souci de soi. Nous y explorons le lien perdu entre la subjectivité et la connaissance, autrefois présente dans la philosophie socratique-platonicienne. Tout d’abord, nous nous penchons sur les caractéristiques de la relation entre Alcibiade et Socrate ; ensuite, nous présentons la relation entre l'éducation, la spiritualité et l'érotisme mise en évidence par Foucault; à la fin, nous mettons l’accent sur quelques implications de cette lecture pour penser le phénomène éducatif aujourd’hui, en particulier en ce qui concerne la récupération du corps comme un lieu de subjectivation.

Mots-clés: Souci de soi; Alcibiade; Platon; Corps; Éducation

Introdução

Sabemos que a recepção dos trabalhos de Michel Foucault no Brasil, no âmbito da Educação, trouxe inúmeras contribuições no que concerne “ao entendimento das relações entre a escola e a sociedade, entre a Pedagogia e a subjetivação moderna” (VEIGA-NETO, 2011, p. 11), o que indubitavelmente deve-se às pesquisas arqueológicas e genealógicas de Foucault, desenvolvidas dos anos 60 até o fim da década seguinte. Salientamos, sobretudo o sucesso editorial de Vigiar e Punir (1975), que ofereceu um conjunto de ferramentas analíticas para se pensar as técnicas disciplinares e a produção dos sujeitos na escola. Acenamos para esta obra pois ela foi, provavelmente, a primeira a despertar de modo mais explícito, para os pesquisadores da Educação, um dos principais terrenos nos quais se inscreveu o pensamento foucaultiano: o corpo como superfície na qual a subjetividade se fabrica. Mas, sabemo-lo, o filósofo vai bem além, pois “ao invés de procurar uma verdade única do corpo, Foucault tenta pensar a profusão de corpos da verdade: como a verdade toma corpo nos corpos […]. O que interessa Foucault (…) é um corpo trabalhado, atravessado, complicado pela verdade” (SFORZINI, 2014, p. 9, grifos do autor).

As abordagens foucaultianas do corpo vão além da disciplinarização deste, descortinando questões de ordem estética, política e ética que, na última década, ganharam mais atenção nas pesquisas em Filosofia da Educação. Tal fato se concretizou principalmente a partir da publicação dos últimos cursos no Collège de France e das conferências e debates feitos nos Estados Unidos, que marcam, a partir do início dos anos oitenta, o retorno de Foucault aos Antigos1 e o aprofundamento de suas pesquisas acerca das relações entre o sujeito e a verdade2. Tais pesquisas inserem-se em seu projeto de uma história da subjetividade efetivada na esteira da tradição crítica de Kant, isto é, uma história “da maneira pela qual o sujeito faz experiência de si mesmo num jogo de verdade no qual ele se relaciona consigo mesmo” (FOUCAULT, 2001, p. 1451).

É sobretudo com o curso de 1980-1981, Subjetividade e Verdade, que se desdobrou posteriormente nos conhecidos segundo e terceiro volumes da História da Sexualidade - O Uso dos Prazeres e O Cuidado de Si, respectivamente - que o filósofo dá um novo impulso ao seu projeto de uma história da subjetividade, circunscrevendo-se em um outro campo de investigação: o da problemática do sujeito com a verdade a partir do uso dos prazeres. Este curso toma o domínio dos comportamentos sexuais na Antiguidade greco-romana como “superfície de refração” da supracitada problemática, abordando a temática dos aphrodisia3 do século IV a.C. ao II de nossa era, quando já estão explicitamente associados à cultura de si (FOUCAULT, 2010, p. 3).

É nesse contexto mais amplo que se situa o recurso ao Alcibíades, de Platão, considerado por Foucault o ponto de partida da primeira grande teorização filosófica acerca do cuidado de si, espalhado na cultura grega por meio da expressão epiméleia heautoû (FOUCAULT, 2010, p. 44). Na análise empreendida por Foucault - especialmente nas aulas de 06 e 13 de janeiro de 1982 do curso A Hermenêutica do Sujeito -, centrada na relação entre mestre e discípulo, Alcibíades e Sócrates, encontramos valiosas pistas para pensar a formação humana. Isto porque nesta ocasião o filósofo começa a materializar mais claramente o aprofundamento na sua tarefa de empreender uma genealogia da subjetividade moderna (FOUCAULT, 2013, p. 40).

Escolhemos explorar algumas pistas que aparecem como uma espécie de desenvolvimento por ruptura dos lugares que o corpo e os prazeres - isto é, os aphrodísia - ocuparam na gestação do cuidado de si. Desenvolvimento porque na Hermenêutica do Sujeito encontramos um prolongamento da Erótica apresentada em O Uso dos Prazeres; ruptura porque tal desenvolvimento se dá por um importante deslocamento de significado no que concerne às categorias em questão, quais sejam, o corpo e o uso dos prazeres, os aphrodísia. Operacionaliza-se uma migração do objeto do amor na prática de corte dos rapazes: enquanto em O Uso dos Prazeres a Erótica fracassava em cumprir sua função pedagógica, dado que o interesse dos homens se fixava principalmente na beleza juvenil dos corpos, com Sócrates o objeto do amor move-se para a verdade (HAN, 1998, p. 296), desencadeando implicações que possibilitariam o nascimento de um novo tipo de relação, de natureza ética, mas sem deixar de ser erótica4.

Ao focarmo-nos nessas categorias, porém, não afirmamos que a epiméleia heautoû, o cuidado de si, se resume às práticas ascéticas referentes ao corpo e ao uso prazeres. Evidentemente, ele os engloba, mas também os suplanta, atingindo toda a vida do sujeito. Isso se manifesta mais fortemente no vínculo que o cuidado de si, enquanto campo de experiência pedagógica, estabelece com outras duas dimensões igualmente importantes: a política e o conhecimento de si (FOUCAULT, 2001, p. 1174). Pedagogia, política e conhecimento de si: todas estas áreas estão, na verdade, interligadas, conforme constataremos ao longo do presente texto. Neste, inicialmente, retomaremos o lugar de Alcibíades - isto é, do discípulo, no diálogo platônico que recebe o seu nome. Posteriormente, deteremo-nos no papel desempenhado pelo seu mestre, Sócrates. Isto feito, interrogamo-nos sobre as relações entre educação e erotismo no cuidado de si, atentando para o lugar do corpo nestas relações. Por fim, indicamos algumas implicações da leitura foucaultiana do Alcibíades no que diz respeito ao corpo e à educação na atualidade.

Alcibíades, o discípulo

“Sabei que nem a quem é belo

tem ele a mínima consideração.”

(O Banquete, 216d)

Falar da educação, no diálogo em questão, é lidar de imediato com um problema: a deficiência da formação de Alcibíades. Jovem aristocrata e, por isso, portador de status que o destinava para o governo de Atenas, ele não teve, malgrado sua herança familiar, uma formação que o preparou para tal função5. Pelo contrário, em seu percurso formativo só se veem falhas: em primeiro lugar, seu tutor, Péricles, o confiou aos cuidados de um escravo ignorante, Zópiro da Trácia; em segundo lugar, estando na idade crítica e sendo portador de beleza singular, Alcibíades foi assediado por homens cujo interesse só residia em seu corpo belo, mas não em sua formação - como deveria ser na relação entre erômeno e erasta.

Acrescenta-se a isso o fato de Atenas nem ser tão rica como suas rivais Esparta e Pérsia, e muito menos dispor de uma educação com a mesma qualidade. Assim, com uma pedagogia e uma erótica deficientes, além de um contexto macropolítico desfavorável, não se poderia esperar outro resultado: Alcibíades ignorava completamente a função para a qual estava destinado, a saber, governar. Abandonado por todos que tinham alguma responsabilidade educativa sobre ele, uma única pessoa continuava, a despeito de tudo, a manter nele o interesse: Sócrates.

O filósofo logo lhe lembra que nem sua beleza, nem sua riqueza e nem sua estatura podem lhe garantir o exercício do governo da cidade e sua vitória sobre os inimigos. Sua glória não virá de seu corpo, do qual ele estava acostumado a se vangloriar e com o qual humilhava seus pretendentes. É aí que Sócrates, no diálogo que leva o nome do jovem, lança mão do preceito délfico, qual conselho de prudência, para lembrar a Alcibíades que, se de fato ele quer governar, é preciso que ele conheça a si mesmo (FOUCAULT, 2010, p. 34), inclusive para perceber que, além de não ter a mesma riqueza e a mesma educação dos inimigos, não dispõe de uma arte - uma tékhne, um saber - que o permita governar. A partir desta constatação, aparece pela primeira vez, no discurso filosófico, a epiméleia heautoû, pois Sócrates afirma para Alcibíades que será necessário, na idade em que ele está, cuidar de si, se ele tem em vista cuidar da cidade. Esta é a hora de fazê-lo.

Sabe-se que a formação de um jovem grego (paideía) acontecia através da interlocução entre um mestre tutor erasta, a quem cabia iniciar o erômeno em todas as atividades que compreendia ser um cidadão da Hélade: política, conhecimento, vida sexual, guerra, etc. Essa educação acontecia baseada em dois pilares essenciais: a poesia (musykhé) - a épica, a lírica ou a trágico-cômica - e na ginástica. Com o a filosofia socrático-platônica, a poesia apresentada pelos poetas de então foi vista como suspeita, sobretudo no que concerne ao ensino da virtude (areté), caminho para o conhecimento de si. Não houve uma renúncia da poesia por parte de Platão em sua reformulação da proposta de paideía, logo porque vemos o personagem Sócrates nos textos fazendo mitos, mas sem citar heróis imbuídos de hybris, como modelos a serem seguidos, que era sua crítica pontual aos poetas Homero e Hesíodo.

A grande inovação proposta no modelo de educação dos jovens gregos, sugerida pela filosofia socrático-platônica, está na inclusão da filosofia juntamente com a música como propostas de educação para a alma e a ginástica, como educação para o corpo6. Ao que parece, Alcibíades também se deparava com essa inovação proposta por Sócrates, que vai além da formação como obtenção de conhecimentos, e aproxima-se de um deixar-se moldar pelo que se conhece, sobretudo porque ele era formado para ser um governante.

