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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.32 no.65 Uberlândia maio/ago 2018  Epub 21-Set-2020

https://doi.org/10.14393/revedfil.issn.0102-6801.v32n65a2018-02 

Artigos

Contribuições da fenomenologia da percepção para compreender a corporeidade de pessoas com autismo

Contributions from phenomenology of perception to understand the corporeity of people with autism

Contribuciones en la fenomenologia de la percepción para compreender la corporeidade de personas com autismo

Ana Beatriz Machado de Freitas* 

*Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-Goiás). Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG-Campus Goiânia Oeste) e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Inhumas (FACMAIS). E-mail: bianapoeta@gmail.com


Resumo

Apresenta-se um estudo qualitativo bibliográfico em que se buscou identificar descrições referentes a experiências perceptivas por parte de quem apresenta transtorno do espectro do autismo (TEA). Foram selecionados excertos de publicações da autora Temple Grandin ou a ela referentes. Destacaram-se as descrições relacionadas à sensorialidade. Identificou-se que as alterações sensoriais interferem na autopercepção do corpo como unidade perceptiva nas relações com o mundo. À luz da obra Fenomenologia da Percepção, de Merleau-Ponty, discutiu-se a relevância da constituição do corpo próprio no qualitativo das experiências do perceber. Atenta-se para a importância da contribuição de pesquisas fenomenológicas a partir de autobiografias de pessoas com TEA, assim como do olhar para os movimentos e intencionalidades de seus corpos. São trazidas reflexões sobre possibilidades de ampliar a interatividade entre autistas e não autistas, a partir da compreensão dos diferenciais perceptivos, e assim favorecer a inclusão educacional de pessoas com autismo.

Palavras-chave: Autismo; Percepção; Corpo; Fenomenologia; Inclusão

Abstract

This article presents a qualitative bibliographical study that sought to identify descriptions about perceptual experiences from people with autism spectrum disorder (ASD). Excerpts from Temple Grandin’s publications or concerning this author were selected. Descriptions related to sensory aspects were highlighted. It was identified which sensory disorders affect the body’s self-perception as a perceptual unity in its relations with the world. In light of Merleau-Ponty’s work, Phenomenology of Perception, it discussed the importance of the proper body constitution in the quality of perceptual experiences. It called attention to the importance of the contribution of phenomenological research from the autobiographies of people with ASD, as well as the look at their bodies movements and intentionalities. Reflections are made on possibilities to increase the interactivity between autistic and non-autistic individuals, based on the understanding of perceptual differentials, and thus favor the educational inclusion of people with autism.

Keywords: Autism; Perception; Body; Phenomenology; Inclusion

Resumen

En este trabajo se presenta un estudio cualitativo bibliográfico que trató de identificar las descripciones sobre experiencias perceptivas de los que tienen trastorno del espectro del autismo (TEA). Extractos de publicaciones de la Temple Grandin o en relación con ella fueron seleccionados. Los aspectos más destacados fueron las descripciones relacionadas con la sensorialidad. Fue identificado que las alteraciones sensitivas intervienen en la autopercepción del cuerpo como una unidad perceptiva en sus relaciones con el mundo. A la luz de la obra Fenomenología de la Percepción, de Merleau-Ponty, fue discutida la importancia de la constitución del cuerpo próprio en la calidad de las experiencias. Posibilidades de reflexiones son presentadas a extender la interacción entre autista y no autista, a partir de la comprensión de las diferencias de percepción, y por lo tanto promover la inclusión educativa de las personas con autismo.

Palabras clave: Autismo; Percepción; Cuerpo; Fenomenología; Inclusión

Introdução

A obra Fenomenologia da Percepção, de Merleau-Ponty, tem subsidiado pesquisas que envolvem o perceber e o corpo /subjetividade de pessoas com deficiência, notoriamente aquelas com deficiência física ou visual. Isso se deve aos exemplos trazidos pelo filósofo: um sujeito amputado sente/percebe o membro fantasma1 e como a bengala se faz extensão do corpo para o cego.

Em relação ao membro fantasma, o filósofo argumenta que o fato de o sujeito percebê-lo não se explica somente pela fisiologia. As lesões dos centros nervosos “[...] não se traduzem pela perda de certas qualidades sensíveis ou de certos dados sensoriais, mas por uma diferenciação da função. (MERLEAU-PONTY, 1945/2011, p. 112) O cérebro não meramente absorve ou canaliza estímulos e informações, mas “torna-se o lugar de uma ‘enformação’ que intervém antes mesmo da etapa cortical”. (MERLEAU-PONTY, 1945/2011, p. 114) Isso significa que, antes que se opere uma racionalidade, o corpo sente/percebe e move-se de forma existente para o próprio sujeito. Daí o sentido da assertiva: “Só posso compreender a função do corpo realizando-a eu mesmo e na medida em que sou um corpo que se levanta em direção ao mundo”. (MERLEAU-PONTY, 1945/2011, p. 114)

Assim, não se trata também de um “problema” psicológico ou de uma alteração consciente de não assumir o membro. Aquilo que nem as explicações fisiológicas nem as psicológicas conseguem justificar torna-se compreensível enquanto fenômeno de um sujeito-corpo engajado no mundo e que só consegue perceber-se e perceber o mundo pela perspectiva qualitativa desse engajamento, pelos horizontes de sentido que ele suscita: “Aquilo que em nós recusa a mutilação e a deficiência é um Eu engajado em um certo mundo físico e inter-humano, que continua a estender-se para seu mundo, a despeito de deficiências e amputações, e que, nessa medida, não as reconhece de jure”. (MERLEAU-PONTY, 1945/ 2011, p. 121) Portanto, um corpo “em si”, objetivamente, visivelmente amputado ou paralisado nem sempre o é na dimensão do “para si”.

O que de fato importa não é caracterização clínica que informa um quadro visível supostamente idêntico para todos que apresentam aquela condição aparente, independente do contexto e do sentir-se em contextos. A dimensão do perceber(-se) configura modos de existência a partir de uma “enformação” do corpo. Nessa ótica, compreende-se a filosofia merleau-pontiana na proposição de abraçar o desafio fenomenológico de repor as essências na existência.

A essência do ser não é uma abstração, uma anima preexistente ou produto de um cogito cartesiano apartado do corpo; pelo contrário, ela só se esboça pelo ser e para o ser na “mundanidade”, pelos horizontes e movimentos de intenção que o amálgama corpo-no-mundo suscita. É o corpo quem primeiro se sensibiliza; daí a ser referido por Merleau-Ponty como veículo da percepção e que há de se considerar um cogito perceptivo, um saber do corpo. (MERLEAU-PONTY, 1945/ 2011)

As considerações supracitadas também condizem com os exemplos de percepção relacionados ao ver/não ver, referidos pelo filósofo. “Sabemos” o quanto é preciso desviar o corpo para que parte dele ou de um objeto que portamos ou uma peça de nosso vestuário não esbarre em um elemento do ambiente. Não necessitamos previamente efetuar cálculos matemáticos para posteriormente executar o movimento sem cometer deslizes. O mesmo ocorre quando dominamos a dirigibilidade de um veículo: mover o guidão da bicicleta ou volante e pedais de um carro exprime um movimento intencional, um para onde e como nos deslocamos (portanto, nosso corpo) em certa extensão, ritmo e temporalidade.

