SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.32 número65Contribuições da fenomenologia da percepção para compreender a corporeidade de pessoas com autismoDa árvore e do rizoma: pensar para além do método o encontro da filosofia com a infância índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.32 no.65 Uberlândia maio/ago 2018  Epub 21-Set-2020

https://doi.org/10.14393/revedfil.issn.0102-6801.v32n65a2018-03 

Artigos

A cultura local e as interfaces com a memória entre pomeranos na Serra dos Tapes, Rio Grande do Sul

Local culture and interface with memory among pomeranians in Serra dos Tapes, state of Rio Grande do Sul

La cultura local y las interfaces con la memoria entre pomeranos en la Sierra de los Tapes, Rio Grande del Sur

Patrícia Weiduschadt* 

Carmo Thum** 

Vania Grim Thies*** 

*Doutora em Educação pela Universidade do Vale dos Sinos (UNISINOS). Professora da Faculdade de Educação na Universidade Federal de Pelotas (PPGE/FaE/UFPEL). E-mail: prweidus@gmail.com

**Doutor em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Professor do Instituto de Educação da Universidade Federal do Rio Grande (FURG) PPGEdu/FURG - PPGE/UFES. E-mail: carthum2004@yahoo.com.br

***Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Professora da Faculdade de Educação na Universidade Federal de Pelotas (PPGE/FaE/UFPEL). E-mail: vaniagrim@gmail.com


Resumo

Este artigo busca compreender a cultura local do povo pomerano por meio da análise de blocos temáticos derivados da metodologia da roda de diálogo. Com ações articuladas via programas de extensão e pesquisa, foram coletados dados nas comunidades da região meridional do Rio Grande do Sul, especificamente nos municípios de Canguçu e São Lourenço do Sul. Através da formação pedagógica de duas escolas municipais, foi possível construir seis blocos temáticos, dois dos quais são analisados neste artigo: os costumes representados pelas festividades e o mundo da educação (da casa, da escola e da igreja). Este trabalho, ancorado nos conceitos de memória (HALBWACHS, 1990; BOSI, 1987; CANDAU, 2014) e de campo (BOURDIEU, 1996), possibilitou depreender que a memória do grupo pomerano é construída coletivamente e que o campo religioso, tanto o oficial quanto o popular (BRANDÃO, 2004), orientou as diferentes manifestações culturais desse povo.

Palavras-chave: Memória; Pomeranos; Roda de diálogo; Cultura local

Abstract

This paper aims to understand the local culture of Pomeranians through the analysis of thematic blocks derived from dialogue circle methodology. With actions coordinated through extension and research programs, data were collected in the communities of the southern region of the state of Rio Grande do Sul, specifically in the municipalities of Canguçu and São Lourenço do Sul. Through educational training of two municipal schools, it was possible to build six thematic blocks, two analyzed in this paper: the customs represented by festivities and the world of education (home, school and church). This work, anchored in the concepts of memory (HALBWACHS, 1990; BOSI, 1987; CANDAU, 2014) and field (BOURDIEU 1996), allowed to infer that the memory of Pomeranians is collectively constructed and that the religious field, both official and popular (Brandão, 2004), guided different cultural expressions of these people.

Keywords: Memory; Pomeranians; Dialogue circle; Local culture

Resumen

Este artículo busca comprender la cultura local del pueblo pomerano por medio del análisis de bloques temáticos derivados de la metodología de la rueda de diálogo. Con acciones articuladas por medio de programas de extensión e investigación, se recogieron datos en las comunidades de la región meridional de Rio Grande do Sul, específicamente en los municipios de Canguçu y São Lourenço del Sur. A través de la formación pedagógica de dos escuelas municipales, fue posible construir seis bloques temáticos, dos de los cuales se analizan en este artículo: las costumbres representadas por las festividades y el mundo de la educación (de la casa, de la escuela y de la iglesia). Este trabajo, anclado en los conceptos de memoria (HALBWACHS, 1990; BOSI, 1987; CANDAU, 2014) y de campo (BOURDIEU, 1996), posibilitó deducir que la memoria del grupo pomerano es construida colectivamente y que el campo religioso, tanto el oficial, como el popular (BRANDÃO, 2004), orientó las diferentes manifestaciones culturales de ese pueblo.

Palabras clave: Memoria; Pomeranos; Rueda de diálogo; Cultura local

Introdução

O presente artigo tem como objetivo compreender alguns aspectos da cultura local do povo pomerano1 por meio da análise de dados dos blocos temáticos derivados da metodologia da Roda de Diálogo. Para isso, foram coletados dados em processo de extensão-pesquisa-formação do Núcleo Educamemória2, pertencente ao Instituto de Educação (IE) da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), junto com as comunidades do campo da região da Serra dos Tapes, no sul do Rio Grande do Sul, especialmente no que diz respeito às ações desenvolvidas nos municípios de Canguçu e São Lourenço do Sul.

O processo de extensão promove o exercício da interação universidade-sociedade, colocando a comunidade impactada como protagonista da narrativa histórica. O envolvimento de pesquisadores, professores de escolas básicas e comunidade local intercambia saberes, metodologias e promove a emancipação cultural por meio da memória.

Como referencial teórico-metodológico, utilizaremos o conceito de memória, uma vez que a construção das narrativas é realizada coletivamente (HALBWACHS, 1990; BOSI, 1987; CANDAU, 2014). Para analisar os dados dos blocos, operaremos com o conceito de campo proposto por Pierre Bourdieu (1996). Sob esta perspectiva, o campo religioso, ao ser consolidado, demarca o campo educativo e familiar desses sujeitos. Já para entender aspectos da cultura local, tais como o silenciamento da cultura pomerana e as manifestações culturais e religiosas, utilizaremos os conceitos cunhados por Brandão (2004), Thum (2012) e Weiduschadt (2007).

A intersecção da extensão com a pesquisa é proeminente, porque, ao investir na formação dos professores, tivemos a possibilidade de pesquisar aspectos da cultura local presentes no fazer docente e interligados com o grupo pomerano.

Muitos aspectos foram levantados e organizados em blocos temáticos por meio da metodologia da Roda de Diálogo. Neste artigo, abordaremos alguns blocos, especificamente aqueles que tratam das festividades e do mundo da educação (da casa, da escola e da igreja).

Para isso, em um primeiro momento, contextualizaremos o povo pomerano e os seus modos de vida e explicitaremos os aspectos conceituais da memória. Em seguida, explicaremos a metodologia da Roda de Diálogo, que busca problematizar o local, a partir do empoderamento metodológico dos professores do campo atuantes nas escolas envolvidas nesta pesquisa, as quais estão localizadas na Serra dos Tapes. Por fim, apresentaremos a análise de alguns aspectos dos seguintes blocos temáticos: os costumes, representados pelas festividades, e o mundo da educação, (da casa, da escola e da igreja). A partir da análise destes elementos presentes na cultura pomerana, intentamos discutir aspectos do campo religioso, educacional, recreativo e doméstico valorizado por esta comunidade, Rio Grande do Sul.

1. Pomeranos camponeses

Os pomeranos chegaram ao Rio Grande do em meados do século XIX no município de São Lourenço do Sul, trazidos pela companhia de Jacob Rheingantz. Espalharam-se por diversos municípios da Serra dos Tapes,3 ocupando espaços ao lado dos latifundiários que ficavam com as pastagens e planícies das terras de gado, já que aos colonos eram destinadas as terras menos desejadas. (THUM, 2009)

Os pomeranos têm uma ligação muito forte com a terra: são, portanto, camponeses e trabalham na manutenção do núcleo familiar. Esse povo4 traz em sua história uma saga de luta pela terra já anterior à vinda para o Brasil, quando foram expulsos do seu território natal.

Nesse contexto, ressaltamos que os munícipios com incidência de pomeranos apresentam como características uma alta taxa de população rural e um Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM)5 significativamente menor que a média dos municípios brasileiros. Nesse sentido, observando esses índices, percebemos que os pomeranos estão localizados em municípios que apresentam presença de população rural de 43% a 83%.

No Rio Grande do Sul, a média de população rural nos municípios com incidência significativa de pomeranos é de 51,8%. Destacadamente, nos municípios em que a incidência de população rural é maior, o IDHM é significativamente menor, o que indica que os espaços rurais habitados pelos camponeses pomeranos são espaços onde as estruturas de condições de vida são precárias.

