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Educação e Filosofia

versión impresa ISSN 0102-6801versión On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.32 no.65 Uberlândia mayo/agosto 2018  Epub 21-Sep-2020

https://doi.org/10.14393/revedfil.issn.0102-6801.v32n65a2018-05 

Artigos

Os discursos da Educação em slogans do cotidiano e nos pactos governamentais

The speeches of Education in everyday slogans and government pacts

Les discours de l’éducation vehiculés dans slogans au quotidien et chez les pactes gouvernamentaux

Anderson de Carvalho Pereira* 

*Doutor em Ciências (Psicologia) pela USP/Ribeirão Preto. Professor titular da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. E-mail: apereira.uesb@gmail.com


Resumo

A partir da Análise de Discurso francesa e da noção de sujeito da Psicanálise, o artigo apresenta uma discussão sobre slogans acerca da Educação tal como circulam na grande mídia; além disso, analisa o uso da denominação “pacto” em alguns programas governamentais brasileiros. Para isto, são mobilizados os conceitos de sujeito e acontecimento discursivo. Pelo modo de captura do sujeito dos slogans e das nomeações governamentais conclui que por conta da persistência do sentido de uma educação total e unívoca, não há ruptura definitiva com regimes de interpretação já instalados no cenário nacional.

Palavras-chave: Discurso; Mídia; Políticas educacionais

Abstract

Based on french discours analysis and the subject concept in its theoretical approach, this paper shows a discussion about meaning effects as mass media education’s slogans; furthermore, was analysed the nomination “pacto” among Brazilian official educational programs. For this, many different theoretical approaches were used: paraphrase, discursive memory, discursive event, scholar pedagogical discourse. By the capture subject sustained by slogans and government programs nominations, we concluded that a one-way education remains without a radical break against interpretation schemes in national concept of Education.

Keywords: Discourse; Media; Public polices for education

Résumé

A partir du cadre de l’Analyse de discours française et du concept psychanalytique de sujet, l’article présent un débat sur les formes clichês (slogans) et leur circulation chez les médias; en plus, on analyse l’usage de la dénomination « pacte » chez programmes governamentaux brésiliens. De cette façon, ce débat a été soutenu par les concepts de sujet et événement discursif. L’article montre que la croyance en une éducation universel et univoque évidenciée comme sens litéral mis en rapport un réseaux du sens qui synalise une place du sujet résultat des slogans e des dénominations gouvernamentaux; à la fois que ne permet pas de rompre les régimes d’interprétations cristalisés au scénario braésilien.

Mots-clés: Discours; Média; Politiques publiques

Introdução

A circulação de diversos enunciados sobre Educação aparece na grande mídia, seja na televisão, na web, na propaganda do terceiro setor, a partir de diversas tentativas de apropriação de um bem público. Mesmo assim, questão polissêmica por excelência, a Educação perece escorregadia, no que se refere ao que está em jogo em termos políticos e no que se refere ao sujeito, à deriva.

Partindo deste pressuposto, nosso propósito neste artigo é analisar algumas possíveis derivas de sentido de enunciados sobre a Educação tal como tem circulado na grande mídia e em programas governamentais.

Em parte, esta análise tenta apontar parte do mecanismo de naturalização do status quo da Educação, por meio de sentidos que sustentam um lugar da interpretação. Desta forma, adentramos esta questão na interface entre Psicanálise e Educação e o conceito de discurso da Análise do Discurso francesa (doravante, AD) proposta por Pêcheux (1993; 1997; 1999; 2014). A partir deste, questionamos: de que forma esses enunciados consolidam o status quo da Educação brasileira? De que maneira emerge o sujeito intérprete desses enunciados?

Na tentativa de responder a estas questões, fizemos um percurso interpretativo que procura resgatar o tom polêmico do debate sobre a Educação como questão pública que circula como prática de linguagem cotidiana. Deste modo, procuramos “ouvir” e “ler” os discursos que circulam nas entrelinhas de enunciados majoritários em busca de uma teorização sobre o sujeito do discurso alocado no campo da Educação, por acreditar que por meio desta escuta/leitura ações em larga escala podem ter respaldo no público a que se destinam.

Aspectos teóricos

Pacto e Educação em Psicanálise

O cenário de uma desvalorização do legado e do patrimônio cultural brasileiro não tem contribuído para a leitura histórica e sócio-política da problemática da Educação e aponta para o cerne de um sintoma contemporâneo (BOSSA, 2002). É nesta linha que Aquino (1997) aponta um embotamento da Educação em geral. Citando:

a imagem, entre nós já quase idílica, da escola como locus de fomentação do pensamento humano - por meio da recriação do legado cultural - parece ter sido substituída - grande parte das vezes pela visão difusa de um campo de pequenas batalhas civis, pequenas mas visíveis o suficiente para causar uma espécie de mal-estar coletivo nos educadores brasileiros. (AQUINO, 1998, p. 9)

É esta a promessa de felicidade e de sucesso para poucos diante do individualismo e da solidão do prazer imediato de nossa sociedade que vemos no cotidiano escolar por meio do predomínio do paradigma de conhecimento. É este cenário que Bossa (2002) analisa por meio do enquadre da insuficiência das leituras majoritárias que ainda insistem em esconder o fracasso institucional mais amplo atrás de paradigmas individualistas. Deste modo, a autora propõe trabalhar com a especificidade do sintoma (fracasso) situado culturalmente. Nesta linha, o embotamento pode ser interpretado como uma crise do Pai simbólico de que trata a Psicanálise.

É em “Totem e Tabu” que Freud (1913-1914/1996) situa o dilema humano em meio aos atos que despertam impulsos de poder sobre o outro e a contenção necessária para a civilização. Em meio a isso, os tabus transformam-se em leis, rituais, normas. O medo da proibição, por outro lado, indica a falta. Ausentar-se de um ritual ou marcar o contato com o outro pelo valor relativo a uma determinada proibição em especial organiza uma obediência à injunção de renunciar a esse acesso interditado pelo tabu; por conseguinte, a renúncia ao desejável também porta o desejo de transgressão, de forma paradoxal e inconsciente.

Pellegrino (1987) aposta nesta possibilidade de leitura sobre a barbárie urbanizada do Brasil contemporâneo, bem como da falência sintomática de equipamentos sociais como a escola. O autor aponta o retorno do que se tentou calar (recalcar) no período mais recente com o regime ditatorial militar (1964-1985) quando se tentou expropriar este caráter de bem público e coletivo.