Nesse contexto de preocupação com a formação do jovem, Foucault sublinha algo que de grande importância: a injunção socrática prova que há um desnível entre a pedagogia compreendida enquanto aprendizagem e a pedagogia enquanto transformação, modificação de si, aquilo que os alemães nomearam de Bildung (FOUCAULT, 2010, p. 43). Alcibíades não deve aprender uma arte, uma tékhne, imediatamente, para governar. Não se trata de algo meramente preparatório, que será depois descartado. Na verdade, ele deverá primeiro cuidar de si, ocupar-se consigo mesmo, dar uma nova forma à sua própria vida para depois governar a cidade, isto é, cuidar dos outros.

Este é o primeiro deslocamento realizado pelo momento socrático-platônico, no qual emerge uma discrepância, ou mesmo “uma forma de indecisão entre o modo de pensar, no sentido estrito, e modo de vida, no sentido amplo, indecisão que será constitutiva do paradoxo propriamente platônico” (CASTEL-BOUCHOUCHI, 2003, p. 182). A arte a ser aprendida, na verdade, é a arte da existência. Ademais, essa reforma na educação de Alcibíades implica, inclusive, no “desaprender” os maus hábitos adquiridos anteriormente (FOUCAULT, 2001, p. 1175-1176). Nota-se que a nova pedagogia inventada e aventada por Sócrates afronta diretamente a má educação do jovem, e, por ricocheteio, a de Atenas. O imperativo “cuida de ti mesmo” proposto por ele traz consigo um germe de enfrentamento a respeito do que já estava arraigado na vida de Alcibíades e de muitos outros filhos da aristocracia grega.

Todavia, depois que este imperativo é doado a Alcibíades, surgem duas questões essenciais para que o mandato se efetive: o que é esse “eu” do cuidado de si? Como o cuidado de si possibilitará a aprendizagem da arte de governar? Tais questões fazem-nos pensar no sujeito que é, concomitantemente, objeto. Objeto do cuidado que ele mesmo tem para consigo, que o impulsiona para os outros como futuros objetos de seu governo. Assim, a epiméleia heautoû que eclode no Alcibíades traça um itinerário que se inicia no governo de si - cujo foco é a subjetividade-alma - e se dirige ao governo dos outros - cujo foco é a intersubjetividade-cidade, atingindo uma dimensão claramente coletiva e, por isso, política.

Mas como podemos afirmar que este foco primeiro é a subjetividade-alma? É no decorrer mesmo do diálogo que encontramos a resposta. O eu ao qual se dirige o cuidado é a alma. Não se trata, entretanto, da alma como é entendida em outros textos platônicos - enquanto está sob a custódia do corpo até a sua definitiva separação com o episódio da morte, no Fédon (62bc)7; entendida numa tensão entre apetites e desejos e racionalidade como analogamente ele compara a alma como um carro atrelado a cavalos para ser guiada rumo à uma boa direção, no Fedro (253cs); ou mesmo como uma hierarquia de três diferentes gêneros (alma apetitiva, alma irascível e racional) a ser harmonizada, como na República (436as). Não se tem aí nem mesmo a alma substância, tentação constante na filosofia. Trata-se da alma enquanto sujeito de ação, definição à qual se chega por meio do aporte com o verbo grego khrêsthai, que significa, em resumo, fazer uso das coisas do modo adequado, como se deve ser.

Ao dizer que o eu é a alma8, e que a alma é sujeito de ação, Platão demarca “a posição de certo modo singular, transcendente, do sujeito em relação ao que o rodeia, aos objetos de que dispõe, como também aos outros com os quais se relaciona, ao seu próprio corpo e, enfim, a ele mesmo” (FOUCAULT, 2010, p. 53). Ocupar-se de si é ser sujeito ativo, à medida que absolutamente nada - nem o próprio corpo - o pode desviar dessa da tarefa de governar a si. O sujeito que cuida de si torna-se livre para ocupar-se adequadamente consigo e com os outros.

É perceptível que alma enquanto sujeito se distingue, portanto, daquelas outras práticas de atenção a si mesmo das quais falava O Uso dos Prazeres: o cuidado com o corpo no regime da Dietética, com a casa na Econômica e com os rapazes na Erótica. O médico cuidava simplesmente do corpo biológico, e não da alma; o homem proprietário de terras ocupava-se de seus bens, e não de si mesmo; os homens adultos buscavam satisfazer-se com o corpo e a beleza dos efebos, mas não se preocupavam com suas almas. Dentre estes desejados, encontrava-se, como sabemos, o próprio Alcibíades.

Tal constatação equivale ao segundo deslocamento do momento socrático-platônico (CASTEL-BOUCHOUCHI, 2003, p. 182-183). Num primeiro momento, saímos da aprendizagem em sentido estrito para um modo de vida diferenciado, marcado pela necessidade de ocupar-se consigo; agora, desloca-se do corpo, antigo foco de atenção da Erótica - fracassada com Alcibíades, é verdade -, para a alma enquanto sede e objeto do cuidado.

No entanto, a identificação do eu com a alma evoca uma posição de atividade, de ação, de criação - que se posiciona, evidentemente, em oposição à passividade. Ora, é a posição ativa que se pede, doravante, de Alcibíades. Afinal, aos vinte anos, ele já passou da idade de ser cortejado passivamente pelos seus pretendentes. Ao aspirar o cargo de governante, ele deve apropriar-se do status do homem grego adulto, ativo - inclusive nas relações amorosas, evidentemente.

Elabora-se, destarte, na figura deste personagem, “uma dialética entre o discurso político e o discurso erótico” (FOUCAULT, 2001, p. 1609), e, com isso, um paradoxo, com duas dimensões: em primeiro lugar, para aprender a dominar os outros, governá-los, Alcibíades terá de se submeter a Sócrates. Não mais fisicamente - como alguns erômenos, ao ceder às investidas dos erastas - mas espiritualmente (FOUCAULT, 2001, p. 1609). Os antigos lugares do corpo e dos aphrodísia foram substituídos, no momento socrático-platônico do cuidado de si, por um novo tópos, um novo espaço: a alma em sua função ativa. E esse novo lugar inclui, também, um novo personagem, indispensável: a figura do mestre.

Sócrates, o mestre

“- Agatão, vê se me defendes!

Que o amor deste homem se me tornou um não pequeno problema.”

(O Banquete, 213c)

Ao amar desinteressadamente o discípulo, o mestre cuida do modo como o discípulo vai cuidar de si mesmo - e não do seu corpo, dos seus bens ou de instruí-lo em relação à retórica e outras habilidades práticas de quem almeja o governo da cidade (FOUCAULT, 2010, p. 55). A submissão espiritual ao mestre inverte a antiga Erótica: o homem mais velho, agora, passa a ser perseguido pelo mais jovem. Este se torna amante, e aquele o amado.

O que atrai o jovem não é mais a beleza física, mas a beleza espiritual do mestre9. Foi justamente isso que ocorreu entre Sócrates e Alcibíades. O filósofo jamais tocou o jovem (FOUCAULT, 2001, p. 996), mas esperou que ele “avançasse na idade, que sua mais brilhante juventude tivesse passado para dirigir-lhe a palavra” (FOUCAULT, 2010, p. 54), pois o que lhe interessava era a sua alma, e não o seu belo corpo10 - apesar das investidas de Alcibíades.

É necessário lembrar, contudo, que essa submissão espiritual é perpassada por algo absolutamente essencial, que permite a efetivação da epiméleia heautoû: o conhecimento de si, o gnothi seautón. Para que Alcibíades saiba o que é o “si mesmo” a ser cuidado, Sócrates pede que conheça a si mesmo. Não se trata mais aí de um conselho de prudência ou mesmo de regra metodológica, como anteriormente, quando o mestre incitava Alcibíades a conhecer-se melhor para melhorar as deficiências de sua educação. Agora, o “conhece-te a ti mesmo” corresponde a “ocupar-se consigo”.

Foucault fala mesmo de uma sobreposição dinâmica, de um apelo recíproco entre ambos e mesmo de uma verdadeira reorganização das técnicas do cuidado de si em torno do conhecimento de si (FOUCAULT, 2010, p. 63). O sujeito estará, doravante, tensionado entre cuidado e conhecimento. Para explicar melhor o que é esse ocupar-se consigo, Platão, como de costume, utiliza uma imagem sensível de suas ideias: neste caso, a metáfora do olho. A alma se conhecerá por identidade de natureza, isto é, vendo em outra alma, como que por reflexo de um espelho, o elemento que constitui a sua própria natureza, qual seja, o elemento divino, manifesto nos princípios do pensamento e da sabedoria.

Nesse contexto, não podemos deixar de pensar na própria etimologia da palavra reflexão, cujos significados estabelecem uma forte ligação entre o conhecimento de si e o cuidado de si tal como o vimos concebendo: “virar”, “dar a volta”, “voltar para trás”, “jogar ou lançar para trás”. Isso só é possível graças à conotação ótica do verbo reflectere, pois só somos capazes de ver quando as superfícies polidas fazem voltar a luz. Conhecer a si mesmo é, portanto, perceber a própria imagem refletida, o que cria uma modalidade peculiar da relação sujeito-objeto, marcada por uma “metafísica da luz, do olho da imagem e da visão” (LARROSA, 2011, p. 59), de modo algum estranha à filosofia platônica. Essa reflexividade, no contexto da leitura foucaultiana do cuidado de si, refere-se diretamente ao modo pelo qual o sujeito se relaciona consigo mesmo para se elaborar. Se há uma metafísica do olho e da visão, como sugere Larrosa, é porque Foucault se interessa, ao retomar o vínculo entre verdade e subjetividade, em fazer uma “história do olhar a partir do qual eu me constituo enquanto sujeito”, história esta que se insere, evidentemente, no seu projeto de uma história da subjetivação (GROS, 2008, p. 128, grifos do autor).