Quando um elemento se torna anexo ao corpo, literalmente o incorporamos. Assim se explica o fato de a bengala se fazer tato para o cego, como cita Merleau-Ponty (1945/2011), e, de modo análogo, como menciona Iwakuma (2002), a cadeira de rodas para o cadeirante. Este último autor enfatiza que nas condições de deficiência que requerem um suporte material, este se torna parte da identidade do usuário. No entanto, a dimensão subjetiva dessa incorporação (embodiment) é variável. A pesquisa de D’Ángelo et al. (2012) com cadeirantes atletas e não atletas mostrou que a maioria dos primeiros sente a cadeira como parte do corpo, ao passo que a maioria dos últimos referiu a ela como um objeto que auxilia na locomoção. Possivelmente esse diferencial se deva ao fato de os atletas dependerem da cadeira para um êxito competitivo, outra tarefa para além do desempenho de atividades diárias.

Merleau-Ponty (1945/2011, p. 146-147, grifo do autor) elucida:

Em última análise, se meu corpo pode ser uma “forma” e se pode haver diante de figuras privilegiadas sobre fundos indiferentes, é enquanto ele está polarizado por suas tarefas, enquanto existe em direção a ela, enquanto se encolhe sobre si para atingir sua meta, e o “esquema corporal” é finalmente uma maneira de exprimir que meu corpo está no mundo.

Como ratifica Nóbrega (2008, p. 142), nesta perspectiva “os movimentos acompanham nosso acordo perceptivo com o mundo. Situamo-nos nas coisas dispostos a habitá-las com todo nosso ser”. Essa autora analisa que tal compreensão de percepção contrapõe-se às representações dos órgãos dos sentidos como receptores passivos; contrapõe-se também à ideia de um associacionismo órgão-função, da qual se depreende que o comprometimento em um órgão ou parte do corpo inviabilizaria a percepção, que supostamente dependeria daquele “local” do organismo para ser suscitada2.

Trabalhos relacionados às experiências perceptivas de pessoas que apresentam privação de um ou mais sentidos - cegos, surdos, surdocegos (MASINI et al., 2012; MARQUES, 2007; PORTO, 2002) revelam, pelo que trazem os testemunhos dos sujeitos, que a percepção não é inexistente, mas diferenciada, visto que é o corpo, como um todo, que percebe; não o somatório de órgãos. Certas perceptualidades são, inclusive, inacessíveis ou inimagináveis para pessoas que não apresentam essas condições sensoriais. Marques (2007), ao discorrer sobre a corporeidade surda, destaca, por exemplo, que os sons têm uma “fisicalidade”, isto é, uma frequência do campo da Física cuja gradação vibracional é apreendida por muitos sujeitos surdos. Talvez esta não seja uma impossibilidade para ouvintes; no entanto, a circunstância de perceber e perceber-se em um mundo (que é fundo das percepções) silencioso facilita a apreensão (escuta corporal) de tais sutilezas.

Em relação ao autismo, esse transtorno do desenvolvimento não se caracteriza pela perda de um ou mais sentidos, tampouco de movimentos do corpo. No entanto, implica alterações na percepção sensorial e comumente movimentos atípicos, como balanços e tiques. Assim, sugere-se passível de ser desvelado como alteração no plano do perceber, o que se aponta revelador de uma corporeidade (modo de percepção) característica. Apesar disso, há poucos estudos sob esse enfoque e, entre eles, sobressai o vínculo com contextos pedagógicos - como os trabalhos de Rasmussen (2005) e Marocco (2012) - ou acenam propostas de educabilidade da pessoa com autismo, como o método pedagógico TEACCH.3

Peculiaridades do autismo na percepção de mundo

O autismo foi descrito pela primeira vez na literatura médico-científica em meados dos anos 1940 pelos psiquiatras Leo Kanner e Hans Asperger, a partir da observação do comportamento apresentado em certas crianças, tais como tiques, balanços, linguagem verbal (quando presente) marcada por clichês, sem se prolongar como conversa, aparente indiferença pela realidade externa e reações sensórias atípicas (algumas demasiadamente intensificadas e outras diminuídas ou aparentemente ausentes) (SACKS, 1995). O transtorno foi confundido ou associado inicialmente com esquizofrenia e chegou-se a especular que seria decorrente da falta de suporte afetivo dos pais, particularmente das mães; no entanto, da década de 1960 em diante, tal interpretação passou a ser questionada diante de evidências que apontavam para falhas biológicas no neurofuncionamento (SACKS, 1995).

Atualmente, vem-se reafirmando o autismo como transtorno neurobiológico de origem indeterminada, mas especula-se que concorram para o quadro tanto fatores genéticos quanto ambientais (FRANCE PRESSE, 2014). Chama atenção a divulgação de um estudo de 2014, do qual foi possível identificar mais de cem genes relacionados ao risco de desenvolvimento do autismo e esses componentes hereditários migrariam para a formação de sinapses, para controle dos genes cerebrais e para a cromatina; esta última revela “[...] uma arquitetura de alto nível que empacota ou expõe grandes áreas da geografia genômica em resposta ao ambiente” (SAMPEDRO, 2014). O fato é que a expressão comportamental do autismo, em síntese, caracteriza-se por déficits qualitativos nas interações sociais, na comunicação verbal e não verbal e nas atividades lúdicas e imaginativas, o que se convencionou chamar de tríade de Wing, em alusão à pesquisadora Lorna Wing, cujos estudos concorreram para que o transtorno ganhasse o delineamento distinto da esquizofrenia. (SACKS, 1995)

A quarta versão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM IV), publicada em 1994, enumera, na caracterização do autismo, a inabilidade de participação em brincadeiras de faz de conta ou imaginativas, mas não a elenca como área. Destaca, no entanto, além dos déficits qualitativos nas interações sociais e na comunicação, padrões de comportamento e estereotipias, tais como: inflexibilidade a rotinas, preocupação excessiva com focos ou interesses e ainda maneirismos motores. (GADIA; TUCHMAN; ROTTA, 2004, p. 58)

A versão mais recente do DSM, o DSM 5 (APA, 2013), emprega a denominação Autism Spectrum Disorder (ASD) - em português Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) - para abarcar o leque de manifestações relacionadas com o perfil autístico. Alguns são mais, outros menos sensíveis a mudanças de rotina, por exemplo. Outros chegam a se comunicar dialogicamente, principalmente aqueles delimitados no DSM IV como pessoas com síndrome de Asperger, e nem todos apresentam comprometimento intelectual associado, traço que também ocasiona variantes nas manifestações comportamentais.