Os modelos de propriedade familiar, característicos da realidade dos camponeses pomeranos, no Rio Grande do Sul e no Espírito Santo, apresentam estruturas de moradia, galpões e áreas de plantio e criação de animais, que no seu conjunto tendem a servir para a subsistência do núcleo familiar. No Rio Grande do Sul, o tamanho das áreas de propriedade das famílias atinge uma média de 15 a 20 hectares.

A organização das relações sociais deste grupo se fortaleceu por meio da religiosidade e da formação das escolas étnicas, bem como da manutenção da sua língua de origem (WEIDUSCHADT, 2007; THUM, 2009). De acordo com os relatos produzidos pelo olhar de viajantes, foram considerados bons trabalhadores do campo em relação a outros grupos étnicos (MULHALL, 1974), de modo que muitos discursos vincularam a cultura pomerana com a questão da terra e enfatizaram que o trabalho braçal era uma das principais características deste povo. Sabe-se que estas representações, em muitos casos, estão imbuídas de intencionalidades e preconceitos, mas, na literatura sobre os pomeranos, o relato do vínculo com o mundo do campo é recorrente. (GRANZOW, 2009; ROCHE, 1969)

As questões relacionadas com a terra ainda são muito presentes entre os pomeranos em qualquer um dos espaços que ocupam atualmente no Brasil, seja no Espírito Santo, em Rondônia ou no Rio Grande do Sul. Nesse sentido, ainda que a problemática da terra e da permanência nela seja uma questão local que envolva todos os camponeses, para os pomeranos em especial, esta é uma questão nacional, pois sua história como povo é intrinsecamente ligada ao território e ao espaço camponês.

No Brasil, os pomeranos são camponeses e vivem um modo de vida específico. Trabalhando em sua maioria como agricultores familiares, são reconhecidos como povo tradicional (Decreto nº 6040/2007).6 Os aspectos fundamentais de sua cultura materializam-se pelas tradições que vivenciam, pelo modo de vida, pelo uso da língua e do território.

Os camponeses em geral possuem sua própria cultura e um modo próprio de organizar o meio social em que estão inseridos, fatos que influenciam a maneira como se constituem enquanto indivíduos. Ao observar a forma de organização, os costumes, as tradições e os demais aspectos culturais das comunidades pomeranas presentes na região da Serra dos Tapes, é possível perceber um mundo rural com características próprias e a forte presença de uma identidade social e étnica, marcada pela identificação da comunidade com o ethos pomerano e camponês. Consideramos o ethos pomerano demarcado por seu modo de vida, suas tradições e seus ritos, entre eles a dimensão do trabalho7 e da religiosidade. A esse respeito, Brandão (1984) menciona o que é preciso observar para melhor compreender o que é, de fato, a comunidade camponesa:

[...] uma complexa estrutura de tipos diferentes de redes, situações e espaços sociais onde as pessoas trocam entre si serviços e significados. Submetidas aos padrões de cultura que tornam possível compartir a vida social, diferentes categorias de atores da comunidade distribuem e perpetuam formas de trabalho, esferas de ação, posições e compromissos. Para que esses mesmos padrões de cultura circulem e orientem tanto a conduta quanto a identidade social dos seus participantes, cada um dos domínios da vida e do trabalho [...] incorporam às suas práticas diferentes estratégias e situações de transmissão do conhecimento. (BRANDÃO, 1984, p. 100)

Qualquer espaço social possui suas próprias formas de organização e interação sociais; entretanto, o espaço do meio rural, onde a cultura camponesa se apresenta com predominância e determina as simbologias e os modos de produção cultural, possui padrões bem demarcados de organização e estrutura social. Tais padrões são estendidos às diferentes redes do mundo campesino, incluindo aspectos que vão desde as estruturas familiares até a estrutura comunitária, que se entrelaçam formando a totalidade do mundo rural − que, neste caso, é um mundo camponês permeado por características da cultura pomerana. As atividades realizadas no dia a dia dos pomeranos conformam a identidade deste grupo à medida que elas são parte da sua cultura.

Diante disso, a pergunta que nos acompanha frequentemente é: como o modo de vida tem se perpetuado ao longo dos anos nas comunidades pomeranas? Nossas investigações apontam a memória, sobretudo, a memória coletiva do grupo, como um dos aspectos que mantêm vivos os modos de produção cultural nas suas diferentes dimensões.

2. Os conceitos de memória e identidade do grupo pomerano

Os aspectos da memória e da identidade grupal são produzidos por meio de memórias coletivas do grupo pomerano campesino. A memória é coletiva, porque as recordações do grupo se marcam na lembrança de um indivíduo em relação ao outro, sendo necessária a presença do outro para reforçar e lembrar a recordação ou as práticas que os pomeranos tentam conservar. Por isso, ao trabalhar com a cultura local, tornam-se visíveis os significados de rememorar a partir das vivências do grupo. É necessário perceber, assim, que as lembranças e as imagens dos envolvidos estão configuradas de uma forma que se relacionam com o grupo social a que pertencem. A lembrança de qualquer pessoa vai estar ligada à construção histórica e à identificação com a comunidade que a constituiu, pois, as relações sociais e culturais são marcantes na formação destas memórias coletivas. Além disso, se a memória é um processo, também é importante perceber as formas dos participantes se relacionarem e se identificarem, especialmente no que concerne aos processos históricos educativos.

É necessário levar em consideração que as lembranças dos sujeitos pertencentes a um grupo social são permeadas pelas marcas de sua pertença étnica a uma pátria imaginada (ANDERSON, 2008). Nesse sentido, Ecléa Bosi (1987) reforça que a lembrança evocada será aquilo que o indivíduo vivenciou no meio social, ou seja, nas relações com o seu meio: “A memória do indivíduo depende do seu relacionamento com a família, com a classe social, com a escola, com a Igreja, enfim com os grupos de convívio e os grupos de referência a este indivíduo”. (BOSI, 1987, p. 17)

Em relação à memória coletiva, há muitas discussões em torno da dicotomia entre memória coletiva e individual, em que muitas vezes esta é apontada como se os indivíduos, por si só, tivessem uma capacidade nata de possuí-la. Contudo, acreditamos que a memória individual não está desvinculada da memória coletiva, como coloca Halbwachs (1990):

[...] a memória individual, enquanto se opõe à memória coletiva, é uma condição necessária e suficiente do ato de lembrar e do reconhecimento de lembranças? De modo algum. Porque, se essa primeira lembrança foi suprimida, se não nos é possível encontrá-la, é porque, desde muito tempo, não fazíamos mais parte do grupo em cuja memória ela se conservava [...]. (HALBWACHS, 1990, p. 34)

A memória individual assenta-se na memória coletiva, porque as lembranças e recordações do grupo são construídas a partir do coletivo. Dessa forma, o que se entende como evocação da lembrança individual é muito tênue, já que mesmo a singularidade que cada indivíduo tem de si é construída socialmente. É por essa razão que a categoria memória permeia a constituição tanto da prática da extensão quanto da formação de professores, conforme demonstram os aspectos levantados nesta pesquisa.

Candau (2014) reforça as discussões em torno das teses de Halbwachs, ao retomar a questão da elaboração dos quadros sociais da memória, em que a experiência individual se assenta na experiência coletiva, de modo que as vivências vão ser processadas com maior ou menor intensidade de acordo com a força do grupo social. Conforme esse autor,

[...] é um tecido memorial coletivo que vai alimentar o sentimento de identidade. Quando esse ato de memória, que é a totalização existencial, dispõe de balizas sólidas, aparecem as memórias organizadoras, poderosas, fortes, por vezes, monolíticas, que vão reforçar a crença de uma origem ou uma história comum ao grupo. Quando há uma diluição desses marcos, confusão de objetivos e opacidade de projetos, as memórias organizadoras não chegam a emergir, ou permanecem fracas, esparsas: nesse caso a ilusão do compartilhamento se esvanece, o que contribuiu para um desencantamento geral. [...] Não se deve procurar nenhuma cronologia nesse modelo. Pois como já destaquei várias vezes, é no mesmo movimento dialético que a memória vem confortar ou enfraquecer as representações identitárias, e estas vêm reforçar ou enfraquecer a memória [...]. (CANDAU, 2014, p. 77-78)

Cabe destacar, na análise de Candau (2014), a imbricada relação entre memória e identidade, observando como um ato memorialístico pode ser mais pujante quando consegue aparentar a homogeneidade dos grupos identitários, reforçando o seu suposto pertencimento étnico. Por isso, nesse estudo, na construção dos blocos temáticos a memória constituiu-se por meio do pertencimento e dos processos identitários envolvidos na experiência histórica e social do grupo.

Compreende-se que a rememoração é representada simbolicamente, em especial em grupos étnicos. Por isso, não se pode considerar a memória e a identidade sob uma perspectiva essencialista (WOODWARD, 2000) - elas são negociadas e conflituosas, tentam aproveitar os discursos já consolidados e se acomodam em lembranças que são mais facilmente aceitáveis para a maioria do grupo. Muitas vezes, a rememoração revela acontecimentos construídos de forma ucrônica (PORTELLI, 1996), ou seja, que não são totalmente verdadeiros. Essa contradição nas memórias, marcada pela diferença entre o que aconteceu e aquilo que o grupo gostaria que tivesse acontecido, pode ser enriquecedora se entendermos as crenças e os símbolos criados e fortalecidos pela comunidade. No conjunto de lembranças levantadas pelo mapeamento da cultura dos pomeranos, podemos perceber interesses e partilhas que favoreceram o sentimento de pertencimento ao grupo e que vão ao encontro de como eles foram constituídos e de como os outros o veem. O que será rememorado são as representações significativas das recordações e das experiências ouvidas pelos antepassados e recriadas ao longo do tempo até o presente.

Conforme os estudos de Loiva Otero Felix (1998), a memória é produzida no presente por meio de representações seletivas do passado. “As lembranças, constituídas nas relações sociais, são mantidas nos diversos grupos de referência e também nos espaços sociais da família, do trabalho, do lazer, da religiosidade, ancoradas no vivido, na experiência histórica” (FELIX, 1998, p. 42). Nesse sentido, talvez o silenciamento da cultura e da memória pomerana guardem relação justamente com a necessidade de apagamento dessa memória. Como ao longo do processo imigratório essa etnia precisava ser classificada como “alemã”, não foi valorizado o sentimento de pertencimento no passado aos valores pomeranos. Hoje, esse sentimento de pertencimento étnico é valorizado, mas constituído de outros interesses e influenciado por aspectos educacionais, linguísticos, turísticos, políticos e econômicos.

Reforçamos, então, que a categoria conceitual da memória permeia esta discussão no sentido de assegurar que ela é construída e conflituosa, representa o passado e é ressignificada no presente, necessitando do grupo para ser ancorada. Por isso, selecionamos as rodas de diálogo como instrumento metodológico para efetuar o mapeamento dessa cultura.

3. A roda de diálogo como instrumento da memória

O trabalho do Núcleo Educamemória tem se constituído nas regiões do campo da Serra dos Tapes, com o objetivo de compreender aspectos da cultura local e da memória em escolas das comunidades, especialmente nos territórios pomeranos de Canguçu e São Lourenço do Sul. O trabalho com essas escolas é regido pelos princípios da educação do campo (ARROYO; CALDART; MOLINA, 2004; CAPORAL e COSTABEBER, 2004), da pesquisa participante (BRANDÃO, 1985) e da formação continuada.

A educação do campo, ao apresentar estratégias de difusão e consolidação de um novo modelo de desenvolvimento territorial, potencializa o enraizamento da ação nos espaços do campo. Os princípios da pesquisa participante, por sua vez, orientam os processos de envolvimento com a comunidade, a qual ocupa papel de sujeito da pesquisa, empoderando metodologicamente professores e comunidade para ações de intervenção sobre o espaço, a identidade e a cultura local. Nesse caso, o entorno da escola define o foco na cultura local pomerana, e as temáticas centrais da ação de extensão são a cultura, a memória e os modos de vida locais.

A ação de extensão-pesquisa-formação envolveu processos de formação de professores na Escola Municipal Martinho Lutero, localizada na comunidade de Santa Augusta (São Lourenço do Sul), e na Escola Municipal Carlos Soares da Silveira, situada na comunidade de Nova Gonçalves (Canguçu). A partir dessa ação, outra estratégia tornou-se possível e necessária: conhecer o cotidiano das famílias das referidas comunidades. Tal estratégia de ação exercitou elementos de formação e pesquisa, configurando-se como uma via de mão dupla, pois, ao mesmo tempo em que houve a formação de professores e a produção de materiais educativos nas escolas, o entorno da escola colocou-se como espaço de ação, interação, pesquisa e reflexão continuada, a partir das rodas de diálogo.

Metodologicamente, Thum (2009) conceitua a roda de diálogo como:

[...] um momento de interpretação da cultura local, pela sua própria voz, a partir dos materiais e narrativas coletadas e catalogadas. O Movimento de Roda possibilita a tomada de consciência sobre a cultura local e seus aspectos narrativos, pois, ao analisar seu próprio mundo, os sujeitos buscam compreender as suas presenças no conjunto da cultura local e global. (THUM, 2009, p. 153-154)

A Roda de Diálogo, enquanto metodologia, problematiza a cultura local. Nesse sentido, as relações sociais presentes no espaço são objeto de problematização possível a partir da ação metodológica. A Roda de Diálogo busca compreender as interações identitárias (intra e extra grupo) presentes no espaço, evidenciando os conflitos, diferenças e sociabilidades entre e com os demais grupos sociais. Correlacionando as diferentes culturas presentes no contexto, promove o protagonismo da voz local da memória.

As Rodas de Diálogo cumprem, em parte, a dimensão de serem momentos mediadores de uma nova postura, espaços de produção do desejo. Locais de ‘entremeio’ ao instituído e o Novo a ser forjado. Servem como Instrumento de mediação, capaz de dar sustentação aos movimentos de consciência histórica e de emancipação criativa da cultura local. (THUM, 2009, p.339)

Seu modo de operacionalização se dá por movimentos de reconhecimento da realidade sócio-cultural, interpretação e definição de parâmetros coletivos sobre memória local.

A partir da totalidade coletada, a participação dos membros da roda é espontânea, sendo estes questionados pelos pesquisadores, a cada elemento coletado, e com perguntas que se seguem às respostas dadas, aprofundam análises sobre as implicações dos significados dados à questão, na constituição dos significados culturais. Um momento-movimento de análise coletiva de interpretação é o movimento. Roda, um debate profundo, com participações diversas e críticas, sobre as falas dos sujeitos, capaz de exercitar a intervenção sobre análises incorretas ou com possibilidades duvidosas de respostas e, ainda, exageros de importância a um determinado fato/objeto, exercendo assim um filtro de significados possíveis e aceitáveis como representativo da cultura local e da memória coletiva. (THUM, 2009, p. 153-154)

As Rodas de Diálogo são de caráter aberto, com a participação da comunidade, dos diferentes sujeitos envolvidos no processo e podem também se configurar como momentos de planejamento e de formação, como nesse caso. Foi a partir da formação dos professores e por meio de projetos de extensão universitária que as escolas investiram em novas maneiras de pensar a cultura local entrecruzada com a memória, para enfatizar a reflexão acerca desses saberes como conteúdo da escola. Com as discussões propostas nas ações de extensão, a situação passou de percebimento e verificação da situação para uma ação concreta, o que chamamos aqui de empoderamento metodológico.

Em uma das escolas, as reflexões, e o consequente empoderamento metodológico, resultaram na criação de uma disciplina8 especialmente pensada para trabalhar as questões da memória coletiva do grupo investigado. Além disso, projetos interdisciplinares começaram a endossar a prática pedagógica da escola.

Ao trabalharmos com as escolas, em um projeto conjunto de extensão e pesquisa, optamos por uma metodologia construída juntamente com os professores das escolas e organizada em blocos temáticos, o que permitiu a esses professores percorrer temas já definidos, mas sem uma obrigatoriedade de cumprir uma sequência lógica de uso desses temas. Assim, a metodologia proposta foi dotada de uma dupla finalidade − uso pedagógico e instrumento sistematizador de dados − que seria determinada conforme o uso.

