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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.32 no.65 Uberlândia maio/ago 2018  Epub 21-Set-2020

https://doi.org/10.14393/revedfil.issn.0102-6801.v32n65a2018-06 

Artigos

A educação como poiesis: um estudo conceitual

Education as poiesis: a study conceptual

Educación como poiesis: un estudio conceptual

Maria Luísa Bissoto* 

*Doutora em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP). Docente do PPGE do Centro Universitário Salesiano de São Paulo (UNISAL). E-mail: maria.bissoto@am.unisal.br


Resumo

O texto é uma abordagem reflexiva do fenômeno “educação” procurando argumentar sobre as possibilidades de constituição de um agir educacional, que se configure como poiético. Para tanto, apoia-se em dois pressupostos referenciais: a) a vida como semiosfera e b) a educação como que-fazer ligante, acompanhando o pensamento de Ortega y Gasset. A proposição de uma educação poiética se traduz, com base nesses pressupostos, como a “recolha” interpretativa de sentidos, emersos do real, que nos insere na teia sígnica, na qual o cotidiano humano se constitui. Processo no qual emergem outras construções de sentidos e o descortinar de perspectivas de ser-no-mundo. Considera-se a fundamentalidade dessa recolha na compreensão do ser humano, e em como nos educamos para o contínuo processo de humanização.

Palavras-chave: Semiosfera; Educação; Poiesis

Abstract

The text is a reflexive approach of the phenomenon "education", trying to argue about the possibilities of constitution of an educational action, that is configured as poietic. To do so, it relies on two basic assumptions: a. Life as the semiosphere, and b. Education as a link-making, accompanying the thinking of Ortega y Gasset. The proposition of a poetic education translates, on the basis of these presuppositions, as the interpretative "collection" of meanings, emanating from the real, that inserts us in the signic web, in which human daily life is constituted. Process in which other constructions of senses emerge and the perspective of being-in-the-world perspectives. It is considered the fundamentality of this collection in the understanding of the human being, and in how we educate ourselves for the continuous process of humanization.

Keywords: Semiosphere; Education; Poiesis

Resumem

El texto es un enfoque reflexivo al fenómeno de la "educación", tratando de discutir sobre la creación de posibilidades de un acto educativo, que se establece como poiético. Por lo tanto, se basa en dos supuestos de referencia: a. la vida como semiosfera, y b. la educación como al-do aglutinante, siguiendo el pensamiento de Ortega y Gasset. La propuesta de una educación poética se traduce, sobre la base de estos supuestos, como la "colección" de los sentidos interpretativos, surgió el real, lo que nos sitúa en la web semiótica, en la que se constituye la vida diaria del ser humano. Proceso en el cual emergen otras construcciones de significados y perspectivas Destape de estar en el mundo. Se considera el fundamentalidad de la colección en la comprensión de los seres humanos, y cómo nos educamos al actual proceso de humanización.

Palabras clave: Semiosfera; La educación; Poiesis

Introdução

Para o filósofo espanhol Ortega y Gasset, o objetivo de toda a educação é a vida. Ora, se a educação deve ter por objetivo a vida, a grande questão que Ortega nos coloca é: “o que é à vida o “essencial”, ao qual a Educação deve ater-se? (SÁNCHEZ, 1993). Esse estudo conceitual é uma tentativa de responder a essa questão, apondo-lhe o conceito de uma educação que se configure como poiética: aquela que reconhece e afirma a fundamentalidade do ser social para a vigência do humano. Esse se constitui enquanto “coleta”, enquanto recolha do que se mostra, do que se “des-vela”, do que se poien, quando estamos em relação. Coletar significa “con-duzir e sustentar em conjunto, mas nunca em sentido superficial e posterior” (HEIDEGGER, 2000, p. 400). Antes, significa acolhimento; não há o recolher sem o manter-se junto. É abertura, espaço para conversações, às quais todos tenham acesso: espaço para a interpretação e para o debater discursivo.