Tudo isso diz do autismo enquanto entidade clínica. Entretanto, nada diz do ser autista, da compreensão de como a pessoa com autismo, de seu saber do corpo, percebe o mundo. E este saber é fundamental não só para que se amplie o entendimento científico, mas, sobretudo, para os sujeitos com TEA sejam compreendidos e, desse modo, possam ser desenvolvidas atitudes, no plano interpessoal, bem como ações ou métodos terapêuticos ou pedagógicos que possam vir ao encontro de suas necessidades.

Eric Schopler, psiquiatra que desenvolveu o método TEACCH, credita o êxito do método ao fato de ter considerado o modo como as pessoas com autismo se sensibilizam sensorial e cognitivamente em relação ao ambiente. Em seu doutorado, defendeu que o autismo seria um comprometimento nos modos de realização e compreensão de experiências e que decorreria fundamentalmente de um distúrbio do processamento sensorial. (SCHOPLER, 2004) Em seu entendimento, o mundo, para as pessoas com autismo, apresenta-se como uma série de demandas sem relação entre si; daí a limitada compreensão dos sentidos das atividades e das lógicas sociais. Seria como se pertencessem a cultura particular, em que os indivíduos se assemelham por certas características de comportamento e sensibilização, tais como: limitações na capacidade de estabelecer empatia, em enfrentar rupturas de rotina ou de organização preestabelecidas, além de hiper ou hipossensibilidade à estimulação gustativa, tátil, auditiva, olfativa, visual ou à dor.

Schopler não era um fenomenólogo. Na realidade, fundamentava-se no cognitivismo (visto que partia da premissa de que o autismo decorria de uma alteração de mecanismos cognitivos) e na psicologia comportamental (com o objetivo de planejar o ambiente de aprendizado cuidadosa e minuciosamente de maneira que os sujeitos compreendessem a rotina, o passo a passo de cada tarefa e não se sentissem sensorialmente sobrecarregados por estímulos). Assim, o termo “percepção”, na literatura desse pesquisador, implica funcionamento cognitivo relacionado às sensações. Não obstante, tem o mérito de situar-se na perspectiva da pessoa com autismo, em como ela se sente; e tal compreensão adviria do conhecimento de uma lógica neurofuncional particular, como também acentuam os estudos de Baron-Cohen, Leslie e Frith (1985) e os descritos por Sacks (1995), Grandin (1995; 2006) e Grandin e Johnson (2006).

Segundo Rasmussen (2005), não é comum na literatura que o autismo seja descrito como bodily disorder, isto é, como um distúrbio da corporeidade, esta última compreendida sob o conceito de corpo próprio ou fenomenal, referido por Merleau-Ponty (1945/2011).4 Para Merleau-Ponty (1945/2011), o corpo se faz próprio ao se configurar “esquema” (“esquema corporal”),5 pois assim põe-se em intenção, perspectiva, justamente pela ciência de perceber o mundo e nele se perceber. Ainda que o mundo, em sentido lato (contexto, ambiente, cultura), preexista ao sujeito, o campo fenomenal só se estabelece pela relação entre quem percebe e o horizonte/campo percebido, pelo sentido daí emergente.

A esse respeito, merece destaque o caso de Schneider, referido como Schn, que Merleau-Ponty, na obra supracitada, destacou como exemplo de distúrbio da percepção. Trata-se um homem com um ferimento na região occipital, o qual originou distúrbios motores e visuais. Provavelmente, segundo o filósofo, seria classificado como possuidor de cegueira, pela psiquiatria, uma vez que não conseguia, por exemplo, movimentar seus braços e pernas sob comandos, caso estivesse de olhos fechados. Além disso, só reconhecia objetos com êxito se executasse um movimento e fixasse visualmente o membro encarregado de fazê-lo. Caso os objetos estivessem ausentes, não lhe seria possível formar a representação visual correspondente.

A partir de descrições do comportamento desse homem, Merleau-Ponty critica as análises que avaliam a percepção ora como deficiência de órgãos, ora como disfunção psicológica. “O caso Schn mostra-nos, ao contrário, deficiências que concernem à junção entre sensibilidade e a significação e que revelam o condicionamento existência de uma e de outra”. (MERLEAU-PONTY, 1945/2011, p. 183) O filósofo exemplifica como a cisão entre realidade preexistente e mundo percebido aparece nesse sujeito quando um objeto lhe é apresentado: Schn consegue enumerar os atributos a partir do que os órgãos dos sentidos sugerem; diz, por exemplo: é negro, é azul, tem uma mancha, é alongado, pode ser de vidro... Todavia, o objeto em síntese, o “todo”, não lhe figura existente, comunicante:

Os dados sensíveis limitam-se a sugerir essas significações, como um fato sugere ao físico uma hipótese; o doente, como o cientista, verifica mediatamente e precisa a hipótese pelo confronto dos fatos [...]. Esse procedimento põe em evidência, por contraste, o método espontâneo da percepção normal, este tipo de vida das significações que torna a existência concreta do objeto imediatamente legível, e que até mesmo só através dela deixa aparecer suas “propriedades sensíveis”. É essa familiaridade, essa comunicação com o objeto que aqui está interrompida. No normal, o objeto é “falante” e significativo, o arranjo de cores imediatamente “quer dizer” algo, em quanto no doente precisa ser trazida de outro lugar por um verdadeiro ato de interpretação. Reciprocamente, no normal as intenções do sujeito refletem-se imediatamente no campo perceptivo, polarizam-se ou marcam com seu monograma, ou enfim sem esforço fazem aparecer nele uma onda significativa. (MERLEAU-PONTY, 1945/2011, p. 184)

Clinicamente, não se pode comparar Schn. com um autista; em momento algum o filósofo o afirma ou sugere. Entretanto, no que concerne ao caráter de percepção assumido pelo corpo de Schn, é possível inferir similaridades com a percepção autista.

Rasmussen (2005), por exemplo, traz um estudo qualitativo de observação de uma criança autista em que corrobora uma leitura do autismo como bodily disorder. Esse autor, que é professor, destaca o quanto a comunicação corporal é eminente em brincadeiras de crianças de idade pré-escolar, no faz de conta. Se uma criança diz à outra: eu sou o doente e você vai me tratar, não é preciso que as regras sejam enumeradas e explicadas previamente, com o que cada criança irá dizer e como irá se comportar. No dizer de Rasmussen (2005, p. 13), opera-se uma “zona similar de ações significativas” e nela as interações e a comunicação fluem pela apreensão recíproca do que o corpo do outro diz.