No caso da função pedagógica, os blocos temáticos servem como eixos orientadores, permitindo aos professores criarem metodologias de investigação didática a partir das necessidades e possibilidades que o espaço da sala de aula oferece. Isso viabiliza a proposição de questões e estratégias de investigação junto com os sujeitos da cultura local, em que os alunos figuram como investigadores iniciais e a professora figura como revisora dos materiais coletados.

No que diz respeito à finalidade didática, a construção dos blocos temáticos possibilita o seu uso pedagógico no ensino, dinamizando o currículo e orientando a tematização da ação pedagógica dos professores das escolas. Já para nós, pesquisadores, permite a racionalização dos dados a partir de roteiro de eixos temáticos de pesquisa.

Esses blocos temáticos são representativos das ações de registro da memória coletiva da cultura local e fonte primária de dados da memória grupal nessas localidades. Permitem, assim, a organização racional dos dados advindos das ações de coleta das escolas e, ao serem organizados em seis eixos principais, abarcam a diversidade presente na cultura local.

Esse instrumento sistematizador possibilitou aglutinar narrativas, imagens e dados históricos. Do ponto de vista metodológico-analítico, é uma estratégia de organização de dados, em um primeiro movimento de análise. Foram construídos, então, os seguintes blocos temáticos: bloco I - os modos de vida rural; bloco II - os costumes; bloco III - as infâncias e as brincadeiras; bloco IV - imagens da vida; bloco V - o mundo da educação (da casa, da escola e da igreja); e bloco VI - as histórias contadas, inventadas e verdadeiras.

No bloco I, foram apresentados questionamentos em relação ao modo de viver no cotidiano e no trabalho, comparando o tempo antigo e atual. Por meio dessa comparação, buscou-se elucidar algumas formas da cultura camponesa vivenciada pelos pais e avós do aluno envolvido, possibilitando a este (que é o entrevistador) questionar o mundo de hoje. Dentro do currículo escolar, foi possível aproveitar essas formas culturais próprias, descritas nos trabalhos dos alunos, para ressignificar a prática docente em sala de aula.

O bloco II, por sua vez, girou em torno dos costumes representados pelas festas e pelos folguedos, pelos ritos de passagem e pela relação com a alimentação. Diante disso, foi possível perceber a importância da religião e dos ritos de passagem nas festividades, bem como a relevância da alimentação como constructo cultural na comunidade.

Já o bloco III reportou-se ao mundo da infância: às brincadeiras e às vestimentas, sempre estimulando os alunos a estabelecer uma comparação entre o antes e agora.

O bloco IV estimulou o uso de descrição das imagens. Os alunos pediam aos familiares para descrever determinada imagem e a importância dela na sua vida. A partir daí, poder-se-ia compreender a cultura local envolvida.

O bloco V buscou compreender como o mundo da educação e da igreja foi interligado e como isso repercute na vida atual daquele povo. A maioria dos pais e avós é alfabetizada, e a cultura escrita, de certa forma, sempre se fez presente, devido em grande parte à ligação com a religiosidade.

Por fim, o bloco VI contou com a apropriação de elementos das histórias contadas e vividas pela comunidade, para valorizar a cultura desses camponeses.

O trabalho com blocos temáticos na prática pedagógica e no processo de extensão parece ter alcançado os seus objetivos. A partir dos dados coletados, houve a participação dos alunos e da comunidade nas entrevistas, e muitas ações pedagógicas foram pensadas. Em relação à pesquisa, os dados obtidos constituem uma fonte de dados riquíssima para subsidiar a compreensão da cultura camponesa nessas comunidades.

4. Escolarização, lazer e religiosidade: análise dos blocos II e V

Como já anunciado, pretendemos analisar neste estudo alguns blocos que, a partir dos dados mobilizados pelas narrativas, são problematizados como fonte de pesquisa para entender aspectos da cultura local dos pomeranos. Ressaltamos que os questionamentos dos alunos aos seus pais e avôs buscaram rememorar lembranças de outro tempo.

Para análise, dentre os seis blocos, foram escolhidos os blocos II e V, devido à proximidade dos elementos contidos nos resultados do levantamento desses dois blocos. Eles abarcaram a religiosidade entrelaçada com o lazer e a educação, campos que determinam de forma preponderante o modo de vida do grupo. O conceito de campo é aqui entendido, conforme propõe Bourdieu (1996), como um lugar de disputas e de demarcações.

Os diferentes campos são relacionais, e entre eles aparecem conflitos constituindo certo engendramento. Contudo, nenhum campo perde a sua autonomia, pois cada um possui suas peculiaridades de constituição, ao mesmo tempo em que estão relacionados entre si. Bourdieu, ao descrever o campo como conceito, menciona:

Essa estrutura não é imutável e a topologia que descreve um estado de posições sociais permite fundar uma análise dinâmica da conservação e da transformação da estrutura e da distribuição das propriedades ativas e, assim, do espaço social. É isso que acredito expressar quando descrevo o espaço social global como um campo, isto é, ao mesmo tempo, como um campo de forças, cuja a necessidade se impõe aos agentes que nele se encontram envolvidos, e como um campo de lutas, no interior do qual os agentes se enfrentam, com meios e fins diferenciados conforme sua posição na estrutura do campo de forças, contribuindo assim para conservação ou a transformação de sua estrutura. (BOURDIEU, 1996, p. 50, grifo do autor)

O campo, nesta perspectiva, aparece como uma estrutura autônoma, de forma que a religião, a escola e o lazer possuem aspectos específicos na constituição das instituições religiosas, escolares e associativas, mas aparecem engendradas em um conjunto e, provavelmente, conseguem manter um arranjo de relações institucionais das comunidades. Também é interessante notarmos que as forças medidas no campo vão estar em constante diferenciação e, ao mesmo tempo, tornar-se-ão complementares. Entendemos o campo religioso como um legitimador das práticas festivas e educativas e um balizador de diferentes ritos de passagem que são perpassados pelas relações afetivas e de desenvolvimento dos componentes do grupo.

Ademais, o campo religioso, por meio das escolas étnicas luteranas, formadas no processo histórico da constituição do grupo, proporcionou a escolarização comunitária, baseada no ideal luterano de que, ao lado de cada igreja, deve haver uma escola (DREHER, 2000). Nesse sentido, cabe ressaltar que quase todas as escolas foram vinculadas às instituições luteranas e tiveram a preocupação da escolarização para a leitura da Bíblia e do catecismo.

Como já mencionado, nessas comunidades são presentes festividades e folguedos ligados fortemente à religiosidade e aos ritos de passagem determinados pela formação da cultura comunitária. Essas tradições são para a comunidade evocadores de memória e constructos de identidade, pois conseguem unificar o grupo em torno de rituais comuns, os quais se encontram relacionados à religião luterana.9

Entretanto, essa tradição é constantemente reinventada e reelaborada, (HOBSBAWN, 2014) mesmo que a comunidade acredite que o essencial nunca muda. A partir dos dados coletados, percebemos uma recorrente referência às festas relacionadas com a igreja, aos bailes escassos no passado, às formas de namoro e à alimentação servida em festas, bem como as modificações nesses costumes. Embora os relatos atribuam essas mudanças à vida moderna, eles indicam alguns elementos que ainda representam o povo pomerano como comunidade, ressaltando, em especial, as festas de igreja.

A religião luterana também é balizadora de muitas práticas culturais, como o canto coral10, formado por quatro vozes: duas femininas (soprano e contralto) e masculinas (tenor e baixo). Demarcada pela religiosidade, inicialmente pelas instituições luteranas oficiais, mas atualmente praticada pelas igrejas independentes, o canto coral confere sentido de pertencimento comunitário e explora habilidades entre agricultores que cantam músicas sacras, eruditas e populares. Nas próprias festas comunitárias, ocorrem muitas apresentações dos variados grupos de canto coral.

Da mesma forma, o papel do rito é importante, como os batizados, a confirmação, o casamento e o enterro, sendo recorrentemente citados no bloco de análise. Eles são ritos de passagem (BOURDIEU, 1989; BAHIA, 2011) valorizados pela comunidade e inseridos no cotidiano das pessoas apesar das mudanças sofridas ao longo do tempo, organizando as etapas da vida dos pomeranos. Em relação ao batizado, por exemplo, a criança precisa ser apresentada à religião, de modo que sua primeira saída do espaço doméstico ocorre na igreja, assinalando uma valorização que já fazia parte das superstições de que a criança, sem a benção do batismo, não estaria protegida.