Parte-se da premissa, acompanhando o pensamento de Boodin (1913, 1939) que enquanto seres humanos estamos embebidos em campos diferentes e interpenetráveis de sentidos, não sendo possível compreender cada indivíduo como uma unidade temporal e espacial fechada, substancialmente exclusiva. Ao contrário, cada indivíduo deve ser entendido como em continuidade social, espaço-temporalmente estendido na justaposição (intersecção) de campos de sentido, e, desta forma, aberto a uma multiplicidade de disposições pessoais para engajamentos relacionais. As diferentes condutas externalizadas pelas pessoas em seu viver se mostram, então, como faces dessas configurações relacionais, que esses engajamentos sociais podem assumir. Nas palavras do autor (BOODIN, 1913, s/p.; 1939, p. 169):

Nós somos mais que unidades separadas. Nós vivemos somente enquanto nos envolvemos, enquanto nos fundimos com outras mentes em interesses e propósitos comuns. Somos, literalmente, membros uns dos outros. Esta vida comum deve ser salvaguardada dos acidentes da história humana, quer advenham da indiferença e da desintegração, ou da manipulação egoística. Nenhuma realização ideal pode mesmo ser concebida como apartada das relações sociais (…)

A urgência pelo coletivo se encontra, então, no âmbito da filosofia de Boodin, na raiz mesma do processo evolutivo humano: somos dependentes da organização social, não de uma organização externamente imposta, mas daquela advinda da atitude colaborativa e das limitações que um viver comum pressupõe; requeremos, para sobreviver, de nutrição social. A emergência de grupos comunitários, com suas exigências de interpretação comunicativa, de compartilhamento de rumos presentes e futuros, o que inclui também o conhecimento do passado do grupo, da herança histórica desse, o desenvolvimento, enfim, da consciência, ainda que difusa, de que somos, enquanto indivíduos, ligados por elos comuns, aponta para uma concepção de realidade que só foi, é e será possível na mutualidade das relações humanas.

Espera-se, ao final, ter levantado reflexões quanto à importância que a educação assume para a viabilidade mesma da vida humana, e a necessidade de retraçarmos questões ontológicas referentes a práxis educacional.

A vida como processo sígnico

Se na flor não houvesse qualquer coisa de abelha

E na abelha não houvesse qualquer coisa de flor,

Nunca o acorde seria possível (Goethe).

A semiótica, numa generalização de como atualmente compreendida, se refere, primariamente, à semiose, ou seja, ao processo de construção de estruturas de experiência, por meio de signos (CUNNINGHAM; SHANK, 2003, p. 5). Apesar de ter sido cunhado há tempos, o termo semiótica só ganhou maior repercussão, abrangendo diversas perspectivas interpretativas, com a valorização dos estudos desenvolvidos por Charles Sanders Peirce (1839-1914), em fins do século XIX e começo do século XX, e que se referiam aos processos pelos quais os signos são produzidos e os significados atribuídos.

Dentro das várias vertentes existentes na semiótica, há diferentes interpretações para signos, mas, de modo amplo, se pode considerar como signo qualquer coisa que substitui alguma outra coisa, não de forma direta, numa pura troca entre duas coisas, fazendo referência a, ou aludindo a um posicionamento em relação a, uma terceira coisa, elicitando, nesse processo, a criação de outro referente. Em Peirce (1972, p. 130, grifo no original), um signo se refere a:

qualquer coisa que leva algo diverso (seu interpretante) a referir-se a um objeto a que ele próprio se refere (seu objeto), de maneira idêntica transformando-se o interpretante, por sua vez, em signo e assim por diante, ad infinitum.

O cerne dos processos sígnicos está na sempre-eterna provocação modificadora de sentidos, antes do que na subjetividade racional ou reflexiva de um intérprete. O signo só é um signo por que media (“transporta” transformando) uma “in-formação”, dentro das possibilidades informadas por uma materialidade ou daquela emersa de uma rede de sentidos socialmente constituída. Signos - e informação - enquanto facetas imbricadas de uma comunicação não são, no âmbito dessas considerações, nem entidades e nem portadores, em si, de significado. São, antes, elicitadores de modificações: provocam a formação de uma interpretação, envolvem uma percepção de diferença, o que implica numa atribuição de valor, e uma perspectiva de modificação do ser. É nesse sentido que a semiótica, quando aplicada aos fenômenos do vivo, é chamada de biossemiótica, pois afirma que a vida é semiose: processo sígnico.

Um conceito fundamental na biossemiótica é o de semiosfera, cunhado por Lotman (2011), e mais recentemente desenvolvido por Hoffmeyer (2005). Por semiosfera, numa concepção mais aproximada a esse último autor, se entende a completude formada por todas as possíveis superfícies contactantes (portanto, potencialmente geradores de diferença) com a qual e na qual convivemos: o “mar” de sons, cores, ondas eletromagnéticas, sinais químicos, convívios sociais... Completude qual estamos imersos, enquanto constituídos/constituintes dessas superfícies, e da qual recolhemos, interpretativamente, significados. Significados que se perdem, contudo, acontece de aprendermos a olhar tal completude como fragmentos, alienados de sua concepção de conjunto. Como uma inferência dessa afirmação, pode-se refletir que, ao se decomporem os fenômenos do vivo, como a educação, em unidades singulares - educação escolar, religiosa, esportiva, familiar, dentre outras, que contemporaneamente caracterizam nossas práticas educacionais - e igualmente a sua separação de outros fenômenos, como a experiência religiosa, a vivência familiar, etc. -, a compreensão desse fenômeno estará irremediavelmente perdida, pois que transformada no estudo da parte isolada do que só pode ser entendido em relação.

O papel da semiose, segundo Freeman (2000), é permitir que ações conjuntas socialmente efetivas possam ser sustentadas, por meio do compartilhamento de atribuições de sentidos. São as coisas em-relação-conosco que dão origem a um mundo de sentidos, que configuram e reconfiguram nossas ações e modos de pensar; coisas que são, por sua vez, já significadas, não existentes puramente em si. A constituição de um viver numa dimensão de signos e símbolos nos diz que definições descontextualizadas não são possíveis: toda significação se dá no âmago de uma continuidade vivida, e que se mantém contínua pela sempre criação de sentido do interpretante: não só do indivíduo em si, mas do que é social e historicamente projetado num viver comum.

Acompanhando De Tienne (2003), num cenário assim concebido, o aprender é um “processo de tornar-se crescentemente mais sensitivo a todos os tipos de signos”, portanto, à geração de interpretações. O que implica dizer que a aprendizagem se corporifica numa contínua manifestação e troca de sentidos que, por sua vez, são o impulso para a urdidura do mundo vivido. A perspectiva de vivermos enquanto inúmeras superfícies contactantes abre as possibilidades do desejar ser e da profícua emersão de interpretações e de outras tantas expressões de sentidos.

A Educação como que-fazer ligante vital

E isto é a profundidade de algo: o que nele há de reflexo do demais, de alusão ao demais. O reflexo é a forma mais sensível de existência virtual de uma coisa em outra. O "sentido" de uma coisa é a forma suprema de sua coexistência com as demais, é sua dimensão de profundidade. Não, não me basta ter o sentido de uma coisa; necessito, além disso, conhecer o "sentido" que tem, quer dizer, a sombra mística que sobre ela verte o resto do universo. (...) Não é isso porém o que faz o amor? (ORTEGA Y GASSET, 1967, p. 98).

O caráter circunstancial e vital - biográfico - da realidade, impõe a evidência de que o conhecimento concreto é interpretação, descobrimento de um lógos ou sentido das coisas, radicados numa perspectiva vital (MARÍAS apudORTEGA Y GASSET, 1967, p. 25).