Isso não acontecia, porém, na criança J. (com autismo), acompanhada por Rasmussen (2005) desde que ela possuía a idade de um ano e meio até os cinco anos. Não se observava uma modulação do corpo às experiências vividas, isto é, um movimento que sincronizasse, correspondesse ao que o mundo convidava a perceber e interagir. O menino J. se comportava, no uso de seu brinquedo favorito no parquinho da escola, como se a realidade fosse estática, tanto quanto à temporalidade quanto às possibilidades de movimentação no espaço. Permanecia por longo tempo no brinquedo em questão sem demonstrar intenção de variar de entretenimento. Caso outra criança já o estivesse ocupando, não tomava qualquer iniciativa (se aproximar, reivindicar, ou buscar outro brinquedo ou brincadeira). Além disso, observava-se que iniciava certas ações, mas eram constantes os “gaps”, isto é, a falta de conexão com atos subsequentes; agia como se houvesse esquecido ou como se não houvesse mais a unidade da ação atual com a imediatamente anterior nem a orientação para algo imediatamente após. (RASMUSSEN, 2005)

Tendo como referência as contribuições de Merleau-Ponty, Rasmussen (2005) sugere que, em acordo com a Fenomenologia da Percepção, (MERLEAU-PONTY, 1945/2011) a criança J. seria um exemplo de comprometimento no esquema corporal. De fato, Merleau-Ponty (1945/2011) fala em esquema corporal dinâmico, que pressupõe a sensação de potência do próprio corpo em reconhecer-se e movimentar-se no tempo e no espaço em consonância com o percebido. Daí a adoção da expressão “corpo próprio”, que diz respeito à “função normal que torna possível o movimento abstrato, é uma função de ‘projeção’ pela qual o sujeito do movimento prepara diante de si um espaço livre onde aquilo que não existe naturalmente possa adquirir um semblante de existência”. (MERLEAU-PONTY, 1945/2011, p. 160-161)

Assim, trata-se de uma potência não somente física, mas também cognitiva-imaginativa. Adiante, o fenomenólogo compara: para pessoas que apresentam determinados comprometimentos neurológicos que afetam a motricidade e os sentidos, “[...] o mundo só existe como um mundo inteiramente pronto ou imobilizado, enquanto no normal os projetos polarizam o mundo e fazem aparecer nele, como que por magia, mil sinais que condizem à ação”. (MERLEAU-PONTY, 1945/2011, p. 161)

Era nessa imobilidade que o mundo se sugeria percebido pela criança de Rasmussen (2005). No entanto, esse pesquisador pôde notar que, ao longo de um período de três anos e meio, aproximadamente, houve um “alargamento” do corpo vivido (corpo próprio) por parte de J., no que concorreram a intensa comunicação corporal proporcionada diariamente no ambiente escolar e a afetividade circulante. Quanto mais os interlocutores se mostravam corporalmente e expressivos, mais o menino se mostrava brincalhão e risonho; próximo dos cinco anos de idade, começou a exibir algumas manifestações de faz de conta.

Marocco (2012), também numa leitura fenomenológica merleau-pontiana, traz elementos para reflexão acerca da configuração dos modos de perceber a partir da observação de crianças e adolescentes com espectro autista em idade escolar. Essa autora ressalta a importância da dimensão afetiva e das interações que se estabelecem a partir do movimento corporal dos sujeitos no processo de constituição do corpo próprio e analisa que a expressão deste último já acontece. Todavia, nem sempre é significada pelo contexto como tal.

A mencionada pesquisadora, que acompanhou alguns desses sujeitos no cotidiano de escolas, notou que eles exploravam o ambiente correndo pelos espaços ou então pelos sentidos tato, paladar e olfato, ou ainda pela grafia fora dos contornos preestabelecidos, por gargalhadas, empurrões ou gritos, movimentos/expressões pelos quais percebiam e tornavam os espaços escolares como “próprios” e, recursivamente, faziam-se existentes (corpo-no-mundo). Esses momentos configuram, no dizer da autora, um “linguajar dos corpos” e revelam focos que os mantêm atentos; portanto, são potenciais pontos de partida para interações favorecedoras da inclusão escolar e para a compreensão dos sujeitos em suas sensibilidades perceptivas, pelas quais se diferem (MAROCCO, 2012). Tal diferenciação, como sustenta a pesquisadora, não deve ser atribuída puramente à sintomatologia do autismo, mas à concretude das relações experienciadas pelos sujeitos. Uma “instabilidade emocional”, por exemplo, não é abstratamente um sintoma fixo de um quadro clínico, mas algo que se transcorre em contextos e, pelas interações, é passível de transformação.

Maturana (2001, p. 86) destaca que cada ser vivo traz uma história de interações que passam a ser constitutivas da presente: “a interação inicial desencadeia uma mudança estrutural tal que abre espaço para uma segunda interação [...]”. Esse autor lembra o trabalho da psicóloga Nolfa Ibañez, que atuou com crianças autistas no sentido de “retirá-las” do quadro característico de autismo. A profissional, em consonância com a Biologia fenomenológica de Maturana, enfatizou, na relação com as crianças, a construção de um sistema de interação - e não a aprendizagem automatizada de condutas. Assim, ampliando as disposições do grupo para interagir, pelas emoções nele desencadeadas, pôde-se verificar o recrudescimento de condutas então consideradas patológicas ou modificações qualitativas (IBAÑEZ, 2000).

O desafio, no que tange à relação com sujeitos com espectro autista, é a identificação do limiar entre o reconhecer suas manifestações corporais como um modo de ser, perceber e de se fazer no mundo e o intervir rumo a uma “culturalização” não autista, no entendimento de que esta é necessária. Afinal, as experiências do corpo próprio, do esquema corporal dinâmico, dependem do reconhecimento de sentir-se parte, porém, diferenciado, reconhecimento que põe o corpo em perspectiva (movimento, intenção) para a busca de interações. Contudo, se o sujeito sentir a culturalização como ameaçadora, recuará no processo, visto que o corpo (existência) se sentirá ameaçado. Em última análise, o que ferir a sensibilidade possivelmente será sentido como ameaça à própria vida.

O que a literatura traz são indicadores, pois, se ainda se sabe pouco “sobre” o autismo (entidade clínica), menos ainda dos próprios sujeitos, por suas vozes. O que virtualmente eles parecem “dizer”, pela corporeidade observada, coincidirá com o sentir? Como interroga Marocco (2012, p. 42): “haveria uma forma específica pela qual esse ente se pergunta pelo ser que é?”

Desde meados da década de 1980, relatos autobiográficos começaram a surgir e vêm oferecendo contributos à compreensão de como esses sujeitos se percebem em corporeidade e nas relações com o mundo. O primeiro vindo a público foi o de Temple Grandin, que aqui elegemos para nossas reflexões.