Apesar de muitos costumes não serem atualmente tão valorizados, muitas recordações ainda giram em torno da “lembrança de batizado”,11 que eram/são pequenos presentes dados pelos padrinhos imbuídos de representações: sementes para homens e agulha e linha para mulheres. Essas superstições, de forma velada, definiram/definem os papéis sociais de homem e mulher e acomodam a estrutura familiar da comunidade. Outras superstições em relação ao batizado também foram comentadas, tais como guardar a água do batismo, em que está funciona de maneira análoga à água benta do catolicismo. É interessante notar que o luteranismo, pelo menos o luteranismo institucional (IELB e IECLB), condena as superstições e traz em suas mensagens uma orientação pautada pela visão bíblica ortodoxa. Em contrapartida, os grupos comunitários parecem necessitar desses costumes populares que apresentam uma relação basicamente com a terra e a natureza, pois a ligação forte com o paganismo ou a religiosidade popular se mantém.12

Outro rito importante orienta a passagem da infância para a vida adulta, que é o da confirmação. Chama-se assim, porque, segundo a religião luterana, essa etapa é o aprendizado da doutrina pelas crianças, em que estas terão o direito de comungar. Para os grupos, vencer essa etapa garante o direito do confirmado de namorar, por exemplo, e de ser mais um membro ativo no trabalho da casa, indicando a passagem de criança para jovem. As recordações das diferentes gerações sobre a etapa do namoro também afloram no que diz respeito à mudança dos costumes e no saudosismo de que o tempo outrora era melhor.

Algumas práticas de namoro e as etapas da confirmação dependem da instituição religiosa (se ela é institucional ou independente), sendo o tempo de formação do período confirmatório maior ou menor dependendo do projeto educacional e religioso.

O rito do casamento é fortemente rememorado nos relatos, pois ele proporciona a união das pessoas e a continuação da comunidade no mundo da vida e do trabalho. Muitos dados apontam, assim, diferenças entre o período do namoro antigo e atual. Antes, ele era mais longo, durando entre dois e quatro anos e sendo equivalente, em termos de importância, a um ano de noivado. Atualmente, a união e o casamento entre os jovens são mais rápidos. Tal mudança pode ser justificada pelo fato de que, nas gerações passadas, as famílias eram mais numerosas, de modo que era necessário acomodar o tempo de organização da festa, já que muitos membros da casa precisariam passar por este rito e a cerimônia religiosa e a festa eram realizadas na casa da noiva. É interessante observar que, entre os pomeranos, os casamentos tinham a duração de três dias, já que a comemoração começava na sexta à noite com a ajuda dos vizinhos, permanecia durante o dia inteiro e uma parte da noite de sábado e finaliza aos domingos, quando a vizinhança e os amigos que ajudaram na festa ainda se reuniam para festejarem e se alimentarem das sobras (BAHIA, 2011; GRANZOW, 2009). Atualmente, o uso da tecnologia no preparo dos alimentos aboliu a necessidade de uma grande preparação, mas, mesmo assim, as famílias vizinhas envolvem-se e mantêm a reciprocidade na colaboração das festas.

Em muitos dados do bloco temático analisado, os pais relatam as diferenças entre o passado e o presente quanto ao namoro. Antigamente, os bailes aconteciam uma vez por mês, motivo pelo qual os encontros nestes espaços eram mais difíceis, sendo facilitado o encontro por meio da vizinhança, das festas de casamento e das festas religiosas.

Ainda em relação às festividades, o modo de organização das festas e de preparação dos alimentos sofreram mudanças, seja pelas novas tecnologias usadas, seja por outros costumes incorporados que facilitaram a alimentação durante as festividades. Em muitos relatos, aparecem frases como: “Antigamente festa sem cerveja e chope, somente com vinho e suco, carne assada e comida de panela, não se tinha o churrasco”. Pode-se perceber que as festas eram constituídas com as facilidades e opções que o local poderia oferecer. Nesse sentido, a cerveja e o chope, que necessitavam de refrigeração na geladeira, foram introduzidos muito mais tarde, gerando, além disso, um custo adicional. O churrasco, hábito do gaúcho, não foi logo requisitado pelos pomeranos, pois estes preferiam a carne assada ou de panela.13

Assim como o campo do lazer está circunscrito pelo campo religioso,14 o campo educacional também é engendrado pela religiosidade. A partir da análise do bloco V, pode-se perceber que a educação dos pomeranos está envolta com o mundo da educação (da casa, da escola e da igreja), de forma que os campos escolar, religioso e familiar se inter-relacionam e complementam. Talvez por esse motivo as escolas comunitárias étnicas permaneceram desde o período da imigração (HAMMES, 2014; ARENDT, 2005), resistindo à ostensiva política nacionalizadora do Estado Novo.

Cabe salientar que, no espaço doméstico, as narrativas dos pais e avós giram em torno da educação rígida e da obediência expressa aos mais velhos. Este dado mostra o mundo patriarcal com papéis definidos da família, em que as crianças não deveriam participar dos debates destinados aos adultos e tinham determinadas obrigações e tarefas a serem cumpridas no espaço da propriedade. Nesse sentido, é possível afirmar que o símbolo educativo da responsabilidade no núcleo familiar que não se desvincula do mundo do trabalho no campo esteve presente na educação das crianças e dos jovens pomeranos.

Outro aspecto rememorado é a religiosidade presente no espaço doméstico, especialmente na prática de realizar orações durante as refeições. Tais orações giravam em torno do agradecimento pela alimentação, muito valorizada pelo povo pomerano e digna de gratidão em relação às “bênçãos” de um ser superior. Essa relação entre a alimentação e a religiosidade tem vínculos fortes com a terra, porque, sendo colonos, a ligação com a natureza dependia do sustento e da manutenção de sua organização familiar.

Assim como no espaço do lazer e das festividades, a religião determinou fortemente a escolarização dos pomeranos. Nestas comunidades, a maioria do grupo pertence ainda hoje à religião luterana, e as gerações passadas frequentaram a escola paroquial. Inicialmente, iam às escolas nas igrejas, cujo cargo de professor e de pastor quase sempre era ocupado pela mesma pessoa. Elas funcionaram na língua alemã até o período da nacionalização do ensino e depois foram obrigadas a se adaptar à política nacionalizadora, o uso da língua germânica e as escolas étnicas foram proibidos. Entretanto, as três instituições luteranas buscaram resistir a essa política e manter escolas comunitárias, que passaram paulatinamente a ser controladas pelo poder público, o que obrigou tais escolas, em muitos casos, a tornarem-se vinculadas ao poder municipal e/ou estadual a partir dos anos 1960.

O mundo da educação e da igreja historicamente permaneceu interligado, constituindo campos distintos, mas que se relacionam (BOURDIEU, 1989). Como já apontado, de forma geral, pode-se perceber nos relatos dos entrevistados15 da comunidade que muitos professores eram também pastores, pelo menos até a década de 1960. Além disso, são relatados muitos casos de professores atuando nas escolas em um período em que a dificuldade de manutenção dos docentes no local era grande.

Quando houve o afastamento do religioso das funções escolares e a escola foi municipalizada, foi necessário contratar professores, que, em muitos casos, não mantinham vínculos com a comunidade. Essa dificuldade colaborou para a alta rotatividade dos professores, mas acabou sendo sanada quando a comunidade indicava uma professora ou um professor da localidade, de modo que essa pessoa podia se manter no local e entender as necessidades e peculiaridades da comunidade. Percebe-se por meio dos relatos que muitos se lembram de ter tido um único professor ou única professora, o que possibilita inferir que as escolas, mesmo sendo públicas, conseguiam manter o vínculo comunitário.

Nesse sentido, é presente a importância da escolarização do grupo. Mesmo com a transformação da escola paroquial em pública, a comunidade valorizava o campo educacional, proporcionando melhores condições de funcionamento nesse espaço.

É visível, assim, que esse grupo era escolarizado para atender a uma demanda religiosa, de forma que o aprendizado da leitura e da escrita tinha como finalidade auxiliar na leitura da Bíblia e no acompanhamento litúrgico, enquanto que o aprendizado dos cálculos básicos poderia ser utilizado nas situações do cotidiano. Nos relatos, torna-se evidente, ainda, o aprendizado de valores, sendo o comportamento, a moral e a religião estreitamente vinculados.