As citações acima merecem uma abordagem cuidadosa. Vejamos o conceito de realidade, como entendido por Ortega: circunstancial e vital. Por “circun-stância” entendam-se todas as “coisas mudas... que não têm voz ou sentido” (ORTEGA Y GASSET, 1967, p. 207), que nos rodeiam; não meramente formando um entorno, um habitat, mas aquelas com que, num sentido forte, estamos mergulhados por só se constituírem - e nos constituírem - mediante nossa cooperação: os esforços do humano para saber onde se ater, nessa imensa e infinda malha de possibilidades e perspectivas, que é o real. Realidade biográfica, vivida para um querer-ser-que-(ainda)-não-se-é, contínuo que-fazer auto-organizativo: “o ser definitivo do mundo não é matéria, nem alma, nem coisa alguma determinada, e sim uma perspectiva” (ORTEGA Y GASSET, 1967, p. 51).

Perspectiva, na obra orteguiana, é concepção que coloca o viver numa relação de perceber/interpretar, entendendo que não há uma separação entre perceber (ver, ouvir, sentir...) e interpretar: todo o sentir é já entender - a “colheita” e escolha (portanto, valoração) do “dis-posto” num campo de sentidos, onde aquele que sente/interpreta está embebido. Uma referência ao logos, referido como o sentido das coisas: o que-fazer não é mera atividade, implica num para quê e num por quê, não enquanto teleologia, mas enquanto consecução de um “pro-jeto” de vida, que vai se fazendo à medida que é projetado; envolve conexão: a ligação considerativa "coisa a coisa e tudo conosco" (MARÌAS apudORTEGA Y GASSET, 1967, p. 23), que poien o campo no qual a vida transcorre. Conexão, que já nascendo interpretativa e biográfica, para cada um diferente, abre ao ser humano uma miríade de possibilidades de engajamentos; recolocando a questão da perspectiva: não há um ser humano, uma natureza especificamente humana. Antes, o humano se faz e se desfaz, na medida em que vai perspectivando - percebendo/interpretando - seus campos de engajamento. Essa é a tessitura do vital; não totalmente causal, nem totalmente casual, mas afloramento de um querer-ser, numa aproximação do quê, para Ortega, é razão: o saber onde ater-se, que marca a continuidade do viver.

O “real” é trama, portanto, só possível na junção de perspectivas interpretativas; é afazer inextricavelmente coletivo. Deve ser observado, porém, que essa junção de perspectivas, a compor o real - e que fundamenta a objetividade e a “verdade” do viver, esquivando-se, assim, do idealismo e do subjetivismo -, não deve ser confundida com um relativismo consensual. Um consenso pressupõe uma igualdade de forças e, embora num determinado grupo social a trama do real seja tecida por todas as perspectivas aí presentes, não se pode presumir que o jogo de forças e interesses entre diferentes campos coloque todas essas perspectivas em pé de igualdade. Não, a junção de perspectivas é, antes, uma junção que mantém a tensão entre as diferentes perspectivas, e que força, dessa maneira, a emergência de novos posicionamentos, de novas interpretações.

Em não pregando uma consensualidade de perspectivas, um viver de tal forma tensional há que estar imbricado ao desenvolvimento de condutas de tolerância, entendida aqui não como renúncia ou “concessão”, mas como respeito e acolhimento (convite à emersão), à multiplicidade de perspectivas do real.

Tolerância que é dependente de aprendizado, compondo o aprender a ser ser-de-relação. E é importante observar e ressaltar que esse aprender a ser ser-de-relação não se dirige, como pode ser pensado, unicamente ao desenvolvimento de parâmetros de maior cordialidade na convivência social. Mais profundamente, das condutas de tolerância, como acima compreendida, depende a oxigenação, a não cristalização da tessitura do real: cada diversidade de perspectivas organizativas ilumina, lança luz, sobre novas possibilidades de ser - de conceber caminhos e agir, exercendo pressão sobre esse “real”.

Das possibilidades e sentidos de se falar de uma Educação Poiética

Sintetizando toda a argumentação acima, considera-se que a Educação pode ser entendida como o processo sociorrelacional de apresentação, exposição e inserção dos membros de uma comunidade às configurações sociais e às experiências interpretativas do viver aí transcorridas, bem como ao fundo de conhecimentos socialmente elaborados pelo grupo, estando imbricadamente ligada à constituição (dinâmica) do real.

Fenômeno relacional intrinsecamente humano, que transcorre em todas as esferas de ação dos sujeitos, pois única forma de fazermos a vida. E que tem sido penalizado, especialmente a partir da Modernidade científica, pelos muitos reducionismos e especializações a que vem sendo submetido. A restrição da compreensão da educação a campos múltiplos e fragmentados vem fazendo com que percamos a essencialidade de sua complexidade: como se o fato de produzirmos tantos conhecimentos sobre nossas tantas “educações” fizesse com que, paradoxalmente, conhecêssemos a Educação menos e menos... Ao se falar da proposição de uma Educação poiética não se defende, portanto, aqui, a criação de uma nova subespecialização da Educação. Já as temos em número suficiente. Contrariamente, entende-se a Educação poiética - como um agir processual, que em perscrutando como o que-fazer educacional vem se constituindo nos diversos âmbitos sociais - proponha um diálogo interpretativo desses agires, forçando a emersão das diferentes concepções de educação, que vigoram numa comunidade. Aclarando suas tensões e promovendo não sua “solução”, mas seu entendimento, ensejando possibilidades de superação dialética (como cancelamento e síntese).

Sob tais ponderações se pode pensar a resposta à questão posta por Ortega y Gasset, já citada: Que é à vida o “essencial”, ao qual a Educação deve ater-se?

A resposta aqui defendida é a de que o essencial à Educação é que seja o terreno do logos, não enquanto racionalidade, mas como reunião harmônica de contrários, que propicie o re(a)colhimento das várias formas de ser (CASTRO, 2001); exercendo um papel erótico na constituição do humano: “a ligação de coisa a coisa e tudo conosco”, empuxo em direção à conexão, que torna, para cada um, o outro como parte do seu campo de sentidos.

Considerando-se a argumentação, que vem sendo exposta, se justifica o caráter de “essencialidade” dessa resposta. O viver humano é sempre “pro-jeto”, que se traduz e ganha forma no esforço de se pôr-no-mundo, no que-fazer organizativo; nunca acabado. “Pro-jeto”, que aparentemente se realiza numa individualidade, mas que, contrariamente, só pode transcorrer no coletivo, no “com-junto”, em interdependência. É pela Educação, entendida esta como o processo que intermedia as relações de interdependência, as quais poien a mente social, “dis-pondo” a “com-formação” dessa, que se delineiam (e se delimitam) as possibilidades de engajamento ser-mundo. Conhecer, então, quem educa, para que se está educando, e as formas pelas quais o agir educacional se consolida, é essencial para que entendamos os próprios rumos em que nossa sociedade- e por que não, nossa humanidade- vem se constituindo.

Há possíveis pontos de semelhança entre o conceito de Educação acima descrito e um dos sentidos etimológicos de Educação, educatio1: nutrir, cuidar. Contudo, não o nutrir, o cuidar em se pensando num indivíduo, como fomento ao aperfeiçoamento de qualidades interiores individuais, mas como nutrição social; como ação de zelar pela qualidade das relações interpessoais. O incremento na qualidade de vida de uma coletividade só ocorrerá quando se priorizar uma concepção de educação voltada não para o desenvolvimento de “potências individuais” do humano, mas uma que nos entenda como, inelutavelmente, seres-de-relação; processo durante o qual “pro-duzimos” as condições do viver.

O conhecimento mais vital para o humano está naquele “pegar na mão”, que nos apresenta ao real, ato relacional que nos mostra como valorá-lo, como usá-lo, como temê-lo, onde deter seu avanço, como empregá-lo em relação ao outro… Se tão intrinsecamente ligado à vida, esse conhecimento precisa ser tomado como informação, no sentido pregado por Gregory Bateson: precisa fazer diferença para o modo de se pôr no mundo. E isso só se consegue quando esse ato relacional/educacional impulsionar a prática interpretativa desse conhecimento.

A vida, enquanto semiótica, como aqui alegado, já é por si interpretativa; mas não há uma interpretação e sim, uma multiplicidade de possibilidades interpretativas. Num viver que se corporifica “interfacetadamente”, pelas ações advindas de interpretações valorativas, como o é o viver humano, a exteriorização, o esclarecimento quanto ao “por que” e “o que” está sendo valorado, bem como a discussão desses, é fundamental para que o modo de constituição do viver não se restrinja a interpretações viciadas, unívocas, que privilegiem subgrupos com mais peso no jogo de poder dos grupos sociais. Para um viver social mais plenamente satisfatório, se faz importante a emersão e o acolhimento de múltiplas moradas de interpretação do viver, a escuta e a discussão dessas, bem como o jeito certo de lidar com os conflitos que inevitavelmente surgirão. Caminho para que consigamos, enquanto humanos, constituir um viver grupal satisfatoriamente mais equilibrado. E, levando-se em conta o retrospecto da História humana, isso é muito... Daí a importância de se conceber a Educação como poiética: para que essa, enquanto processo humanamente transcorrido e forjado, se configure como impulso, como fomento, para variadas expressões de compreensão do real, para o ensinar da prática discursiva e dialógica e do aprender a mediar a tensão entre essas variadas expressões.

Considerações finais

A aventura humana é que-fazer ligante. Parafraseando Ortega, enquanto seres relacionalmente circunstanciais, seres/campos, a salvação da vitalidade do ser advirá do conectar entre múltiplos campos de sentidos; e “em tal disposição que neles dê o sol inúmeras reverberações” (KUJAWSKI, 2003, p. 30). Em Ortega, salvar é resgate, é buscar a compreensão mais ampla do “real” exatamente no que esse reverberar nos revela; nos “des-cortina”, sobre nosso próprio entrelaçar com outros campos.

Entender a educação como ligante nos remete, numa última análise, ao tema do amor. Pois que esse que-fazer ligante não é mero que-fazer, não é mero conectar, mas um conectar pelo qual o ligado se torna significante, “com-pondo”, de forma imprescindível, a circunstancialidade de outrem. É num mesclar de interpretações de mundo que transcorre o processo educacional; num “des-cortinar” suportado de diferentes possibilidades de engajamento à vida. E suportado, porque cada sujeito desse processo se tornou, para o outro, amado: significativamente conectado (BISSOTO, 2011).

Enquanto interfaces de diferentes campos de sentidos, cada entrelaçar vivido, cada contactar a que nos expomos, ou a que somos expostos, provoca o ajuste ou a emersão de novos e múltiplos modos de valorar o vivido e de agir em relação a este; alterando, mais ou menos profundamente, a forma de engajamento na teia social e a prazerosidade advinda desse engajamento. E ainda, como seres/campo, tais alterações não se processam linearmente, numa só direção; a diversidade de modos de perceber/sentir/agir marcam cada interação.

À medida em que empuxo a outridade, pelo acolhimento e discussão de diferentes interpretações do viver, me entrelaço, me ponho também a mim, humanamente me enredo; salvo minha circunstância, amando. Que-fazer vital, que precisa ser aprendido e reaprendido, e o é pelo jeito com que mostramos ao(s) Outro(s) como se enredar nas tramas do viver, pela forma com que educamos. Ato pelo qual espelhadamente revelamos, tornamos patente, a nós mesmos, a forma com que cuidamos da organização do coletivo. Ensejo para que nos entendamos enquanto humanos e delineemos “mudanças de rota” nos caminhos de constituição do viver…

Referências

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1SARAIVA, 1993.

Recebido: 22 de Março de 2017; Aceito: 20 de Dezembro de 2017

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