Temple Grandin: autopercepções de uma corporeidade autista

Mary Temple Grandin6, nascida em 1947, é professora universitária graduada em Psicologia, Ph.D em Ciência Animal e projetista de engenhos de manejo de gado. Ganhou notoriedade em seu país natal (Estados Unidos) e posteriormente na comunidade científica mundial por ter publicado sua autobiografia, em 1986, revelando-se autista. A recepção inicial à sua obra foi de desconfiança, já que nunca tinha vindo a público uma inside narrative de um autista, isto é, uma narrativa sobre autismo proveniente de uma pessoa com o espectro, um discurso de quem fala “de dentro”, da condição de ser. Prevalecia o dogma da medicina, como assume Sacks (2006), de que os autistas não teriam “vida interna” e, caso a possuíssem, seria inacessível.

Uma década depois, Grandin (2006) publicou Thinking in pictures: my life with autism. Apesar de não ser uma autobiografia, nesse livro permanece o cunho autobiográfico, agora ampliado pelas experiências pessoais e profissionais - de si e de outras pessoas com autismo - e enriquecido pelo que pesquisou sobre o espectro.

A repercussão do trabalho de Grandin é expressiva, tanto em sua área de atuação profissional (seus engenhos são referência para criadores de animais e para a implementação de políticas públicas no Canadá e Estados Unidos, no que tange à forma de abate de reses), quanto pelos estudos e reflexões acerca do autismo. Não obstante as inegáveis conquistas pessoais e profissionais, o alto desempenho intelectual e o reconhecimento social obtido, Grandin não deixa de sentir desconfortos e estranhamentos nas relações com o mundo. Pelo que se depreende de seus escritos, suas experiências perceptivas não transcorrem semelhantemente à maioria das pessoas, principalmente no que se refere à sensorialidade.

Como os diferenciais da dimensão perceptiva evidenciam-se na sua obra (GRANDIN, 1992; 1995; 2006; GRANDIN; JOHNSON, 2006) e são corroborados por outros sujeitos com espectro autista referidos por ela, inferimos que as descrições autobiográficas poderiam abrir um caminho para melhor compreensão da corporeidade da pessoa autista à luz da fenomenologia.

Merleau-Ponty (1945/2011) defende que há um cogito perceptivo, um saber do corpo. Posteriormente, o filósofo o reafirma e sugere que aí deve ser empreendida uma arqueologia (MERLEAU-PONTY, 1968), no sentido de ir ao não refletido (i-refletivo, o ainda não pensado, não intelectualizado), mas que indica justamente as condições de possibilidade do intelecto. Na Fenomenologia da percepção, o autor assinala o quão desafiante é realizar esse “retorno às coisas mesmas”, isto é, retornar ao impacto imediatamente provocado pelo que o mundo nos suscita, nos faz experienciar, antes de qualquer racionalização a respeito (MERLEAU-PONTY, 1945/2011). Nas suas palavras, supõe “retornar a este mundo anterior ao conhecimento do qual o conhecimento sempre fala e em relação ao qual toda determinação científica é abstrata, significativa e dependente, como a geografia em relação à paisagem (...). (MERLEAU-PONTY, 1945/2011, p. 4)

Como Grandin e outras pessoas com autismo experienciam as paisagens? O que é como o mundo lhe perpassa? Como se sentem ou não engajadas como corpo no mundo? Sentem-se “corpo próprio”?

Selecionamos uma bibliografia da autoria de Temple Grandin (GRANDIN, 1992; 1995; 2006; GRANDIN; JOHNSON, 2006) ou a ela referente (GRANDIN, 2013; SACKS, 1995). Desta, foram destacados excertos do que a autora diz a partir de experiências perceptivas relacionadas à sensorialidade. As descrições foram trazidas à leitura fenomenológica, com subsídio principal na obra Fenomenologia da Percepção (MERLEAU-PONTY, 1945/2011)7. Esse destaque se deu devido à constatação de que as descrições mais recorrentes dos escritos de Grandin que se referem a dificuldades pessoais de adaptação (ao ambiente físico e ao meio social) aparecem relacionadas a algum aspecto da sensorialidade.

De fato, descrições relativas às hipo e hipersensibilidades e à percepção sensorial fragmentada são comuns nos relatos de pessoas com TEA, como Tito Mukhopadhyay, jovem que percebe sua audição proeminente em relação à visão e esta última adiante do tato, (MUKERJEE, 2004) além de outros citados por Grandin (GRANDIN, 1995; 2006; GRANDIN; JOHNSON, 2006). Os sentidos não se sincronizam como um todo nas interações com o meio; um deles pode se sobressair em relação aos demais. Ao mesmo tempo, torna-se desnorteante prestar atenção à simultaneidade de expressões sensoriais provenientes de um mesmo interlocutor ou de um ambiente, motivo pelo qual, como observa Grandin (2006), muitos autistas tapam os ouvidos. Trata-se de uma maneira de tentar prestar atenção.

Grandin (2006) defende a proposta de integração sensorial, terapêutica que vem sendo utilizada na reabilitação com sucesso, especialmente na terapia ocupacional; salienta que a redução da sensibilidade ao toque, por exemplo, se faz pertinente para acalmar a pessoa com autismo. Além disso, como refere em outro artigo, evita constrangimentos semelhantes aos que enfrentou na infância:

Eu sempre me comportava mal na igreja porque a textura da anágua arranhava e provocava coceira. Eu sentia as roupas de domingo diferentes das demais. A maior parte das pessoas se adapta à sensação de diferentes texturas das roupas em poucos minutos. Mesmo agora eu evito usar tipos diferentes de roupas de baixo. Levo de três a quatro dias para me adaptar a novas texturas. (GRANDIN, 1992, p. 108, tradução nossa)

Grandin (2006) menciona que outras pessoas com o espectro têm dificuldades em processar estímulos provenientes de duas fontes simultâneas ou que penetram por diferentes vias (por exemplo, auditivas e visuais ao mesmo tempo). Ela cita o exemplo da escritora Donna Williams, que afirma se sentir como mono channel, isto é, como alguém que não consegue ver e ouvir ao mesmo tempo; se escuta alguém falar, perde a “sintonia” do visual, e vice-versa. Por isso, prefere falar ao telefone, pois assim não se distrai enquanto olha para o interlocutor. (GRANDIN, 2006)

Na obra supracitada, Grandin acrescenta que essa é a razão pela qual muitas pessoas com TEA têm dificuldade de estabelecer contato olho a olho. Suspeita, também, que a demora para desenvolver a fala tenha a ver com essa dificuldade, pois afeta o entendimento dos limites, isto é, de quando, no discurso, termina uma palavra e começa outra.