Assim, “é esta a dinâmica: do cuidado de si ao conhecimento de si; do conhecimento de si ao conhecimento do divino; do conhecimento do divino à sabedoria” (MUCHAIL, 2011, p. 32). Conhecer-se a si mesmo corresponde a aceder à verdade; ela transforma o ser que eu sou e me assimila a Deus (FOUCAULT, 2010, p. 173). E é esta a segunda dimensão do paradoxo: para conhecer-se (gnothi seauton) em identidade - isto é, no que permanece - é preciso transformar-se (epiméleia heautoû). Ao empreender este caminho formativo com o mestre, a alma conhecerá a si mesma e estará pronta para governar a cidade. Desse modo, completa-se o vínculo entre as três questões fundamentais analisadas por Foucault no Alcibíades, quais sejam, aquelas referentes à pedagogia, à política e ao conhecimento de si.

Educação, espiritualidade e erotismo

Faz-se necessário, porém, explicitarmos brevemente o papel da ética nesse contexto. Dizemos explicitar porque, por todo o tempo, ela esteve presente, à medida que cuidar de si é transformar-se, assumir um modo, um estilo de vida, isto é, um êthos. Alcibíades só poderia assumir o governo da cidade com a pré-condição de cuidar de si. E este, por sua vez, só poderia ser viabilizado por meio da relação erótico-pedagógica entre mestre e discípulo (MUCHAIL, 2011, p. 33).

Como vimos, o mestre é aquele que cuida do cuidado que o discípulo tem consigo mesmo. Este cuidado passa pelo conhecimento de si, possível por meio do conhecimento do elemento divino. Todavia, na relação entre mestre e discípulo, também o divino ocupa função proeminente. É ele que leva Sócrates a esperar o momento certo para dirigir a palavra a Alcibíades e a cuidar dele, no Alcibíades (124c). O mestre-amado será aquele em cuja alma o discípulo-amante reconhecerá o divino, poderá conhecer-se a si mesmo e cuidar de si (CAZEAUX apudMUCHAIL, 2011, p. 35).

A Erótica platônica, desse modo, arrebata o sujeito: do corpo físico para a alma e da alma para a divindade. Só assim, adquirindo a verdadeira sabedoria, Alcibíades conhecerá, como efeito do cuidado de si, uma virtude necessária para o governo da cidade, a saber, a justiça (FOUCAULT, 2010, p. 67). De uma ética do ocupar-se consigo mesmo, o jovem atingirá a ética do cuidado com os outros, de maneira justa. Atingir a sabedoria é condição sine qua non para o conhecimento da justiça - pressuposto apresentado e desenvolvido, como sabemos, na República.

Como esse processo só é possível graças à presença do mestre - em razão de ser ele aquele que cuida do cuidado que o discípulo tem de si mesmo -, sobre a relação entre Sócrates e Alcibíades, ainda cabe uma ponderação. A filosofia, no período em questão, era compreendida enquanto “forma de pensamento que se interroga sobre o que permite ao sujeito ter acesso à verdade” (FOUCAULT, 2010, p. 15). Para acessar a verdade, porém, era preciso pagar um preço na própria subjetividade. O sujeito assumia um “conjunto de buscas, práticas e experiências tais como as purificações, as asceses, as renúncias, as conversões do olhar, as modificações de existência” (FOUCAULT, 2010, p. 15), que poderiam ser condensadas sob o nome de espiritualidade.

Assim, a vida filosófica estava intrinsecamente vinculada à espiritualidade enquanto modus vivendi, que exigia a transformação do sujeito, o seu deslocamento para um outro ponto no qual já não é ele mesmo e a partir de onde ele poderá encontrar a verdade (FOUCAULT, 2010, p. 16). Referir-se à filosofia, portanto, era necessariamente falar de espiritualidade como conversão, como modificação de si, como único modo a partir do qual um sujeito se forma, se educa e, por conseguinte, única maneira de se chegar à verdade.

Tal conversão poderia se dar na forma de “um movimento que arranca o sujeito de seu status e de sua condição atual (movimento de ascensão do próprio sujeito; movimento pelo qual, ao contrário, a verdade vem até ele e o ilumina)” (FOUCAULT, 2010, p. 16). Trata-se, nesse caso, do éros. Uma outra forma desse movimento é a do trabalho que o sujeito exerce sobre si mesmo, no qual ele “é o próprio responsável por um longo labor” (FOUCAULT, 2010, p. 16), a áskesis. Ao realizar tais formas de espiritualidade, o sujeito não só acessa a verdade, mas recebe efeitos em retorno que o completam, que o tranquilizam, que o transfiguram. É, efetivamente, um exercício de si por meio do pensamento (FOUCAULT, 1984, p. 16; 2010, p. 16-17).

A relação entre Sócrates e Alcibíades é emblemática desse fato. Nela, o que temos é uma espécie de espiritualidade erótica, na qual o mestre, amando o discípulo, mostra-lhe o caminho da verdade. Todavia, ele não o percorre para o discípulo. Ocupar-se de si deve ser um modo de vida que brota da atitude livre do sujeito, de sua decisão, quando reconhece que a verdade está no divino, resplandecente por meio do mestre-amado.

O problema é que Alcibíades parece não ter compreendido este pressuposto, e confunde a ascensão para a verdade com a permanência no corpo do mestre. Permanecer no corpo significa que Alcibíades, mesmo depois de todo o diálogo, continua preso à sensibilidade, na obediência e fascínio à figura de Sócrates (PRADEAU apudMUCHAIL, 2011, p. 37), não conseguindo ascender à verdade. O jovem aristocrata, sabemo-lo, não obstante, prometa cuidar de si, voltará a encontrar-se com Sócrates, alguns anos mais tarde - no Banquete - e confessará não ter se ocupado consigo mesmo, consoante prometera. Tornou-se, na verdade, símbolo da derrocada de Atenas, “sempre controverso, acusado de todos os excessos, de uma ambição desmedida e costumes deploráveis”, embora também seja “incessantemente louvado por seu carisma, sua audácia e pela maneira como parece jamais ter podido dissociar seu destino do destino da cidade” (PRADEAU apud MUCHAIL, 2011, p. 40-41).

Contudo, no louvor que faz a Sócrates no Banquete (215cd), Alcibíades reconhece um outro dado que vale a pena destacar. O filósofo tem o poder de usar as palavras para provocar a comunhão com o divino, sem precisar de qualquer artifício - seja a flauta utilizada por Mársias para hipnotizar os homens, seja os enfeites da retórica. Sócrates faz uso de uma linguagem que não é adorno ou instrumento para representar a realidade, mas um modo de tocar os outros, transformando-os, e transformando-se a si mesmo.

Isto porque o que se experimenta, com a linguagem, é a comunhão com o divino, o qual, sabemos, permite chegar à sabedoria11. Ora, o fracasso educativo de Alcibíades manifestou-se, inclusive, em sua preocupação com a retórica, mas não com a sabedoria, que lhe concederia as verdadeiras virtudes para a vida política (PRADEAU apudMUCHAIL, 2011, p. 41). Ele fez uso de uma linguagem instrumento, e não de uma linguagem apta a modificá-lo a si mesmo.

A incompreensão do discípulo quanto ao significado da epiméleia heautoû à qual seu mestre lhe incitava é-nos alegórica de um problema apresentado por Foucault, ainda na Hermenêutica do Sujeito. Segundo o que já afirmamos, o jovem permanece preso ao universo das aparências, universo cujo elemento mais representativo, no Alcibíades, é o corpo: o seu corpo belo e o corpo de Sócrates. Ele não consegue notar que o que se deve buscar em seu mestre é o elemento divino, por meio do qual se chegará à verdade e à sabedoria para governar a si e a cidade. Alcibíades segue pensando que Sócrates, por si só, é capaz de libertá-lo de sua ignorância e de sua educação deficiente. É como se, simplesmente, ele se tornasse objeto passivo da ação de um sujeito que, por seu poder, poderia fazê-lo alcançar a verdade, sem nenhum trabalho por parte dele próprio.

Em partes, essa ideia - isto é, a de que o sujeito é capaz de acessar a verdade sem necessitar da espiritualidade, de um trabalho de modificação sobre si mesmo - identifica-se com a concepção moderna de conhecimento, aquela que emergiu depois daquilo que Foucault nomeou momento cartesiano. Aí não há mais necessidade de modificar-se para ascender à verdade, haja vista que a estrutura interna do sujeito o habilita desde sempre para tanto: “o sujeito seria a priori capaz de verdade, e apenas acessoriamente um sujeito ético de ações retas” (GROS, 2010, p. 471).

Obviamente, há condições e possibilidades do conhecimento, mas elas não demandam nenhum tipo de ascese da parte do sujeito. A filosofia deixa de ser compreendida como modo de viver determinado por uma ideia de sabedoria que era muito mais um saber-fazer, um saber-viver (HADOT, 2002) - isto é, filosofia como arte da existência -, para ser tomada como conhecimento representativo da realidade. Houve, assim, uma supervalorização do gnôthi seautón em detrimento da epiméleia heautoû.

O sujeito é ainda capaz de alcançar a verdade, mas esta não o salva mais, como no momento socrático-platônico do cuidado de si (FOUCAULT, 2010, p. 14-15; p. 19). Migra-se de uma espiritualidade erótica para uma gnoseologia racionalista. O vínculo entre o conhecimento (dimensão epistemológica), a estilização da própria conduta (dimensão ética) e o governo dos outros (dimensão política), as quais apresentamos anteriormente, foi rompido (MUCHAIL, 2011, p. 58).

Considerações finais

A despeito de o Alcibíades inaugurar a grande reflexão filosófica sobre o cuidado de si, algumas constatações como a desqualificação do corpo e dos aphrodísia em detrimento da alma enquanto foco do cuidado de si (HAN, 1998, p. 287), o obscurecimento do cuidado pelo conhecimento de si, as relações entre corpo e linguagem, bem como sobre a subjetivação e a resistência aí enredadas, são problemáticas que merecem ser melhor exploradas ao intentarmos pensar a educação com Foucault. Somos cônscios, porém, da amplitude das constatações acima elencadas. Por isso, nesta ocasião, resumimo-nos apenas a destacar algumas conclusões significativas da leitura foucaultiana do Alcibíades e as suas contribuições para a problematização filosófica da educação.

A pedagogia erótica proposta por Sócrates desafia a educação corrente. Ela enfrenta um êthos vigente para propor um novo modo de ser fundado na epiméleia heautoû. Sócrates, alguém considerado pelos atenienses como um atopotatos, isto é, um estranho, um sem lugar na cidade, alguém inclassificável (HADOT, 2002, p. 120), encontra na alma esse novo tópos. Em contrapartida, apesar de esse deslocamento ter provocado um avanço formativo, há algo de problemático subjacente a esse contexto, que não poderia passar despercebido.

À primeira vista, Sócrates salva a Erótica de sua aporia, haja vista que se poderá amar o jovem sem nenhum prejuízo para o seu status. A função pedagógica foi preservada e, a partir de agora, o amor verdadeiro é aquele pela verdade que se pode alcançar por meio da relação mestre-discípulo. Todavia, isso se fez às custas de um alto preço: deslocando-se para a alma, ele exclui o corpo e os aphrodísia, o que nos deixa presos num idealismo.

A ideia moderna de que a estrutura interior do sujeito o habilita para conhecer o mundo instala um tipo de relação marcadamente linear e representacional com a realidade. As coisas se dão à consciência, seja por meio dos sentidos ou pela razão, como objetos. Ao estabelecer esse tipo de relação com o mundo, passa-se a representar a realidade mentalmente e acessar a verdade por meio de uma atividade meramente cognitiva. O conhecimento, assim, é reduzido à cognição, obscurecendo completamente a sua ligação com o cuidado de si, ao qual antes vinculava-se. Por fim, o fracasso educativo de Alcibíades em cuidar de si nos faz pensar nas relações entre a linguagem e a epiméleia heuatoû, posto que, embora tocado pelas palavras de Sócrates, ele admite, no Banquete (216b), ter relaxado de ocupar-se consigo para ocupar-se com os negócios de Atenas, e envergonha-se por ter quebrado a palavra dada - o lógos -, a promessa feita anos antes. Ele não conseguiu chegar do lógos ao êthos.

A leitura foucaultiana do Alcibíades leva-nos a problematizar os modos de subjetivações contemporâneos e os seus desafios para a Educação. Nestes novos modos, o corpo emerge como tópos no qual se manifesta a subjetividade, o que entra em confronto direto com a ideia platônica de alma como foco do cuidado de si, bem como com uma episteme, que, em nossos currículos, preponderantemente, negligencia a existência incorporada. Apesar de sua permanência na compreensão platônica das relações entre corpo e alma, o Alcibíades ensina-nos a necessidade de retomar a indissociabilidade do elo entre a transformação de si e o conhecimento (bem como a sua produção), entre êthos e epistéme, com vistas, inclusive, a fazer de nossos processos educativos um dos espaços sociais de recuperação de uma “eticidade rompida” (HERMANN, 2001, p. 35).

Nestes processos, necessitamos de “uma filosofia que não determina as condições e os limites de um conhecimento do objeto” - como bem o fez Kant - “mas as condições e as possibilidades indefinidas de transformação do sujeito” (FOUCAULT, 2013, p. 37) Ora, não é essa vida compreendida como prova, como transformação de si para aceder à verdade que aprendemos com o retorno foucaultiano à filosofia antiga e, especificamente, com a sua leitura do Alcibíades? E não é justamente recorrendo a essa necessidade de experimentar, de realizar o ultrapassamento possível dos limites que nos foram impostos, enfim, de praticar “um trabalho de nós-mesmos sobre nós-mesmos enquanto seres livres” (FOUCAULT, 2001, p. 1394) que Foucault caracterizará, poucos anos depois, o êthos filosófico moderno, inspirando-se em Kant e, concomitantemente, suplantando-o (LIMA NETO, 2013, p. 173)?

Esse trabalho, lembra-nos Davidson (2013, p. 75), é um modo através do qual buscamos a alternativa para o que queremos hoje - e nós acrescentamos, daquilo que queremos no contexto educativo na atualidade. Se Alcibíades é a prova da impossibilidade de uma pedagogia erótica em Platão, posto que aí o corpo permanece como empecilho para a ascensão à verdade, hoje já podemos compreender diferentemente esse erotismo: a dimensão de desejo do saber permanece, mas esse saber não se desvincula de um conhecimento que brota justamente do corpo e das sensações, isto é, de uma estesiologia (NÓBREGA, 2015).

Explorar essa possibilidade é uma via para educarmos os outros Alcibíades hoje, para além do belo platônico ou kantiano, e encontrando na estesia dos sentidos modos outros de ver, sentir, pensar e agir no mundo. Ao invés de ascender à verdade liberando-se dos sentidos, é um movimento contrário que uma recuperação do corpo na educação parece-nos propor: adentrar no corpo e em suas sensações, escavando-lhe as suas múltiplas potencialidades, para produzir outras e novas verdades. Mas a busca dessa verdade continua exigindo, como em Platão, um trabalho de si sobre si - um si, porém, inseparável do corpo enquanto nosso modo de ser e estar no mundo. Uma estetização da existência, portanto, elaborada na estesia do corpo.

Referências

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1Referimo-nos às conferências Truth and Subjectivity e Christianity and Confession, no Dartmouth College, bem como ao debate que se sucedeu à uma outra conferência em Berkeley, sobre o mesmo tema. Estes textos foram recentemente publicados em francês sob o título L’origine de l’herméneutique de soi: conférences prononcées à Dartmouth College, 1980, pela Librairie Vrin. Em 1983, Foucault fará a conferência The Culture of the Self, novamente em Berkeley, também publicada em francês pela Vrin em 2015 sob o título La Culture de Soi, juntamente com a conhecida conferência Qu’est-ce que la Critique?.

2“(...) a terceira maneira [de formular as relações ‘subjetividade e verdade’], que chamaremos, se quiserem, histórico-filosófica, é a de se perguntar quais são os efeitos sobre esta subjetividade da existência de um discurso que pretende dizer a verdade sobre ela. É em torno desta terceira e última maneira de colocar a questão ‘subjetividade e verdade’ que [...] eu tentei me direcionar durante um certo número de anos” (FOUCAULT, 2014, p. 14).

3Ao centrarmos nossa atenção nos aphrodisia, é preciso fazer um esclarecimento conceitual elementar, porém não desnecessário. Há três substâncias éticas ao longo da história do homem enquanto sujeito de desejo: os aphrodisia, para os gregos; a carne, para os cristãos; e a sexualidade para os modernos. O que os distingue é a ênfase a um dos componentes da seguinte fórmula: ato-prazer-desejo. Na fórmula grega, os atos é que são enfatizados, “tendo o desejo e o prazer como subsidiários”. A fórmula cristã “enfatiza o desejo e tenta suprimi-lo”. Aí, “os atos devem se tornar neutros” e “o prazer é excluído tanto na prática quanto na teoria”. Já na fórmula moderna, o desejo “é enfatizado teoricamente e aceito na prática”, já que ele deve ser liberado; os atos não são importantes e o prazer “ninguém sabe o que é!” (FOUCAULT, 2001, p. 1219).

4O interesse por corpos juvenis belos e o encantamento por parte dos seus mestres pode ser visto em alguns textos de Platão, como: No Teeteto (142c; 150b) com o personagem que dá nome ao diálogo, reconhecidamente jovem belo e que dialoga com Sócrates a respeito do que é conhecimento; no Banquete (104a) com o autossuficiente personagem Alcibíades, que se considera o mais belo e ilustre cidadão, tanto no corpo quanto na alma e ainda acredita que o mestre Sócrates por ele cairá em encantos, o que não acontece para sua frustração. E no Fedro (238d) cuja beleza juvenil do personagem, que também intitula o texto, suscita um êxtase amoroso, repudiado no discurso de Lísias e redimido no discurso de Sócrates, que identificará a contemplação de belos corpo como interstício para a contemplação da Beleza em si.

5No diálogo que leva o seu nome, Alcibíades tem entre dezoito e vinte anos, a idade que se deixa o cuidado dos pedagogos para ingressar na vida política da cidade, mundo dos homens adultos e livres. No Banquete, quando reencontra Sócrates e seus convivas, já tem por volta dos trinta e cinco (MUCHAIL, 2011, p. 28).

6Cf. República 376de; Timeu 88c.

7A leitura desse trecho do Fédon como uma visão de que Platão vê a alma aprisionada pelo corpo não é mais difundida pelos comentadores da filosofia platônica atual (ARAÚJO, 2014, p. 41).

8Sobre a identificação da alma com o “eu” do homem (DODDS, 1951, p. 179).

9No Banquete (218e), assim que Alcibíades conclui seu louvor a Sócrates, este lhe responde: “Caro Alcibíades, é bem provável que realmente não sejas um vulgar, se chega a ser verdade o que dizes a meu respeito, e se há em mim algum poder pelo qual tu te poderias tornar melhor; sim, uma irresistível beleza verias em mim, e totalmente diferente da formosura que há em ti.”

10No Banquete (221c), no discurso de Diotima, Platão coloca a contemplação de belos corpos como um interstício para a contemplação da Beleza em si, que passa também pela contemplação das belas almas, estágios próprios do caminho dialético.

11Diz Alcibíades sobre o divino em Sócrates: “Uma vez, porém, que fica sério e se abre, não sei se alguém já viu as estátuas lá dentro; eu por mim já uma vez as vi, e tão divinas me pareceram elas, com tanto ouro, com uma beleza tão completa e tão extraordinária que eu só tinha que fazer imediatamente o que me mandasse Sócrates” (216e-217a).

Recebido: 18 de Agosto de 2016; Aceito: 19 de Abril de 2017

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