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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.32 no.66 Uberlândia set./dez 2018  Epub 22-Set-2020

https://doi.org/10.14393/revedfil.issn.0102-6801.v32n66a2018-02 

Artigos

O ensino de filosofia entre a “história da filosofia” e a “filosofia”: uma questão não esgotada

Teaching philosophy between “history of philosophy” and “philosophy”

L’Enseignement de la philosophie entre “l’histoire de la philosophie” et la “philosophie”

Bruno Santos Alexandre* 

*Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Professor de Filosofia da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). E-mail: brunosalexandre@gmail.com


Resumo

Trata-se, neste artigo, de questionar acerca de um ensino não-dogmático de filosofia. Com essa larga temática no horizonte, pergunto de maneira mais detalhada: seria tal ensino alcançado tão somente através de uma espécie de recapitulação neutra da história da filosofia, ou então nenhuma recapitulação da história da filosofia estaria em condições de caminhar desacompanhada de uma específica filosofia? No presente trabalho, opto por interpelar essa conhecida querela revisitando o debate entre a chamada metodologia estrutural (de Martial Guéroult e Victor Goldschmidt), adepta da primeira posição, versus seus críticos brasileiros (Oswaldo Porchat e Carlos Alberto Ribeiro de Moura), adeptos da segunda posição. Defendo, por fim, que os verdadeiros dogmáticos da contenda serão os partidários da primeira posição (porquanto vislumbram estruturas monolíticas para toda filosofia), ao invés dos partidários da segunda (os quais encampam uma perspectiva crítica e interrogativa frente a toda filosofia: aberta assim à autotransformação).

Palavras-chave: História da filosofia; Guéroult; Goldschimdt; Porchat; Ribeiro de Moura

Abstract

This paper investigates a non-dogmatic form of teaching philosophy. The main issue is if such teaching could only be achieved through a kind of neutral recapitulation of the history of philosophy, or if no recapitulation of the history of philosophy could abdicate a specific philosophical content. In the present work, I address this well-known question by revisiting the debate between the so-called structural methodology adepts (by Martial Guéroult and Victor Goldschmidt), who defend the first position, versus its Brazilian critics (Carlos Alberto Ribeiro de Moura and Oswaldo Porchat), who support the second one. I argue, finally, that the true dogmatists of this debate are the partisans of the first position (which defend monolithic structures for philosophy) rather than the partisans of the second (which explores a critical and interrogative perspective for philosophy: open thus to auto-transformation).

Keywords: History of philosophy; Guéroult; Goldschimdt; Porchat; Ribeiro de Moura

Resumé

Cet article essaye de chercher une forme non dogmatique d’enseigner la philosophie. Avec ce vaste thème à l'horizon, la question même se pose: un tel enseignement ne serait-il possible que par une sorte de récapitulation neutre de l'histoire de la philosophie, ou aucune récapitulation de l'histoire de la philosophie ne pourrait abdiquer d’un contenu philosophique spécifique? Le présent travail répond à cette bien connue querelle en revisitant le débat entre la méthodologie dite structurelle (de Martial Guéroult et Victor Goldschmidt), partisans de la première position, et ses critiques brésiliens (Carlos Alberto Ribeiro de Moura et Oswaldo Porchat), partisans de la deuxième position. Dans cet article nous soutenons, enfin, que les vrais dogmatistes de la lutte seront les partisans de la première position (qui défendent structures monolithiques pour la philosophie) plutôt que les partisans de la seconde (qui posent une perspective critique et interrogative à la philosophie: ouvert alors à l'auto-transformation).

Mots-clés: Histoire de la philosophie; Guéroult; Goldschimdt; Porchat; Ribeiro de Moura

Introdução

Trata-se, no presente artigo, de investigar uma questão certamente antiga e muitas vezes reprisada. Uma questão, porém, que considero ainda não exaurida, a saber: como proporcionar um ensino de filosofia que não seja dogmático? Quer dizer, como proporcionar um ensino de filosofia que não assuma como meta transmitir única e exclusivamente “uma” filosofia? Assim sendo, grande parte do problema nesse artigo estará em refletir acerca de duas variáveis principais dessa longa querela filosófica. De modo que se faria urgente (para mim e a todo professor de filosofia) posicionar-se entre:

  • (a) Aqueles que defendem o ensino das diferentes abordagens filosóficas tão somente através de uma espécie de recapitulação neutra da história da filosofia. Ou seja, a defesa de uma separação possível entre a parcialidade do fazer filosófico e a narrativa imparcial da história dessa prática.

  • (b) Aqueles que afirmam que nenhuma recapitulação da história da filosofia estaria em condições de caminhar desacompanhada de uma específica, e necessariamente parcial, ideia de filosofia. Ou seja, a defesa da inseparabilidade do fazer filosófico de sua história.

Diversos são os autores e escolas adeptos dessas duas nuances didático-filosóficas. Entretanto, no presente artigo, proponho um recorte ainda mais preciso. É que eu gostaria de tematizar um capítulo regional dessa contenda: uma problemática muito conhecida entre os estudiosos de filosofia no Brasil. Sem demora, a minha proposta é de refletir sobre a chamada metodologia estrutural para a leitura dos textos da tradição filosófica, de Martial Guéroult e Victor Goldschmidt - muito influente nos inícios da filosofia universitária do Brasil no começo do século XX, a partir da criação do curso de filosofia da Universidade de São Paulo, na década de 1930. Mas não para por aí. Pois a minha proposta é de interrogar essa metodologia (dentre os muitos modos de empreendê-lo) a partir de uma contraposição oferecida, algumas décadas mais tarde, por alguns professores brasileiros curiosamente formados no interior dessa mesma linhagem e nessa mesma Universidade. Refiro-me, aqui, precisamente ao fato de que enquanto Guéroult e Goldschmidt são notórios defensores da primeira posição acima destacada (a), alunos seus como Oswaldo Porchat e Carlos Alberto Ribeiro de Moura serão defensores da segunda posição (b).

Quatro são os textos principais a serem discutidos nesse artigo. De Goldschimdt: “Tempo histórico e tempo lógico na interpretação dos sistemas filosóficos”, originalmente redigido em 1949. De Guéroult: “O problema da legitimidade da história da filosofia”, originalmente redigido em 1968. De Porchat: “Discurso aos estudantes da USP sobre a pesquisa em filosofia”, originalmente redigido em 1999. E de Ribeiro de Moura: “História stultitiae e história sapientiae”, originalmente redigido em 1988.

Victor Goldschmidt e a interpretação do texto filosófico entre um tempo histórico e um tempo lógico

Em 1949, Victor Goldschmidt escreve o livro “A religião de Platão”. Ao fim dessa obra, inclui em anexo um breve ensaio metodológico intitulado “Tempo histórico e tempo lógico na interpretação dos sistemas filosóficos” - escrito este que então veio a ser conhecido como uma espécie de manifesto do chamado método estruturalista de Goldschimdt, Guéroult, Bréhier e outros.

Logo no início deste ensaio, sem qualquer delonga, afirma Goldschmidt que haveria duas maneiras de se interpretar os textos da tradição filosófica: poderíamos fazê-lo interrogando-os por sua verdade ou então por sua origem. O que seria o mesmo que ou bem interrogar um texto por suas razões ou bem por suas causas. Em ambos os casos, entretanto, tratar-se-ia de debruçar-se sobre o que Goldschmidt entende por dogmata: o conjunto de teses apresentadas pelo texto. Com efeito, a diferença seminal estaria em que

o primeiro método, que se pode chamar dogmático, aceita, sob ressalva, a pretensão dos dogmas a serem verdadeiros (...) o segundo, que se pode chamar genético, considera os dogmas como efeitos, sintomas, de que o historiador deverá escrever a etiologia (fatos econômicos e políticos, constituição fisiológica do autor, suas leituras, sua biografia intelectual ou espiritual etc.) (GOLDSCHMIDT, 1970, p. 139).

O primeiro método, explica-nos ainda Goldschmidt, “é eminentemente filosófico”, visto que “aborda uma doutrina conforme à intenção de seu autor e, até o fim, conserva, no primeiro plano, o problema da verdade; em compensação, quando ele termina em crítica e em refutação, pode-se perguntar se mantém, até o fim, a exigência da compreensão” (GOLDSCHMIDT, 1970, p. 139). Já o segundo método avança numa “interpretação genética”, o qual, ao perscrutar pelas causas dos dogmata,

é ou pode ser um método científico e, por isso, sempre instrutivo; em compensação, buscando as causas, ela se arrisca a explicar o sistema além ou por cima da intenção de seu autor; ela repousa frequentemente sobre pressupostos que, diferentemente do que acontece na interpretação dogmática, não enfrentam a doutrina estudada para medir-se com ela, mas se estabelecem, de certo modo, por sobre ela e servem, ao contrário, para medi-la (GOLDSCHMIDT, 1970, p. 139).

Percebamos, com efeito, em primeiro lugar, que na descrição desses dois métodos o nosso autor faz uma observação crítica, precedia pelo substantivo “compensação”. Assevera nosso intérprete que o primeiro método pretende rivalizar “quanto à verdade” do sistema abordado, enquanto que o segundo método se quer posicionado num ponto de vista “além ou por cima da intenção” do sistema do autor abordado. Eis, então, para Goldschmidt, a dificuldade de cada uma dessas abordagens: o primeiro método subtrai o sistema de todo o tempo, uma vez que arroga mover-se no solo da verdade material como tal; o segundo método arroga o extremo oposto ao colocar o tempo como causa. Em suas próprias palavras:

o método dogmático, examinando um sistema sobre sua verdade, subtraio-o ao tempo; as contradições que é levado a constatar no interior de um sistema ou na anarquia dos sistemas sucessivos, provêm, precisamente, de que todas as teses de uma doutrina e de todas as doutrinas pretendem ser conjuntamente verdadeiras, ‘ao mesmo tempo’. O método genético, pelo contrário, põe, com a causalidade, o tempo; além disso, o recurso ao tempo e a uma ‘evolução’ permiti-lhe, precisamente, explicar e dissolver essas contradições (GOLDSCHMIDT, 1970, p. 144).

Ora, e o que, afinal, propõe-nos Goldschmidt em seu artigo? Uma espécie de mistura dos dois métodos. Desta feita, a sua própria abordagem continuará a buscar por causas (um conteúdo científico mesmo, a ser reconhecido inapelavelmente por todos os leitores de determinado texto filosófico), sim; porém, a procura por causas especificamente intencionais. Eu diria que se trata de um novo método, por certo, com um acento maior, contudo, na primeira abordagem, ao retirar-lhe justamente seu caráter dogmático. Conforme compreendo, em sua missão de providenciar um método de interpretação dos textos da história da filosofia, Goldschmidt empregará a forma causal e científica do método genético (a determinação de uma verdade insuperável acerca de certo tempo e momento) no conteúdo que realmente lhe interessa: no que é de ordem lógico-filosófica, objeto do método que ele vinha chamando de dogmático (do que é eminentemente intencional, uma arquitetura da razão, a capacidade da razão humana em criar o novo, transformar e refundar a tradição).

Assim, para Goldschimdt, o método adequado para estudo da tradição filosófica será aquele que apreende as ideias dos autores menos como efeitos (epifenômenos sociais) e muito mais como causas (atos intencionais). E ainda mais: à luz desses dois sentidos opostos, não deixa de ser interessante perceber que, segundo esse intérprete, para se escrever uma história da filosofia seria necessário, de certa forma, abandonar o tempo que é propriamente histórico e coletivo (o tempo das normas sociais, dos grandes contextos) em função de um tempo lógico e particular: um mundo que é somente do autor do texto. Outra maneira de assegurar à filosofia a autonomia de produção de sua própria história: a história da filosofia, portanto, como um sub-gênero (uma especialização) do grande campo da própria filosofia, e não de qualquer outro.

Daí que Goldschmidt afirme se tratar, em seu método, de elencar a ordem das razões de determinado texto: como que elaborar a dedução da tese principal às sub-teses; em outros termos, de acompanhar os movimentos do texto: “a progressão (método) desses movimentos dá à obra escrita sua estrutura e efetua-se num tempo lógico. A interpretação consistirá em reapreender, conforme a intenção do autor, essa ordem por razões, e em jamais separar as teses dos movimentos que as produziram” (GOLDSCHMIDT, 1970, p. 140). “De um modo mais geral”, segue Goldschimdt procurando ganhar o conceito de método estrutural,

repor os sistemas num tempo lógico é compreender sua independência, relativa talvez, mas essencial, em relação aos outros tempos em que as pesquisas genéticas os encadeiam. A história dos fatos econômicos e políticos, a história das ciências, a história das ideias gerais (que são as de ninguém) fornecem um quadro cômodo, talvez indispensável, em todo o caso, não-filosófico, para a exposição das filosofias (GOLDSCHMIDT, 1970, p. 144).

E se é assim, o grande objetivo da argumentação de Goldschmidt é nos convencer de que “a história dos fatos econômicos e políticos, a história das ciências, a história das ideias gerais” são elementos mais externos do que internos aos sistemas filosóficos. Ao fim e ao cabo, haveria, pois, no entender desse intérprete, uma “independência essencial de uma doutrina em relação ao tempo histórico em que ela aparece” (GOLDSCHMIDT, 1970, p. 145). Fazendo uso das palavras de seu colega estruturalista Emile Bréhier, decretará, por fim, o nosso estruturalista da vez: “tais ucronias fazem ver que o que é essencial num pensamento filosófico é uma certa estrutura” (GOLDSCHMIDT, 1970, p. 145). Em outra importante contribuição bibliográfica sua, “Remarques sur la Méthode Structurale en Histoire de la Philosophie”, esclarece-nos ele que essa “certa estrutura” pode ser entendida também como sistema, totalidade: pois “o que se pode dizer de mais geral e menos contestável sobre a ideia de estrutura é que o termo remete a um sistema de relações, a uma totalidade em que os elementos não podem ser analisados sem referência a esta totalidade” (GOLDSCHMIDT, 1982, p. 119).

Enfim, tal ideia de uma estrutura ou sistema como elemento presente no texto de todo e qualquer filósofo nos salvaguardaria de dois perigos sempre à espreita quando da elaboração de uma história da filosofia: o relativismo (um verdadeiro vale-tudo interpretativo) e o dogmatismo (a história da filosofia narrada através de uma única perspectiva).

Martial Guéroult: da distinção entre a ciência e uma história científica da filosofia

Conforme bem sintetiza Ribeiro de Moura, a noção de estrutura defendida por Goldschmidt é ao

que se chega para resolver a antinomia entre a filosofia e a sua história, entre uma história científica supostamente neutra e imparcial e uma história filosófica da filosofia [supostamente a que diz “o que é” a filosofia de uma vez por todas], conciliando exigências oriundas de horizontes intelectuais opostos” (RIBEIRO DE MOURA, 1988, p. 168, grifos meus).

A conciliação promovida pelo estruturalismo, nesse caso, seria exatamente de que

será através da ‘estrutura’ que o historiador segundo Guéroult reconciliará o ceticismo científico e a crença filosófica; pois se ele renuncia à ‘verdade-de-juízo’ das doutrinas, será para reencontrar uma ‘verdade-intrínseca’ às filosofias, que lhe permitirá recuperar o passado para a filosofia, sem aniquilar as filosofias no mesmo erro nem negar sua diversidade na unidade de uma verdade (RIBEIRO DE MOURA, 1988, p. 168, grifos meus).

Seguindo fielmente na esteira de Goldschmidt sobre essa ideia de uma estrutura inerente aos diversos pensamentos filosóficos - ou seja, a “estrutura” como algo permanente ante a possibilidade aberta da multiplicidade de pensamentos, a estrutura como o que poderíamos conhecer com segurança frente à incontornável multiplicidade da filosofia - Martial Guéroult detalhará o problema da mencionada distinção entre a lógica do pensamento científico e uma histórica científica da filosofia. Ele o fará em seu artigo “O problema da legitimidade da história da filosofia”, de 1956.

Para começo de conversa, de acordo com Guéroult, tanto a ciência como a filosofia visariam produzir respostas a problemas. Deste modo, ciência e filosofia trabalhariam necessariamente com ao menos dois elementos: teses (uma série de respostas aos problemas postos) e teorias (o conjunto formado pelas teses). Teses e teorias, por sua vez, caso se queiram pregnantes e persuasivas (e esse seria todo o objetivo destas: demonstrar sua verdade) precisariam apresentar-se enquanto verdadeiros sistemas de pensamento: constructos dotados de princípios e consequências lógicas, conformando assim uma totalidade repleta de movimentos próprios (um encadeamento, uma ordem de razões).

Intenciona isso então dizer que uma história científica da filosofia (como quer a escola estruturalista) e a prática regular científica (da química, da física, etc.) entoariam um e o mesmo constructo metodológico? A resposta, segundo Guéroult, não pode senão elevar-se como um retumbante não. Explana-nos esse filósofo estruturalista que, não obstante as filosofias, assim como as ciências, visem à universalidade, distintamente das ciências, as filosofias não reuniriam as condições para serem universalmente aceitas. Isto ocorreria porquanto a ciência “conforma a história”, já a filosofia é “informada pela história”. Em que sentido?

Com efeito, para Guéroult, a atividade da ciência “nada tem a ver com sua história: sendo constituída de verdades intemporais, ela se coloca fora do tempo” (GUÉROULT, 1968, p. 193). Entre outras coisas, isso remonta notadamente ao fato de que:

não é nem a antiguidade, nem a atualidade, o que opõe o ontem ao hoje da ciência: é a presença neste caso, e a ausência naquele outro, de tais verdades intemporais adquiridas. A ignorância de uma verdade hoje adquirida constitui o passado para a ciência. Mas uma verdade adquirida anteriormente não faz da ciência que a adquiriu uma ciência de ontem. Tal ciência já é, por isso mesmo, a ciência de hoje, ou, antes, pura e simplesmente, a ciência, que não é de ontem de hoje (GUÉROULT, 1968, p. 163).

Dito de maneira bem direta, para Guéroult, a ciência estaria apta em colocar a sua própria verdade em marcha na história, na mesma medida em que a filosofia - uma modalidade de pensamento polêmica e aporética por natureza - ver-se-ia dependente às distintas mentalidades históricas. Assevera também Guéroult que

ao contrário do que se passa nas ciências, a história da filosofia é de fato o instrumento principal de iniciação à filosofia, e, para a filosofia, fonte permanente de inspiração. A ausência de verdades adquiridas faz com que a filosofia não possa ser encerrada, como uma ciência, em um corpo constituído por verdades anônimas, aceitáveis sem nenhuma oposição por todas as inteligências, mas faz com que ela possa parecer residir no conjunto das filosofias surgidas no decurso das diferentes épocas (GUÉROULT, 1968, p. 194).

Deveras relevante, desse modo, perceber como para a metodologia estrutural, a princípio, a filosofia parece enunciar uma ciência inexata; talvez a filosofia como o grande campo das chamadas ciências humanas: o campo da moral, da política, da antropologia, da própria ciência histórica, etc. Porém, não era um conhecimento exato ao que vislumbravam filósofos do porte de Descartes, Leibniz e Kant, para mencionar apenas alguns (aos quais, aliás, Guéroult dedicou boa parte de sua vida)? E se, então, para Guéroult, o problema não é que a filosofia enuncie as ciências humanas e inexatas como tais, antes sim a ingenuidade de um conhecimento que ousa aspirar ao absoluto (à predição universal), como então não incluir nesse rol inclusive as ciências chamadas exatas (que se pretendem atemporais)? Não estariam essas últimas, de algum modo, igualmente enquadradas naquele raciocínio de todo sistema de pensamento enquanto condicionado às diferentes visões históricas do mundo?

Infelizmente, essa é uma problematização da metodologia estrutural que deverá ficar para outra ocasião. Como quer que seja, o fato é que, para autores como para Guéroult e Goldschmidt, quando o assunto for produzir uma narrativa da história da filosofia, tratar-se-á de defender que não se pode enunciar a verdade material entre as diferentes escolas filosóficas (como se fosse possível desvendar a verdade externa a todas, isto é, válida para todas), tão somente a verdade estrutural de cada uma delas (a verdade de sistemas particulares, isto é, unicamente razões internas).

Oswaldo Porchat e o método estrutural entre um instrumento à filosofia e a filosofia em si mesma

Neste momento, faz-se oportuno relembrar que a metodologia estrutural aporta no Brasil quando da fundação da Universidade de São Paulo e do curso de filosofia nessa instituição, na década de 1930. A mencionada metodologia é literalmente trazida na bagagem da missão francesa que viera ao País auxiliar na estruturação da Universidade e do curso recém-fundados. Àquela altura, os primeiros professores do curso (João Cruz Costa e Lívio Teixeira) julgavam encontrar na metodologia de Guéroult e Goldschmidt não apenas a mais interessante abordagem do ponto de vista didático para um curso de filosofia, senão também uma espécie de antídoto necessário à leitura pouco rigorosa da história da filosofia que vicejava no Brasil daquele tempo. Que leitura “pouco rigorosa” era essa? Interpretação afoita por conferir uma produção original e nacional à filosofia; não raro, no meio desse caminho, torturando e deformando os textos clássicos do passado. Sobre tal contexto de chegada da metodologia estruturalista francesa em nosso País, afirmava um dos primeiros professores brasileiros de filosofia da Universidade de São Paulo, Lívio Teixeira, em ensaio originalmente de 1964:

para corrigir as pretensões nacionalistas que surgem presentemente no Brasil, é preciso que nos recordemos, ainda uma vez, que a história da filosofia é condição da própria filosofia. O próprio da história da filosofia é que o passado - que os filósofos, como filósofos, devem considerar ultrapassado - é não obstante sempre presente e ativo (TEIXEIRA, 2003, p. 200).

A partir do final do século XX, contudo, professores de filosofia formados no interior dessa mesma tradição passam a levantar algumas críticas acerca do propalado método. Em um ensaio de 1999 - em uma espécie de mea culpa filosófica - argumenta Oswaldo Porchat:

continuo totalmente convencido de que se trata possivelmente do melhor método para lograr uma primeira hipótese interpretativa, e de um primeiro passo indispensável para qualquer apreensão do significado e escopo de um sistema filosófico. Um primeiro passo indispensável e preliminar a toda análise comparativa, a todo esforço de compreensão mais global, a uma interpretação posterior mais geral de uma obra que permita relacioná-la com seu contexto cultural, político, econômico, e que propicie sua inserção numa perspectiva mais propriamente histórica no sentido de que para além do estrutural, para além da leitura interna (PORCHAT, 1999, p. 132, grifos meus).

Assevera, ainda, Porchat que, num primeiro momento interpretativo, o melhor a ser feito é de fato, como ensinam os mestres estruturalistas, colocarmo-nos entre parênteses, deixar de lado nossa experiência histórica e posição intelectual pessoal: “nesse trabalho de refazer os movimentos filosóficos que estruturam uma filosofia particular, de apreender sua lógica interna”, ele diz, “impõe-se seguramente a necessidade metodológica de deixar de lado as posições pessoais, os pontos de vista filosóficos que eventualmente se tenham, faz-se mister o esquecimento metodológico de si próprio” (PORCHAT, 1999, p. 132).

Porém, e qual é o dito mea culpa de Porchat? O mea culpa nesse ensaio reside na seguinte ponderação: se esse método - ele defere - é condição necessária para a ótima formação do aluno de filosofia, não reuniria, entretanto, condição suficiente para tanto. Enunciado de outra forma, o método estrutural permitiria alimentar apenas parte do que se espera de um curso de filosofia; conforme veremos, mesmo do que se exige de todos que acabam por se envolver com a filosofia. Elucida-nos o próprio Porchat:

introduzir o aluno à prática do método estruturalista é a melhor maneira de prepará-lo para ser capaz de tentar apreender com alguma profundidade a estrutura interna das obras filosóficas que nos oferece a história do pensamento ocidental, desde as suas origens gregas até nossos dias. A melhor maneira, por isso mesmo, de prepará-lo para se tornar um bom historiador da Filosofia. E podemos convir, sem maior discussão, em que fornecer-lhe abundantes cursos predominantemente de História da Filosofia é sobremaneira eficaz para a consecução de uma tal meta. Quero interrogar-me aqui, porém, sobre se essa é também a melhor maneira de preparar alguém para a prática da Filosofia, para atender ao anseio original dos que vieram ao curso de Filosofia movidos por outra intenção que não a de tornar-se um dia bons historiadores do pensamento filosófico. Seus impulsos eram filosóficos. Acredito que se pode dizer isso de um bom número de nossos estudantes. E me ocorre, então, a seguinte pergunta, que formularei com alguma brutalidade: estamos contribuindo para a concretização desses impulsos, ou os estamos matando? (PORCHAT, 1999, p. 132-133, grifos meus).

Concede Porchat que nas diferentes matérias de história da filosofia (antiga, medieval, moderna e contemporânea) seria preciso, sem dúvida, visitar o cânone: o que pensaram aqueles reputados como os maiores filósofos da história. Todavia - esse é toda a ideia - seria igualmente necessário, mesmo no interior desses cursos históricos, oferecer aos alunos o percurso com o qual o cânone chegou até os dias atuais. Dito de outro modo, far-se-ia preciso acompanhar a maneira como os textos clássicos do passado foram sendo ruminados até o presente. No limite, caberia enfatizar, nessas disciplinas historiográficas, algo diferente que o próprio recorte historiográfico: os pontos

que ainda estão presentes nas discussões filosóficas contemporâneas, chamando a atenção sobre essa presença e exemplificando-a. Reconhecendo também que há questões sobre que se debruçaram os grandes mestres que não apresentam hoje nenhum interesse para a filosofia, que pertencem ao museu das antiguidades curiosas fazendo então do historiador da filosofia algo como um antiquarista, que somente o especialista em historiografia filosófica das épocas passadas precisa eventualmente conhecer (PORCHAT, 1999, p. 135, grifos meus).

Ora, em meu modo de entender essas palavras de Porchat, trata-se, como pano de fundo de toda a exposição nesse seu artigo, da ideia de que uma possível metodologia para o estudo da história da filosofia (como a que querem Goldschmidt e Guéroult) se verá sempre destinada ao estatuto de provisória, heurística, exercício instrumental; no fim das contas, subordinada a uma posição filosófica de fundo.

Como se pode então perceber, Porchat procura com isso privilegiar, mesmo nas disciplinas ditas históricas, o entrecruzamento da perspectiva filosófico-sincrônica (situada num dado tempo histórico) com a perspectiva filosófico-diacrônica (situada possivelmente em diversos tempos históricos). Assim, no que tange às demais disciplinas (não mais históricas e sim temáticas: como filosofia política, estética, ética, filosofia da ciência, etc.), perguntas, problemas e questões diacrônicas, que incomodaram distintos pensadores ao longo do tempo, tomariam de uma vez por todas o centro do debate (em aprofundamento àquilo que já despontava, mesmo encabeçava, o próprio recorte historiográfico). É, sobretudo, aqui se deverá dar preferência ao Estado da Arte hoje das questões em pauta. Sobre essa segunda feição do currículo, afirma Porchat:

deixando porém de lado os cursos de História da Filosofia, em que sentido proponho que a História da Filosofia, entre nós, comece a dar lugar à Filosofia? Como isso se poderia fazer? Em primeiro lugar, introduzindo cursos e seminários - e orientando trabalhos e pesquisas, não apenas sobre doutrinas filosóficas deste ou daquele autor, sobre questões internas à lógica de seus sistemas, mas preferencialmente, ainda que não exclusivamente, sobre problemas filosóficos, sobre diferentes tratamentos e formulações desses problemas, sobre as polêmicas filosóficas que os envolvem e nos quais é tão fértil a literatura filosófica antiga, moderna e contemporânea. E a preferência deve também recair, parece-me, sobre problemas que sejam problemas para o mundo filosófico contemporâneo, que sejam tratados na literatura filosófica de nossos dias, introduzindo a eles os nossos alunos (PORCHAT, 1999, p. 135).

Para além desses seminais apontamentos atinentes ao currículo, Porchat defende que nós, educadores de filosofia, deveríamos, acima de tudo, em nossas aulas e seminários conduzidos, franquear a chance ao aluno falar: expressar-se livremente, até mesmo tecer sua própria crítica acerca dos grandes textos do passado. E para os que replicam que, no início, essas críticas serão certamente toscas, faltando-lhes muito refinamento, Porchat treplica: é verdade. No entanto, é tarefa do (bom) professor evidenciar que tal ou qual crítica já fora feita e rechaçada; ou que o aluno, ao elevar a sua crítica, deixa de se atentar para esse ou aquele movimento do autor criticado; e muitos outros aspectos que o iniciante em filosofia provavelmente ainda não terá levado em conta. Em todo caso, a convicção de Porchat sobre o assunto é que não haverá método melhor - caminho mais adequado - a fim de proporcionar com que o aluno, mais do que reproduzir, chegue, quem sabe, em algum momento, a produzir filosofia por si mesmo. E convém recordar, finaliza Porchat, que “também os gregos, afinal os pais da Filosofia, praticaram fundamentalmente o método da discussão filosófica, da proposição de teses e antíteses, de perguntas e respostas, de argumentos e objeções. E tudo isso sobre problemas e questões que diziam respeito às preocupações efetivas dos homens de então” (PORCHAT, 1999, p. 137-138).

Pois bem, outro professor uspiano - Carlos Alberto Ribeiro de Moura - concordará com Porchat com relação ao raciocínio de que o método estrutural pode ter acabado por minar os anseios filosóficos de muitos dos nossos jovens estudantes. Ribeiro de Moura me parece concordar também com a tese de que todo método que arrogue para si (como se autônomo fosse) a específica tarefa de interpretar a história da filosofia estará condenado a um caráter instrumental e heurístico; mero exercício preparatório. Porém, o mais notável das contribuições de Ribeiro de Moura para o assunto, a meu ver, é precisamente de explorar algumas consequências abertas por reflexões como a de Porchat, quais sejam: (i) de que se não há um método próprio e último para a história da filosofia, (ii) toda história da filosofia já se desenvolve, pois, no interior de uma certa filosofia, (iii) tanto quanto toda filosofia já enceta uma história da filosofia. Nesse sentido, a primeira coisa que o educador em filosofia precisaria ter em mente - assegura-nos Ribeiro de Moura - é atentar-se para o fato de que, mesmo o método estrutural, que se pretende científico (ou seja, universal), é ele também historicamente situado. Historicamente num sentido agora mais radical que aquele desenvolvido pelas disciplinas ditas históricas dos cursos de filosofia; porquanto, já de saída, enredado num movimento explicativo do passado ao futuro, para além da simples reprodução de uma arquitetônica interna, a representação de uma estrutura de pensamento. Compreendamos esses novos aspectos da crítica ao estruturalismo (bem como os corolários dessa crítica) na última seção do presente artigo.

Carlos Alberto Ribeiro de Moura e a história da filosofia como uma tópica historicamente situada

Em seu texto “Schopenhauer Educador”, afirma Friedrich Nietzsche que “a história erudita do passado nunca foi a ocupação de um filósofo verdadeiro” (NIETZSCHE, 1999, p. 299). E, nessa mesma “Consideração Extemporânea”, ainda em tom ácido, dirá o filósofo alemão que tal história erudita do passado tende a ser justamente a maneira com a qual educam seus alunos os professores universitários de filosofia - a quem ele nomeia também como “filisteus da cultura” (NIETZSCHE, 1999, p. 295). Explica Nietzsche:

a história erudita do passado nunca foi a ocupação de um filósofo verdadeiro, nem na Índia nem na Grécia; e um professor de filosofia, se se ocupa com o trabalho dessa espécie, tem de aceitar que se diga dele, no melhor dos casos: é um competente filólogo, antiquário, conhecedor de línguas, historiador - mas nunca: é um filósofo (NIETZSCHE, 1999, p. 299-300).

No entender de Nietzsche, desta feita, o professor, por assim dizer, por profissão, seria em realidade um falso homem de cultura. Dito de maneira bem direta, para este polêmico pensador alemão, seria muito difícil vislumbrar a que cultura seria útil um professor que ensinasse apenas história da filosofia, ao invés de colocar em discussão a própria filosofia. Pois a que aluno serviria o mero desfile das diferentes filosofias; as críticas de umas às outras, sem nunca alcançar a discussão da filosofia como tal? Isso não faria - para falar bem a verdade, diria Nietzsche - afastar o jovem da filosofia antes do que aproximá-lo dela? Como afirma Carlos Alberto Ribeiro de Moura, em tal diagnóstico nietzschiano, “este sucedâneo do pensamento, que é a história da filosofia, só conseguirá uma coisa: ridicularizar a própria filosofia” (RIBEIRO DE MOURA, 1988, p. 151). Questiona-se, em tom retórico, o próprio Nietzsche:

e, por fim, em que neste mundo importa a nossos jovens a história da filosofia? Será que eles devem, pela confusão das opiniões, ser desencorajados de terem opiniões? Será que devem ser ensinados a participar do coro de júbilo: como chegamos tão esplendidamente longe? Será que, porventura, devem aprender a odiar ou desprezar a filosofia? (NIETZSCHE, 1999, p. 300).

Ao tomarmos nota dessas conhecidas críticas de Nietzsche, seria o caso de concluirmos, à vista disso, que a história da filosofia (ao menos aquela que se pretende separada ou autônoma em relação à filosofia em si mesma, de maneira estanque) não importaria qualquer interesse à tarefa mesma de fazer ou praticar filosofia? Conforme acabamos de acompanhar, os chamados historiadores de estirpe estruturalista - professores universitários (vejam só!) franceses, capitaneados por Goldschmidt e Guéroult - darão uma resposta diferente dessa.

De acordo com autores como Goldschmidt e Guéroult - distintamente do que acreditava Nietzsche - a história da filosofia seria, sim, útil à filosofia. Tudo se passaria, para eles, como se à história da filosofia pudéssemos conferir um estatuto, ao mesmo tempo, científico e filosófico (ainda que sem confundir-se com a própria filosofia). “Científico” porquanto a história da filosofia estruturalista já seria, em si mesma, uma espécie de ciência: certa e segura, elaborada desde um ponto de vista neutro (por isso, uma descrição das filosofias e seus sistemas). E “filosófico” porquanto a história da filosofia se constituiria como o primeiro passo (um passo necessário e não circunstancial) para uma meditação rigorosamente filosófica: aquela que pretenderia provar-se superior às demais (por isso, doravante uma avaliação das filosofias). Portanto, como mencionado nas seções anteriores, a história da filosofia estruturalista pauta-se e indaga-se por uma história interna dos textos dos filósofos da tradição, e não por qualquer teoria externa. Isso significa: ela perscruta por sistemas, pela ordem de razões, pela estrutura singular e única dos textos. Compreender essa estrutura é o que nos afiançaria de duas coisas. (i) uma certeza e segurança interpretativas na ocasião da leitura dos textos filosóficos da tradição. De modo a nos capacitar a algo diferente do estruturalismo, tanto quanto dependente dele, a saber: (ii) a passagem da compreensão (isto é, do reconhecimento da estrutura interna de todo e cada texto) à interpretação propriamente dita (à crítica: a avaliação dos demais sistemas e, por conseguinte, à formulação ou endosso de uma dada filosofia sistemática).

“Mas se é assim”, indaga-se Ribeiro de Moura, “em que, exatamente, a história estrutural traz um conteúdo filosófico que a preservaria de entrar em cena como um exemplo a mais da ‘filosofia universitária’ antiquarista, quase jornalística?” (RIBEIRO DE MOURA, 1988, p. 150, grifos meus). Responde-nos o mesmo comentador: lançando mão de algo que ela exatamente se arrogava em não fazer: ou seja, ao praticar um método comprometido, de antemão, com certas posições teóricas (interpretativamente filosóficas!). Para Ribeiro de Moura, tal método não se mostra então, de fato, em condições de invocar um posicionamento neutro ante a multiplicidade filosófica da tradição. Ora, isso ocorreria simplesmente porque toda história da filosofia já é sempre historicamente situada; noutras palavras, comprometida com alguma filosofia. Esse tipo de historiador - que busca pela estrutura rigorosa de cada uma das diferentes filosofias - afirma Ribeiro de Moura, está “situado em um momento preciso da história da filosofia. O fato bruto que ele pretende exprimir já é uma interpretação. E se assim for, a exigência da qual parte o historiador trará consigo uma imagem da filosofia” (RIBEIRO DE MOURA, 1988, p. 155). Maneira diferente de afirmar que toda história da filosofia é, em boa medida, historicamente condicionada1. E o que mais importa para o nosso tema: de uma maneira ou de outra, assegura-nos Ribeiro de Moura, toda história da filosofia seria sempre, em algum sentido, hegeliana. Por qual razão?

Obviamente, não se trata a essa altura de, desviarmos nosso trajeto, e passarmos a esmiuçar os meandros da filosofia de G.W.F. Hegel. Pois não se trata, de maneira alguma, no atual adágio argumentativo de Ribeiro de Moura, de equiparar toda elaboração de uma história da filosofia ao conhecimento absoluto que Hegel almeja e afirma ter encontrado em seus estudos. O ponto aqui é unicamente que não seria senão a partir de Hegel que filosofia e história da filosofia passariam a caminhar juntas, mesmo a se confundir. Na pena de Ribeiro de Moura, trata-se de enunciar apenas que todo aquele pensador que confira algum aspecto filosófico à história da filosofia assumirá, querendo ou não, uma “tópica hegeliana”. E que tópica é essa?

Quando Brehier fala de uma presença do passado no presente, quando Goldschmidt pede que o método da história da filosofia seja filosófico, quando Guéroult afirma que a história da filosofia é instrutiva para a filosofia, quando todos, em suma, dizem que a história da filosofia deve ser relevante para a filosofia, essa exigência não é filosoficamente neutra: é situada em um ambiente intelectual muito preciso - banhado se não pela doutrina, pela tópica hegeliana - que o historiador vai exigir que o historiador da filosofia vai exigir que a história da filosofia tenha o que dizer para a filosofia (RIBEIRO DE MOURA, 1988, p. 157).

Pois bem, que Hegel tenha podido afirmar que o conhecimento absoluto é um processo de acumulação de conhecimentos ao longo da história do saber humano - isto é, que cada era histórica comporta um momento necessário de passagem do humano em direção ao saber completo de si mesmo -, é algo que não se confunde com aquela “tópica hegeliana” há pouco aludida, mas que é apenas mais uma das possíveis consequências desta. Prestemos bastante atenção ao cerne do argumento de Ribeiro de Moura: tanto a história da filosofia, bem como a ideia hegeliana de um espírito absoluto que vai se formando com paragens fundamentais na história, são raciocínios que não poderiam advir de uma filosofia como, por exemplo, a de Descartes. Numa filosofia como a cartesiana, a primeira lição é justamente de, com todas as forças, procurar expulsar quaisquer elementos que minimamente “cheirem” a controvérsias e paradoxos (tão caros a um método como o dialético-hegeliano). Em Descartes, “a certeza racional e matemática deve eliminar a controvérsia e a diversidade das filosofias, já que a verdade é uma e apenas o erro múltiplo” (RIBEIRO DE MOURA, 1988, p. 158). Por essa razão, “a história da filosofia será rejeitada em nome da incerteza fundamental que revela a controvérsia sem fim entre as seitas” (RIBEIRO DE MOURA, 1988, p. 158).

Assim, para Ribeiro de Moura, por trás do aparente pluralismo filosófico da abordagem de Guéroult e Goldschimdt se esconde, em realidade, uma ideia única e monolítica do que seja o pensar filosófico: para essa dupla de intérpretes franceses, a concepção de que estaríamos em totais condições de encontrar o sistema de todo e cada autor, um almejado ponto passível da interpretação. Porém, atenção: tudo isso porquanto, para eles, a filosofia é entendida como sistema. Consequentemente, no que diz especificamente respeito à matéria do ensino-aprendizagem da filosofia, o problema do método estrutural, na perspectiva de Ribeiro de Moura, não estaria em, ao apagar das luzes, confessar-se como mais uma filosofia (a metodologia para a história da filosofia como, em verdade, uma filosofia da filosofia); antes o problema estaria em pressupor uma ideia científica da própria filosofia: asserção supostamente universal, blindada às transformações históricas do mundo, nesse sentido, neutra e a-histórica. Para tornar ainda mais claro o ponto. A insuperável dificuldade que Ribeiro de Moura enxerga na metodologia estrutural não é tanto que alguém como Nietzsche escreva em forma de aforismos - que são máximas, sentenças, sem pretender evidenciar um cristalino sistema dedutivo. O problema residiria essencialmente em que autores como Nietzsche, Deleuze ou Foucault (e é importante lembrar que Deleuze e Foucault não escrevem, como Nietzsche, em forma aforismática), abrem mão de um sistema filosófico entendido como a ordem do mundo (isto é, espelhando a ordem do mundo) - uma imagem do saber toda orientada ao conhecimento universal, perene e inabalável, regido pelo ideal de certeza filosófica, tanto quanto o método histórico-estruturalista pretende sê-lo. Sendo assim, é a representação imparcial dos textos da tradição, objetivada pelo método estrutural, parte menor da própria ideia de filosofia como representação imparcial do mundo; esta última, algo como um método dos métodos. Bebedor da fonte filosófica nietzschiana, dirá Ribeiro de Moura que se “combate no sistema” (...) “apenas o fato de ele sempre fixar o mundo” (...) “um filósofo como Nietzsche não combate a ideia de unidade metódica” (RIBEIRO DE MOURA, 2005, p. XIX-XXX, grifos meus).

Intenciona isso dizer, enfim, que se autores como Ribeiro de Moura e Nietzsche abrem mão, é verdade, de um método único (de regras ou normas a-históricas, pretensamente universais), não abrem mão, todavia, de normas ou regras de maneira geral - posicionamentos deveras distintos. E isso muda completamente de figura a forma com se passa a compreender e praticar a filosofia e o conhecimento de maneira geral. Com efeito, o que unicamente se espera de normas e regras, na visão desses dois últimos intérpretes, é a sua atualização no próprio curso da contingência histórica e mundana: tomando sempre o trajeto da particularidade à universalidade, nunca de uma suposta universalidade abstrata rumo à particularidade. Penso poder traduzir da seguinte maneira: para Nietzsche e Ribeiro de Moura, o conhecimento produzido pelo humano certamente se encaminha na forma de leis e regras. Entretanto, leis e regras notadamente mutáveis, porquanto se originam num plano sem leis prévias: o da história. Dito de maneira bem sumária, as leis e regras seriam produtos da história. E a chamada tarefa da interpretação (da pesquisa, da investigação, da reflexão) como aquela que, sem dúvida, procura defender uma tese (convencer os pares acerca de uma solução melhor para dada questão, vencer as outras posições); porém que, por ser demasiado humana (leia-se: histórica), requer estar sempre aberta à possibilidade de sua refutação, ciente de sua precariedade e transitoriedade. A interpretação - numa última palavra - como um verdadeiro risco que se toma ao concluirmos algo, seja sobre um texto da tradição, seja sobre o mundo.

Conclusão

De minha parte, nesse movimentado debate entre Guéroult, Goldschimdt, Porchat e Ribeiro de Moura, declaro alinhar-me com as posições dos dois últimos autores. E especialmente com a posição de Ribeiro de Moura. Dessa maneira, à luz das suas contribuições, declaro chegar ainda num remate algo curioso, qual seja: à conclusão de que (i) os defensores da história da filosofia enquanto o melhor método de ensino-aprendizagem da filosofia (ou seja, os adeptos de um ponto de vista filosófico neutro) serão justamente, em última medida, os verdadeiros dogmáticos da contenda, ao passo que (ii) os defensores de que toda história da filosofia caminha de par com uma específica filosofia (ou seja, uma posição filosófica parcial) serão justamente aqueles a adotarem uma perspectiva crítica e interrogativa frente a toda filosofia: porquanto aberta à autotransformação.

No que concerne à querela entre a filosofia e a sua história, encontramo-nos assim, com essa segunda abordagem filosófica - e aqui novamente sou eu falando - numa posição muito próxima àquela que o filósofo alemão Hans-Georg Gadamer gostava de enunciar como um chamamento à consciência histórica. Qual seria ela? Por um lado, é verdade, ele diz, é em certa medida inevitável interpretarmos tudo que nos vem ao encontro mediante preconcepções filosóficas de nossa tradição. Por outro lado, pondera Gadamer (e é aqui que nos tornamos exatamente historicamente conscientes), é preciso nos mantermos concernidos em deixar estes mesmos enquadramentos antecipatórios abertos às fissuras que a leitura dos textos de outra tradição possam vir, por ventura, a neles causar. Esclarece Gadamer que esse chamamento a uma consciência histórica é algo como um presentismo controlado: uma tomada de consciência acerca da incontornável fusão de horizontes teórico-linguísticos entre o hoje e o ontem. No limite e simetricamente, uma fusão de horizontes que não diz respeito apenas ao questionamento do presente em relação ao passado - em sentido então diacrônico - senão também uma fusão de horizontes em relação aos diferentes posicionamentos teóricos num mesmo plano histórico, isto é, nos vários presentes - em sentido então sincrônico. Por tudo isso, a aspiração de Gadamer seria mesmo a de caracterizar essa fusão de horizontes (teóricos e históricos) como uma crítica de nossos preconceitos: a tarefa hermenêutica como um controle de nossas antecipações, das quais nenhum intérprete se encontraria imune. Nunca a eliminação de nossas antecipações presentistas, apenas a remoção de, como ele afirma, seu “caráter extremado” (GADAMER, 2003, p. 64). De acordo com Gadamer, tal disposição hermenêutica desencadearia - e eu reforço concordar com ele nesse ponto - uma troca entre o que se acreditava antes e o que se acredita agora. Uma relação crítica do presente ao passado, não menos do que do passado ao presente; um inexorável comércio ou troca entre as distintas tradições históricas e filosóficas. Em suma, um “desafio crítico” (GADAMER, 2003, p. 14) que toda tradição (a pertença mesma a uma tradição) sempre nos lança - pois, afinal, esse é todo o ponto, fazer parte de uma tradição é, em última análise, estar inserido numa história repleta de múltiplas tradições, é compartilhar um mundo.

Referências

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GUEROULT, M. O problema da legitimidade da história da filosofia. Revista de História, v. 37, n. 75, 1968. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.1968.128471Links ]

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RIBEIRO DE MOURA, C.A. Nietzsche: civilização e cultura. São Paulo: Martins Fontes, 2005. [ Links ]

TEIXEIRA, L. Algumas considerações sobre a filosofia e o estudo da história da filosofia no Brasil. Cadernos Espinosanos, v. 10, 2003. [ Links ]

1Conheceremos o grau dessa medida mais à frente.

Recebido: 09 de Agosto de 2018; Aceito: 12 de Dezembro de 2018

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