Os desencontros entre objetos ideais e a falta em Psicanálise provoca, portanto, reviravoltas nessa relação do sujeito com o desejo de transgredir e, assim, a injunção à obediência repercute na Educação. Indo ao encontro desta reflexão, lembramos as palavras de Petrin (2003, p. 25) que expressam com rigor este paradigma do sujeito do inconsciente:

A educação ideal é um mando imaginário, que pretende ter respostas para tudo, não há espaços para o imprevisto, para a criação, enfim para o desejo, quem recebe o mando fica no lugar de objeto que deve contemplar o Outro mandante. O ideal de uma educação é de ordem simbólica, articulada uma demanda que é enigmática, tem proibição, abrindo a possibilidade para o desejo, para o imprevisto, para o improviso, para o surgimento do sujeito. (PETRIN, 2003, p. 25)

Esse ideal de uma Educação igualitária para todos, mandatária e que envolva por completo a condição humana aparece em um slogan televisivo e na denominação “pacto” utilizada em vários programas governamentais.

Essa ilusão generalizada esconde os imprevistos do cotidiano, as dificuldades, as nuances sócio-históricas de um grupo em dado período, bem como o caráter político da imposição de um paradigma do conhecimento em que o padrão nuclear se volta aos desempenhos individuais e governamentais alinhados como um Pacto generalizado.

É certo que esse encontro com o Outro idílico da Educação esconde batalhas desregradas do cotidiano vil, e em que, cada vez mais, o sujeito é apunhalado pelas ondas vorazes da macroeconomia e da macropolítica em que temos um sujeito diminuído às instâncias de sucumbir de si mesmo. É a crise do sujeito racional, centrado na evidência de transparência da realidade imediata. É a sucumbência da busca pelo ideal de pureza no uso da razão, bem como a crítica ao Empirismo em sua tentativa de aglutinar o que escapa à consciência pela relevância da mente.

É o que Aquino (1997) indica como sinal de um mal-estar atual. Em meio a esta celeuma do pacto civilizatório a que pertence a Educação, aparecem nossas questões: qual a configuração de um mal-estar sintomático, no sentido de repetição, de retorno do que está recalcado e de sinal de sucumbência de um pacto? De que maneira os dizeres sobre Educação que se pretendem universais e que aparecem como voz anônima sustentam evidências de que há um agente bem-intencionado e responsável por este bem público?

Com este debate queremos apontar em primeiro lugar que esta insistência pela resolução total e plena daquilo que é da ordem da incompletude fica a cargo muitas vezes na realidade brasileira de medidas precipitadas, com roupagem de reparos urgentes e imediatistas, tal como se vê em pactos governamentais e em slogans de propagandas. Seja no âmbito governamental ou não, seguem denominações similares e que parecem irrestritas em sua pretensão de resolução imediata e definitiva.

Neste texto, analisamos os seguintes: Alô Brasil, aqui tem Educação (Fundação Roberto Marinho e Rede Globo de Televisão)1; Todos pela Educação (Fundação Roberto Marinho)2; Pacto pela Alfabetização na Idade Certa (governo federal)3; Pátria Educadora (governo federal)4; Pacto Ensino Médio Bahia (Governo do Estado da Bahia)5; Pacto com Municípios pela Alfabetização (Governo do Estado da Bahia)6,7.

Nossa hipótese principal é que esses slogans generalistas e esses pactos indicam, portanto, a tentativa de firmar um compromisso sobre a base de um valor simbólico, de compromisso, que a Educação teria em tese; por outro lado, a insistência em firmar um pacto e um mando geral, na convocatória pública indica que algo falha, corre à revelia.

Pela Psicanálise e pela Análise de Discurso francesa, sabemos que aquilo que falha indica retorno do recalque, bem como é sinal de sintoma, de persistência do que é da ordem de uma mudança do valor simbólico que o imaginário insiste em inscrever como certo, como constatação. Neste caso, como inscrever um “pacto”, um acordo certeiro uma vez que a necessidade de reformular um acordo somente se justifica caso algo tenha falhado? O paradoxo desta questão reside no fato de que a Educação, para lembrar Freud, insiste no vazio da sua impossibilidade.

Deste modo, apostamos que os slogans veiculados pela grande mídia e os pactos governamentais também tentam obturar, tamponar o que é da ordem de uma natureza complexa e incompleta que, por fazer parte da própria incompletude de um pacto civilizatório não dependeria de uma ação, ou de uma promessa, mas do testemunho de um olhar que transita pelas partes e pela ilusão de totalidade diante do não todo que constitui a relação entre sujeito e Educação. Em sequência a essas reflexões, passamos às noções de sujeito e discurso em Análise de Discurso francesa (AD).

As concepções de sujeito, discurso e ideologia em AD

Em “Discurso: estrutura ou acontecimento?”, Pêcheux (1997) propõe debater e trilhar um caminho de análise no campo de estudos da linguagem, entre o legível e o interpretável. O legível depende de estranhar de que maneira a memória discursiva permite dialogar com a ideologia e seu modo de produzir universos semanticamente estáveis.

Deste modo, o que é legível e o que é interpretável em um enunciado confluem entre si num lugar de entremeio em que o sujeito do discurso é efeito de falhas, equívocos, mal-entendidos, novas produções linguageiras que resultam da deriva dos enunciados. Toda esta reflexão parte da crítica à produção de obviedades, dentro e fora das Ciências Humanas e Sociais, crítica esta que parte do trabalho do filósofo francês no setor de Psicologia Social do CNRS em Paris (PÊCHEUX, 1993).