Apesar de as três instituições luteranas terem mantido escolas paroquiais comunitárias de forma semelhante, isto é, que funcionavam no mesmo espaço da igreja, em que o docente na maioria das vezes era o pastor e em que o currículo era voltado para o aprendizado da leitura, da escrita e dos cálculos − aspectos acrescidos de regras morais e religiosas −, é possível notar algumas diferenças entre as instituições em relação aos seus projetos pedagógicos. Ademais, as narrativas indicam a presença de conflitos e disputas entre as instituições religiosas, que afetavam a escola. Pode-se pensar que essas disputas consistem, na verdade, em campos distintos que pretendem se legitimar por meio de sutis diferenciações. As instituições oficiais (IELB e IECLB), por exemplo, apostaram na propaganda de uma escola com formação qualificada de seus profissionais, acusando as escolas independentes de não buscarem o preparo adequado dos professores/pastores para a atuação educativo-religiosa. Da mesma forma, as igrejas independentes propagandeavam maior autonomia e pagamento menor dos fiéis à escola e à igreja. Por isso, pode-se afirmar que as igrejas independentes foram mais rapidamente municipalizadas, já que tinham menos recursos e articulação entre as suas comunidades. Já as igrejas oficiais conseguiam articular a rede de ensino e buscavam parcerias por meio de convênios e empresas antes de serem totalmente públicas.

Outro aspecto interessante acerca da diferenciação entre as instituições consiste no material didático usado nas escolas, que era escrito em alemão, como no caso do Sínodo de Missouri (IELB), ou formulado por editoras próprias, como no caso do Sínodo Rio-Grandense. Nesse sentido, a análise dos livros didáticos empregados permite perceber algumas diferenças no projeto religioso de cada uma das instituições (WEIDUSCHADT, 2007). O material didático era similar e centrava-se no uso da língua alemã gótica e na apresentação das palavras de acordo com a realidade dos alunos, ou seja, pautava-se na Lição das Coisas e no Método da Realia (RAMBO, 2003; KREUTZ, 2004). Era necessário produzir um material didático que estivesse de acordo com a realidade brasileira, evidenciada no projeto do Sínodo Rio-Grandense, mas que ressaltasse aspectos doutrinários religiosos do luteranismo, como pode ser percebido no material didático do Sínodo de Missouri. Já as igrejas independentes seguiram, em grande medida, o material do Sínodo Rio-Grandense.

Essa contextualização das diferenciações permite compreender as rememorações dos narradores dos blocos temáticos. Os que pertenciam ao Sínodo de Missouri enfatizaram os aspectos doutrinários e ortodoxos do luteranismo de forma proeminente; já os que frequentavam as outras instituições enfatizaram as práticas religiosas, como orações e cantos, mas sem destinar destaque à doutrina. De forma similar, contudo, apresentaram a figura do professor como sendo disciplinadora e o uso de castigos e repreensões. Nesse sentido, a escola deveria ser a extensão da educação recebida em casa, de forma que os professores tinham a legitimidade de punir e castigar os alunos, instituindo práticas que eram aprovadas pelas famílias.

No campo da História da Educação, discute-se o conceito da cultura escolar. Esse conceito, definido por autores como JULIA (2001) e VIÑAO FRAGO (1995), auxilia a entender as normas e práticas da escola, não estando centrado somente nos currículos oficiais e nas políticas educacionais, mas também nos processos das práticas escolares. Nas rememorações acerca do mundo educacional, são presentes lembranças do trajeto escolar, como o ir a pé, e referências às mudanças que os entrevistados consideram facilidades atuais, como o transporte escolar e a nucleação da escola.

As narrativas sobre o caminho da escola são acompanhadas pela menção às brincadeiras, ao convívio social entre colegas e os longos trajetos que precisavam ser percorridos. A merenda, que não era oferecida pela escola, mas trazida de casa, também é rememorada: em função do longo tempo e da distância percorrida, práticas como trocas de merendas entre os colegas eram frequentes.

Percebe-se, assim, a existência de um período em que havia necessidade da escolarização representada pelos discursos das políticas educacionais, sem investimento considerado necessário. Nesse sentido, havia um projeto comunitário para manter as crianças nas escolas, mesmo elas tendo de percorrer vários quilômetros e ocasionando, por vezes, um sentimento de ausência no trabalho agrícola.

Naturalmente, muitas crianças frequentaram a escola apenas por um ou dois anos, pois, apesar da necessidade de trabalhar, precisavam da escolarização para a leitura da Bíblia, para o acompanhamento da liturgia na igreja, para o cântico dos hinos e para o conhecimento prático do conhecimento matemático. Estes elementos contribuíram para o sentimento de pertencimento ao grupo, já que, por meio da escolarização, a religiosidade e o espírito comunitário foram fortalecidos.

Considerações finais

A partir da necessidade de compreender a cultura local do povo pomerano, já tão silenciado historicamente, buscamos apresentar aspectos do Projeto de Extensão que vem atuando entre o grupo pomerano da Serra dos Tapes, especialmente em dois municípios: Canguçu e São Lourenço do Sul. Percebemos que esse povo mantém forte ligação com a terra e busca dar um sentido de pertencimento ao espaço do campo, que é permeado pelas instituições escolares e religiosas. Tendo isso em vista, o Núcleo Educamemória optou por atuar em duas escolas públicas municipais em que aproximadamente 90% do alunado são oriundos desse grupo cultural.

Nesse sentido, o processo de rememoração permite aproximar escola e comunidade, a partir de um trabalho pedagógico organizado por meio de blocos temáticos, que pôde ser utilizado como evocador16 da memória nas comunidades e, ao mesmo tempo, atuar nos processos educativos como metodologia pedagógica. Ou seja, a problematização do local possibilitou o empoderamento dos professores ao estimularem seus alunos a levantar dados via entrevistas com seus pais e avós.

Ao apresentarmos os diferentes blocos constituídos, elegemos dois que mantinham relações entre si para explicitar elementos de análise que puderam contribuir na pesquisa do grupo: os costumes representados pelas festividades e o mundo da educação (da casa, da escola e da igreja). Percebemos, assim, que os costumes são apontados como de grande relevância para essa comunidade, porque determinam as relações das festividades, dotando-as do sentimento de pertencimento comunitário. Nesse contexto, as festas dos ritos de passagem (batismo, confirmação e casamento) mostram as demarcações das etapas da vida e as relações de sociabilidade expressadas nas manifestações festivas. Em relação às comemorações ritualísticas, o envolvimento com o sagrado é latente, pois, ainda que a igreja institucional tente manter o controle, a ligação com a natureza e as superstições são recorrentes, de modo que a religião oficial e popular se mesclam e disputam as práticas dessas comunidades.

Nesse sentido, a história da escolarização desse grupo foi marcada pela presença das instituições religiosas luteranas, que, em grande medida, tinham como objetivos a promoção da leitura da Bíblia e do catecismo, princípios defendidos por Lutero. Cabe destacar, contudo, que, mesmo após a municipalização dessas escolas paroquiais, os grupos buscaram se organizar para manter as escolas nas suas proximidades e mantiveram vínculos de participação e atuação junto a essas instituições. Por isso, ressaltamos a consolidação de um campo religioso como espaço de disputas (BOURDIEU, 1996), que demarcou os demais campos: educacional, e de lazer.

Como apenas dois blocos temáticos foram discutidos neste artigo, há muito ainda a ser problematizado acerca da cultura do povo pomerano. O trabalho com a memória aflorou as narrativas sobre os costumes locais, permitindo inferir que a cultura pomerana, antes dada como inexistente, foi na verdade silenciada. A partir do entendimento que a memória é construída coletivamente dentro do grupo social e é reelaborada nas situações de conflitos, constituindo permanências e esquecimentos, é possível pensar que a cultura local precisa ser valorizada para sistematizar e fortalecer as memórias silenciadas. Assim a memória é instrumento de visibilidade e de superação do silenciamento.

Nesse sentido, por meio do trabalho de rememoração e de registro da oralidade, novas possibilidades de compreensão das singularidades desse povo se fazem presentes na história das culturas.

Referências

ANDERSON, Benedict. Comunidade Imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. [ Links ]

ARENDT, Isabel Cristina. Representações de germanidade, escola e professor no Allgemeine Leherzeitung fuer Rio Grande do Sul (Jornal Geral para o Professor do Rio Grande do Sul). 271f. 2005. Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-graduação em História, Universidade do Vale dos Sinos, São Leopoldo, 2005. [ Links ]

ARROYO, M. G.; CALDART, R. S.; MOLINA, M. C. Por uma Educação do Campo. Petrópolis: Editora Vozes, 2004. [ Links ]

BAHIA, Joana. O tiro da bruxa: identidade, magia e religião na imigração alemã. Rio de Janeiro: Garamond, 2011. [ Links ]

BARTH, Frederik. Grupos Étnicos e suas fronteiras. In: POUTIGNAT, Philippe; STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da Etinicidade. São Paulo: Unesp, 2011. [ Links ]

BRASIL. Decreto nº. 6.040 de 07 de fevereiro de 2007. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6040.htm. Acesso em: 20 mar. 2017. [ Links ]

BRASIL. Decreto nº. 8.750, de 9 de maio de 2016. Institui o Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Decreto/D8750.htm#art20. Acesso em: 16 junho 2017. [ Links ]

BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade lembrança de velhos. 2. ed., São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: 1987. [ Links ]

BOURDIEU, Pierre. Razões práticas sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996 [ Links ]

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel; Bertrand Brasil, 1989. [ Links ]

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. “Casa de Escola”: cultura camponesa e educação rural. Campinas: Papirus, 1983. [ Links ]

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Pesquisa participante. 5.ed., São Paulo: Brasiliense, 1985. [ Links ]

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Fronteira da fé: alguns sistemas de sentido, crenças e religiões no Brasil de hoje. Estudos Avançados, v. 18, n. 52, 2004. p. 261-287. https://doi.org/10.1590/S0103-40142004000300017Links ]

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. No Rancho Fundo. Espaços e tempos no mundo rural. Uberlândia: EDUFU, 2009. https://doi.org/10.14393/EDUFU-978-85-7078-169-7Links ]

CANDAU, Joel. Memória e Identidade. São Paulo: Contexto, 2014. [ Links ]

CAPORAL, F. R.; COSTABEBER, J. A. Agroecologia: aproximando conceitos com a noção de sustentabilidade. In: RUSCHEINSKY, A. (Org.). Sustentabilidade: uma paixão em movimento. Porto Alegre, RS: Sulina, 2004. p. 46-61. [ Links ]

CUETO, Amâncio Jr. Os corais luteranos na obra de Bach. Disponível em: http://euterpe.blog.br/historia-da-musica/os-corais-luteranos-na-obra-de-bach. Acesso em: 24 out. 2014. [ Links ]

DREHER, Martin N. Notas para uma História da Educação Protestante no Brasil. Estudos Leopoldenses, v. 4, n. 6, p. 133-150, 2000. [ Links ]

FÉLIX, Loiva Otero. História e Memória: a problemática da pesquisa. Passo Fundo: EDIUPF, 1998. [ Links ]

FERNANDES, Bernardo Mançano. Os campos da pesquisa em educação do campo: espaço e território como categorias essenciais. In: MOLINA, Mônica. A pesquisa em Educação do Campo. Brasília: Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária, 2006. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/secad/arquivos/pdf/educacaodocampo/artigo_bernardo.pdf. Acesso em: 17 fev. 2015. [ Links ]

GRANZOW, Klaus. Pomeranos sob o Cruzeiro do Sul: colonos alemães no Brasil. Vitória: Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, 2009. [ Links ]

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice; Editora Revista dos Tribunais, 1990. [ Links ]

HAMMES, Edilberto Luiz. A imigração alemã para São Lourenço do Sul: da formação da sua colônia aos primeiros anos após seu Sesquicentenário. São Leopoldo: Studio Zeus, 2014. [ Links ]

HOBSBAWN, Eric. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014. [ Links ]

JULIA, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História da Educação, n. 1, jan./jul., 2001. [ Links ]

KREUTZ, Lúcio. Professor Paroquial: magistério e imigração alemã. Pelotas: Seiva, 2004. [ Links ]

KRONE, Evander Eloí; MENASCHE, Renata. Festa e comida típica: o uso ideológico da tradição alimentar pomerana na afirmação de fronteiras étnicas. In: SEMINÁRIO SOBRE ALIMENTOS E MANIFESTAÇÕES CULTURAIS TRADICIONAIS, 2., 2014, Aracaju. Anais... Aracaju, 2014. [ Links ]

MULHALL, Michael George. O Rio Grande do Sul e suas colônias alemãs: 1836-1900. Porto Alegre: Bels, 1974. [ Links ]

PORTELLI, Alessandro. Sonhos ucrônicos, memórias e possíveis mundos dos trabalhadores. Projeto História. São Paulo, n. 10, p. 41-58, dez. 1993. [ Links ]

RADLEY, Alan. Artefactos, memória y sentido Del passado. MIDDLETON, David; EDWARDS, Derek. Memória compartida: la natureza social del recuerdo y del olvido. Buenos Aires: Piados, 1992. [ Links ]

RAMBO, Arthur Blásio. O teuto-brasileiro e sua identidade. In: FIORI, Neide Almeida (Org.). Etnia e educação: a escola alemã do Brasil e estudos congêneres. Florianópolis: UFSC; Unisul, 2003, p. 71-89. [ Links ]

ROCHE, Jean. A colonização alemã e o Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1969. [ Links ]

SEYFERTH, Giralda. Campesinato e o Estado no Brasil. Mana, v. 17, n. 2, p. 395-417, 2011. https://doi.org/10.1590/S0104-93132011000200006Links ]

STORCH, Leticia Sell; THIES, Vania Grim. Lembranças de batismo: a cultura escrita em três gerações de uma família pomerana. In: ENCONTRO SUL-RIO-GRANDENSE DE PESQUISADORES EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO - HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO E POLÍTICAS EDUCACIONAIS: 20 ANOS DA LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA, 22, 2016, Bagé. Anais 2016. Bagé: ASPHE/UNIPAMPA, 2016. v. 1. p. 769-782. [ Links ]

THUM, Carmo. Povos e comunidades tradicionais: aspectos históricos, conceituais e estratégias de visibilidade. Rev. Eletrônica Mestr. Educ. Ambiente. Edição especial XIX Fórum de Estudos: Leituras de Paulo Freire, p. 162-179, junho, 2017. https://doi.org/10.14295/remea.v0i0.6899Links ]

THUM, Carmo. Educação, História e Memória: silêncios e reinvenções pomeranas na Serra dos Tapes. 384f. 2009. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade do Vale dos Sinos, São Leopoldo, 2005. [ Links ]

TEICHMANN, Eliseu. Imigração e Igreja: as comunidades livres no contexto da estruturação do luteranismo no Rio Grande do Sul. 1996. Dissertação (Mestrado em História) - Instituto Ecumênico de Pós Graduação, São Leopoldo, 1996. [ Links ]

VIÑAO FRAGO, Antonio. Historia de laeducación e historia cultural: posibilidades, problemas, cuestiones. Revista de Educación. Madrid, n. 306, p. 245-269, 1995. Disponível em: redined.mecd.gob.es/xmlui/handle/11162/70501. Acesso em: 09 jul. 2015. [ Links ]

WEIDUSCHADT, Patrícia. O Sínodo de Missouri e a educação pomerana em Pelotas e São Lourenço do Sul nas primeiras décadas do século XX - identidade e cultura escolar. 259f. 2007. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2007. [ Links ]

WEIDUSCHADT, Patrícia. O lazer e a construção da identidade numa comunidade rural de descendentes germânicos em Pelotas. 2004. Monografia (Especialização em Educação) - Instituto de Ciências Humanas, Departamento de Antropologia, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2004. [ Links ]

WOODWARD, Kathryn. Identidade e Diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz T. (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 103-133. [ Links ]

1O processo de andarilhagem pomerana envolve disputas de território por séculos, pois, situado às margens do Mar Báltico, era um território desejado por diferentes grupos. Demarcadamente a partir de 600 d.C. e no século XI, intervenções externas causaram alterações na cultura, na língua, na religiosidade e na autonomia política dos pomeranos. Por conta desses conflitos, esse povo viveu um processo de domínio linguístico, religioso e político, especialmente por parte do Sacro Império Romano-Germânico (1186-1806) e também durante a vigência do Estado Prussiano. Situado entre Alemanha e Polônia, o território em questão é também objeto de disputa contemporânea. Durante a Unificação Alemã (1871), parte de seu território foi incorporado à Alemanha. Quando da Segunda Guerra Mundial (Conferência de Potsdam), foi dividido em duas partes, uma passando a ser território polonês e a outra passando a ser território alemão. Cabe destacar que, no Brasil, o povo pomerano apesar de se autoidentificar como tal, em diferentes momentos foi considerado como alemão e assim ficava subsumido na narrativa histórica, sendo, portanto, uma cultura silenciada (THUM, 2009). Dessa forma, os registros que levam em conta os aspectos culturais desse grupo cultural, no Brasil, são escassos, motivo pelo qual se torna necessário o investimento em levantar aspectos da cultura local a partir da memória desse povo, especialmente por meio de narrativas orais.

2O Núcleo de Extensão e Pesquisa Educamemória/Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) vem atuando com o tema das culturas camponesas na zona rural dos municípios de Canguçu, Pelotas e São Lourenço do Sul (sul do sul do Rio Grande do Sul) desde 2006. No ano de 2012, o Núcleo desenvolveu o Programa de Extensão denominado “Memória e Educação: cultura rural em diálogo” (PROEXT 2011) e, em 2014, o Programa de Extensão intitulado “Educação e Memória: diálogos com a diversidade camponesa” (PROEXT 2014). No ano de 2016-2017, desenvolve os Programas de Extensão “Memória, Educação e Patrimônio: A Paisagem Arquitetônica do Povo Tradicional Pomerano” e “Cultura Estética e Formação: rede de saberes, incompletudes”.

3A Serra dos Tapes está situada ao sul do Rio Grande do Sul, a oeste da Lagoa dos Patos, entre o Rio Camaquã, o Canal São Gonçalo e o Rio Piratini. Faz parte do conjunto denominado de Serras do Sudeste (da qual fazem parte a Serra do Herval e a Serra dos Tapes). Configura-se como um planalto com elevações moderadas, cobertas com vegetação rasteira de campos e de áreas de mata. O espaço pesquisado situa-se nas áreas onde se faz presente a mata e em que a terra oferece condições de produção agrícola, especialmente nos locais onde há áreas com terreno mais acidentado, morros e cerros que alcançam entre 200 e 500 metros em relação ao nível do mar, espaço que os estancieiros do charque consideravam inadequado para a pecuária. O clima é subtropical, com verões e invernos (longos) bem destacados. O inverno atinge médias de temperatura baixas, sendo caracterizado por recorrentes geadas ao amanhecer.

4No Brasil, o Povo Pomerano é reconhecido como povo tradicional. Decreto nº 6.040 de 07 de fevereiro de 2007 e Decreto nº 8.750, de 9 de maio de 2016. Para aprofundar a questão ver Thum (2017).

5O IDHM compreende indicadores de três dimensões do desenvolvimento hu mano: longevidade, educação e renda. O índice varia de 0 a 1: quanto mais próximo de 1, maior o desenvolvimento humano. O Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil é um site que traz o IDHM e outros 200 indicadores de demografia, educação, renda, trabalho, habitação e vulnerabilidade para os municípios brasileiros. Ver mais em: http://www.atlasbrasil.org.br/2013/pt/home/.

6Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/ d6040.htm

7Para compreender o ethos do mundo do trabalho imigrante ver Seyferth (2011).

8A disciplina é denominada de “História, Memória e Sustentabilidade Pomerana”.

9Nesse contexto, três instituições luteranas disputaram o espaço entre os pomeranos. A primeira delas foi constituída com a chegada da imigração: as igrejas luteranas independentes. Elas não possuíam vinculação oficial com nenhuma organização superior entre elas, constituindo um movimento de estabelecer autonomia nas comunidades durante o processo imigratório, diferentemente do movimento de opressão presente na terra de origem. Nesse sentido, elegiam um pastor e professor para realizar as reuniões religiosas e a iniciação escolar (TEICHMANN, 1996). A segunda instituição a se instalar no Rio Grande do Sul, em meados do século XIX, foi o chamado Sínodo Rio-Grandense (atual Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil − IECLB) (DREHER, 2000), que não investiu fortemente na região meridional. O Sínodo Rio-Grandense tinha sua sede na Alemanha. Por fim, o Sínodo de Missouri (atual Igreja Evangélica Luterana do Brasil − IELB), de origem norte-americana, instalou-se na região meridional em 1900. Todas essas instituições disputaram fiéis naquele contexto, defendendo as suas práticas e doutrinas (WEIDUSCHADT, 2007). Ainda hoje, atuam na região, concentrando maior número de fieis as igrejas independentes.

10O canto coral foi estimulado no meio luterano a partir de Bach com diferentes arranjos da música religiosa e sacra, composta pelos reformadores. Ver mais em “Os corais luteranos na obra de Bach”, de Amâncio Cueto Jr. Disponível em: http://euterpe.blog.br/historia-da-musica/os-corais-luteranos-na-obra-de-bach.

11Há uma pesquisa em andamento no Grupo de Pesquisa História da Alfabetização, Leitura, Escrita e dos Livros Escolares (HISALES/FaE/UFPEL), sob orientação da professora Dra. Vania Grim Thies que trata especificamente da investigação das lembranças de batismo entre os pomeranos. Conferir trabalho em Storch e Thies (2016).

12BAHIA (2011), em seus estudos sobre os pomeranos na realidade capixaba, observa que as festas pagãs são oriundas também da vinculação do cristianismo com o paganismo, constituindo o que se pode denominar de religiosidade popular. Assim como BRANDÃO (2004), BAHIA (2011) reforça que a linha que separa religião institucional e religiosidade popular é tênue.

13Os hábitos alimentares modificados são discutidos no trabalho de Kroner (2014). Em uma abordagem antropológica, o autor aborda a questão da alimentação tradicional consumida na festa pomerana, que partia de uma perspectiva essencialista da manutenção dos costumes. Embora os grupos acreditem que esses costumes sejam inalterados, os alimentos e a forma de preparo considerados tradicionais pela comunidade pomerana são marcados por discursos com implicações ideológicas acerca da seleção e aceitação de determinado alimento. Essa pesquisa mostra que os organizadores da festa são convencidos de que consomem e oferecem pratos típicos e autênticos, reforçados pela necessidade do turismo, sem perceber, contudo, que, ao longo do tempo, as formas de preparo e o consumo de gêneros alimentícios foram modificados.

14Para aprofundar estas questões, conferir Weiduschadt (2009).

15A partir do trabalho nos blocos pelos alunos, os pesquisadores aprofundaram entrevistas com alguns avós e pais dos alunos no intuito de compreender a escolarização pelas instituições religiosas luteranas.

16Os evocadores de memória são discutidos nos estudos de RADLEY (1994), em que situações, objetos, artefatos e práticas possibilitam aos narradores lembrarem o que mais ressignificou nas memórias estimuladas pelas temáticas. Allan Radley (1992) acredita que a memória, além de ser um produto do discurso, esteja presente nos objetos, nos artefatos e na cultura material, sendo possível recordar-se fazendo relações com os objetos produzidos e preservados pelos grupos. Dessa forma, os signos e as representações, por meio dos objetos e dos artefatos definidos por Radley (1992), atuam como evocadores das recordações compartilhadas pelo grupo: “[...] Los objetos, aparentemente, se presentan a sí mesmos de modo inesperado y ‘evocan recuerdos’ pero tambien son parte de un mundo material ordenado de forma que mantenga ciertos mitos e ideologias acerca de la gente como indivíduos y de ciertas culturas concretas. [...] Estes es el sino de algunos artefactos que pertenecen a cada época; sobrevivir a los peligros hasta llegar a un período em el que su desplazamiento se percibe como significativo, y al ser entónces deliberadamente apartados convertirse em indícios del passado, em objetos ‘para recordar’.” (RADLEY, 1994, p. 68)

Recebido: 09 de Maio de 2016; Aceito: 14 de Setembro de 2017

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons