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Educação e Filosofia

versión impresa ISSN 0102-6801versión On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.32 no.65 Uberlândia mayo/agosto 2018  Epub 21-Sep-2020

https://doi.org/10.14393/revedfil.issn.0102-6801.v32n65a2018-15 

Artigos

Utopia como potencial crítico da Modernidade Capitalista

Utopia as critical potential of Capitalist Modernity

L’utopie comme potentiel critique de la modernité capitaliste

Allan da Silva Coelho* 

Arlindo Manuel Esteves Rodrigues** 

Luiz Eduardo Waldemarin Wanderley*** 

*Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP). Estágio pós-doutoral pela CAPES na École des hautes études en Sciences Sociales - EHESS - França. E-mail: allan.filos@gmail.com

**Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Pesquisador do Núcleo do Estudo do Futuro na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). E-mail: prof.arlindorodrigues@gmail.com

***Doutor em Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP). Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). E-mail: marilew@uol.com.br


Resumo

Utopia é um conceito moderno que articula a enunciação de um mundo melhor e a reflexão crítica sobre a realidade. Constitui, como formas da consciência (Mannheim) ou como modelos de perfeição (Hinkelammert), instrumento de análise da realidade sócio-política. Mesmo ante a secularização e a racionalização, o conceito permanece aparentado da religião, por articular esferas do desejo, de esperança ou do simbolismo, em que sonhar uma vida diferente aponta para a negação da realidade estabelecida. Neste texto, no diálogo do marxismo crítico de Bloch e Benjamin com a teologia latino-americana, indicamos a força da esperança frente fetiches e idolatrias do capitalismo na dialética do pensamento utópico e o pensamento mítico, como forma de renovar a abordagem dos problemas epistemológicos com a política. Considerar a ilusão transcendental permite outra crítica da razão instrumental e da estrutura epistemológica que nega e oculta a possibilidade da razão utópica e da razão mítica.

Palavras-chave: Utopia; Modernidade; Fetiche; Pensamento mítico; Idolatria

Abstract

Utopia is a modern concept that articulates the enunciation of a better world and the critical reflection on reality. It constitutes, as forms of consciousness (Mannheim) or as models of perfection (Hinkelammert), instrument of analysis of socio-political reality. Even in the face of secularization and rationalization, the concept remains related to religion, by articulating spheres of desire, hope or symbolism, in which dreaming of a different life points to the denial of established reality. In Bloch and Benjamin's critical Marxist dialogue with Latin American theology, we indicate the strength of hope in the face of fetishes and idolatries of capitalism in the dialectic of utopian thought and mythical thought as a way of renewing the approach of epistemological problems to politics. To consider the transcendental illusion allows another critique of instrumental reason and the epistemological structure that denies and hides the possibility of utopian reason and mythic reason.

Keywords: Utopia; Modernity; Fetish; Mythical thought; Idolatry

Résumé

L'utopie est un concept moderne qui articule l'énonciation d'un monde meilleur et la réflexion critique sur la réalité. Elle constitue, comme formes de conscience (Mannheim) ou comme modèles de perfection (Hinkelammert), instrument d'analyse de la réalité socio-politique. Même face à la sécularisation et à la rationalisation, le concept reste lié à la religion, en articulant des sphères de désir, d'espoir ou de symbolisme, dans lesquelles le rêve d'une vie différente renvoie au déni de la réalité établie. Dans le dialogue marxiste critique de Bloch et Benjamin avec la théologie latino-américaine, nous montrons la force de l'espoir face aux fétiches et aux idolâtries du capitalisme dans la dialectique de la pensée utopique et de la pensée mythique comme moyen de renouveler l'approche des problèmes épistémologiques avec la politique. Considérer l'illusion transcendantale permet une autre critique de la raison instrumentale et de la structure épistémologique qui nie et cache la possibilité de la raison utopique et de la raison mythique.

Mots-clés: Utopie; Modernité; Fétiche; Pensée mythique; Idolâtrie

Introdução

O conceito de utopia foi gestado no século XVI e incorporado pela filosofia moderna, tornando-se um conceito fundamental do pensamento político. De fato, o pensamento utópico pode ser encontrado ao longo da história do pensamento e pode ser identificado por elementos que o constituem como uma categoria de análise crítica. Como conceito constituído na Modernidade, encontra-se no meio da arena de disputa de significados, entre os que expressam a necessidade do pensamento utópico e aqueles que negam qualquer valor às utopias.

Os que negam o papel da utopia como categoria, em geral, utilizam dos conceitos tradicionais de racionalização e secularização para desdobrarem diversas desqualificações ao seu uso, sentenciando-a como quimeras, ilusões ou conhecimento sem validade por não ter cientificidade. Entre diversas abordagens possíveis, procuramos demonstrar os elementos que constituem a utopia como uma categoria de análise e, a partir de uma perspectiva do marxismo crítico, explicitar relações com algumas correntes de pensamento latino-americano, em especial da chamada Escola do DEI1. Primeiramente, buscamos como um setor do marxismo articula a categoria a partir da compreensão de Karl Mannheim. Em seguida, recorremos a Ernst Bloch e Walter Benjamin como referências para apresentar a utopia como instrumento de crítica dos ídolos, fetiches, idolatrias e mitologias. Estes autores possuem afinidades instigantes com parte dos teóricos da teologia da libertação latino-americana. Sem desconsiderar as diversas contribuições, destacamos como Franz Hinkelammert desenvolve os conceitos de razão utópica e de razão mítica, como elementos centrais da crítica da modernidade capitalista, a partir da necessária revisão das ideias de racionalização e secularização.

Na articulação entre epistemologia, política e religião, afirma-se que as utopias, como representação-promessa de um mundo melhor (pleno, perfeito), seguem iluminando e seduzindo com profunda afinidade com a problemática religiosa de oferta de realização plena e salvação/redenção humana. Reutilizando mesmo que veladamente representações religiosas tradicionais, que na modernidade deveriam ter sido decompostas pelo processo de racionalização e secularização, atuam eficientemente na gestação de adesão em especial ao fazer “entrever” como possível a realização de uma outra realidade. Tal adesão é exigente, legitimando os sujeitos que imbuídos de uma tarefa histórica, devem sujeitar e sujeitar-se a todo tipo de esforço como sacrifício necessário.

A racionalização não atinge a estrutura fundante da Modernidade que, por seu caráter utópico, move e seduz pelo desejo de um mundo melhor, expressando esta estrutura sacrificial. Como objetivo geral, procuramos pensar que as relações entre religião, pensamento mítico e utopia não se limitam à absorção do religioso pelo secular, mas identificar uma relação entre eles. A compreensão da secularização como reorganização do religioso, em especial nas utopias que conservam estrutura afim com a problemática religiosa, utilizando de representações sacrificiais de lógica religiosa, torna também necessária a reflexão sobre o papel da razão instrumental.

Como objetivo específico, delimitamos a possibilidade de elencar características da utopia que possibilitam esta reflexão. Quando a razão instrumental nega qualquer papel ao pensamento mítico ou religioso, trata-os estrategicamente como inexistentes. No entanto, se estruturas epistemológicas articulam veladamente utopia e religião, marcando variadas visões sociais de mundo da modernidade, é preciso analisar a ambiguidade da construção do saber que nega e oculta essas dimensões.

O modo como Benjamin intui a relação entre a dimensão mítica e a fascinação que atua no imaginário social, para legitimar a vida no capitalismo contribui para aprofundar a crítica da razão. Seja sob a denominação de ídolo ou de fetiche, atua como “brilho frágil” que encanta e enfeitiça, ocultando “o lado noturno” da modernidade capitalista. Benjamin formula a relação entre a tarefa de ocultação (adormecer as consciências no sono) e fascínio realizada pelas forças míticas no capitalismo, com um sonho novo, uma promessa (dimensão utópica), que ao mesmo tempo é geradora e mobilizadora de esperança. Desvendar esta relação seria tarefa fundamental na crítica do capitalismo. A crítica racional (de uma razão “ampliada”) ao “brilho frágil” pode provocar o despertar do feitiço. À crítica de Benjamin, associamos um aspecto significativo do pensamento de Hinkelammert para quem, apesar do mundo ser compreendido pela razão instrumental, o fundamento das decisões humanas não está, necessariamente, baseado apenas neste tipo de racionalidade. Mesmo que o processo de secularização realize a profunda e radical crítica do religioso, jamais percebeu a estrutura mítica-religiosa sob os quais sua autocompreensão se fundamenta. Desse modo, a Modernidade ao mesmo tempo em que critica a dimensão mítico-religiosa na significação da vida, inversamente a sua intenção reproduz lógicas míticas que fascinam e geram adesão a promessas de um mundo a construir.

Utopia como crítica e enunciação de um mundo melhor

A palavra “utopia” é desconhecida do grego, sendo Thomas More que a pouco mais de quinhentos anos cunhou o neologismo em sua clássica obra, Utopia (1516), na qual realiza uma análise formal anti-histórica de construção projetiva, mas plenamente inserida no contexto histórico. Neste livro, a utopia longe de ser uma “ilha da fantasia”, descreve alegoricamente um conjunto radical de críticas a Inglaterra de sua época. Apresentando um modelo de sociedade considerada melhor, desejável, talvez perfeita, permite às pessoas refletir criticamente sobre sua época e sua organização social.

O termo surge com dupla possibilidade de sentido: como “não-lugar” ou “bom lugar”. Na mesma perspectiva que indica algo que ainda não existe, aponta para uma realidade melhor, desejável, um lugar sedutor. Enquanto sentido de um outro lugar, a utopia assume uma forma de exposição de um projeto crítico e de enunciação de um outro mundo.

De acordo com a historiadora Michèle Riot-Sarcey, “a ambiguidade aparente da utopia é totalmente compreendida pela função alegórica do texto. De crítica política que era, a Utopia tornou-se referência de um gênero onde a análise é subtraída da história” (RIOT-SARCEY, 2002, p. VI). Mas não podem ser, de fato, separadas da realidade efetiva. A elaboração imaginária da utopia é concebida sempre a partir do presente. Fala de um outro lugar ou outro tempo referenciada pelo presente. Ao mesmo tempo que o presente nutre o pensamento utópico, permite sua própria crítica.

O termo utopia é datado no século XVI e depois de Thomas More passou a ser um dos grandes conceitos filosóficos. No entanto, a narrativa que permite uma forma de pensar analítico-crítica a partir da projeção de certo modelo de perfeição não é exclusividade do mundo moderno. Diversos outros autores, anteriores ou posteriores escreveram suas “utopias” como modelos ideais, com diferentes finalidades, através das quais analisavam a sociedade e permitiam identificar claramente o que precisava ser transformado. Pelo seu forte aspecto crítico, as utopias foram associadas às heresias e aos pensamentos subversivos, mas também assimiladas pelos totalitarismos. Assim, indicariam “o devaneio ou a impossível felicidade comum” (RIOT-SARCEY, 2002, p. V).

A socióloga Danièle Hervieu-Léger assinala que o conceito de utopia passa a indicar uma forma de crítica social que atravessa a história da humanidade, durante muito tempo em linguagem religiosa, fortemente presente no pensamento religioso-mítico e como categoria marcante no imaginário judaico-cristão. Assim, a noção de utopia

remete/traz novamente o sonho de um mundo totalmente outro, onde toda lágrima será enxugada, toda violência banida e toda fome desaparecerá. Este desejo de ver novas todas as coisas atua em todas as comunidades humanas confrontadas com a falta, a injustiça e a violência (HERVIEU-LÉGER, 2010, p. 100).

Diante de um mundo onde a experiência real impõe falta, injustiça e violência, o pensamento utópico reacende a esperança de realização humana plena e salvação frente aos infortúnios da vida. Neste sentido, o sonho-desejo de modificar o mundo tem como local preferencial (não exclusivo) os grupos marginalizados, excluídos e sofredores de uma época. Para Hervieu-Léger formula-se, a partir da impossibilidade ou da sua negação no presente, o sonho de futuro associado à nostalgia de um estado passado, evidentemente por ele mesmo sonhado e reinventado. Por vezes, a utopia pode ser projetada como retorno ou regresso, mas não expressa a reconstrução do passado, pois indica a capacidade de procurar seus traços no futuro.

A sensibilidade desta ambiguidade, diferentemente dosada, entre a restauração de uma perfeição original “fantasma”, idealizado e a projeção de um futuro radicalmente outro é que permite compreender o potencial de alienação e subversão das utopias. Como afirma Riot-Sarcey, “inscritas no tempo, sem dispor de lugar no presente das sociedades contestadas, as utopias não podem ascender ao status de fatos históricos (...) pois cada ordem que se estabelece não pode integrar (...) as esperanças ditas utópicas” (2002, p. VI).

Justamente esta dinâmica, de potencial alienante ou subversivo, de instaurador de novas ordens, mas sem nunca ser realizada integralmente pelo seu caráter de esperança, é um elemento central na caracterização da utopia. Enquanto categoria de análise, o pensamento utópico indica que, a partir de uma existência que não satisfaz, o que hoje é possível é reivindicar uma forma de viver diferente ou mesmo tempo em que se nega a legitimidade da realidade estabelecida que tenta negar a esperança em dias melhores. É um momento entre a resignação crítica, que expressa sua insatisfação e a construção imaginária de alternativas.

Para entender a dinâmica histórica no qual uma forma de pensar pode em determinado momento pode desempenhar uma função transformadora e, em outro contexto, expressar posições ideológicas de manutenção da ordem e do status quo, Michael Löwy ressalta a importância do clássico livro de Karl Mannheim, Ideologia e Utopia, escrito em 1929. As ideias não seriam em si transgressoras ou legitimadoras do poder. Uma forma de consciência pode ser considerada ideológica ou utópica na medida em que mudam as condições de forças em seu desenvolvimento histórico (MANNHEIM, 1968).

O pensamento ideológico, entendido em contraposição à utopia, seria uma forma de pensar orientada para a reprodução da ordem estabelecida. Esta definição mantém a criticidade do termo como formulado em boa parte da tradição marxista, na qual ideologia se caracteriza pela justificação e manutenção do status quo. Por outro lado, o pensamento utópico é o que aspira a um estado não existente das relações sociais, o que lhe dá, ao menos potencialmente, um caráter crítico, subversivo ou mesmo explosivo (LÖWY, 2000, p. 12).

Enquanto mentalidades, formas de consciência, as utopias podem inspirar ou não uma ação, um movimento social subversivo. Surgem de consciências individuais, entendidas em sua relação dialética com o grupo social em que estão inseridas. Estão “não realizadas”, latentes como “desejos e esperanças”, mas sempre podendo assumir força histórica quando incorporadas por um grupo para fins políticos (LÖWY; DIANTEILL, 2009, p. 33). Neste sentido, a utopia, na compreensão proposta por Mannheim, é um

sistema de ideias e valores nos quais estão contidas, sob uma forma condensada, as tendências não realizadas e não acabadas que representam as necessidades de um grupo social em um momento histórico determinado. São desejos e esperanças que desenham não só as concepções do passado, do presente e do porvir, mas a compreensão mesma da temporalidade e o ‘sentido da época histórica como totalidade significativa” (LÖWY e DIANTEILL, 2009, p. 31-32).

Mannheim utiliza os termos “imagens de desejos” e “sonhos de desejos” para tratar das esperanças suscitadas que devem ser entendidas como importantes instrumentos da imaginação na vida social. Os desejos e esperanças de um grupo social não são simples quimeras. O uso popularizado de utopia como sentido pejorativo, de um puro devaneio ou fantasia, pode ter duas interpretações. Ou expressa uma interpretação inadequada das relações de subjetividade com a gestação de projetos de sociedade, ou indica uma finalidade política de quem pretende, a priori, deslegitimar as aspirações por transformação social que ainda não se constituíram como força histórica.

De fato, mesmo se as representações do pensamento utópico não correspondam ao real atual, não são necessariamente falsas por este motivo. Ter o desejo de uma outra sociedade (sonho), nesta perspectiva, contribui para transformar a sociedade real. As imagens de desejo incitam a ação e abrem-se para a mudança. É coerente com esta análise quando Paul Ricoeur se pergunta se “a imaginação de uma outra sociedade situada em nenhuma parte (lugar nenhum) não permite a mais fantástica contestação disto que temos?”. (RICOEUR, 1997, p. 36)

A argumentação de Mannheim diz que as pessoas se ocupam mais vezes dos objetos que desejam, tantas vezes fora do plano da existência, do que com aqueles inerentes a realidade atual. “Assim, ideologia e utopia são duas formas possíveis de pensamento, dos “estados de espírito” que se encontram em desacordo com uma situação social e histórica dada, e que então superam, transcendem ou são estranhas à realidade”. (LÖWY; DIANTEILL, 2009, p. 30)

Movidos pela esperança, gestam estados de espírito ou configurações mentais que articulam, como “visões sociais de mundo”, representações, valores, ideias e orientações cognitivas. Um exemplo de formas comuns destas visões sociais de mundo, que motivam as ações humanas com força e convicção, pode ser encontrado nas religiões, com as ideias de paraíso, de Nova Terra, de Jardim originário ou banquete messiânico. Mesmo quando estas noções remetem à vida depois da morte ou fora deste mundo, redundam em implicações nos sociais. Em determinado contexto, podem assumir uma função ideológica e legitimar a ordem feudal. Entretanto, determinados grupos sociais podem ser apropriar destas ideias em tentativa de realização de projetos sociais, tornando-se parâmetro de transformação social, convertendo-se em utópica, socialmente subversiva. (LÖWY; DIANTEILL, 2009, p. 31)

Portanto, o sentido estreito de utopia fantasiosa ou irrealizável tenta desqualificar a legitimidade do pensamento utópico, enquanto somente o futuro permite que se saiba qual aspiração era ou não “irrealizável” (LÖWY, 2000). Neste sentido, frente à pergunta se, de fato as utopias podem ser realizadas, temos uma resposta situada em cada contexto histórico. Isto porque, realizável ou irrealizável, é um juízo a posteriori, sendo que é a ação política histórica que demonstra a capacidade ou não da modificação da ordem social. A questão central não seria exatamente a possibilidade de realização ou não de uma aspiração, mas na capacidade de mobilização que gera uma forma de compreender a realidade e o potencial de transformá-la.

Franz Hinkelammert, que dedica estudos ao papel da utopia na constituição de projetos históricos, indica que a política, como arte do possível, começa a modelar a sociedade com base em projetos de uma sociedade a construir. Ele destaca em seu enfoque que a questão da utopia, enquanto modelo de perfeição,

se apresenta como problema central no momento em que se começa a modelar a sociedade a partir de critérios derivados de algumas leis sociais, cuja análise permite projetar uma sociedade futura e pensá-la em função de uma ordenação adequada e humana de tais relações sociais. (HINKELAMMERT, 1986, p. 11)

Assim, a projeção de uma sociedade futura modifica a compreensão da sociedade atual e das formas de seu desenvolvimento (ou de sua transformação). A concepção de utopia como um modelo analítico de cunho epistemológico aponta, como questão fundamental, para as orientações que referenciam a prática social e os imaginários. Podemos dizer que os modelos de perfeição, enquanto instrumento do pensar, orientam tal prática e imaginários como utopias ou ideologias, dependendo do papel que desempenham na disputa social concreta de cada época.

A ideologia permite entender a realidade a partir de interesses da ordem atual, enquanto que a utopia, como representação de outra sociedade, contribui para contestar o estado presente das coisas. Marcada pela aspiração de outra ordem das coisas, identificamos na utopia um potencial subversivo que aponta para o rompimento de laços da ordem existente e, consequentemente, para a possibilidade de transformar, de alguma maneira, em maior ou menor grau, a realidade histórica estabelecida.

Portanto, seria difícil imaginar uma sociedade sem utopia. O sociólogo Jean Paul Willaime defende que decorre dos estudos de Karl Mannheim a convicção profunda de que “as sociedades têm necessidade de utopias, o sonho de uma sociedade outra, o ver radicalmente outro é necessário à vida mesma da sociedade; ela permite respirar e se abrir generosamente ao futuro”. (WILLAIME, 2011, p. 108)

A necessidade de utopias fundamenta-se na ideia de que “a imaginação social é constitutiva da realidade social” e que “é somente porque a estrutura da vida social dos homens é simbólica que está susceptível a distorções”. (RICOEUR, 1997, p. 28) Assim, por articularem esferas de desejo, de esperança em linguagem simbólica, algumas realidades sociais possuem tal natureza em que utopia e religião são inseparáveis.

Esta perspectiva questiona o tradicional modelo explicativo da secularização. Tanto Hinkelammert como Hervieu-Léger, partindo de pressupostos diferentes, consideram a secularização como reorganização do religioso, em especial nas utopias que conservam estrutura afim com a problemática religiosa, utilizando de representações afins e/ou características da religião. (COELHO, 2014)

Para o historiador Dominique Iogna-Prat, este questionamento não anula o modelo tradicional da secularização, mas indica que, no conceito de utopia, a relação entre religião e razão moderna pode ser compreendida como ruptura, resultante de uma passagem progressiva de superação (a tese mais geral), mas também pode ser pensada como permanência, na qual “as grandes correntes utópicas da idade da secularização veiculam numerosas referências emprestadas do passado”. (IOGNA-PRAT, 2002, p. 37)

Para Iogna-Prat, na Modernidade temos um fenômeno de permanência, na qual as concepções modernas se constroem com elementos do passado. Desse modo, há “um vasto canteiro de reconstrução social”, mesmo após as rupturas da Modernidade, as formas de pensar ainda são influenciadas e nutrem-se “da ordem antiga, o passado do cristianismo funciona como um horizonte utópico”. (IOGNA-PRAT, 2002, p. 37) De fato, podemos dizer que a teologia judaico-cristã configura importante matriz utópica afirmando o tempo linear, com um início e um fim, indicando as bases para a aposta de esperança em um dia de realização “onde se abrirão as portas de um mundo novo”.

Utopia como esperança frente mitos, ídolos e idolatrias

Conhecido como filósofo da utopia e do princípio esperanças, Ernst Bloch desenvolveu o tema da potencialidade utópica, apresentando a religião como “uma das formas mais significativas de consciência utópica” no princípio esperança. (LÖWY, 2016, p. 29) Reconhecendo o caráter contraditório do fenômeno religioso, propôs interpretá-lo por duas diferentes abordagens do marxismo. Para o aspecto opressivo da religião, a “corrente fria do marxismo” que é “a incansável análise materialista de ideologias, ídolos e idolatrias”. Esta corrente utiliza a análise racional e científica, para identificar o funcionamento e contradições dos sistemas de opressão.

Para o potencial de rebelião da religião, a “corrente tépida do marxismo” que “busca resgatar o excedente cultural utópico da religião, sua força crítica e antecipatória” (LÖWY, 1991, p. 21). Bloch não expressa a ruptura com o quadro categorial moderno, mas sua concepção supera a ideia de segmentação e distinção de esferas como o político, o epistemológico e o religioso, relacionando intimamente o conceito de revolução, redenção e messianismo.

O filósofo Jean-Marie Vincent defende que a compreensão da utopia é central na teoria de Bloch. Frente a barbárie insuportável da sociedade capitalista, Bloch se questiona por que poucos aderem à luta anticapitalista. De uma certa forma, a batalha revolucionária é uma batalha contra o “espírito do tempo”, pela criação de um outro espírito, o da utopia, em que não se trata de pensar abstratamente sociedades perfeitas, mas de fazer manifestar as aspirações a outra vida, o desejo de outras relações no mundo. (VINCENT, 2002, p. 28)

Nesta compreensão, a utopia potencializa os elementos culturais que estão em contradição com o espírito dominante. Seu conteúdo atravessa o tempo e se faz de temas religiosos, relatos lendários, mas também de poesia, de música e dos elementos do cotidiano. De acordo com Bloch, as classes que lutam contra sua miséria presente buscam referências em um passado mítico, em valores pré-modernos anticapitalistas, em culturas sem complacência com o espírito mercantil de hoje (BLOCH, 1977).

No entanto, Vicent diz que a confusão entre um passado mítico mal discriminado e um futuro vago leva muitas vezes a movimentos reacionários. Por isto, é preciso estabelecer novas relações críticas, não lineares, mais complexas de temporalidade. Do passado, resgatar o que não teve voz, o que foi rejeitado ou deformado pela ação dos vencedores e poderosos. É necessário retirar o véu do esquecimento que os encobre. O presente se constitui a partir de relações conflituosas com o passado (memória) e com o futuro. O futuro, por um lado, surge ou como um futuro repetitivo (continuidade exclusiva do presente) ou um futuro que é simples negação abstrata da existência atual. Por outro lado, tece relações de um futuro de ruptura concreta com o que está dado, o “não-ainda”.

Na teoria de Bloch, a característica humana de ser inacabado é propícia à abertura a outros “modos de ser”. A possibilidade de ser de outro modo estaria inscrita nos próprios seres humanos e nas relações sociais, decorrente do próprio potencial utópico do ser humano. Assim,

o homem é alguém que ainda tem muito pela frente. No seu trabalho e através dele, ele é constantemente remodelado. Ele está constantemente à frente, topando com limites que já não são mais limites; tomando consciência deles, ele os ultrapassa. (BLOCH, 2005, p. 243)

A utopia atua na constituição de uma consciência antecipadora, que gera esperança na medida em que refuta a razão da exploração e da dominação por ser negação do humano. A consciência antecipadora se desembaraça de mitologias regressivas e de medos arcaicos. Coloca-se em tensão com a compreensão dominante do mundo, que passa a ser entendido não como algo estático, mas como um processo. De acordo com Jameson, o destaque à esperança não reflete um simples otimismo de Bloch, uma vez que “(...) a esperança é sempre frustrada, o futuro é sempre algo diferente do que lá procurávamos encontrar, algo ontologicamente ‘em excesso’ e necessariamente inesperado”. (JAMESON, 1985, p. 109) Neste sentido, Bloch não teria a pretensão de um futuro onde a utopia seja plenamente realizada, consciente dos limites e possibilidades de fracasso.

A utopia é um sistema aberto, que critica o sistema fechado do mundo e da sociedade. A tensão que ela gera na forma de compreender a realidade leva a redescobrir representações negligenciadas ou esquecidas, tornando-se consciência subversiva, aberta a outros modos de conhecer, outras formas de conceituar a realidade. (VICENT, 2002, p. 30)

Sabemos que as ideias de Bloch influenciaram bastante as teologias políticas europeias, bem como a teologia da libertação latino-americana. Também repercutem na obra de Paulo Freire. Mas outro autor que se dialoga com a noção de utopia de Bloch, com convergências com a teologia da libertação latino-americana é Walter Benjamin.

Benjamin não escreveu nenhuma obra dedicada à temática da utopia, mas em “Le Livre des Passages” (2009), o tema surge como um paradoxo: ao mesmo tempo em que a utopia é emancipadora frente à Modernidade, ela mantém laços com o mito, em aspectos de repetição da história (o antigo sobre o novo). (ABENSOUR, 2002, p. 23)

Na “Exposé de 1935”, Benjamin afirma que na utopia se “encontram traços de mil configurações da vida, desde edifícios duráveis até modos passageiros”. (BENJAMIN, 2009, p. 36) A noção de utopia referencia-se nas representações da sociedade a partir das imagens de desejo como em Bloch. No entanto, teriam também uma outra dimensão presente, que é o caráter mítico.

Sem perder a leitura dialética, afirma que o aparecimento de novos meios de produção corresponde, na consciência coletiva de uma época, a imagem de desejo, pois suscitam representações de uma sociedade melhor (BENJAMIN, 2009, p. 36) Não é um simples reflexo, pois essas representações ajudam a constituição de novas formas de viver. Porém, nem sempre são emancipadoras, pois atua com caráter regressista em sua dimensão mitológica que atua nos processos de transfiguração da ordem.

Na utopia, teríamos uma tensão irredutível “entre a fascinação quase mortífera que exercem os sonhos da mitologia moderna e a vontade de sair do sonho, romper com o lado noturno do século XIX na interpretação do sonho, isto é, construindo uma imagem dialética”. (ABENSOUR, 2002, p. 23) As utopias são carregadas de imagens de desejo e de mitologia. Para Miguel Abensour, longe de rejeitar o pensamento utópico por esta relação, Benjamin concentra-se em liberar as potencialidades emancipatórias dos mitos, “decifrando-os” para considerar o que revela a sua expressão simbólica. (ABENSOUR, 2002, p. 24)

Em uma emblemática passagem, Benjamin afirma que “o capitalismo foi um fenômeno natural pelo qual um novo sono, cheio de sonhos, abateu-se sobre a Europa, acompanhado de uma reativação das forças míticas”. (2009, p. 408) Na “Exposé” de 1935, a tarefa de fascinação é da dimensão mitológica que atua no imaginário social para prolongar o sono do mundo capitalista. Como um “brilho frágil” que encanta e enfeitiça, oculta “o lado noturno” da modernidade capitalista. A fragilidade do brilho não reduz seu potencial de adormecer as consciências em um sono novo e fascinar com um sonho novo, uma promessa. Esta é a relação entre a dimensão mítica e a dimensão utópica.

Reconhecer a importância das utopias não é ceder ao potencial de magia e ocultação, mas identificar as mitologias que as habita e atua sobre a vida. Não se trata também da vitória da razão instrumental sobre o pensamento mágico, mítico e simbólico, mas uma proposta de uma razão “alargada”, “ampliada”. Assim,

não [é] tanto para garantir a vitória da razão herdada, mas para salvar a centelha libertadora que anima e ajudar ao nascimento de uma razão “ampliada”, ousada o suficiente para confrontar a um modo de pensamento selvagem que marca os limites da razão e designa os pontos cegos. (ABENSOUR, 2002, p. 23)

Se por um lado Abensour capta a necessidade de outro tipo de razão, mais ampla e ousada, capaz de analisar o pensamento mítico, por outro considera-o a partir das categorias modernas iluministas, nas quais o mítico é associado ao selvagem. Parece-nos que o ponto relevante é identificar que entre os “limites da razão” (tema já recorrente desde os estudos da Escola de Frankfurt), em um de seus “pontos cegos” a ser apreciado está o pensamento mítico e sua estrutura de funcionamento. A centelha libertadora está no potencial subversivo da utopia.

Para Benjamin, esta tarefa é importante na crítica do capitalismo, em vista do despertar do feitiço da modernidade capitalista. A utopia em sua dupla dimensão apresenta esta ambiguidade importante. Ao olhar os sonhos do passado (no século XIX), configura-se uma vontade de sair do sonho, evitando a fascinação nefasta que a mitologia moderna pode exercer. (ABENSOUR, 2002) A ambiguidade é uma manifestação da dialética (BENJAMIN, 2009, p. 43). Na utopia, cada época não apenas sonha a próxima, mas por meio de seu sonho pode ser arrancada de seu sono mítico.2

Na “Exposé” de 1939, Benjamin considera a complexidade das inspirações do passado na utopia. Abensour sugere que Benjamin passa a conceber a idade de ouro a partir de suas relações com o “inferno”, quando a história deixa de ser entendida como construção do progresso dando lugar à noção de execução da catástrofe (na elaboração das “Teses Sobre o Conceito de História”, 2005). Uma ideologia do progresso que produz catástrofe seria a inversão da emancipação moderna.

Pensar a utopia em sua relação com a catástrofe e, claro, contra a catástrofe, supõe que a utopia se converta em imagem dialética. Afirma Abensour que “se o sonho é exposto a reproduzir a imagem mitológica, o despertar pode ser definido como a destruição dessa imagem e a construção da imagem dialética”. (2002, p. 28).

Por isto, ele defende que Benjamin utiliza a razão “ampliada” para interpretar as forças mitológicas no potencial da superação das ilusões modernas. Este programa hermenêutico antecipa, de certa forma, a proposta de uma teologia que realize o discernimento dos mitos e do papel epistemológico da utopia, como desenvolvido em um setor significativo da teologia da libertação, como a tradição da Escola do DEI, elaborada em especial por Franz Hinkelammert, Hugo Assmann e outros.

Hinkelammer entende a Modernidade referenciada em dois movimentos: na crítica do mito que permite a secularização, mas também no movimento de sua inversão, que reproduz as lógicas sacrificiais do sagrado nas relações fetichizadas. Para ele, a secularização realiza uma profunda e radical crítica do “religioso”, mas sem realizar a crítica da espiritualidade sagrada que o move. Neste sentido, a racionalização inclui em seu programa-promessa a redução do racional a sua dimensão instrumental, bem como a ocultação de sua metafísica com a consequente negação de qualquer mentalidade mítica e a viabilidade de qualquer pensamento utópico.

Em sentido parecido à necessidade da “razão ampliada”, Hinkelammert indica que a racionalidade humana articula de forma complexa diversas de suas dimensões. A razão instrumental, característica da Modernidade, supõe uma razão utópica e uma razão mítica, sendo necessário entender como mito e utopia se relacionam articulados. Tanto utopia como o mito fazem parte do modo de pensar, definindo os marcos de plausibilidade das teorias e apostas fundamentais. Possuem, como em Benjamin, potencial crítico e limites a serem compreendidos e criticados.

Crítica da razão utópica como prevenção a ilusão transcendental

Franz Hinkelammert afirma que a Modernidade não é a eliminação do transcendental religioso na secularização, mas é uma forma de manifestação desta mesma dimensão mítica em linguagem secular. A questão fundamental é perceber a estrutura epistemológica mitológica e religiosa na linguagem secular das teorias sociais modernas. Mesmo teorias sociais modernas que se pretendem totalmente referenciadas na realidade imanente, constroem quadros teóricos transcendentais como condição de possibilidade do pensamento. Qualquer tipo de pensamento que pretende modificar a sociedade “com base em projetos de uma sociedade a construir” (HINKELAMMERT, 1986, p. 11) necessita da ferramenta epistemológica dos conceitos transcendentais. Estes conceitos são utópicos no sentido de que correspondem a modelos de perfeição, categoriais ideais.

Se para Mannhein a utopia orienta a prática social e seus imaginários (imagens de desejos), enquanto representações, mas que se relacionam com o real, em Hinkelammert, utopia é um modelo de perfeição (transcendental), por isto uma ferramenta epistemológica. Apesar do deslocamento da sociologia do conhecimento para a teoria do conhecimento, continua entendida em sua relação com o real na medida em que é a ferramenta diante da qual se analisa e compreende o hoje e elaboram-se estratégias para os projetos de futuro. Estas compreensões de diferentes aspectos podem ser articuladas de forma combinada.

O modelo de perfeição utópico permite formular concepções políticas das quais decorrem ações concretas e orienta as opções de valores na disputa de projetos de sociedade. Os horizontes utópicos geram a esperança que move a sociedade. Para Hinkelammert, o utópico não é algo exterior ao pensar (sobre o qual pensamos), mas a raiz do pensar (é a possibilidade de pensar). A modernidade teria utopias como sua raiz central. Assim, as utopias se constituem ferramenta epistemológica na medida em que a sociedade é repensada a partir de um modelo de perfeição.

A utopia não é simplesmente uma ideia abstrata que possibilita uma “fuga da realidade”, mas modifica o modo de viver. A questão que Hinkelammert destaca é que muitas vezes os horizontes utópicos são confundidos com a realidade. Nesta situação, os modelos de perfeição são confundidos com um estágio de desenvolvimento da sociedade atual - imperfeita e precária. Hinkelammert expressa a problemática como a necessidade da crítica da dimensão utópica da razão:

Entretanto, (...) as sociedades, que se relacionam com as suas respectivas plenitudes perfeitamente impossíveis, se distorcem a partir do fato de que consideram suas realizações fáticas como passos em direção àquela infinitude em relação à qual são concebidas. Sendo impossível tal plenitude, elas, porém, são interpretadas, em termos empíricos, como possíveis a longo prazo. (...) tais plenitudes, ao mesmo tempo em que iluminam, também cegam. Não é possível ser pragmático a não ser dando-se conta do caráter transcendental de tais plenitudes concebidas e, mesmo assim, sem confundi-las com alguma ilusão de sua concretização. (HINKELAMMERT, 1986, p. 19)

A diferença está em agir com referência a um modelo utópico e a ilusão de estar de fato construindo a sociedade perfeita. A ilusão não está, como vulgarmente se propõe, em desejar e projetar uma sociedade diferente, melhor, superior, constituindo um modelo de perfeição (utopia). É ilusão transcendental considerar que a progressão de ações (passos) de um grupo ou instituição conduzirá a sociedade humana a realizar plenamente o seu modelo de perfeição. A ilusão transcendental precisa ser superada pela crítica de sua transcendentalidade de perfeição, sem renunciar à importância de modelos utópicos. Enquanto ferramentas para iluminar o caminho a seguir, muitas vezes acabam cegando e ocultando as suas reais condições, quando se supõe que há caminhos que levam a sua plena concretização.

Assim, o pensamento utópico, que é condição necessária para que se possa compreender a realidade e conceber ações sociopolíticas concretas que aproximem a realidade do modelo de perfeição utópico, propicia a ingênua ilusão da plena realização da utopia pelas instituições ou projetos históricos (isto é, alcançar o modelo perfeito mediado pela realidade precária). Ao supor que a mediação histórica, seja concretizada em uma instituição, lei ou grupo humano, surge a tentação de absolutizar/totalizar tais instituições/leis destinadas a cumprir tal tarefa. Desenvolvem-se relações que Enrique Dussel considera como fetichizadas. Apoia-se na lógica do sacrifício necessário, em que é preciso se submeter a instituição, lei ou grupo responsável pela tarefa da realização plena da utopia almejada (DUSSEL, 2000). Todo sacrifício supõe algum tipo de violência, mas que passa a ser compreendido como salvífica e redentora na construção da utopia. Esta lógica de males que promovem o bem comum permanece em linguagem secularizada, por sua afinidade à razão utópica.

A Modernidade projeta sua utopia (modelo desejado de perfeição). Esta utopia é necessária, mas quando a autocompreensão moderna supõe que a ordem e o progresso constroem seu modelo de civilização fundamentado exclusivamente na razão, desenvolve a ilusão transcendental que oculta outras possibilidades (negando alternativas), reforça a legitimidade aparente de sua autocompreensão (dimensão ideológica) e assume aspectos de totalização ou absolutização (fetichismo) que desenvolve uma estrutura sacrificial de caráter religiosa, que gera vítimas reais e concretas. Deste modo, a ilusão transcendental de realizar plenamente o projeto utópico torna-se o eixo central da ilusão moderna que estabelece uma lógica de sacrifícios. Se o modelo projetado, de perfeição, ainda não foi atingido, exige maior empenho na direção de sua realização. Absolutizando projetos de sociedade e as instituições que seriam incumbidas de realiza-los, relativiza-se a vida humana, a partir do que qualquer negação da vida passa a ser compreendida como um sacrifício necessário para o bem maior.

A necessidade da “crítica da razão utópica” (HINKELAMMERT, 1986) foi incorporada pela Escola do DEI, em especial por Hugo Assmann, Enrique Dussel e Jung Mo Sung. O conceito de ilusão transcendental é um conceito de inspiração kantiana. Em Kant o conceito transcendental se refere basicamente à epistemologia, ao processo de conhecimento. Conceito transcendental é a condição de possibilidade de conhecimento. Nesse sentido, a utopia é transcendental porque é condição de conhecimento da realidade social.

A ilusão transcendental é uma categoria crítica que permite desvelar o equívoco de pensar que, progressivamente, pode-se atingir plenamente o modelo utópico projetado. A impossibilidade de se atingir o infinito com passos finitos é uma crítica que Hegel faz da “má infinitude”, assumida por Hinkelammert. Mas está presente em outros autores que criticam qualquer forma de “progressivismo” na história como um erro de formulação teórica com consequências na ação prática. Este erro de formulação seria o fundamento de uma lógica de realização (ação e estratégia) que deriva em uma estrutura sacrificial que se justifica na realização da utopia (o modelo de perfeição). Em nome de grandes projetos de sociedade, subjuga-se a inviolabilidade da dignidade da vida humana.

Hinkelammert, ao analisar as tentativas de realização da utopia sem o devido cuidado com a ilusão transcendental, coloca ênfase no conceito de “plenamente” realizável como um equívoco de concepção antropológica (em que o ser humano limitado surge como capaz de realizar o ilimitado) e um equívoco de fundamentação teológica (uma concepção na qual o humano é elevado a divino com poderes divinos e não um Deus que se esvazia à condição humana limitada). Em geral, tal ênfase é interpretada como uma espécie de resignação com a realidade como ela é, pois parece não ser mais possível construir outra sociedade/utopia (uma crítica como a necessidade de um “freio à utopia”).

No entanto, refletindo a partir de Benjamin, a interpretação pode ser mais bem compreendida como uma ênfase no “progressivamente”, pois não há erro em imaginar um modelo perfeito (apontado como uma necessidade epistemológica). O erro estaria em desconsiderar as contingências da história, suas descontinuidades e as contradições da vida humana. A crítica do progresso (e da utopia como progressivamente ilimitado que gera catástrofe em Benjamin) parece ser o fundamental na ilusão da modernidade (e do capitalismo). Tal crítica evita legitimar a imposição de sacrifícios necessários em nome da construção das utopias de mundo melhor.

Perceber a transcendentalidade do pensamento utópico, sem renunciar a ele, é condição para que a razão possa identificar e criticar uma estrutura sacrificial de dimensão religiosa presente e ocultada nas formas do pensar. Neste sentido, uma crítica radical que articula epistemologia, política e teologia.

Considerações finais

O quadro referencial da Modernidade, enquanto se torna projeto civilizatório (um projeto social), também se utiliza da ferramenta epistemológica dos conceitos transcendentais. O pensar utópico constitui-se historicamente como uma categoria de análise crítica. Em certa tradição, associa tal crítica à recusa dos ídolos e idolatrias. No pensamento crítico latino-americano, esta recusa é a denúncia do fetichismo desenvolvido na modernidade capitalista. No entanto, a razão utópica, por sua afinidade às estruturas religiosas do pensar, pode reproduzir uma mentalidade sacrificial. A razão utópica não é um problema em si, pois é condição de possibilidade de todo pensamento voltado para ação. Mas não reconhecer a diferença entre o modelo perfeito concebido e a factibilidade do possível leva à absolutização da instituição/lei que realiza o projeto utópico, como a absolutização do padrão civilizatório da razão instrumental. Por isto, a necessidade de sua abordagem crítica.

Segundo Hinkelammert, a ilusão transcendental possui seu fundamento mítico, numa concepção na qual o ser humano imperfeito pode (e deve) percorrer a ascese que conduz à perfeição transcendental. Desse modo, a razão instrumental da Modernidade possui um núcleo ético-mítico que articula suas principais categorias. Isto é, uma força mobilizadora e legitimadora que advém de uma compreensão mítica. Uma dimensão mítica que permite o desenvolvimento das ideias modernas (HINKELAMMERT, 2008), cuja análise ajuda a compreensão e superação.

Esta abordagem permite nova aproximação das críticas à modernidade capitalista, que, com tamanho grau de exploração e violência, não funcionaria na nudez explícita da relação de forças de submissão. Pela ação do fetiche, tanto a justificação dos dominantes e a colaboração dos dominados seriam faces complementares necessárias, na lógica do sacrifício necessário. A dimensão sacrificial do sagrado está manifesta na estratégia de acumulação global de capital e se desenvolve até limites dificilmente concebíveis há pouco tempo. Junto com essa estratégia, consolidam-se mecanismos de desumanização da sociedade e de destruição da natureza. Seria a Modernidade in extremis, acompanhada de uma fascinante e violenta espiritualidade negadora da vida e intolerante ao sujeito humano (HINKELAMMERT, 2012). Esta intolerância segue promovendo a emancipação de alguns na submissão de outros (ou da natureza), com uma razão instrumental acrítica e irracional, uma ciência prometeica, avançando a qualquer custo na edificação da utopia do fim das utopias. Seu resultado é a vitimação de parte da humanidade em nome deste projeto social da Modernidade, concebido como único possível, necessário e legítimo.

A compreensão da secularização como reorganização do religioso, em especial no papel das construções utópicas, possibilita a reflexão sobre o papel da razão instrumental que, ao não permitir a reflexão sobre os mitos e a dimensão religiosa, trata-os estrategicamente como inexistentes. Se estruturas epistemológicas, que organizam o modo de conhecer, articulam veladamente utopia e mito, marcando variadas visões sociais de mundo da modernidade, é preciso analisar a ambiguidade da construção epistemológica que nega e oculta tais aspectos.

Neste sentido, a crítica do amálgama modernidade capitalista revela que o sistema não é o que diz ser. Apresenta-se como racional, desencantado, neutro, secular e gerador de progresso. O fato da dimensão mítica da utopia moderna estar ocultada por sua autocompreensão favorece que seu funcionamento com características religiosas pareça secularizado. Assim, para compreender melhor e superar seus limites, é necessário questionar a epistemologia moderna que separa como opostos razão e mito, política e religião. É preciso articular nova perspectiva em que o pensamento crítico não reproduza a estrutura fundamental moderna. Para isto, o pensamento utópico tem um potencial subversivo de crítica. Não é uma simples derivação das críticas da Escola de Frankfurt aos limites da razão, mas o destaque de duas dimensões da razão que atuam sobre as concepções da vida humana, não de forma abstrata, mas concreta e dialética. A razão utópica e a razão mítica devem ser compreendidas em seu dinamismo na superação da hegemonia da razão instrumental de modo crítico, percebendo seus potenciais e seus limites.

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1Chamamos Escola do Dei - Departamento Ecuménico de Investigaciones, o tipo de teologia desenvolvido em profundo diálogo com as ciências sociais, notadamente o marxismo, tendo como referência o centro de estudos e formação gestado no Chile de Allende por teólogos da libertação, mas criado na Costa Rica após o Golpe Militar.

2A temática do sono/sonho representa não apenas uma reflexão social que considera as teorias psicanalíticas, mas recebeu destaque a partir de uma controvérsia com Adorno que, em correspondência a Benjamin, questiona a ideia de que “cada época sonha a próxima”. Adorno sugere modificações a Benjamin, que não as incorpora plenamente na “Exposé de 1939”. Talvez porque seu sentido já estivesse questionado no final da “Exposé de 1935”, que indica o movimento dialético que Benjamin encontra na ambiguidade.

Recebido: 27 de Novembro de 2017; Aceito: 23 de Maio de 2018

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