Esta constatação decorre do fato de que “o estatuto do sujeito no discurso - que a Linguística aborda, de sua parte, pelo viés da enunciação - é também objeto de abordagens exteriores, às vezes violentamente contraditórias, por exemplo, o modelo de sujeito proposto pela psicologia cognitivista e intelectiva, em comparação à proposta psicanalítica de sujeito, em particular na releitura lacaniana.” (PÊCHEUX, 1984/2014, p. 227)

Pêcheux (1997) aposta neste caminho após revisitar a própria releitura que fizera do marxismo althusseriano. Nas palavras do autor:

a posição epistemológica da análise do discurso conduz, então, a pensar na existência da língua não como um sistema (o software de um órgão mental!), mas como um real específico formando o espaço contraditório do desdobramento das discursividades. (PECHEUX, 1984/2014, p. 228)

Esta forma do marxismo construir um todo para cada disciplina e a crítica ao Estruturalismo político do marxismo sugere dois campos indissociáveis de estudo e debate sobre a língua e a linguagem; é a iniciativa de partir da análise de materialidades ordinárias e cotidianas da linguagem. Ou seja, trabalhar com o referencial da AD é lidar com a interpretação e com o fato de que a submissão à estrutura da linguagem mobiliza um debate sobre a natureza da linguagem e do sujeito.

No caso, o sujeito do inconsciente é também aquele cooptado pela ideologia, sendo que a noção de ideologia aqui contemplada não se pauta na ilusão, mas na determinação do sujeito pelo político e pelo equívoco de modo que “(…) a questão crucial para a análise de discurso é a do estatuto do sujeito enunciador, na fala e na escrita, na escuta e na leitura: na medida em que ela se alinha entre as disciplinas de interpretação. (PÊCHEUX, 1984/2014, p. 230)

Deste modo, o que é interpretável depende de uma aproximação, em primeiro plano, com o que aparece como legível, também no sentido de evidente, porque faz parte do processo de naturalização semântica de toda ideologia diante do qual o pesquisador estranha discursos, ao tentar desnaturalizar sentidos para debater questões ligadas a um determinado campo de conhecimento e prática discursiva.

Um dos fortalecimentos da crença na transparência e na evidência do sentido de modo independente da discussão sobre a arbitrariedade do signo, e o relativismo do sentido e do referente se consolidou pelo fortalecimento do Empirismo (em parte influenciador de uma pretensão da Psicologia cognitivo-comportamental de codificar a condição humana em sua totalidade pelo método da redução ao binômio estímulo e reposta). Esta influência tem como auge, conforme Pêcheux, um caminho no tratamento da questão do sujeito da interpretação que é aquela de impor à crença do “sempre-já-aí” um ponto de saturação, um ponto aparentemente de resolução completa para as contingências da realidade. Em outras palavras, o sujeito emerge de lugares possíveis de serem interpretados no afã da imprevisibilidade das contingências da realidade. No entanto, acredita poder controlá-las previamente (crença fortalecida pelo Empirismo Lógico) e pela ilusão de estar no lugar do outro tal e qual, ocupar o lugar do outro “como se” (PÊCHEUX, 1993; 1997) fosse possível “fazer da mesma maneira” que se fosse “eu” que estivesse “aí” ou “lá” no lugar do sujeito. Ocorre que o lugar do sujeito não é previamente marcado. Irrompe do real, como lugar a ser simbolizado. Reside na empatia propagada pela Psicologia Humanista ou no controle prévio propagado pela Análise Experimental do Comportamento de herança cognitivo-comportamental uma ilusão de totalidade, totalidade esta a que se alinham os pactos aqui analisados.

É por este percurso, acompanhando esta crítica, que propomos a análise de enunciados linguageiros acerca da Educação (PÊCHEUX, 1997). É a partir desta fundamentação que seguimos nossa análise.

Método

O “método” aqui utilizado para analisar e dialogar com as questões acima apresentadas foge ao paradigma galileano e cartesiano, em que o imperativo do raciocínio dedutivo tenta excluir a interpretação. Isto porque:

Na ciência clássica, a subjetividade aparece como contingência, fonte de erros (o “noise” da linguagem da informática, o ruído que é absolutamente necessário eliminar). Por isso, a ciência clássica exclui sempre o observador de sua observação, e o pensador, o que constrói conceitos, de sua concepção, como se fosse praticamente inexistente ou se encontrasse na sede da verdade suprema e absoluta. (MORIN, 1996, p. 46)

Fundamentando-nos em uma concepção de que os “dados”, na verdade, são gestos de interpretação, partimos em busca do valor relativo desses enunciados, seus modos de instalar zonas de sentido deslocadas do domínio automático do cotidiano. Trata-se de examinar posturas estrategistas em que o intérprete rouba a cena no cotidiano. Desta faz parte a inclusão do observador, como intérprete dos enunciados.

Tal como aponta Certeau (2001), trata-se de operar uma leitura que parece uma caça, um olhar agudo sobre este homem ordinário de que trata a Psicanálise; e também um modo de se voltar à trajetória, aos caminhos já percorridos por determinadas pistas, como afirma Ginzburg (1989), cujo caráter venatório diz respeito a uma obrigatória volta ao passado, o que também se assemelha ao “método” psicanalítico.

Meyer (1993, p. 31), ao se referir à interpretação em Psicanálise, afirma:

ela se delineia como instrumento do método de investigação; entretanto, as hipóteses pelas quais se procura explicar os fenômenos (por exemplo, as hipóteses sobre o funcionamento da interpretação) já estão impregnadas de um caráter interpretativo. Esse aspecto circular, porém não se constitui em obstáculo, uma vez que por sua posição a interpretação está agindo como contato, como intermediário e mediador. Sua vitalidade está ligada à potencialidade de sua função articuladora (que inclui, é claro, a desarticulação).

No que toca à semelhança com a proposta da AD, retomamos a discussão de Pêcheux (1997) sobre interpretação, uma vez que o autor mostra que a ordem de legibilidade, de possibilidade de leitura de um enunciado anda em função de outros que o sustenta em uma linearidade ilusória, porém necessária, por meio da qual os acontecimentos circulam na forma discursiva (produzindo efeitos de interpretação).

Em linhas gerais, nos interessa analisar de que modo o reconhecimento social da Educação é sustentado por algumas linhas ilusórias que a mostram como um “objeto” discursivizado como igualitário e generalizado, de encontro à incompletude do sujeito. Afinal, para a Psicanálise:

o sujeito do inconsciente se constitui na e pela linguagem, sendo, portanto, feito e efeito de linguagem. Desta perspectiva, a linguagem não é instrumento de comunicação, mas a trama mesma de que é feito o sujeito. (KUPFER, 2001, p. 28)

Em suma, as denominações dos pactos sobre Educação permitem um olhar deslocado, “de fora”, sobre o homem ordinário e o modo automático a partir do qual os enunciados em larga escala lhes dizem “o que, como e de onde” enunciar e assumir um lugar fragmentado e assujeitado no campo da Educação.