A autora declara que se sente menos afetada quanto a lidar com a simultaneidade de estímulos sensoriais. Mesmo assim, sente-se imersa em um turbilhão de sensações auditivas perturbadoras.

Minha audição funciona como se eu usasse um aparelho auditivo com o controle de volume fixo no “super alto”. É como um microfone ligado que capta tudo ao redor. Eu tenho duas escolhas: deixar o microfone ligado e ser inundada pelo som, ou desligá-lo. Minha mãe relata que algumas vezes eu agia como se fosse surda. Testes auditivos indicaram que minha audição era normal. Eu não consigo modular os estímulos auditivos que entram. [...] Eu sou incapaz de falar ao telefone dentro de um escritório barulhento ou no aeroporto. Qualquer pessoa consegue falar ao telefone em um ambiente barulhento, mas eu não. Se eu tento apagar o ruído de fundo, eu também apago o telefone [...]. Barulhos altos e bruscos ferem meus ouvidos como a broca de um dentista batendo em um nervo. [...]. A criança autista cobre seus ouvidos porque certos sons doem”. (GRANDIN, 1992, p. 107, tradução nossa)

Outro problema é o assincronismo entre os ouvidos que, em seu caso, chega a um intervalo de mais de um segundo de diferença de percepção. Isso compromete a sincronização de ritmos, tanto nos gestos (como bater palmas ao mesmo tempo que alguém) quanto na fala: “As pessoas ainda me acusam de interromper conversas. Devido à falha em sentir o ritmo, é difícil determinar quando eu devo entrar na conversa”. (GRANDIN, 1992, p. 107, tradução nossa)

Em suas declarações, Grandin se mostra racional e frequentemente traz evidências científicas em suas justificativas. Ressalta, por exemplo, que as disfunções sensoriais são relacionadas a anormalidades no cerebelo e que o seu é 20% menor que o normal. (GRANDIN, 1995) Mesmo quando empreende esforços para superar dificuldades relacionais, o polo “razão” se evidencia, como na estratégia de estudar, a partir da observação em filmes, fisionomias e modos sociais de comportamento - para isso, conforme declarou ao neurologista Oliver Sacks, organizou uma videoteca (SACKS, 1995) - e na decisão de ler sobre diplomacia, por encontrar nesse assunto semelhanças com as relações sociais. (GRANDIN, 2013) Quando se refere ao propósito (e concretização) de criar uma máquina que lhe proporcionasse relaxamento físico (tátil), também associa esse desejo a uma racionalidade - mobilização para estudar (GRANDIN, 2002). No entanto, justamente no que concerne a esse invento, mais se vislumbram aspectos distintivos da relevância do saber do corpo.

Impressionada ao ver como as reses se acalmavam quando pressionadas em calhas de madeira, como troncos em corredor, Grandin criou uma máquina semelhante para si, aos 19 anos, com o intuito de se acalmar e de experimentar, como a maioria das pessoas, uma sensação agradável ao se ser abraçada, ao invés do pânico que sentia, como estivesse sufocada/afogada por uma onda gigantesca (GRANDIN, 1992; 2002; 2006; GRANDIN; JOHNSON, 2006). O resultado do invento, que ficou conhecido como “máquina do abraço”, não se restringiu à dessensibilização tátil. A autora do engenho surpreendeu-se, posteriormente, com o efeito da maciez sobre seu próprio corpo, à medida que aperfeiçoou o invento inserindo enchimentos macios às tábuas:

[...] tive uma segunda sensação, diferente de simplesmente me sentir relaxada e calma. Os enchimentos me proporcionavam a sensação de bondade e gentileza para com outras pessoas. Sentimentos sociais. Também faziam meus sonhos mais bonitos [...] As tábuas duras me acalmavam fisicamente, mas o enchimento macio me fazia sentir sociável. Eu tinha a sensação agradável de ser abraçada para ter pensamentos bons sobre as pessoas. (GRANDIN; JOHNSON, 2006, p. 123)8

Constatou, ainda, que os animais com os quais lidava se sentiam menos temerosos sob suas mãos ao serem acariciados logo depois que ela saía da máquina. Conforme Sacks (1995, p. 271), “para ela, a máquina abre uma porta para um mundo emocional que de outro modo continuaria fechado, e lhe permite, praticamente a ensina a entrar em comunhão com os outros”. Ele observou que a voz de Grandin também se modificava: deixava de ser alta e “dura” e assumia um tom ameno.

Nessas nuances, vislumbra-se a singularidade do cogito perceptivo (MERLEAU-PONTY, 1945/2011; 1990), isto é, de uma “inteligência” muito mais movida pela sensibilidade, pelo impacto imediato do perceber, mediante a interatividade corpo-mundo, do que uma racionalização. Todavia, é preciso que o corpo alcance certa estruturação, uma unidade que não só favoreça a integração do sistema sensório, mas viabilize uma transcendência perceptiva, ou seja, faça-se corpo próprio.

Merleau-Ponty (1945/2011, p. 437) afirma que os sentidos permitem uma montagem geral, a capacidade de “assumir qualquer constelação visual dada”. Todavia, o filósofo é crítico do sensualismo, isto é, da premissa de que a percepção se iniciaria nos órgãos dos sentidos. Na realidade, o fenômeno perceptivo se dá pelo corpo (como um todo).

O que ocorreu com Grandin a partir da experiência com a máquina do abraço é uma metalinguagem: o corpo solucionando dificuldades relacionadas ao corpo, integrando-o. Estritamente no nível do sentido tato, esse sentido aparece acalmando a hipersensibilidade tátil, mas esta interpretação recairia na justificativa da organicidade. Na verdade, essa “ponta do iceberg” é a reverberação de uma corporeidade que se esquematizou. O que houve não foi uma mera correção do sentido tato, mas uma síntese do corpo - expressa na modificação da voz, nos gestos, dos sonhos e na perspectiva de se relacionar, ou seja, no modo de perceber (-se) e de ser no mundo. Merleau-Ponty lembra que não é o sujeito racional que efetua essa síntese, mas sim “o corpo, [que,] quando sai de sua dispersão, se ordena, se dirige por todos os meios para um termo único de seu movimento, e quando, pelo fenômeno na sinergia, uma intenção única se concebe nele”. (MERLEAU-PONTY, 1945/2011, p. 312)

Em recente entrevista (GRANDIN, 2013), Grandin declarou que hoje consegue abraçar as pessoas e não precisa mais da máquina. Melhorou também na capacidade de se relacionar com pessoas, inclusive na permissão do contato físico (aperto de mão) e estabelecimento de contato visual, habilidades que só conseguiu à beira dos trinta anos de idade. (GRANDIN, 2002) Certamente também se desenvolveu quanto às habilidades comunicativas e em enfrentamentos de situações em que há quebras de rotinas, haja vista que é professora e conferencista e nessas atividades tem de lidar com perguntas inesperadas e necessidade de improvisações.

Evidencia-se que Grandin desenvolveu dois caminhos compensatórios para superar ou pelo menos minimizar as dificuldades que as características do TEA acarretam: um que se enraíza no corpo e que se desdobra linguajando, correspondendo às interações e intenções do meio, e outro respondente a um aprendizado treinado ou intelectualizado, mas que espontaneamente não “diz” ao sujeito.

Ler sobre diplomacia, estudar fisionomias e comportamentos sociais em filmes ou observar as pessoas conversando para apreender o ritmo e “entrar” adequadamente no assunto - conforme relatado por Sacks (1995) - são exemplos de saídas racionalizadas encontradas por Grandin e que encontram êxito graças ao seu potente intelecto e memória visual. Não há nenhuma espontaneidade nisso, nenhum entendimento imediato, dado pelo conjunto do contexto percebido. Ciente disso, Grandin compara-se com um banco de informações: quando se defronta com uma situação que exija certos “dados”, como o uso social de certas expressões, um modo de se comportar ou palavras para dizer ou escrever, ela os “copia e aplica” (GRANDIN, 1995). Já o “aprendizado” pela máquina do abraço não produz soma de dados a serem armazenados e racionalmente aplicados, mas expressa a integralidade de um corpo que pôde perceber o mundo sob uma unidade de sentido, entrar em comunhão com ele sentindo imediata reciprocidade.

O sucesso profissional de Grandin e seu sentimento de autorrealização pessoal por meio do trabalho revelam vinculação com um “solo” relacional perceptivo, com um campo em que o corpo conseguiu ser próprio, mover-se com intenção/linguagem para si e também para o outro. Ao ver como as reses se acalmavam no brete sob uma pressão em seus corpos, Grandin sentiu empatia, a cena lhe “falou”. Desde então, empreendeu tornar realidade um sonho: ganhar um abraço agradável (sensação desejada, mas que seu corpo jamais conseguira experimentar) e o perspectivou para si, para os animais e para outras pessoas. (GRANDIN; GRANDIN; JOHNSON, 2006)

Grandin sente muito mais facilidade em compreender o que a corporeidade dos animais “diz”. Já na comunicação humana isso lhe é mais difícil, provavelmente pelas contradições no interjogo de expressões-informações manifestas no corpo. De fato, como refere Merleau-Ponty (1945/2011), há toda uma “significação gestual” que acompanha a fala; contudo, nem sempre ela se coaduna com o que o sujeito verbaliza.

Na relação com os animais, ao contrário, Grandin consegue perceber com transparência o que e como se sentem, o que lhes provoca medo, conforto ou desconforto. Assim, quando projeta engenhos para eles, toma como referência seus movimentos espontâneos no campo e como reagem sensorialmente aos elementos da natureza ou artificiais, como a textura e os níveis do piso, a influência de ruídos e correntes de vento, o balanço, posições ou cores de objetos e as perturbações do efeito luz e sombra devido à posição do sol ou à luminosidade do ambiente de confinamento. (GRANDIN; JOHNSON, 2006) Esses detalhes, como afirma, lhe “saltam aos olhos” porque, como autista, também é sensibilizada por fatores semelhantes.

Considerações finais

As pesquisas sob o aporte da fenomenologia relacionadas à compreensão do autismo ainda são poucas, possivelmente em razão de o método fenomenológico requerer a expressão dos sujeitos pesquisados, e esta costuma ser majoritariamente apreendida pelos pesquisadores por meio da fala. Nem todas as pessoas com autismo verbalizam ou então o fazem sem estabelecer propriamente um diálogo. No entanto, outras manifestações de linguagem são passíveis de observação e descrição, como mostraram os professores Rasmussen (2005) e Marocco (2012) ao acompanharem crianças autistas não verbais. Ainda assim, mesmo diante das inferências depreendidas das ações da corporeidade, persiste a dúvida: as leituras dos pesquisadores corresponderiam às intenções ou percepções de mundo das pessoas com TEA?

Como refere Coltro (2000, p. 39), “a pesquisa fenomenológica parte da compreensão do viver e não de definições ou conceitos, e é uma compreensão voltada para os significados do perceber”, significados advindos daquilo que é sentido/percebido pelo e para o sujeito, o que é comunicado ao mundo por uma expressão de linguagem (verbal e/ou não verbal). Dentro dessa perspectiva, no estudo com sujeitos com autismo, o impasse ocorre porque a corporeidade autista não é transparente às pessoas não autistas quanto ao que sente ou quer dizer.

A recíproca também é verdadeira. Em sua autobiografia, intitulada Uma menina estranha, Grandin (2002) comenta que as crianças autistas tentam uma ordem num mundo estranho que percebem. Em suma, são crianças percebidas como estranhas pelo mundo, mas que, reciprocamente percebem o mundo como estranho. Assim, a linguagem verbal e/ou não verbal advinda das interações corpo no mundo soa incompreensível. Choros e gritos aparentemente sem motivo, balanços corporais ininterruptos, manifestações de pânico ou obsessividades de comportamento dificilmente são associados à hipersensibilidade a ruídos ou ao tato, por exemplo, pois não exibem aos não autistas uma causa “lógica”; mais conveniente é declarar uma causa endógena “do outro” ou de uma patologia caracterizada por estereotipias.

Relatos autobiográficos de pessoas com TEA, como os de Grandin, são, portanto, sumamente importantes, por elucidarem sentidos de percepção de mundo. Por conseguinte, abrem portas a pesquisas de caráter fenomenológico sobre o autismo, as quais podem contribuir para um olhar sensível em relação às diferenças (revisão de atitudes e formas de interação), principalmente por parte dos envolvidos com a educação dessas pessoas.

Na atualidade, em que se discute a inclusão educacional de alunos com necessidades educacionais especiais (NEE), entre eles os que apresentam transtornos do desenvolvimento, como o autismo, afirma-se o compromisso social, ético e legal/governamental, acordado mundialmente, (BRASIL, 2010; 2015) de os estabelecimentos de ensino proverem condições para que os aprendizes tenham suas necessidades específicas (para o aprendizado) atendidas. Nisso estão envolvidas as condições arquitetônicas e materiais, a ruptura de barreiras atitudinais e comunicacionais e a formação de professores. Em relação a esta última, prevalece o enfoque nos estudos sobre as NEE, particularmente sobre a caracterização das deficiências, em detrimento de conhecimentos acerca dos modos de percepção ou de subjetivação por parte dos sujeitos que as apresentam.

Certamente o reconhecimento das especificidades do TEA e, mais ainda, dos sujeitos com TEA e suas subjetividades (pois, ainda que o diagnóstico seja o mesmo, variam os gradientes quantitativo e qualitativo de manifestações do espectro) contribui e tem contribuído para o desenvolvimento de programas e ações terapêuticas e educacionais, como as que envolvem integração sensorial. Entretanto, as intervenções diferenciadas não pressupõem inviabilidade da inclusão educacional. Se o desafio do “estranho”, da não comunicabilidade está posto, cabe aos não autistas o aprendizado de outra(s) forma(s) de interação e percepção de mundo, provavelmente ainda não supostas.

O estranhamento começa a se dissipar à medida que se estabelece uma comunicação, nem sempre sob a forma de um código formal, mas, antes de tudo, a comunicação-empatia, o estabelecimento de situações (campos de sentido) que se façam comunicantes pela sensibilidade que provocam, pelo acolhimento e incentivo a experiências que ganhem sentido para os sujeitos. Assim, percebendo-se em contextos que lhes “falam”, as pessoas com TEA possivelmente se desenvolverão na constituição do corpo próprio, o que é fundamental para o desdobramento de interações e iniciativas, inclusive da confiança para permitir aproximações de quem ensina.

Cabe sublinhar que a imposição de um treino, conduta ou método de ensino predeterminado, sem consideração à sensibilidade do corpo, pode despertar aversão ou resultar em avanços pouco significativos nos aspectos acima mencionados. Marocco (2012) alerta que a não observância do “linguajar” dos corpos pode acarretar a proposição de soluções generalizantes, como o encaminhamento a programas interventivos para “o autismo” (quadro clínico); nisso, ocorre distanciamento das intencionalidades e dos modos de descoberta, percepção e comunicação de cada indivíduo.

Os caminhos para a estruturação do corpo próprio dependem da história pessoal dos sujeitos (desde as condições clínicas até o suporte social - familiar, terapêutico e escolar - além das aptidões e das aprendizagens já efetivadas e em potencial). Os processos de desenvolvimento são únicos, forjados nos enredos das relações humanas e das oportunidades e olhares proporcionados pela cultura. Para pais e profissionais (terapeutas, educadores, pesquisadores), esse reconhecimento implica desenvolver a própria sensibilidade perceptiva; portanto, pressupõe reencontro com um cogito que se constitui na reciprocidade de perceber e ser percebido.

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1Merleau-Ponty refere-se ao membro-fantasma como um fenômeno da percepção, em que o indivíduo continua a sentir, corporalmente, um membro que lhe foi amputado. Para além da sensação fisiológica, o membro é posto em movimento na unidade do corpo, à medida que o mundo vivido o convoca à ação, à concretização de intenções. “Ter um braço-fantasma é permanecer aberto a todas as ações das quais apenas o braço é capaz, é conservar o campo prático que se tinha antes da mutilação. (...) Na evidência deste mundo completo em que ainda figuram objetos manejáveis, na força do movimento que vai em direção a ele, e em que ainda figuram o projeto de escrever ou tocar piano, o doente encontra a certeza de sua integridade. (MERLEAU-PONTY, 1945/2011, p. 121-122)

2Merleau-Ponty critica o pressuposto da psicologia associacionista, segundo o qual a semelhança e a contiguidade dos elementos determinariam as condições para a percepção. O filósofo salienta que é “ao contrário, é porque percebemos um conjunto como coisa que a atitude analítica em seguida pode discernir ali semelhanças e continuidades”. (MERLEAU-PONTY, 1945/2011, p. 39) De modo idêntico, não é o somatório de sensações que acarreta um sentido do mundo percebido, como se cada sensação, em si, pudesse ter uma essência mensurada, independente da existência vivida numa totalidade. Assim, “perceber não é experimentar um sem-número de impressões que trariam consigo recordações capazes de completá-las, é ver jorrar de uma constelação de dados um sentido imanente sem o qual nenhum apelo às recordações seria possível”; (MERLEAU-PONTY, 1945/2011, p. 47) sentido esse que é experienciado pela unidade do corpo.

3TEACCH é a sigla de Treatment and Educational of Autistic and Related Comunication Handicapped, para denominar um método que é referência mundial na educação de pessoas com autismo desde meados de 1960. Foi desenvolvido pelo psiquiatra Eric Schopler e colaboradores na Universidade da Carolina do Norte, Estados Unidos. (SCHOPLER, 2004)

4Merleau-Ponty emprega o termo corpo próprio ou fenomenal na referência ao corpo como ancoragem, lugar e tempo da experiência perceptiva, experiência que é própria, por ser pessoal e situada. “Nossa percepção chega a objetos, e o objeto, uma vez constituído, aparece como razão de todas as experiências que dele tivemos ou que dele poderíamos ter. Por exemplo, vejo a casa da vizinha sob um certo ângulo, ela seria vista de outra maneira da margem direita do Sena, de outra maneira do interior, de outra maneira ainda de um avião (...) Eu quero exprimir com isso uma certa maneira de ter acesso ao objeto, o ‘olhar’, que é tão indubitável quanto meu próprio pensamento”. (MERLEAU-PONTY, 1945/2011, p. 103)

5Merleau-Ponty discorda da definição de esquema corporal como resultado de um agrupamento de associações. Para ele, o esquema é a unidade (forma) que permite associações e integrações, cujo qualitativo depende da experiência do ser no mundo. Revela, portanto, uma existência. “Se se sentiu a necessidade de introduzir essa palavra nova [esquema corporal], foi para exprimir que a unidade espacial e temporal, a unidade intersensorial ou a unidade sensorimotora do corpo são, por assim dizer, de direito, [...] ele não será mais o simples resultado das associações estabelecidas no decorrer da experiência, mas uma tomada de consciência global de minha postura no mundo intersensorial, uma forma[...]. (MERLEAU-PONTY, 1945/2011, p. 145) No entanto, prossegue o autor, não basta dizer que se trata de uma forma, mas que essa forma é um tipo de existência, uma vez que exprime a integração ativa de partes do corpo, a qual se dá em relação uma intencionalidade.

6Apresentamos aqui o nome completo da autora, para conhecimento do leitor, mas importa destacar que seu nome na literatura científica e literária é somente Temple Grandin.

7As discussões decorrentes dessa seleção bibliográfica, apresentadas no presente artigo, resultaram do estudo de nossa pesquisa de doutorado, que culminou na tese: Corpo e percepções no espectro autista. (FREITAS, 2015)

8Esta obra, Na língua dos bichos, é toda escrita por Grandin em primeira pessoa. Não obstante, ela ressalta a coautoria de Catherine Johnson, cuja “linda prosa encontrou a minha voz e permitiu que eu contasse a minha história. (GRANDIN; JOHNSON, p. 360) Grandin se classifica como pensadora visual, isto é, como alguém que não pensa com palavras, mas sim com imagens. Devido a essa característica, possui certa dificuldade na fluência da escrita.

Recebido: 24 de Abril de 2017; Aceito: 21 de Fevereiro de 2018

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