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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.32 no.64 Uberlândia jan./abr 2018  Epub 20-Set-2020

https://doi.org/10.14393/revedfil.issn.0102-6801.v32n64a2018-18 

Traduções

Teoria e terapia em Freud1

Luís Gustavo Guadalupe Silveira** 

**Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Professor de Filosofia no Instituto Federal do Triângulo Mineiro (IFTM - Câmpus Uberlândia). E-mail: luisgustavo@iftm.edu.br


[p. 106] O desenvolvimento da teoria psicanalítica após Freud compartilha certas características com a tendência positivista da nossa era; ele elimina a filosofia. Ou seria mais apropriado dizer que elimina a metafísica, especulações que são não-verificadas e inverificáveis segundo os padrões cientificamente aceitos. Com algumas poucas exceções notáveis (tais como Roheim, Rank, Reik) tanto as escolas ortodoxa quanto a revisionista empreenderam um esforço corajoso e bem-sucedido contra a metapsicologia e a metabiologia freudiana, contra as hipóteses e os “exageros” perturbadores de Totem e Tabu, Além do Princípio de Prazer, Moisés e o Monoteísmo. Essa purificação científica talvez seja planejada para ajustar a teoria às exigências da terapia e da técnica, mas o desenvolvimento tem tido um efeito bem diferente. As hipóteses e os exageros que foram eliminados são precisamente aqueles que se opõem à suave incorporação da psicanálise ao sistema cultural estabelecido e seu suave funcionamento como uma atividade socialmente recompensada. Se tomadas seriamente, as ideias metafísicas podem sugerir uma crítica à sociedade que é incompatível não somente com os objetivos terapêuticos da psicanálise, mas com a própria noção de psicanálise. Pois a “doença” a ser curada seria diagnosticada então como a própria história da humanidade, e a psicologia iria se tornar teoria social e política.

[p. 107] As duas hipóteses mais perturbadoras de Freud são as do Crime Primitivo e da Pulsão de Morte. Myth and Guilt, de Theodor Reik, trata da primeira. O subtítulo, “The Crime and Punishment of Mankind”, mostra a extensão da transgressão de Reik diante do quadro da psicologia como disciplina e técnica. Seguindo a ideia freudiana de que sob toda culpa individual subjaz uma culpa comum à humanidade e que ela é derivada do assassinato pré-histórico do pai-chefe da horda, Reik interpreta a narrativa Bíblica da Queda e da crucificação de Cristo como evidência mitológica do Crime Primitivo. A “árvore do conhecimento”, da qual Adão come o fruto proibido, é identificada com a “árvore da vida”, e a árvore é tomada como o símbolo totêmico do deus. Comer da árvore é assim comer o deus. Essa interpretação requer a eliminação de Eva e da serpente como pertencendo a uma tradição mitológica diferente. A árvore-símbolo então provê a ligação entre a história da Queda e a Paixão de Cristo. De acordo com histórias antigas, uma viga tirada da “árvore da vida” foi usada na cruz em que Jesus foi crucificado. “Uma única história” desenrola a Queda e a Paixão; o segundo Adão toma para si o crime do primeiro e sua punição. A crucificação assim aparece como reencenação e expiação pelo crime.

A reinterpretação de Reik contém vários outros elementos novos. Nós mencionamos apenas a ideia de que a ligação do crime de Adão à sexualidade é um “desvio” e dissimulação da real natureza do crime. Seu “significado primitivo [o assassinato do Deus-Pai] foi tal que ele teria necessariamente ameaçado e até mesmo aniquilado a fundação da crença Judaica e Cristã.” O resultado desse “desvio” foi o alívio de um sentimento de culpa insuportável. A humanidade evitou admitir a “integral gravidade do ato original” e a salvação pôde ser obtida.

Reik está preocupado, não com a história, mas com figuras e eventos míticos. Se aceitarmos sua posição, restam dois critérios principais para julgar a validade da sua interpretação: (1) ela é compatível com o nível e os resultados alcançados da mitologia comparativa e (2) ela joga nova luz sobre tendências e fatos históricos? Este crítico não tem competência para discutir a primeira questão, mas gostaria de oferecer algumas sugestões acerca da segunda.

A hipótese do crime primitivo pode elucidar o problema da origem e da persistência da dominação do homem pelo homem, ou em termos hegelianos, a dialética do Mestre e do Servo. Essas implicações não estão elaboradas no livro de Reik, mas estão claramente indicadas. Reik diz:

Os primeiros pecadores - também incluímos Cristo nesse grupo, pois Ele mesmo, ainda que livre de pecado, tomou o pecado original em seus ombros - têm assim uma dupla função no mito e na tradição lendária subsequente. Eles são rebeldes contra os deuses mais elevados, os pais, os quais eles desafiam e os quais eles desejam substituir e eles libertam a humanidade ao ensiná-la tudo que vale a pena conhecer ou realizar.

Nessa dupla função, as figuras bíblicas estão ligadas à grande cultura dos heróis do mundo pagão, tais como Prometeu, cujos ato e castigo [p. 108] têm um aspecto similar. A libertação é um crime, pois ela destrói os poderes santificados cuja dominação leva o homem até o ponto onde a libertação se torna possível. Ela é um crime necessário e benéfico porque sem ela o progresso no conhecimento seria impossível. A “dupla função” continua a manifestar a si mesma na atitude ambivalente diante da dominação - o assassinato do Pai Primitivo é seguido pelo sentimento de culpa, expiação, e por sua divinização. Não é difícil ver traços de sua ambivalência subjetiva e objetiva nas tentativas históricas de libertação, em seus limites aparentemente insuperáveis, suas derrotas e na restauração da dominação em um “nível superior”.

Mas a aplicação de suas noções à história nos leva além do âmbito da discussão de Reik. Ele permanece dentro do quadro da mitologia psicanalítica. O livro de Reik merece elogios como uma das cada vez mais raras tentativas de manter vivos os grandes insights filosóficos da teoria freudiana e por contrariar o declínio da teoria psicanalítica no domínio ansiosamente guardado dos especialistas técnicos. Ele é distorcido em alguns lugares pelo esforço do autor em escrever em uma veia humorística e colegial, e por apresentar sua análise no estilo de histórias de detetive, citando Sherlock Holmes e outros.

Talvez não haja um campo em que a teoria psicanalítica tenha feito tão pouco progresso como o da estética. Aqui, a inter-relação dos fatores subjetivo e objetivo, o artista individual e a obra de arte, apresenta um problema mais complexo. Foi simplesmente natural que a psicanálise, como a psicologia, focasse desde o começo no fator subjetivo; simplesmente natural, portanto, que a arte fosse interpretada em termos do artista. Se essa abordagem pode determinar adequadamente a presença específica do “universal no particular”, que é o problema central da estética, é algo que não pode ser discutido aqui.

De qualquer maneira, é fato que a exploração psicanalítica da arte não se beneficiou realmente (novamente com notáveis exceções, como o trabalho de Otto Rank e Marie Bonaparte) da grande realização da teoria freudiana - o estabelecimento da unidade da psicologia individual e do grupo. A obra de Freud revelou a extensão na qual o destino pessoal do indivíduo é o destino universal da humanidade. No reino da arte, a relação entre o destino universal e particular se manifesta numa forma única e ainda assim representativa. Além disso, a história da arte oferece diversos exemplos que corroboram e esclarecem a teoria freudiana da dinâmica dos impulsos primários, Eros e Pulsão de Morte, como forças sócio-biológicas. Dificilmente pode-se dizer que a psicanálise da arte fez esforços sérios para elaborar essas ideias.

Na antologia Arte e Psicanálise, William Phillips coletou vinte e sete artigos representativos: um (“Dostoevsky and Parricide”) pelo próprio Freud; a maior parte por psicanalistas do campo ortodoxo e também do revisionista (Franz Alexander, Marie Bonaparte, Erich Fromm, Ernest Jones, Ernst Kris, Otto Rank, Theodore Reik, Géza Roheim, Fritz Wittels e outros); e algumas contribuições de não psicanalistas, notavelmente [p. 109] o ensaio de Thomas Mann, “Freud and the Future”. Das três seções - estudos de obras e artistas individuais, ensaios teóricos e peças literárias - a seção teórica é a menor. Na verdade é difícil decidir quais das contribuições são teóricas. A seção sobre obras e artistas singulares inclui alguns ensaios tecnicamente excelentes; outros, de penosa irrelevância, são pouco mais que um catálogo dos afetos, desejos, atitudes etc. do inconsciente ou subconsciente, expressos (ou implicados) na obra de arte.

Não é de se surpreender que o artigo que realmente levanta o problema da “psicanálise e arte” seja a contribuição de um artista - o ensaio de Thomas Mann. O problema é colocado de forma sucinta na introdução de William Phillips: “como uma visão do mundo que foi deformado, ao menos parcialmente, por neuroses pode ser tida como verdadeira, objetiva ou moralmente estimulante”. De todo modo, em sua breve discussão do problema, o elemento “objetivo” da arte, seu verdadeiro valor, é imediatamente associado com a “pressão, de diferentes fontes, de recrutar os artistas para o serviço de algum bem maior ou alguma verdade mais ampla”. Essa fraseologia esquiva-se de afirmar se tal “pressão” não é a da arte ela mesma, sua vida e desenvolvimento internos; ou se a “neurose” artística ou “loucura messiânica” não é uma modalidade historicamente específica da razão. Que as noções de arte como neurose e arte como verdade não são simplesmente (como Phillips defende) dois “mitos” é algo que teria ficado claro se o volume tivesse incluído mais “peças literárias”. Esse crítico está pensando principalmente nos manifestos do surrealismo, os escritos de Walter Benjamin, Gaston Bachelard, Georges Bataille, Henri Michaux, Paul Valéry. Que tal um segundo volume com os testemunhos dos artistas?

1Nota do Editor: “Teoria e Terapia em Freud” contém uma resenha de dois livros recentes sobre Freud publicados na The Nation, 185 (Setembro 1957), p. 200-202. A resenha demonstra o contínuo interesse de Marcuse acerca da teoria freudiana e prontidão para se envolver em debates públicos sobre o legado de Freud.

Recebido: 17 de Outubro de 2016; Aceito: 19 de Abril de 2017

Teoria e Terapia em Freud (Herbert Marcuse)*

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Traduzido do original inglês publicado em Philosophy, Psychoanalysis and Emancipation. London; New York: Routledge, 2011. Publicação da tradução com permissão de Peter Marcuse, Executor da Propriedade Intelectual de Herbert Marcuse, cuja permissão é necessária para qualquer publicação futura. Material suplementar do trabalho anterior não-publicado de Herbert Marcuse, em grande parte nos Arquivos da Universidade Goethe em Frankfurt/Main, está sendo publicado pela Routledge Publishers, na Inglaterra, em uma série de seis volumes editada por Douglas Kellner, e uma série alemã editada por Peter-Erwin Jansen, publicada por zu Klampen Verlag, Alemanha. Todos os direitos de publicação futura são retidos pela Propriedade Intelectual. (N.T.)

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