Chama a atenção, nesta discussão, como essas denominações se apresentam de forma semelhante aos slogans. Para Jesus (2014, p. 44), os slogans:

são correntemente requeridos nas propagandas comerciais (...) sua proliferação abrange sua amplitude em tempos de guerras, revoluções e manifestações, fazendo com que diversos grupos sociais adiram a uma causa ou movimento.

Ou também porque “os slogans interessam por sua construção, sua vaguidade, sua linguagem “poética”, sua relação clara com condições de produção sua proximidade com a linguagem dos chistes.” (POSSENTI, 2009, p. 104)

Em síntese, o que queremos destacar baseando-nos nesses dois autores é que o aparente descompromisso desta nomeação indica o chamado a uma luta aparentemente igualitária, na linha da propaganda. Convocar a um pacto indica a ilusão de isonomia e disfarçada o lugar ocupado por quem nomeia e os sentidos que derivam desse mecanismo enunciativo.

Junto da nomeação “pacto”, temos tanto o valor de adesão a uma “missão” coletiva, quanto os fins comerciais materializados, por exemplo, no caso do enunciado “Todos pela Educação”, veiculado pela rede Globo de Televisão. É este meandro que envolve tanto o valor discursivo do termo “pacto” utilizado em programas governamentais quanto o modo pelo qual os enunciados do slogan televisivo constroem um interlocutor e provocam efeitos de sentido e de interpretação que vamos abordar na análise.

Em síntese, os critérios para a escolha destas marcas de linguagem se apoiam na concepção pecheutiana de que o sujeito é um intérprete, estrategista em meio aos enunciados do cotidiano, cotidiano este que indica o movimento de deriva dos sentidos, da superficialidade linguística para pontos da análise, a partir dos quais é possível debater e teorizar uma questão.

Este sujeito ordinário (CERTEAU, 2001) é também aquele que a Psicanálise indica como lugar diante do Outro (MEYER, 1993; KUPFER, 2001); é um modo de marcar um lugar na interpretação que não depende da quantidade de “dados” coletados, pois não se propõem a isto, mas do valor singular de um modo de debater uma questão. A aparente fragilidade de um ponto da análise indica nódulos opacos de um debate em que o aparato teórico faz parte da consistência dos “dados”, questionando as evidências da linguagem ordinária.

A análise

A análise aqui proposta se filia ao percurso da postura do pesquisador como construtor de lugares de interpretação, proposto por Pêcheux (1997), a partir das seguintes questões: quem é o sujeito do enunciado? Quem é o complemento do enunciado, ou seja, o quê é enunciado, como e por quê?

Inicialmente, vamos nos ater ao enunciado “Alô, Brasil! Aqui tem Educação!” e ao enunciado “Todos pela educação”, proferidos pela rede Globo de televisão. Além deste, analisamos a nomeação “Pátria educadora” e o uso do nome “pacto” em programas governamentais, na esfera estadual e federal.

O enunciado “Alô, aqui tem Educação!” é veiculado há algum tempo na grande mídia. Vale relembrar que esta veiculação é feita por uma emissora privada de televisão. Um dos efeitos de sentido da divisão entre o vocativo “Alô” e o uso do dêitico de lugar “aqui” é marcar uma suposta diferença no tratamento da Educação.

Desta forma, quem enuncia o faz porque (“se”) autoriza ou é autorizado a definir o lugar e o valor da Educação a partir da sustentação entre “aqui”, um lugar onde se teria Educação; e um “lá”, alhures, distante do interlocutor e do emissor em que não haveria Educação. O modo como esta materialidade provoca distanciamento e se legitima não se esgota nesta marcação linguística.

O porquê da veiculação deste enunciado e como é veiculado nos obriga a resgatar parte da memória discursiva que circula no País em torno da Educação. O sentido majoritário de esclarecimento, de obtenção de informação, que retroage a uma memória entre quem “sabe” e quem “não sabe” e deve ser instruído remonta a um período recente. Trata-se do período da ditadura militar que se estendeu de 1964 a 1985 e configurou uma engrenagem político estratégica para ratificar esta concepção de Educação.

Portanto, afirmar que “aqui” tem Educação por oposição a um lugar ou a um interlocutor que não a teria resgata um périplo de sentidos sobre pares dicotômicos, a saber: o professor tem educação e o aluno não tem; o emissor da televisão tem Educação e o telespectador não tem; o cidadão distante dos grandes centros onde se localizam as grandes emissoras não tem acessam o sentido de Educação que estas possuem. Do ponto de vista da memória discursiva, podemos lembrar o formato de educação bancária criticado por Paulo Freire (1970) e que se consolidou no período ditatorial acima mencionado.8

Outro ponto a ser destacado é este do campo da memória discursiva. Pêcheux (1999) entende por memória discursiva um modo de os enunciados estabelecerem regimes de repetição e de legibilidade que reforçam parte do seu efeito de evidência, parte do que ficou calado por um efeito de descontinuidade na História, bem como sua possibilidade de retorno na superfície da materialidade linguística.

Desta maneira, quem está autorizado a divulgar ao público em geral “o que” é Educação é a empresa televisiva, por meio de um jingle televisivo com o intuito de esclarecimento. O efeito de slogan deste jingle lembra o que Jesus (2014) sinaliza acerca do modo de se estabelecer adesão a uma causa, ou missão comum.

Vale notar que o uso deste jingle vem marcado com uma nota acerca de um assunto ou tema que supostamente o interlocutor (telespectador) desconhece; somado a isto, a chamada do slogan é seguida do esclarecimento sobre alguns temas; vejamos um exemplo: “Algumas palavras são sempre utilizadas no plural. Alô, Brasil! Aqui tem Educação!9”. Dentre várias entradas no intervalo comercial em que se nota este formato de educação bancária, materializada no esclarecimento informativo, o jingle é repetido criando um efeito de naturalização sobre o que seria Educação, de forma apartada de outras concepções possíveis. Em algumas dessas entradas televisivas, assuntos como o nome de capitais de países, informações sobre regras gramaticais da norma culta da língua, a serem memorizadas aparecem na linha do que Freire (1970) chamou de educação bancária.

Mas de que maneira estes pilares da memória e também do campo da estrutura dos enunciados põem o slogan “Alô, Brasil! Aqui tem Educação!” para circular como complemento do enunciado que diz onde se tem Educação? Qual o efeito de um slogan sobre Educação acompanhado de entradas comerciais com o formato da abordagem tradicional do ensino na linha de uma educação bancária sustenta em termos de efeito de sentido para o interlocutor?

Chegamos à análise dos complementos “como?” e “por que?” (PÊCHEUX, 1997). A partir da materialidade discursiva, vemos que o efeito de “Alô” e “aqui” são peças cruciais deste jogo discursivo. O formato de chamada e de apelo é feito pela migração de um enunciado habitualmente utilizado em chamadas telefônicas para o uso televisivo. O chamado à existência contido em “alô!” é marcado pela indagação acerca de quem é o outro do outro lado da linha, acerca de uma confirmação de que “somos sujeito”, de acordo ao efeito da interpelação ideológica fundamental descrita por Pêcheux (1993). Ou seja, a emissora de televisão convoca os sujeitos a aprenderem o que é Educação, ocupando o lugar privilegiado do discurso jurídico que interpela os indivíduos em sujeito.

A marcação na estrutura da nossa língua do “alô” como certeza semântica da presença de outro é reforçada pelo efeito do “aqui”; deste ponto de vista, é sustentado um lugar do implícito a ser lido da seguinte forma: Aqui tem X; lá não tem X.

Este efeito especular é um modo de o imaginário sustentar uma suposta adequação entre X e X, que é assegurada pelo jogo entre “aqui” e “lá”. Do ponto de vista ideológico, marcar uma presença pela ausência implícita autoriza o sujeito do enunciado, a formular naquela zona de sentidos. Chegamos ao “por quê?”. Uma vez autorizado por si mesmo, o sujeito da emissora autoriza-se e autoriza o outro imaginário saber o que é Educação, o que é acrescido de notas explicativas sobre matérias diversas.

Deste modo, a deriva do enunciado é contida por um suposto conhecimento acerca das “coisas a saber” (expressão de PÊCHEUX, 1997). No sentido dominante consolidado por este lugar do imaginário, não é qualquer lugar. É a Rede Globo, a Globo Internacional e o canal Futura que “esclarecem” e interditam a pluralidade de sentidos. Este efeito pode ser entendido como efeito do discurso pedagógico escolar (DPE) (ORLANDI, 1987), pelo qual se tem uma assimetria radical da posição dos interlocutores e um modo de tratar do “objeto” discursivo que não permite polêmica.

O DPE funciona pela não reversibilidade das posições discursivas; enquanto uma fala, a outra é calada; o autoritarismo é sua marca e vem pela evidência de que X é somente X (ORLANDI, 1987). Este modo de funcionamento do DPE extrapola o lugar da escola, produzindo efeitos de sentido em que o lugar “à espera” parece vazio de sentido, e a ser marcado, nomeado, sentenciado pelo enunciado dominante, em uma espécie de ortopedia semântica.

Orlandi (1987) argumenta que o DPE enuncia de modo a parecer autossuficiente. O DPE sustenta um modo de marcar “o fora” do discurso, de modo que paradoxalmente o sujeito somente pode falar desde que controlado pela própria interpretação que o DPE apregoa negar; instala-se um efeito de verdade semelhante ao das ciências dominantes. É deste modo que o sujeito do enunciado por um efeito de bastar-se a si mesmo, de autossuficiência, enuncia ao grande público o que é “Educação”. Do ponto de vista da identificação com o interlocutor, também temos outro nível do implícito, o do jogo entre os verbos “ser” e “ter”.

Desta aparente obviedade, mas cuja evidência é acobertada por mecanismos sutis de “ter tudo”, de tal forma que em tese mesmo a Educação pode ser consumida, ou seja, passa-se a “ter” educação, surge o lugar de evidência que autoriza o sujeito do enunciado a defender que em seu lugar (aqui) se tem Educação, e “lá” não tem. O uso do verbo ter se engata na eficácia do uso dos dêiticos “aqui” e o ocultado “lá”, pois remexe a memória do ponto de vista de assinalar no nível do desejo do desejo do Outro quem está autorizado, ou pode vir a ter “Educação”, como se esta fosse um objeto de consumo.

Em tese, quem tem uma mercadoria em nossa sociedade desperta o desejo do desejo de quem a possui (TFOUNI & TFOUNI, 2007; SILVA, 2015). No caso, a referida emissora aparece como detentora desta mercadoria, a ser obtida pelo seu público. A eficácia deste atalho do enunciado no imaginário pode ser lida conforme uma missão regida por este grande Pai, este lugar de suplência que nos remete ao diálogo com outro enunciado veiculado pela emissora e que faz parte de uma de suas iniciativas na área, que veiculam esta concepção da Educação como objeto de posse, a saber: “Todos pela Educação”.

É que esta regência orquestrada pelo uso genérico da nomeação compõe um modo da sociedade do espetáculo operar o alcance sociopolítico da televisão pela interpelação ideológica de fundo subjetivo que, conforme apontado no estudo de Silva (2015) disponibiliza um lugar para o sujeito, determinado pelo poder hegemônico de um ideário que a Rede Globo de televisão articulou no Brasil por meio de um projeto totalizador que entrelaça sua história com o mais recente projeto unificador da ditadura militar brasileira.

Deste modo, Silva (2015) defende que os slogans instituídos pela emissora funcionam por meio de uma regularidade que serviria ao brasileiro para se reconhecer; este efeito de autorreferência também pode ser notado no slogan “Alô Brasil, aqui tem Educação!”, bem como no slogan “Todos pela Educação”.

É assim que vemos no sujeito do enunciado que uma emissora televisiva marca o “o quê” e o “porquê” de que trata Pêcheux (1997). É que o slogan permite uma localização imaginária do sujeito não apenas pelo efeito virtual da totalidade a que todos pertenceriam de maneira igualitária, mas pelo apelo à proximidade afetiva.

A partir do referencial psicanalítico e discursivo, Silva (2015, p. 129) afirma que a demanda de audiência da televisão é um revés da demanda de amor por meio da qual, esses apelos afetivos se mesclam com o apelo publicitário de modo que “o sujeito confunda as demandas do capital, com seu próprio desejo: oferecendo e demandando amor, colocando o próprio sujeito como desejável, já que ela (a Rede Globo) diz se ligar em você (telespectador)”.

No caso que analisamos neste trabalho, este efeito de apelo afetivo é mesclado com o modo do apelo publicitário torná-lo objeto de desejo pelo dêitico “aqui” que indica proximidade com o sujeito capturado pelo efeito de sentido de Educação sustentado pela emissora.

Tfouni e Tfouni (2007), por sua vez, sinalizam que o slogan também articula o poder de marcar uma posição ideológica. Ao analisarem este mecanismo discursivo em um genérico que circula em escolas públicas de Ribeirão Preto-SP, os autores ressaltam o valor da materialidade linguística do slogan que “se caracteriza por ser marcada sintaticamente pela não identificação do enunciador empírico, o que se traduz pelo uso do sujeito indeterminado ou impessoal”. (TFOUNI & TFOUNI, 2007, p. 300)

Acrescentamos que parte da eficácia, do poder de construção imaginária obtida pela chamada “Alô Brasil! Aqui tem Educação!” é também porque mobiliza a não identificação precisa do sujeito acometido por um efeito Münchausen. Este efeito é explicado por Pêcheux (1993) a partir do efeito paradoxal da ideologia. O filósofo francês reconta assim a famosa história do personagem popular alemão que “puxava-se pelos próprios cabelos” (expressão do autor).

Pêcheux (1993) explica que o apagamento constitutivo de que o sujeito resulta de um processo dialético de natureza sócio-histórica com o sentido resulta em “fantasias metafísicas”, como a do efeito Münchausen. Mas como estas fantasias se relacionam com o apagamento desta própria constituição do sujeito? Por meio da ideologia. É a interpelação ideológica, tal como entendida por esta teoria sobre a identificação do imaginário articulada à base material que rege a vida ordinária por meio de assertivas óbvias.

Ao recrutar a todos, de forma pretensamente total e igualitária, a ideologia opera uma espécie de manobra, de dobra, de torsão já que interpela o indivíduo que, para assim ser interpelado necessita ser reconhecido pelo apagamento de sua dimensão sujeito à linguagem; assim, a categoria jurídica do indivíduo, melhor dizendo, da forma-sujeito “indivíduo” lança mão da estratégia da ideologia. Assim, já que a ideologia sustenta a evidência dos sentidos, coloca “o sujeito do discurso como origem” (PÊCHEUX, 1993, p. 158), promovendo o grotesco efeito de, ao apagar suas condições sócio-históricas de produção, iludi-lo por um efeito Münchausen, como se pudesse levantar-se a si mesmo.

É esperado como interpretação do sujeito comum concordar que, em tese, todos (querem ter) Educação. Deste modo, temos a eficácia do enunciado “Todos pela educação” e do efeito imaginário de se aproximar de um lugar (aqui) que a teria, por mais genérica que seja a localização deste lugar, marcado pela aderência à missão dada por um slogan.

A captura do sujeito da enunciação nesta malha semântica discursiva do sujeito do enunciado se fundamenta na evidência de que “estar fora” equivale a não participar de forma total da Educação. Entretanto, este percurso do enunciado ignora que há outras maneiras de participação em uma questão pública como a Educação.

Deste modo, todos teriam condições iguais de atender a uma demanda total do sujeito do enunciado televisivo, qual seja “ter” a Educação, o que oculta que o valor semântico é que além de “ter”, trata-se de ter da forma A (forma televisiva) e não B. A e B não podem conviver mutuamente. São excludentes. Ou o participante tem Educação e compactua com a educação bancária e informativa da maneira tradicional ou não a tem.

Em uma perspectiva psicanalítica, indissociável da AD, poderíamos tratar deste efeito a partir de um lugar de suplente, que se consolida para dirigir-se ao interlocutor. Agora não é mais o Estado, a ciência, a Escola que diz o que é Educação, mas a emissora de televisão. Este efeito de suplência, presente em uma lacuna aparentemente fabricada pelo próprio lugar discursivo que a sustenta articulando-se de forma paradoxal nos faz chegar a nosso próximo ponto da análise, aquilo que a Psicanálise denomina de falta, ou crise do lugar simbólico do Pai. O efeito Münchausen também é uma forma de destituir o Pai. A emissora diz o que o sujeito deve dizer a si mesmo, sem o Outro como testemunho.

Sem nos atermos à vasta bibliografia que vai desde os clássicos freudianos até os comentadores acerca desta temática, basta lembrar que a discussão em torno do Pai remete à falta constitutiva do sujeito e nos obriga a tratar do tema que se tornou caro à discussão de Freud (1913 - 1914/1996) sobre a civilização, e aqui incluímos a Educação como parte desse tema, o pacto civilizatório.

Elegemos Pellegrino (1987) para abordar esta questão porque o autor nos permite uma retomada de questões de natureza sociopolítica sobre a Educação de forma integrada ao contexto ditatorial brasileiro de que tratamos como um lugar de memória discursiva.

Pellegrino (1987) explica que, em um contexto recente da ditadura militar, o valor simbólico da violência urbana no Brasil apareceu em termos da destituição do lugar paterno pelo Estado de exceção, de modo que ao disfarçar todas as agruras dos ditames autoritários daquele período, o Estado rompeu com o pacto civilizatório do povo brasileiro, bem como atuou de forma perversa ao disfarçar por um lado seus atalhos, desvios e condutas ilegais e desmedidas enquanto demandava da população uma obediência servil, de maneira ampla e totalitária.

Este efeito de totalidade de um possível pacto também aparece em propagandas mais recentes do governo federal. Pode-se citar o Pacto pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC). Como já comentamos no início deste trabalho, chama a atenção a quantidade de nomeações de programas governamentais pelo designativo “Pacto”. É o que ocorre também em alguns Estados, como no caso da Bahia. Citemos alguns: Pacto Ensino Médio Bahia e Pacto com Municípios pela Alfabetização Bahia.

Marcado em grande medida pelo enunciado que nomeia a proposta do governo para a Educação com o nome “Pátria educadora” analisamos essas nomeações do ponto de vista de um efeito parafrástico. Pêcheux (1999) explica que uma zona de sentidos se consolida porque se firma em uma ordem de repetição, em que se desdobram em paráfrases as nomeações que dão conta de firmar uma posição discursiva que se destaca em meio aos processos contraditórios dos quais participam.

Em tese, a escola é o lugar de “todos”. Deste modo, o enunciado denominado “pacto” deve assegurar este acesso bem como a isonomia de condições de participação social por meio da Escola. Ocorre que esta impossibilidade toca a questão da falta, e o insistente retorno do “pacto” como sintoma. Temos concomitantemente repetição e retorno do recalque, como sintomas.

Deste modo, esta “mãe”, a Pátria educadora, coloca o sujeito diante da insuficiência de seu lugar recorrendo aos vários lugares do Pai embotado (Estado, ações isoladas da sociedade civil, emissoras de televisão), posto que lançado em uma compulsão por pactos que indiciam uma possível falência no sistema conjuntural mais amplo.

A Psicanálise nos ajuda a refletir sobre as contradições entre afirmação e negação. O modo como se firma um Pacto, reafirma sua própria inviabilidade. Sendo assim, o que os autores da Psicanálise apontam, segundo Kupfer (2001, p. 35) é: “a falência do estatuto simboligênico da Educação. Esse estatuto tem cedido grande espaço ao cultivo das formações imaginárias próprias de nosso tempo”. Uma delas é a “proliferação das imagens” diz a autora a que acrescentamos a nomeação de Pacto e o slogan televisivo aqui analisado. Uma vez que a Psicanalise é uma das disciplinas que aposta no resgate do sujeito, diz a autora, é possível articulá-la com a educação como “transmissão da demanda social além do desejo, como transmissão de marcas, como transmissão de estilos de obturação da falta no Outro” (KUPFER, 2001, p. 119).

Entretanto, o material analisado faz parecer que somente estes lugares midiáticos e governamentais estão autorizados a obturar esta falta e o prometem fazer de forma idealizada, sem lugar para a reflexão sobre a complexidade de outras formas simbólicas.

Quando Pellegrino (1987) analisa o lugar discutido por Freud acerca de uma análise de pistas da manutenção e da ruptura do pacto civilizatório, ainda sofríamos (sofremos ainda) com os desdobramentos de outro Pacto, o Pacto MEC-USAID.

Santos (2005) explica que este acordo firmado com o governo estadounidense se configurou como um pacto conciliador que atendia aos interesses da alta burguesia local, e que interferiu na formação social do Brasil contemporâneo, pela via do incentivo corporativista dos setores produtivos da economia agravando ainda mais a crise da reformulação do sistema universitário nacional.

A intensificação de uma formação mais tecno-burocrática e profissionalizante e a desvalorização do patrimônio cultural nacional são algumas dessas decorrências, indissociáveis em que um modelo autoritário de progresso econômico se oficializou pela assinatura de uma Carta-acordo, a Carta de Punta del Este, que se legitimou na “Aliança para o Progresso”, entre países da América do Sul (SANTOS, 2005). Como decorrência, a unificação do ensino fundamental e a profissionalização do colégio foram sustentadas por uma concepção de escola polivalente e cuja repercussão na Universidade calou no seio das Reformas de Base, o anseio pela Reforma Universitária já iniciada no restante da América Latina. (SANTOS, 2005)

Temos, portanto, outro lugar da memória discursiva em que se legitima a nomeação “pacto”. Haveria deslocamento em relação a este modo do Pacto MEC-USAID calar os âmbitos sociais e políticos da Universidade como produtora de cultura nacional? De que forma esta herança se atualiza nos atuais modos de nomeação?

Nas denominações analisadas, acreditamos que não se trata de repetição pura, nem tampouco da sinonímia. Trata-se de modos de estabelecer um regime de interpretação em que a base material da ideologia intervém sob a forma de uma arenga, um panfleto, um slogan, um sermão, uma ata, um texto fundante.

O Pacto MEC-USAID parece “apagado”, calado, mas ainda sustentando efeitos de sentido nas denominações mais atuais. Em AD, entendemos que nunca há ruptura definitiva, de modo que se sustentam paráfrases.

Concomitantemente ao debate sobre memória e paráfrase, a noção de acontecimento discursivo encontrada em Pêcheux (1997) permite ampliar nosso dispositivo teórico-analítico para abrir um caminho de interpretação, voltado à análise sobre o modo como esta nomeação (Pacto MEC-USAID) tem instalado um regime de interpretação, “de fora” sinalizando, assim, parte do retorno da memória discursiva que sustenta a nomeação em análise.

O acontecimento discursivo se refere tanto ao desdobramento de paráfrases em virtude de uma ruptura com um regime de evidência de sentidos que se consolida em uma zona discursiva, quanto com um modo de, não sendo notado, um lugar da interpretação que clama por um gesto de análise que atente para esses retornos em função de um reconhecimento social e público de parte do que ficou inscrito na História como fato, uma vez que inscrito em uma ordem simbólica. (PÊCHEUX, 1997)

Em outras palavras, o analista (pesquisador) indicia uma posição discursiva notada a partir de um efeito “externo” àquele que enuncia na superfície da materialidade em que se atém inicialmente a análise. É o que notamos neste momento.

Neste ponto, resgatamos o pressuposto pecheutiano de que todo acontecimento é histórico ainda que as descontinuidades da História estejam recobertas por uma representação imaginária de um lugar de onde se fala sobre um fato ocorrido numa dada Formação Social. (PÊCHEUX, 1993, 1999)

Deste modo, os atuais programas governamentais utilizam a nomeação “Pacto” em uma conjuntura democrática, disfarçando o próprio caráter de negação que os constitui como “pacto” de um período ditatorial. O movimento de interpretação se instala por retroação, segundo a AD. Somente é possível afirmar se há negação do que ficou calado na memória.

Isto porque muitas vezes a negação depende de uma afirmação, posto que em um período recente aquela mesma zona parafrástica sustentou regiões do sentido similares àquelas que se pretende negar. A similaridade decorre do fato de que, para a AD, não há sinonímia pura, mas zonas de sentido que instalam regimes de interpretação, do sujeito do discurso. O que está em jogo, portanto, não é uma posição político partidária, mas um modo de ratificar sentidos evidentes sobre Educação, que se consolidaram não somente em função de um pacto governamental (no caso, o Pacto MEC-USAID), mas que fazem uso do mecanismo de desconhecimento do imaginário que cria evidências para o sujeito comum.

Portanto, não se nota um acontecimento discursivo; o acontecimento histórico da nomeação Pacto se comporta na mesma zona parafrástica dos slogans do cotidiano televisivo. Não há ruptura, um efeito de novidade, com a paráfrase pela qual se promete uma Educação como totalidade.

Estes slogans, jingles, nomeações governamentais, prometem o impossível e oferecem o “já dito”, a paráfrase, a repetição imposta pelo DPE. É este um mecanismo similar ao que explica Pêcheux (1996) sobre o sujeito iludido da possibilidade de ocupar outra posição discursiva.

No âmbito do apagamento do efeito de sustentação recorrido à memória discursiva do Pacto MEC-USAID, persiste a determinação política do sujeito amordaçado pela herança da execução das tarefas tecno-burocráticas e mercadológicas de um objeto imaginário maior, a Educação, em meio ao qual está interditada a possibilidade de interpretar a realidade de maneira plural e polissêmica.

Uma das fundamentações desta interdição passa por pesquisas a serem feitas sobre práticas de interpretação que extrapolem a dicotomia entre ter e não ter um objeto unívoco e totalitário, por meio do qual se aniquilam as diferenças.

Considerações finais

Um pacto pressupõe que todos sejam ouvidos. Sabemos que, na maior parte das vezes, os movimentos educacionais de natureza vária não são ouvidos. Interessante notar neste ponto o efeito de um “pacto”, a convite, à espera de um acerto de contas entre sujeito do enunciado e interlocutor.

O campo de estudos do discurso ajuda a entender que há um efeito paradoxal na constituição do sujeito como intérprete dos enunciados. Isto pode ser entendido, em nossa análise, pelo convite, pela evocação de um lugar para o sujeito feito pelo pacto. Reside nisso um efeito paradoxal da ideologia. Isto porque o pacto a ser cumprido somente poderia ser “negado”, caso o interlocutor já tenha sido capturado pelo sujeito do enunciado, já tenha se comprometido a ocupar um lugar. Porém, que lugar é este?

Vimos que o efeito de autossuficiência e de circularidade do DPE faz parecer que deste pacto o sujeito não escapa. Deste modo a “Imagem idílica” a que se refere Aquino (1997) de um “mando imaginário” (PETRIN, 2003) da Educação aparece na atividade linguageira do cotidiano oferecendo um lugar do qual é refém, refém de um “não saber” qual lugar ocupar e, deste modo, não oferecendo para o sujeito um lugar singular em sua relação com o desejo de saber.

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1Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=jcpW6UnU7ys>. Acesso em: 9 de maio de 2016.

2Disponível em: <http://www.frm.org.br/>. Acesso em: 9 de maio de 2016.

3Disponível em: <http://pacto.mec.gov.br/index.php>. Acesso em: 25 de janeiro de 2018.

4Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/>. Acesso em: 13 de maio de 2016.

5Disponível em: <http://institucional.educacao.ba.gov.br/pactoensinomedio>. Acesso em: 13 de maio de 2016.

6Disponível em: <http://municipios.educacao.ba.gov.br/pacto>. Acesso em: 13 de maio de 2016. No momento desta busca foi lembrado também o programa “Todos pela Alfabetização”, do Governo do Estado da Bahia, voltado à Alfabetização de Adultos. Disponível em:< http://www.sec.ba.gov.br/topa/topa.html>. Acesso em: 16 de maio de 2016.

7O primeiro enunciado (Alô Brasil, aqui tem Educação!) faz parte de um projeto de “interesse público” do canal Futura e circula desde o fim dos anos 1990; o segundo (“Todos pela Educação”) é um movimento da sociedade civil que se autodenomina apartidário e cuja missão é ‘missão engajar o poder público e a sociedade brasileira no compromisso pela efetivação do direito das crianças e jovens a uma Educação Básica de qualidade’ (Disponível em: <https://www.todospelaeducacao.org.br/quem-somos/o-tpe/>. Acesso em: 25 de janeiro de 2018); o ‘Pacto pela alfabetização na Idade Certa’ é ‘é um compromisso formal assumido pelos governos federal, do Distrito Federal, dos estados e municípios de assegurar que todas as crianças estejam alfabetizadas até os oito anos de idade, ao final do 3º. ano do ensino fundamental”(Disponível em: <http://pacto.mec.gov.br/index.php>. Acesso em: 25 de janeiro de 2018); o “Pátria educadora” é um “documento distribuído pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República”, conforme Freitas (2015) (Disponível em: <http://www.anped.org.br/news/patria-educadora-um-novo-paradigma-de-controle>. Acesso em: 25 de janeiro de 2018); Acerca do ‘Pacto Ensino Médio Bahia (Governo do Estado da Bahia)’ vale notar que se alinha ao ‘Pacto Nacional pelo Fortalecimento do Ensino Médio’ foi lançado em 2013 instituído pela Portaria nº. 1140, de 22 de novembro de 2013 a fim de atuar na “formulação e implantação de políticas para elevar o padrão de qualidade do Ensino Médio brasileiro”(Disponível em:: <http://pactoensinomedio.mec.gov.br/>. Acesso em: 25 de janeiro de 2018), com repercussão estadual na Bahia onde foi desenvolvido em âmbito estadual (Disponível em: <http://escolas.educacao.ba.gov.br/pactoensinomedio1>. Acesso em: 25 de janeiro de 2018). Recentemente, uma série de debates polêmicos tem girado em torno de uma “reforma” do Ensino Médio, conduzida pelo governo federal desde 2016. O “Pacto Pacto com Municípios pela Alfabetização do Governo do Estado da Bahia foi iniciado em 2011 para ‘garantir a alfabetização de todas as crianças até os oito anos de idade e elevar a qualidade da educação básica nas escolas públicas da Bahia’ no âmbito do Programa “Educar para Transformar”. (Disponível em: <http://pactopnaic.educacao.ba.gov.br/>. Acesso em: 25 de janeiro de 2018).

8São decorrentes desta análise outras fórmulas discursivas presentes no cotidiano em que naturaliza “ter Educação”, como parte do referencial simbólico de um dado grupo social. Alguém que não tem Educação é assim denominado porque não saberia em tese fazer uso de um código dado como dominante.

9Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=qredUZ-H13M>. Acesso em: 6 de junho de 2016.

Recebido: 22 de Junho de 2016; Aceito: 21 de Fevereiro de 2018

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