SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.32 número66Eric Weil e o papel da educação humanística no contexto da cultura técnico-científicaA filosofia mestiça de Michel Serres: relações entre corpo, conhecimento e educação índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.32 no.66 Uberlândia set./dez 2018  Epub 22-Set-2020

https://doi.org/10.14393/revedfil.issn.0102-6801.v32n66a2018-04 

Artigos

A escrita como atividade estética de professoras em formação continuada

The writing as an aesthetic activity of teachers in continuing education

L’écriture comme activité esthétique des enseignants en formation continue

Paloma Dias Silveira* 

Margarete Axt** 

*Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora da Universidade FEEVALE. E-mail: paloma.dias@gmail.com

**Doutora em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Professora titular aposentada da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: maaxt03@gmail.com


Resumo

O presente artigo discute, com base na teoria estética de Mikhail Bakhtin, a produção escrita de professoras da educação infantil, em um contexto de formação continuada em serviço. Nosso objetivo é discutir como a perspectiva estética da linguagem auxilia a pensar o papel da escrita criativa nos percursos de uma formação docente, do ponto de vista da autoria e da relação com a alteridade.

Palavras-chave: Formação de professores; Autoria; Estética

Abstract

Based on the aesthetic theory of Mikhail Bakhtin, the present article discusses the written production from teachers of early childhood education, in the context of an on going formation project. Our goal is to discuss how the aesthetic assists in thinking about writing on the path of a teacher formation, according with authorship and the relation with otherness.

Keywords: Teacher education; Authorship; Aesthetic

Résumé

Cet article traite, basé sur la théorie esthétique de Mikhail Bakhtin, la production écrite des enseignants de l'éducation infantile dans un contexte de formation continue en service. Notre objectif est discuter comment la perspective esthétique du langage aide à penser le rôle des cours de création littéraire dans une formation des enseignants du point de vue de l'auteur et la relation avec l'altérité.

Mots-clés: Formation des enseignants; Auteur; Esthétique

Introdução

O presente artigo discute, com base na teoria estética de Mikhail Bakhtin, a produção escrita de uma professora da educação infantil, no contexto de um projeto de formação continuada de professores em serviço. O projeto investiu na experimentação de processos de escrita criativa e poética, como modo de dar lugar à atividade estética nos percursos de formação docente.

Conforme as discussões de Schlindwein (2006), temas fundamentais como o fazer pedagógico, a reflexividade e a profissionalização têm sido desenvolvidas nas últimas décadas na articulação com os desafios da formação docente. No entanto, como analisa, a autora ainda tem uma produção emergente no que diz respeito à contribuição dos estudos da estética à formação docente inicial e continuada, nos quais a atividade estética tenha uma abordagem enquanto forma legítima de produção de conhecimento. Neste sentido, e atendendo a esta problemática, nosso texto enfatizará, em primeiro lugar, a discussão conceitual da estética e, posteriormente, suas reverberações no contexto da formação.

Para tanto, apresentamos aqui uma situação de escrita experimentada pelas professoras da educação infantil participantes do grupo de estudos e formação continuada no âmbito do projeto CIVITAS, desenvolvido pelo grupo de pesquisa LELIC (da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul), durante o ano de 2011: a escrita de prosas poéticas inspiradas na obra de Manoel de Barros. Ao lado da problematização estética, no âmbito da filosofia da linguagem, tendo como referencial teórico o pensamento do filósofo russo Mikhail Bakhtin, objetivamos pensar esta escrita no percurso de uma formação docente, segundo o ponto de vista da autoria e da relação com a alteridade.

Quanto ao tipo de pesquisa e à metodologia, as autoras do presente artigo participaram do processo formativo em questão na posição de formadoras, o que caracteriza esta pesquisa como uma pesquisa in(ter)venção (AXT, 2008), em que as autoras-pesquisadoras são também participantes implicadas no contexto de estudo. O pesquisador, nesta situação de pesquisador-formador, produz in(ter)venções no campo através do trabalho de formação com os professores, criando-se coletivamente movimentos singulares, que se delineiam pelas especificidades do contexto e as subjetividades que o constituem. A tarefa do pesquisador é estar atento a estes movimentos dos quais ele mesmo faz parte, mapeando-os e produzindo suas interpretações, sensível às enunciações do coletivo composto por pesquisador e parceiros da pesquisa. Assim:

Num plano como o em que queremos operar em pesquisa-formação, a partir da experimentação, a própria analítica se dá também em processo, nos fluxos e movimentos que atravessam o próprio plano da experimentação, configurando um operar cartográfico, um movimento de ‘leitura flutuante’ em meio aos enunciados registrados, mapeando os pontos de intensidade bifurcativa e suas derivações (AXT, 2008, p. 102).

A in(ter)venção do pesquisador procura instaurar condições de experimentação. A experimentação está profundamente relacionada à escrita. A escrita é entendida como um dispositivo que dá corpo à relação dialógica-interacional instaurada no campo, que dá corpo às vozes em relação e que permite problematizá-las no plano do pensamento e da produção de sentidos. Toda a escrita no campo é uma experimentação que dá corpo à relação, seja a escrita do pesquisador, no seu diário de campo, seja a escrita dos parceiros, todo texto pode ser dispositivo para o pensamento em torno dos trajetos do coletivo em que está implicado o pesquisador e onde constrói sua problemática.

A leitura analítica e interpretativa do material empírico realiza-se tendo como base os conceitos bakhtinianos, especialmente relacionados à criação literária e à relação autor-personagem. Temos como base a noção de que: “A compreensão não é lugar de transparência e saturação do sentido, mas lugar de mediação. Compreende-se sempre sob a forma do processo da palavra, reconstruindo-traduzindo o texto do outro” (AMORIM, 2004). Portanto, o trabalho de interpretação do texto implica dois movimentos, com base em Amorim (2004): (i) a reconstituição do contexto enunciativo e dialógico em que o texto foi produzido e (ii) a interpretação dos sentidos do texto.

Espera-se, a partir deste estudo, oferecer subsídios para a discussão estética no campo da formação docente, a partir de uma experimentação estético-filosófica no campo da educação.

1. Relato da experimentação: a escrita poética

O referido grupo de estudos e formação era composto por quatro professoras do nível 6 da educação infantil (que atende crianças entre 5 e 6 anos), uma pesquisadora-formadora que atuava diretamente com o grupo1, e uma pesquisadora-formadora2, responsável pelo projeto, que orientava o processo de formação do ponto de vista teórico e metodológico, ainda que não atuando diretamente com o grupo de professoras em questão. Os encontros do grupo eram quinzenais, com duração de duas horas, desde o início e ao longo de todo o ano letivo, realizados na própria escola de atuação das professoras, tendo como objetivo a vivência e o estudo de processos criativos e autorais pelas professoras e pelas crianças3. Logo no primeiro encontro, no mês de março, foi proposta ao grupo a experimentação de uma escrita poética inspirada no trabalho do poeta brasileiro Manoel de Barros e suas peculiares imagens da infância. Iniciou-se com a leitura das prosas poéticas de Manoel de Barros, publicadas em “Memórias inventadas: a infância” (2010), acompanhada das seguintes indagações: Como Barros vai compondo imagens da infância? Como ele opera com a imaginação na sua escrita de vida?

Primeiramente, as professoras leram em conjunto as prosas poéticas e conversaram sobre suas impressões. Em seguida foi sugerida, pela formadora, a criação de “imagens da infância”. A proposta era de que cada professora escrevesse uma prosa poética criando uma imagem da sua infância, tal como fez Barros. Os recursos para construir esta imagem eram livres, a única orientação era ter o poeta como inspiração.

No encontro seguinte, após duas semanas, as professoras tinham em mãos suas prosas poéticas. Era hora de revelarem suas escritas, compartilhando-as através de um sarau poético. Havia a expressão de uma curiosidade, pois não se sabia exatamente como cada uma tinha compreendido a proposta.

Neste artigo apresentamos a prosa poética escrita pela professora Simoní4. Esta prosa poética foi lida em voz alta para o grupo:

Sabe aquele dia em que o céu fica preto que nem a graxa da engrenagem da carroça velha do meu avô, onde nele aparecem luzes que parecem cordas dançantes na imensidão do céu, e o vento do lado de fora da casa fica cantando e anunciando que as nuvens vão começar a chorar, talvez, eu não sei, podem ser as lágrimas de Deus derramadas sobre nós. E aqui dentro está tudo escuro, só há uma flamejante claridade que sai de um pau de cera que chora pelas bordas, nossa que alegria a minha e da maninha, é o momento em que nos aproximávamos do sofá velho e surrado, onde a mamãe estava sentada, pronta para começar a narrar aquelas histórias que todas as crianças adoram ouvir, a da Galinha Ruiva, a Mãe Cabra e os sete Cabritinhos e os Três porquinhos. Eram estes dias que eu mais adorava, rezava pro papai do céu que chovesse e faltasse a luz lá em casa, para eu e minha irmã podermos ouvir novamente estas histórias, pois, toda a vez que faltava a luz nós podíamos escutar as mesmas lengalengas de sempre e isto se repetiu por muitas e muitas vezes. Tenho saudade destes momentos maravilhosos, mas tenho certeza que eles irão renascer quando tiver os meus filhos…

Após a leitura da prosa poética de Simoní, muitas lembranças foram evocadas pelas professoras, especialmente aquelas das noites chuvosas quando não tínhamos luz e brincávamos ao redor de uma vela, fazendo aparecer imagens esquisitas nas paredes, com a sombra de nossas mãos que se tornavam patinhos nadando, pássaros voando, jacarés assustadores…

Junto ao compartilhamento das histórias familiares e íntimas que este texto possibilitou, a escrita de memórias que se revertem em imagens da infância deu lugar à experimentação de um processo criativo. Um processo que convergiu para a problematização da atividade estética das professoras, pela tomada de uma posição autoral que se faz significativa para a formação continuada na medida em que a autoria pode ser considerada um dos pilares mais fundamentais da atividade docente.

Na prosa poética de Simoní, tal como faz Manoel de Barros, a professora se torna personagem de si mesma, escreve sobre a própria vida, sobre a própria infância, o que nos faz perguntar: A escrita da prosa poética pode ser considerada uma atividade estética, com tomada de uma posição de autoria que investe nos processos criativos das professoras, reverberando em suas práticas pedagógicas com crianças pequenas? É com a teoria estética de Mikhail Bakhtin que discutiremos esta questão, a partir da reflexão sobre a atividade autoral de uma professora da educação infantil em situação de formação continuada. O ponto de partida é, então, explorar se este evento se caracteriza como uma atividade estética, considerando o aporte conceitual que fundamenta a reflexão proposta. Na seção 2, apresentamos este aporte e seus fundamentos; e na seção 3, voltamos à reflexão sobre a atividade autoral da professora, à luz dos conceitos bakhtinianos.

2. Bakhtin e a estética

Para abordar o conceito de estética na teoria do filósofo russo Mikhail Bakhtin, faremos um breve desvio no percurso deste texto, para falar do encontro com uma jovem atriz, que consideramos estar marcado pelo sentido estético na vida e na arte. Na cena deste encontro, a conversa é sobre o projeto de uma peça de teatro na qual ela irá atuar. O enredo da peça é pautado na vida de um importante personagem real da história porto-alegrense do século XIX. Esta jovem relata sua atividade de pesquisa, recolhendo informações dispersas sobre a vida deste personagem. Está trabalhando em arquivos de jornais da época para entender o contexto social-político-econômico-cultural do personagem que viveu há mais de cem anos. Ao mesmo tempo, estuda a obra “História da Loucura”, de Michel Foucault, pois este personagem foi considerado um louco pela sociedade na qual viveu, devido a suas ideias inovadoras. Outro trabalho é uma visita à cidade onde o personagem nasceu, para conhecer a casa onde ele cresceu. Além disso, a jovem lê peças de teatro escritas pelo próprio personagem, que foi um dramaturgo. Ele utilizava uma linguagem artística muito própria na composição de suas peças, a qual a jovem atriz também está analisando. Pesquisa histórica, literária, filosófica, sociológica… tudo isto e talvez algo mais faz parte de seu trabalho prévio à atuação no teatro.

É notável a entrega da atriz ao trabalho de construção do mundo do personagem, unindo fragmentos dispersos para construir o todo de uma existência. No entendimento da atriz, este trabalho é essencial para prepará-la ao ato de vivência do personagem, para interpretar a sua história, transmitindo um sentido para aquela existência. Este processo de pesquisa é um processo geralmente experimentado pelos atores. É preciso perceber o personagem como uma totalidade plena de sentidos. Na criação estética de uma peça de teatro, tudo aquilo que pode ser lido como material, como, por exemplo, o figurino, a maquiagem, a iluminação, o cenário e o próprio texto escrito, não tem existência independente do conjunto de valores imanentes à obra, que inclui o personagem como uma totalidade dotada de sentido. Na interpretação de um personagem, é possível construir esta totalidade e compreendê-la no conjunto da obra e dos valores sobre os quais ela se assenta. A construção desta totalidade é o esforço da jovem atriz.

Bakhtin, na obra Estética da Criação Verbal (2003), questiona quando e em que medida o ator cria esteticamente o personagem que interpreta. A este problema, ele responde: “O ator cria esteticamente quando, de fora, cria e enforma a imagem da personagem em quem depois vai encarnar-se, quando cria essa personagem como um todo, e ademais não de modo isolado, mas como elemento da mesma totalidade da obra-drama…” (BAKHTIN, 2003, p. 70). Neste processo de pesquisa que acompanha a atuação, o ator busca elementos transgredientes à consciência do personagem para enformá-lo esteticamente, construindo um ambiente à sua volta, que o engloba e auxilia na tarefa de dotá-lo de sentido.

A atriz mencionada está buscando estes elementos transgredientes, que não tem relação direta com a vida vivida pelo personagem do ponto de vista do próprio personagem, mas auxilia na tarefa de construí-lo esteticamente, no esforço de compreender seus conflitos, seus valores e conceitos, assim como os conceitos que o definiram, os olhares que o julgaram… Em especial, neste último caso, a atriz, ao agregar, ao vivido do personagem real, elementos advindos de um novo contexto, contemporâneo, trabalha com uma expectativa (autoral) de recriar determinadas tensões, segundo novas relações de contexto, e assim recolocar as possibilidades de diálogo com o tempo presente.

Já quando o ator está interpretando, em cena, ele vive o mundo do personagem. Os elementos transgredientes que foram produtivos para construí-lo esteticamente são incorporados como parte da arquitetônica do personagem, determinando sua posição axiológica, seu horizonte existencial e, assim, produzindo, para o ator, uma posição estético-enunciativa, de onde pode acessar o personagem e abrir lugar à atividade ética de compenetração em seu mundo. O teatro é utilizado por Bakhtin, nesta passagem, para discutir a relação autor-personagem, que ele considera como um ponto basilar da criação estética, a qual tem, na literatura, o foco central do seu trabalho reflexivo.

É interessante observar que Bakhtin indaga a respeito do que se constitui o texto literário que o faz se tornar uma obra artística. Evidencia que um texto literário se constitui de palavras, orações, capítulos, mas estes elementos nem de longe determinam o texto literário como uma obra. Com esta resposta, enfatiza o lugar que o material ocupa na criação: um lugar secundário. A palavra não é trabalhada pelo artista em sua determinidade linguística (morfológica, sintática, léxica…), portanto, embora integre o que Bakhtin nomeia como objeto estético, não o constitui em sua centralidade. A palavra, em si mesma, não determina a qualidade literária da obra artística, segundo o autor, o que o faz entrar em relação de confronto com a perspectiva formalista russa de análise da literatura5.

A palavra, que é da ordem da materialidade, precisa subordinar-se ao fim artístico do texto literário, assim como a maquiagem, o figurino, o cenário, a iluminação são elementos materiais subordinados ao fim artístico da peça teatral, contribuindo para o conjunto arquitetônico dela: a iluminação e a sonorização não existem sem uma relação com o todo da obra, na medida em que buscam produzir determinados efeitos de sentido em pontos específicos do enredo, ou destacar determinado personagem, ou ainda determinada atuação/expressão de um personagem; assim como a maquiagem, que também produz efeitos de sentido, contribuindo para construção de um personagem conforme a orientação emocional que deseja transmitir.

Para Bakhtin, o objeto estético se realiza por meio9 de “um processo de transformação sistemática de um conjunto verbal, compreendido linguística e composicionalmente, no todo arquitetônico de um evento esteticamente acabado” (BAKHTIN, p. 51). O objeto estético supera, assim, a técnica e o material, sendo orientado para valores, para um contexto axiológico que configura uma arquitetônica singular.

A relação do artista com o conteúdo da obra está relacionada à forma arquitetônica. O conteúdo compreende o conjunto de relações ético-axiológicas que transcendem o que é da ordem do material. É aquilo que se projeta para além da obra enquanto objeto material, para dar lugar à obra como objeto estético, objeto enraizado na história e na cultura, permeado por sentidos e valores.

A atividade do autor incide, na visão bakhtiniana, sem desconsiderar o material, principalmente sobre o conjunto das relações autor-personagem, onde se manifestam diferentes valores em jogo, assim como se expressam elementos de espaço, tempo e sentido que orientam a visão geral da obra. A relação axiológica do autor com a personagem tem significado estético fundamental, e não apenas a relação do autor com os elementos materiais.

3. Estilo e escrita poética na formação docente

Voltando ao início da experimentação de escrita realizada pelas professoras, elas identificaram, a partir da leitura coletiva das prosas poéticas de Manoel de Barros, um conjunto de valores constituinte, uma orientação axiológica que permeia a relação autor-personagem como centro da forma arquitetônica elaborada pelo poeta.

O grupo identificou alguns elementos do estilo do autor, em que são ressaltados: o amor à natureza, às plantas, ao céu, à terra… o encantamento, especialmente pelos animais pequenos, como lesmas, formigas, sapos, pássaros… o encantamento com objetos descartados, como latas, parafusos, prendedores… a arte de dar novos comportamentos ou finalidades às coisas, de olhar o mundo pela perspectiva dos animais e dos objetos (o poeta inventa fivelas de prender silêncios, alicate cremoso, parafuso de veludo, lata defunta; o poeta fala de um homem que estava sentado sobre uma lata na beira de uma garça, enquanto um rio passava ao lado)… a arte de dar novos sentidos às palavras e ao texto (o poeta fala de um rio que está esticado de rãs até os joelhos)… Estes elementos compõem o estilo de um autor que cria imagens da infância através da escrita, uma escrita imaginativa, descontraída, que subverte o significado fixo das palavras para trabalhar com a produção de sentidos.

Na perspectiva de Bakhtin (2003), o estilo pode ser definido como o conjunto de procedimentos de formação e de acabamento do homem e do seu mundo. Um estilo se funda sob a base de uma visão de mundo e de homem, a partir da qual se produz um acabamento estético. Quando Manoel de Barros brinca com as palavras, criando novos sentidos, ele está operando diretamente com uma visão de mundo que permite perceber em sua obra um jogo de valores, uma diretriz axiológica em questão: o valor à vida, à natureza, ao ser humano, à infância, ao inusitado, à memória, à imaginação6.

Simoní, ao escrever sua prosa poética, cria uma imagem que parece dialogar com as imagens de Manoel de Barros. Na prosa poética Latas (abaixo), o tratamento que Manoel de Barros dá às latas nos remete ao tratamento que Simoní dá as velas, pois em suas palavras a vela se torna poesia, como a lata que deixa de ser chutada na rua para ganhar alma e se tornar casa de flores. Seu texto não informa a vela como objeto útil ao iluminar as noites escuras, mas se transforma em um “pau de cera que chora pelas bordas”. Ela dá vida ao objeto, às velas, fazendo-as perder “todos os ranços (e artifícios) da indústria que as produziu”, como visto na prosa de Barros, a seguir:

Latas

Estas latas tem que perder, por primeiro, todos os ranços (e artifícios) da indústria que as produziu. Segundamente, elas têm que adoecer na terra. Adoecer de ferrugem e casca. Finalmente, só depois de trinta e quatro anos elas merecerão de ser chão. Esse desmanche em natureza é doloroso e necessário se elas quiserem fazer parte da sociedade dos vermes. Depois desse desmanche em natureza, as latas podem até namorar com as borboletas. Isso é muito comum. Diferente de nós as latas com o tempo rejuvenescem, se jogadas na terra. Chegam quase até de serem pousadas de caracóis. Sabem muito bem, estas latas, que precisam da intimidade com o lodo obsceno das moscas. Ainda elas precisam de pensar em ter raízes. Para que possam obter estamos e pistilos. A fim de que um dia elas possam se oferecer às abelhas. Elas precisam de ser um ensaio de árvore a fim de comungar a natureza. O destino das latas pode também ser pedra. Elas hão de ser cobertas de limo e musgo. As latas precisam ganhar o prêmio de dar flores. Elas têm de participar dos passarinhos. Eu sempre desejei que as minhas latas tivessem aptidão para passarinhos. Como os rios têm, como as árvores têm. Elas ficam muito orgulhosas quando passam do estágio de chutadas na rua para o estágio de poesia. Acho esse orgulho das latas muito justificável e até louvável (MANOEL DE BARROS, 2010, p. 61).

Nas palavras de Barros (2010, p. 43), buscar a beleza das palavras é uma solenidade de amor. Ele comenta gostar mais das palavras pelo que elas entoam do que pelo que elas informam. E aquilo que entoam é justamente o sentido que circula por fora dos significados cristalizados, sentidos que viabilizam a atividade imaginativa.

O trabalho coletivo de leitura e reflexão compartilhada, sobre a poesia de Barros, introduz o exercício de escrita experimentado pelas professoras, colocando em evidência elementos do estilo do autor, criando um contexto em que o texto poético aberto aos diferentes sentidos é lido como objeto de contemplação estética. Simoní, neste ambiente de sentidos compartilhados, e no diálogo com a obra poética de Barros, retira o objeto “vela” do seu lugar de utilidade e o transforma em objeto poético, estetizando-o. Assim também, neste mesmo processo de extração do objeto de seu contexto habitual, o céu preto se impõe em novas relações de sentido com a “graxa da engrenagem da carroça do avô”, os raios se reinventam como luzes que se comportam como “cordas dançantes”, e a chuva se materializa como “lágrimas de Deus derramadas sobre nós”.

Neste movimento, a professora escritora assume uma posição singular de autoria, de criação de um certo modo de ver o mundo e a infância, realizando um acabamento estético daquilo que é por natureza inacabado: as nossas memórias; ao mesmo tempo, atualiza-as no contexto de vida presente, no diálogo com o poeta Manoel de Barros.

O acabamento estético que produz as delicadas e intrigantes imagens da infância são, então, obtidas mediante duas operações complexas de natureza estetizante, em certo momento sugeridas por Bakhtin (1998) como centrais no processo de construção do objeto estético: a de seleção e de extração do objeto de seu contexto habitual de ocorrência e/ou de utilidade, inserindo-o em novo contexto; e a de estabelecimento de novas relações de sentido neste novo contexto, que implicam as relações atuais do autor com seu personagem.

A compreensão, pelas pesquisadoras-formadoras, da experimentação de escrita enquanto possibilidade de uma atividade estética, permeada por sentidos e valores, foi se dando ao longo do percurso de formação com as professoras, enquanto elas vivenciavam a visibilidade de posições de autoria em seus textos. Uma das peculiaridades em relação à prosa poética sobre as imagens da infância que nos instiga seguir problematizando, na perspectiva de um aprofundamento estético, é a transformação de si mesmo em personagem, percebida na escrita da professora.

4. Relação autor-personagem na escrita da prosa poética

Para Bakhtin (1998), embora o autor ocupe uma posição fora da obra, distante em relação às personagens, ele também é participante do objeto estético. A relação de distinção autor-personagem fundamenta-se nas categorias do eu e do outro, marcadas pela diferença de posições do eu em relação ao outro, ou do outro em relação ao eu. O eu e o outro não são idênticos, não ocupam a mesma posição, seja em relação ao tempo e ao espaço, ou em relação aos valores axiológicos em jogo, o que os torna essencialmente diferentes e distantes.

O autor (um eu) é portador da visão exterior do todo artístico, da visão que engloba o personagem (um outro) e seu horizonte. O personagem tem diante de si apenas o seu próprio horizonte, não consegue perceber a totalidade do espaço que o rodeia, apenas o autor é portador desta visão englobante, transgrediente à personagem e ao seu mundo. O autor ocupa a posição de um eu criador, que vê o outro, personagem, desde um lugar privilegiado: o autor ocupa uma posição que Bakhtin chamou “exotópica”. É o autor que dá acabamento ao personagem como um todo semântico. Porém, como afirma Tezza (2007, p. 240), “se na vida a exotopia é uma realidade pura e simples - não coincidimos, física ou mentalmente, com ninguém -, na atividade estética ela deve ser uma conquista”. Por isso Bakhtin fala de uma tensão em produzir este distanciamento que conduz ao acabamento, como se tratasse de uma luta do autor contra ele mesmo, seja para não tornar o personagem uma simples marionete em suas mãos (quando o excesso de distância afrouxa a tensão), seja para não entrar em fusão com o personagem (quando há uma perda da distância). Manter a tensão presente na atividade estética requer operar, ao mesmo tempo, com as relações de força entre autor e personagem(ns).

Conforme a perspectiva bakhtiniana, retomando o exemplo do teatro, o ator não se constitui automaticamente como autor na relação com o personagem. Para tanto, o ator realiza um trabalho a partir de sua posição exotópica em relação ao personagem, para criar o seu ambiente e construi-lo esteticamente. Ele constitui, neste processo, uma posição de autoria e se torna ator-autor-artista.

Bakhtin define que o autor, esta posição fundamental na criação literária, “é o agente da unidade tensamente ativa do todo acabado, do todo da personagem e do todo da obra, e este é transgrediente a cada elemento particular desta” (BAKHTIN, 2003. p 11). A consciência do personagem é abrangida por todos os lados pela consciência ativa e concludente do autor. O autor está presente neste todo da obra, nos elementos que concluem o personagem, transgredientes à sua consciência, mas que definem sua diretriz axiológica, conferindo-lhe uma unidade. Daí decorre que o elemento basilar da estética da criação verbal é a produtiva relação autor-personagem e a sua forma arquitetônica, a rede de relações axiológicas que produz o objeto estético.

A prosa poética que tem como tema a própria vida, supõe que o seu autor possa recriá-la (a vida) esteticamente, projetando-a para um novo plano de existência, um plano literário. Mas Bakhtin (2003) analisa o quanto é complexo nos tornarmos personagens de nós mesmos. Como vimos até aqui, o acabamento estético do personagem produzindo uma totalidade pressupõe uma posição exotópica em relação a este, para enformá-lo e fixar uma imagem.

Para construir-se como personagem, o autor deve tornar-se outro em relação a si mesmo. Na relação estetizante com o outro, as fronteiras precisam estar bem definidas, de modo que o eu possa enxergá-lo a partir de uma posição exterior, que tenha acesso a elementos transgredientes ao mundo do outro. Quando nos tornamos personagens de nós mesmos, a complexidade está justamente em constituir-se como outro. É preciso sustentar uma posição firme fora de si, fora da própria vida em movimento, vê-la como uma vida outra, garantindo que não aconteça fusão eu-outro, pois no caso da fusão não há enriquecimento do acontecimento e a atividade estética perde seu princípio de inserção de elementos transgredientes ao mundo do personagem, produzindo novas vizinhanças, que poderiam enriquecê-lo. Para Bakhtin, “a divindade do artista está em sua comunhão em uma distância superior. Encontrar o enfoque essencial à vida de fora dela - eis o objetivo do artista” (BAKHTIN, 2003, p. 176).

Se a vida vivida não possui acabamento do ponto de vista daquele que vive, se ela é por natureza inacabada em seu movimento de ser, a atividade estética, por outro lado, demanda um esforço de acabamento, uma fixação de algo do devir, que se dá pela constituição de si como outro.

No contexto da prosa poética criada pela professora Simoní, observamos que houve um esforço de constituição de si como outro, como personagem de si mesmo. Este esforço concretiza-se no texto onde percebemos elementos transgredientes que concluem o personagem de fora, que inserem elementos que o enformam. Na situação de escrita da prosa poética, a conquista de uma posição fora da vida para enformá-la parece estar em estreita relação com a leitura dos textos de Manoel de Barros, que operam, nesta situação de escrita pela professora, como intercessores no movimento de dar acabamento provisório àquilo que é por natureza inacabado.

Na prosa poética de Simoní, que, por meio da operação de seleção e extração, realiza um recorte no plano da vida para recriá-la esteticamente no plano da literatura, produzindo um contexto em que novas vizinhanças são possíveis, observamos um conjunto de elementos transgredientes que enriquecem a vida, ressignificando o céu preto, os trovões e o vento que anunciam a chuva, ressignificando as noites à beira de uma vela, com sua família, ouvindo as histórias contadas pela mãe. Este conjunto de elementos não é simplesmente narrado pela professora como um relato descritivo de algo que aconteceu, mas ela utiliza sua visão transgrediente para enriquecê-lo e constituí-lo como uma cena em que os personagens (uma menina, sua irmã e sua mãe) interagem orientadas por valores relacionados ao espaço da casa, onde ficava um sofá velho e surrado, em que o tempo da contação de uma história era o tempo adorado pela criança. Naquele espaço-tempo, a criança compartilhava momentos de imaginação com sua família, tempo interrompido com o retorno da luz, que significava o fim do mundo da fantasia em torno de uma flamejante claridade que iluminava a cena de uma mãe e duas filhas em um encontro fraterno.

Simoní consegue sustentar uma posição fora do acontecimento ético da vida vivida, constituindo um olhar que a legitima como narrador e personagem de um acontecimento estético. Trata-se de uma vida estetizada, de uma infância estetizada.

A prosa poética da professora Simoní dá visibilidade à tensão acabamento-inacabamento que está presente nas escritas de vida em que o autor é também personagem, tensão que está presente na prosa poética. Simoní abrange a si como personagem em sua narração. Transforma-se em um narrador que se torna também personagem. Por outro lado, simultaneamente, é interessante como Simoní deixa uma porta aberta ao devir, ao inacabamento da sua existência. Sua prosa poética expressa esta tensão.

Esta assertiva convoca a uma reflexão de Bakhtin (2003) sobre a memória. Amorim (2009, p. 9) comenta um entendimento de memória que Bakhtin conceitua como memória exotópica ou estética:

A memória exotópica é a memória que se produz depois da compreensão, isto é, na segunda etapa do processo de apreensão do outro. Podemos dizer que a memória exotópica se produz quando não compreendo mais, quando não me identifico mais com o ponto de vista do outro e introduzo meu ponto de vista, aquilo que vejo do outro que vê.

A memória estética é uma memória que atua no trabalho do acabamento. Todo o trabalho de criação estética envolve uma entrada (ética) no mundo do outro, de compenetração no mundo do outro para ver o mundo como este outro o vê. Após alcançar esta visão de dentro do mundo do personagem, o autor retorna ao seu lugar fora, para dar acabamento ao material da compenetração, enriquecendo-o a partir de seu excedente de visão. Este acabamento é provisório porque pode sempre ser diferente, não é definitivo, depende da posição singular, no tempo e no espaço, de quem o realiza.

Quanto o autor retorna ao seu lugar exotópico, o trabalho é de fixação de algo do devir, da vida em processo de ser que foi captada neste encontro com o mundo do personagem. O autor atualiza este encontro na forma de imagens preenchidas com elementos transgredientes que encontra em sua posição singular.

Bakhtin também designa esta memória estética e exotópica do autor como memória do passado (memória que produz acabamento), para distingui-la daquilo que nomeia como memória do futuro (memória aberta ao devir), constituinte da memória do personagem. Ao falar em memória do futuro aparentemente vemos uma contradição. A memória geralmente corresponde a algo do passado, é orientada para o que passou, e se o futuro é o que está por vir, não haveria lógica em falar de uma memória do futuro. Mas esta aparente contradição se explica na medida em que entendemos que a memória do personagem aponta, ao mesmo tempo, para o passado e para o futuro. O personagem vive o acontecimento da vida em processo de ser, ele não vê a sua própria totalidade como o autor a vê. Ele está aberto ao futuro, inacabado para si. Conforme Amorim (2009, p. 10): “A memória do herói é futura, porque está intrinsecamente comprometida com o por-vir”.

Na prosa poética de Simoní está em evidência esta memória do personagem, no último trecho:

Eram estes dias que eu mais adorava, rezava pro papai do céu que chovesse e faltasse a luz lá em casa, para eu e minha irmã podermos ouvir novamente estas histórias, pois, toda a vez que faltava a luz nós podíamos escutar as mesmas lengalengas de sempre e isto se repetiu por muitas e muitas vezes. Tenho saudade destes momentos maravilhosos, mas tenho certeza que eles irão renascer quando tiver os meus filhos…

O texto de Simoní aponta para uma continuidade da vida, para o futuro. A memória do personagem é memória do passado e memória do futuro, simultaneamente. Para Simoní, enquanto autora, é memória do passado, memória que enforma a personagem. Para Simoní, enquanto personagem, é memória também do futuro, porque aponta para o devir. Conforme Amorim:

Há tempo na visão do autor e há espaço do ponto de vista do herói, posto que ele se situa face a um horizonte. Mas se compararmos o espaço do herói com o espaço que lhe confere o autor, podemos dizer que o primeiro, o horizonte, é um espaço em movimento, um espaço dotado de tempo, o tempo do que está por vir. Já o espaço constituído pela visão estética, o ambiente, é predominantemente um espaço que fixa e ordena, que cria um quadro no qual o herói é situado. E se compararmos a temporalidade criada esteticamente com aquela em que se inscreve o sujeito-herói, veremos que esta última é a temporalidade do devir incessante enquanto que a primeira constrói um acabamento. A temporalidade criada tem começo e fim, nascimento e morte; a temporalidade vivida não tem começo nem fim (AMORIM, 2006, p. 20).

Percebemos, então, o jogo de tensão entre acabamento e inacabamento, a tensão espaço-temporal que envolve autor e personagem. Um jogo produtivo que ganha materialidade na prosa poética e marca as diferentes orientações do autor e do personagem: o primeiro, orientado para o fechamento, o segundo, orientado para a abertura. Esta relação autor-personagem se constitui sob a base da relação eu-outro. Simoní se fez outro de si mesma, numa dimensão complexa da alteridade, enriquecendo o evento da vida no plano estético através de sua atividade autoral, a partir de um novo olhar sobre o vivido em relação com a contemplação poética experimentada.

5. Reverberações entre a atividade criativa de escrever e a formação docente

A prosa poética escrita pela professora Simoní é um texto que fixa algo do devir, ao mesmo tempo em que está aberto à produção de sentidos pelo leitor. É um texto que realiza um acabamento inacabado de algo do vivido, fazendo-o elevar-se para outro plano, o plano da criação estética. Esta experimentação de escrita poética possibilita reinserirmo-nos no fluir do tempo da vida, para dela extrair imagens moventes, dançantes, que nos remetem a sentidos diversos e instigam o processo imaginativo do autor e do leitor. É um exercício voltado à nossa potência de criação, de encontro com o outro em nós, nossa alteridade, dando visibilidade a autorias.

No grupo de professoras, vimos emergir visibilidade para uma escrita docente peculiar no contexto da escola. Nos encontros de formação, investiu-se em uma escrita poética (prosas poéticas e contos). Assim, as professoras posicionaram-se enquanto autoras de textos diferenciados daqueles geralmente produzidos na escola (os quais tem sua indiscutível importância), sustentando um novo espaço e tempo de criação, imaginação e autoria. Este modo outro de escrever produziu ecos nas escritas de projetos pedagógicos e nos portfólios de acompanhamento das crianças. As professoras passaram a explorar, junto às descrições sobre o dia-a-dia e o desenvolvimento das crianças, uma linguagem poética, carregada de textos e imagens que dizem sobre as infâncias, inclusive referenciando-se nas obras de Manoel de Barros. Nos portfólios, junto às imagens das crianças, expondo suas atividades na escola (brincadeiras, trabalhos com tinta, água, areia, massa de modelar, desenhos, teatros, dança, lanches, leituras…), passou a estar presente um repertório poético que estabelece laços com a dimensão estética do educar. Escrever a vida das crianças nos portfólios a serem entregues aos pais tornou-se um ato continuamente pensado e reinventado pelas professoras, assim como foi o ato de escrever sua vida, sua própria infância na forma de prosa poética.

Conforme Carvalho e Bufrem (2006, p. 59): “Em apreciações estéticas, com a parceria de grupos de trabalhos engajados no fazer e apreciar a arte, encontrará possibilidade de buscar uma competência pedagógica coerente e de permitir maior consistência às questões relativas ao seu domínio específico de conhecimento, seja artístico ou não”. Esta afirmação diz respeito à formação estética do professor e as reverberações que esta terá na formulação teórico-prática de seu fazer. Não se trata apenas do enriquecimento artístico-cultural por parte do professor (o que, por si só, já é muito relevante), mas também da implicação deste processo em seu fazer, em seu pensar e seu ser professor, seus modos de atuar junto às crianças, aos pais, à comunidade, atravessados por uma potência imaginativa e de condições de visibilidade de autorias existentes na escola.

Os encontros do grupo de estudos e formação das professoras participantes do projeto CIVITAS pretendem criar um campo de experimentação, um espaço de pensamento e de visibilidade de autorias, um lugar para a poética. Cada produção, ainda que individual, como a prosa-poética explorada aqui, expressa potencialidades do coletivo, pautadas inclusive em histórias e memórias de vida, perpassadas por valores que se tornam material artístico. A vida vista como arte, sendo arte e fazendo arte. As histórias singulares abrindo-se à fruição coletiva. Tal como afirma Schlindwein (2006, p. 37), consideramos que “um trabalho formativo no campo da educação estética possa desenvolver nos professores o estranhamento, a perplexidade, não só na contemplação da obra de arte, mas, principalmente, na construção de algo novo diante da realidade, pela mobilização da atividade imaginativa”.

Considerações finais

Retornamos às operações complexas necessárias à atividade estética, e do qual a escrita poética pode dar conta: (a) o recorte (seleção ou foco - o encontro ético do autor com determinado conteúdo/personagem, ou sua implicação com o vivido) e a extração para fora do contexto ou do vivido (movimento exotópico do autor); (b) a transposição para o plano estético - para novo contexto de relação, com elementos transgredientes ao conteúdo/personagem, confrontando-o em novas vizinhanças de sentido, concernindo os valores e o horizonte do autor (e, mesmo, outros personagens), encontro dramático produzindo uma relação tensa entre forças em jogo. Essas operações não acontecem em etapas lineares ou sucessivas, não se pode separá-las, são antes um conjunto que caracteriza a atividade estética, aqui explorada no âmbito da escrita de professoras em formação.

Na experimentação tratada neste artigo, a escrita operou adensando e dando visibilidade a essa relação ético-estética, uma escrita para o outro: uma escrita de si enquanto outro e que ao outro se abre delicadamente em sua singularidade. É importante considerar a relação de solidariedade da estética com a ética - uma visão de mundo e de homem voltada à alteridade - uma relação que sustenta na importância do encontro ético com o outro.

Referências

AMORIM, M. Memória do Objeto: uma transposição bakhtiniana e algumas questões para a educação. In: Revista Bakhtiniana, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 8-22, 2009. [ Links ]

AMORIM, M. Cronotopo e Exotopia. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006. [ Links ]

AMORIM, M. O Pesquisador e seu Outro: Bakhtin nas ciências humanas. São Paulo: Musa Editora, 2004. [ Links ]

AXT, M. Do pressuposto dialógico na pesquisa: o lugar da multiplicidade da formação (docente em rede). In: Informática na Educação: teoria & prática, Porto Alegre, v. 11, n. 1, p. 91-104, jan./jun., 2008. [ Links ]

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 4ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2003. [ Links ]

BAKHTIN, M. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. Tradução de Aurora Fornoni Bernadini et al. 4. ed. São Paulo: UNESP, 1998. [ Links ]

BARROS, M. de. Memórias inventadas: as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Planeta do Brasil, 2010. [ Links ]

BARROS, M. de. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010. [ Links ]

BUFREM, L.; CARVALHO, C. Arte como conhecimento/saber sensível na formação de professores. In: SCHLINDWEIN, L. M.; SIRGADO, A. P. (Org.). Estética e pesquisa: formação de profesores. Itajaí: Editora Univali; Editora Maria do Cais, 2006. [ Links ]

SCHLINDWEIN, L. M. Sobre estética e formação docente: algunas considerações. In: SCHLINDWEIN, L. M.; SIRGADO, A. P. (Org.). Estética e pesquisa: formação de profesores. Itajaí: Editora Univali; Editora Maria do Cais, 2006. [ Links ]

TEZZA, C. Sobre O Autor e o Herói - um roteiro de leitura. In: FARACO, Carlos Alberto; TEZZA, Cristóvão; CASTRO, Gilberto de (Org.). Diálogos com Bakhtin. 4. ed. Curitiba: UFPR, 2007. [ Links ]

1Pesquisadora do grupo de pesquisa LELIC e participante do projeto de pesquisa-formação CIVITAS.

2Professora titular da Faculdade de Educação da UFRGS. Coordenadora do grupo de pesquisa LELIC e do projeto CIVITAS.

3Os encontros de estudos e formação aconteceram a partir de uma parceria de pesquisa-formação entre o município de Mato Leitão/RS, onde atuavam as professoras, e a UFRGS, firmada através de um convênio de cooperação.

4Esta pesquisa foi realizada com a autorização dos participantes através de assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE.

5Para Bakhtin, os formalistas russos, nos meados da década de 1920, não consideravam de forma suficiente os aspectos éticos do texto literário, permeado por valores, dependente de seu contexto extraliterário.

6Uma análise mais detalhada do estilo de Manoel de Barros, com aporte da teoria bakhtiniana, pode ser encontrada em nosso texto “Mikhail Bakhtin e Manoel de Barros: entre o cronotopo e a infância” (Disponível em: http://ref.scielo.org/57jmsz).

Recebido: 15 de Agosto de 2017; Aceito: 21 de Fevereiro de 2018

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons