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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.32 no.66 Uberlândia set./dez 2018  Epub 22-Set-2020

https://doi.org/10.14393/revedfil.issn.0102-6801.v32n66a2018-05 

Artigos

A filosofia mestiça de Michel Serres: relações entre corpo, conhecimento e educação1

The mestizo philosophy of Michel Serres: relationships between the body, knowledge and education

La filosofía mestiza de Michel Serres: relaciones entre el cuerpo, conocimiento y educación

Alexandre Vanzuita* 

Marynelma Camargo Garanhani** 

*Doutor em Educação pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Professor de Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Catarinense (IFC) - Campus Camboriú. E-mail: alexandre.vanzuita@ifc.edu.br

**Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Professora associada do Departamento de Educação Física e do Programa de Mestrado e Doutorado em Educação da Universidade Federal do Paraná (UFPR). E-mail: marynelma@ufpr.br


Resumo

O presente artigo nasce na necessidade em sistematizar a discussão do Seminário de Estudos: “Michel Serres: relações entre corpo, conhecimento e educação” realizado no Programa de Pós-graduação em Educação da UFPR. Um dos requisitos para conclusão do estágio pós-doutoral em Educação, no ano de 2017. Para isto, mobilizou-se um esforço em interpretar três obras de Michel Serres, no que tange as relações entre corpo, conhecimento e educação, sendo que o método comparatista do autor, em questão, provoca a comunicação entre os conceitos anunciados, de maneira misturada, mesclada, zebrada, conforme a linguagem que ele utiliza. Em síntese, Michel Serres considera o corpo como suporte do saber e da invenção. E o conhecimento que se produz na educação como mestiçagem.

Palavras-chave: Michel Serres; Corpo; Conhecimento; Educação; Mestiçagem

Abstract

This article born of the need for systematize of a discussion in the Seminar on Studies: “Michel Serres: relationships between the body, knowledge and education”, performed on as part of the Postgraduation Program in Education of the UFPR. A course conclusion requirement of the postdoctorate practical training placement in Education, in the year 2017. For this, an effort was made to interpret in the three works of Michel Serres, in reference of the relationships between the body, knowledge and education, being that the comparatist method, this author, causes the communication between the concepts announced in a mixed, blended, intermingled way, according to the language Serres uses. In summary, Michel Serres to consider the body as support for knowledge and invention. And knowledge that occurs in the education as intermingled.

Keywords: Michel Serres; Body; Knowledge; Education; Intermingled

Resumen

El presente artículo nace en la necesidad de sistematizar la discusión del Seminario de Estudios: “Michel Serres: relaciones entre cuerpo, conocimiento y educación” realizado en el Programa de Postgrado en Educación de la UFPR. Uno de los requisitos para conclusión de prácticas post-doctorales en Educación, en el año 2017. Para ello, se movilizó un esfuerzo en interpretar tres obras de Michel Serres, en lo que se refiere a las relaciones entre cuerpo, conocimiento y educación, siendo que el método comparatista del autor, en cuestión, que provoca la comunicación entre los conceptos anunciados, de manera mixto, mezclada, cebrada, según el lenguaje que Serres utiliza. En síntesis, Michel Serres considera el cuerpo como soporte del saber y de la invención. Y el conocimiento que se produce en la educación como mestizaje.

Palabras-clave: Michel Serres; Cuerpo; Conocimiento; Educación; Mestizaje

Introdução

O objetivo deste estudo foi interpretar em três obras de Michel Serres, as relações entre corpo, conhecimento e educação. Para tanto, escolhemos as obras: Variações sobre Corpo (2004), Os Cincos Sentidos (2001) e Filosofia Mestiça (1993a). Apesar da compreensão de que essas escolhas nos mobilizaria um enorme esforço de interpretação, a justificativa foi de que são obras que tratam o corpo como referência do saber e da invenção, assim como engendram o conhecimento que se produz na educação como aprendizagens da vida.

Neste cenário, o método comparatista de Serres (1999) provoca as comunicações e aproximações entre os conceitos anunciados: corpo, conhecimento e educação. E a obra, intitulada por Serres (1999), Luzes: cinco entrevistas com Bruno Latour trata do seu método.

Convém destacar que este texto não está organizado de forma a abordar todos os comentários possíveis em que o corpo, o conhecimento e a educação são mencionados nas obras de Michel Serres. Vale sim, as abordagens, os sentidos e as possibilidades de leitura e interpretações, a partir das suas três obras dedicadas aqueles que inventam e pensam o corpo, o conhecimento e a educação. E, para isto, ousaremos desenhar uma escrita inspirada na linguagem que ele utiliza.

Neste movimento, a perspectiva de comunicação, aproximação e de inter-relações do método comparatista de Serres (1999) procede e produz conhecimento por meio de conciliações e dobraduras, no qual a topologia de Serres (1993a; 1999) provoca no tempo e no espaço conexões, pontes e proximidades turbulentas. Compreendemos, portanto, que o comparatismo é traduzido na invenção/criação de personagens (os intermediários) que operam aproximações de conceitos, abordagens, teorias, no tempo e no espaço, não de forma linear, como ocorre nas teorias clássicas, cujo o tempo e espaço é definido como estável e métrico, mas sim de maneira fluída, dobrada, amassada, aproximando coisas bem distantes, atualizando o conhecimento.

É importante destacar que Serres, com seus 88 anos completos, tem uma história, e que ao longo deste percurso formativo foi se reinventando e transformando sua maneira de escrever e ler o mundo. Trataremos, com vigilância epistemológica, de buscar na história do autor, e em suas obras, as diversas fases em que ele vai se transformando até o contexto atual. Após esse exercício, nos dedicaremos ao objetivo anunciado e finalizamos com destaques para os aspectos impactantes e turbulentos nas relações entre corpo, conhecimento e educação, nas obras de Michel Serres.

Michel Serres: um pouco de sua história

Nascido em 1⁰ de setembro de 1930, na cidade de Agen (Sul da França), ingressou em 1949 na Escola Naval Francesa onde cursou Matemática. E, em 1952, na Escola Normal Superior da França cursou Filosofia e Letras Clássicas (SERRES, 1993b), apesar de se considerar um autodidata (SERRES, 1999). Entre 1956 e 1958, foi servidor da Marinha Nacional da França em diversas unidades: esquadra do Atlântico, reabertura do Canal de Suez, Argélia e esquadra do Mediterrâneo (SERRES, 1993b).

Desde o nascimento até os 25 anos passou por terríveis guerras. A que mais se destaca foi a Segunda Guerra Mundial, sendo o bombardeio de Hiroshima a experiência mais devastadora em sua vida. Para ele, “[…] época em que se formam o corpo e a sensibilidade, reinam a fome e o racionamento, as mortes e os bombardeios, mil crimes” (SERRES, 1999, p. 9). Neste caos, Serres experimentou atrocidades e comenta:

[…] A violência, a morte, o sangue, e as lágrimas, a fome, os bombardeios, a deportação, atingem minha faixa de idade e a ferem definitivamente, uma vez que esses horrores ocorrem durante sua formação, física e emocional. […] A primeira mulher que vi nua foi uma jovem que era linchada por uma multidão, até a morte; essa empreitada trágica forma não só o espírito e o perdão, mas ainda o corpo e os sentidos. […] não posso olhar sequer para minhas fotografias da infância, felizmente raras. Como têm sorte os que têm nostalgia de sua própria juventude (SERRES, 1999, p. 9 - 11).

Devido a essas experiências, Serres faz um pedido: “Peço aos leitores que ouçam a explosão desse problema em todas as páginas de meus livros. Hiroshima constituiu o único objeto de minha filosofia” (SERRES, 1999, p. 25). Talvez por conta de sua história, em que pese a violência como marca da sua juventude, essa opção foi a melhor, ou a única forma de escolha, para construir seu próprio caminho no processo de construção de sua filosofia mestiça. No seu processo de formação, diz ele, que não se filia ou pertence a grupos de pressão ou se rende a correntes de pensamento, em que Serres (1999) chama de autoestradas.

Considerado como um filósofo com amplo espectro de interesses, justifica suas escolhas ao dizer:

Vi-me obrigado a começar uma obra, sem pertencer a lugar algum e querendo evitar a todo custo esse pertencimento, sem ter um lugar próprio e sem poder habitar em lugar algum. Durante toda a minha vida, tive o sentimento patético de vagar no deserto ou no alto mar. E quando se está perdido, e o tempo está ruim, impõe-se rapidamente a necessidade de se construir uma jangada ou um barco, uma nau, até mesmo uma ilha, sólidos e consistentes, equipá-los, dotá-los de objetos, de abrigos e povoá-los… A filosofia não consiste em tal série de preparativos? Depois, venham quem quiser (SERRES, 1999, p. 32).

As marcas e feridas na sua pele perpassam toda a sua obra. Não se escondeu em momento algum, afirmando em seu livro Os Cinco Sentidos que o autor ou inventor apenas na paz, e no silêncio, pode produzir a obra, o conhecimento (SERRES, 2001). Essas marcas e feridas o conduziram a uma estrada mais inclusiva, para longe da guerra e da morte, onde o corpo, o conhecimento e a educação estão interligados.

Serres fez doutorado em filosofia sob a orientação de Georges Canguilhem e Jean Hyppolite, e produziu uma tese sobre os sistemas de Leibniz e seus modelos matemáticos, publicada em 1968 (SERRES, 1999).

Neste período, ainda mantinha em seus textos elementos técnicos voltados a tradição acadêmica, dialogando e trazendo as citações literais de outros autores, como ainda recomenda o fazer científico da universidade, embora tivesse um estilo mais fluído e inovador, se comparado as obras após 1987. Ainda, é importante destacar que nesta época “[…] suas obras são lidas, suas ideias são debatidas, seus conceitos são citados no meio universitário, em especial como historiador das ciências e até mesmo como epistemólogo” (SANTOS, 2016, p. 26).

A marca singular nas obras de Michel Serres é a criação de seus personagens. Cria seus personagens, os intermediários, operadores das mensagens e das estranhas notícias, com intuito de provocar as aproximações e comunicações, por vezes, caóticas e obscuras, mas cheias de sentidos e de invenção. Após a publicação de sua tese, construiu uma considerável produção de novos livros em que criou o seu primeiro personagem chamado Hermes, sendo Hermes título de uma série de cinco volumes que tratou de inúmeras reflexões sobre a ciência2. Nessa época, não somente esse, mas criou outros personagens como o Tanatocrata, o Parasita e o Hemafrodita (SANTOS, 2016, p. 26).

Ao longo de sua jornada formativa e autoformativa, foi incompreendido por lugares que passou por seu estilo literário, criativo, estético e poético. Estilo esse, relacionado diretamente com seu método comparatista, em que o mensageiro, ou seja, seus personagens possibilitam aproximações e comunicações no qual os conceitos e coisas passam “[…] de um ponto do céu a outro”, de forma rápida (SERRES, 1999, p. 96). O comparatismo, seu método, exige rapidez, provoca no tempo e no espaço as comunicações e as interferências de forma fluída e dobrada, com urgência de deslocamento nas relações. Mas, contudo, com clareza e destacada autoria e invenção.

Os personagens (os intermediários) nas obras de Michel Serres são considerados os que aproximam e levam as mensagens e as novas notícias, distribuindo de maneira intuitiva, criativa e inventiva as chaves para as passagens em todos os sentidos, portanto, inventando, por meio da mestiçagem, outros caminhos para novas paisagens.

No processo de transição, com um estilo totalmente exclusivo, lecionou em diversas universidades passando por Clermont-Ferrand, Vincennes, Paris I, até se tornar professor catedrático, em 1982, da Universidade de Stanford, nos EUA. E lá permaneceu até 2013 (SANTOS, 2016).

Convém salientar que Michel Serres, antes da década de 1990, teve a consideração de seus pares no contexto acadêmico-científico, sendo lido e referenciado. Quando passou a utilizar a sua linguagem fluída, corrente e rápida, por meio de seu método comparatista e utilizar seus personagens com maior intensidade, sofreu as consequências de sua escolha, sendo cada vez mais excluído dos espaços especializados.

Na segunda fase de sua autoria, de maior liberdade e autonomia, embora estivesse sendo pouco considerado no contexto científico, o grande público começou a lê-lo, popularizando suas obras (SANTOS, 2016). A popularização se deu por conta do uso de metáforas e contos, na escrita de seus textos. A explicação de Serres (1999, p. 90) para seu estilo é:

Metáfora significa, justamente: transporte. Esse é o método de Hermes: ele exporta e importa, portanto atravessa; ele inventa e pode se enganar, devido à analogia; perigosa e mesmo, a rigor, proibida, não se conhece contudo outra via de invenção. O efeito de estranheza da mensagem provém dessa contradição, de que o transporte é a melhor e a pior das coisas, a mais clara e mais obscura, a mais louca e a mais segura.

Com a internacionalização de suas obras devido a uma repercussão mundial, passaram a ser traduzidas, além do português para o espanhol, inglês, alemão e italiano (SANTOS, 2016). Em 1991, publicou a obra Le Tiers Intruit (SERRES, 1991), traduzido para o português com o título de Filosofia Mestiça (SERRES, 1993a) e, por conta desta obra, foi indicado e eleito membro da Academia Francesa de Letras, ocupando o assento 18o de Edgar Faure (SERRES, 1993b). A obra trata de educação e a mestiçagem cultural.

Por utilizar com muita ousadia as comparações rápidas e “[…] aproximar coisas bem díspares” (SERRES, 1999, p. 96), a liberdade e a originalidade orientaram o seu estilo de escrita e forma de abordar os temas a que se propõe. Por usar a linguagem de maneira ampla e o jogo de palavras, foi acolhido pelo público, em geral, e cada vez mais excluído dos meios especializados (SERRES, 1999). É compreensível as comparações que faz, pois ainda na infância, com a leitura das obras de Júlio Verne, realizou viagens pelo planeta e pelo espaço, conheceu e explorou as ciências, os saberes, as técnicas, sendo influenciado pelas leituras a conciliar a ciência e a cultura, guardadas as devidas proporções (SERRES, 2007).

Traduzir a história e a obra tão rica e misturada de Michel Serres permite-nos conhecer o que é densidade enciclopédica e inovadora nos diversos campos do conhecimento em que ele transita. Sua filosofia mestiça, cheia de invenção e realmente original, se configura no seu estilo e método. Quando Serres (1999; 2007) fala sobre seu estilo e linguagem usual, aberta, desvela a razão em buscar nas aproximações e metáforas a chave de sua invenção.

Serres viu, em algum momento da sua trajetória acadêmica, uma necessidade de liberdade da criação, fugindo do rigor acadêmico que excede na repetição e na imitação dos gestos e palavras. Serres (1999, p. 34-35) nos diz que “[…] a hipertecnicidade em filosofia me faz rir ou chorar, pensar jamais: inútil, redundante, perniciosa. […] O vocabulário ultratécnico engendra o medo e a exclusão”. Para Serres (1999, p. 36) “[…] a linguagem técnica divide em grupos de pressão, em seitas que se digladiam umas com as outras, tratando-se como heréticos”. Serres (1999) critica o estilo estritamente especializado e técnico que a universidade, por vezes, não supera:

O vocabulário técnico chega a parecer-me mesmo imoral. Impede a maioria de participar da conversação, elimina mais do que acolhe, e, além disso, para dizer de maneira bem complexa coisas muitas vezes simples. Não mente forçosamente em seu conteúdo, mas em sua forma, ou melhor, nas regras do jogo que ele apresenta. Pode-se quase sempre encontrar uma via transparente para exprimir coisas delicadas ou transcendentes. Senão, que o conto tente fazê-lo. […] Jamais deixei de procurar a beleza. Com frequência a beleza é o brilho do verdadeiro, quase seu teste. O estilo é o signo da invenção, da passagem por uma nova paisagem (SERRES, 1999, p. 37).

Serres (1993a) consegue sempre trazer de forma fluida e com liberdade de pensamento o que ele chama de invenção ou como podemos chamar de construção do conhecimento:

Então, com todo o seu corpo, sua paixão, sua cólera e sua liberdade atada, quem quer criar resiste ao poderio do saber, tanto das obras já realizadas como das instituições que os parasitam. Isto significa, em suma: abandona tudo o que dá segurança, arrisca-te ao máximo. É preciso instruir-se o mais possível, no começo, para se chegar à formação: tudo vem do trabalho; aprende e fabrica sem descanso. Tomo agora uma tangente para afirmar o contrário. Ter tudo compreendido, decerto; mas, em seguida, para não saber nada. Duvidar para criar (SERRES, 1993a, p. 114).

Em sua formação, Serres (1999, p. 40) passou por dois exames de bac: matemática elementar e filosofia; tendo ainda três licenças, a de matemática, de letras clássicas e de filosofia, afirmando que é um mestiço. Nas suas palavras: “[…] mestiçagem, eis o meu ideal de cultura. Branco e preto, ciências e letras, monoteísmo e politeísmo, sem ódio recíproco, em prol da pacificação que eu desejo e pratico. Sempre a paz, para um filho da guerra”. E ainda acrescenta: “[…] canhoto contrariado, escrevo com a mão direita, mas trabalho com a esquerda. Chamo a isso, agora, de corpo completado. Nunca fragmentação ou esquizofrenia” (SERRES, 1999, p. 40-41).

Com relação à referida fragmentação, Serres (1999) busca superá-la por meio da sua filosofia mestiça e nos diz: “[…] nunca apreciei a fragmentação, nem, em geral, os valores negativos, tão estimados por meus contemporâneos. Filho da guerra e dos bombardeios, formado pelo horror dos campos, sempre preferi construir, ou compor, a destruir” (SERRES, 1999, p. 38). A sua filosofia busca sempre o acolhimento e a construção do saber, por meio das viagens, dos deslocamentos, das passagens por todos os conhecimentos, lugares e paisagens:

[…] Gosto que haja relações entre nós, entre coisas e os objetos de estudo, o deus Hermes já me convertera. Não tome a palavra construir necessariamente no sentido de pedras duras: prefiro os fluidos turbulentos ou as redes flutuantes. Além disso, o exercício da filosofia não pode ser separado de certa ideia da totalidade. Um filósofo deve sim saber tudo, ter compreendido tudo e tudo vivido: as ciências, duras e suaves, sua história, mas também o que não é ciência; a enciclopédia, sem excluir nada. […] Só se torna filósofo tardiamente, contrariamente aos cientistas, que inventam desde jovens, pois é preciso passar a vida inteira a se preparar; o tempo de aprendizado é imenso porque ele se obriga a tudo. E à experiência: é preciso ter viajado pelo mundo, pela sociedade, conhecer as paisagens e as classes sociais, as latitudes e as culturas. A enciclopédia para o saber e o mundo para a vida. Da lógica formal aos cinco sentidos, e de Roma à parasitologia. Assim, a obra filosófica testemunha essa totalidade: não exclui nada, ou melhor, tenta incluir tudo (SERRES, 1999, p. 38-39).

Para Serres (1999), na construção do conhecimento, o debate ou a discussão nada produz senão mera reafirmação de ideias e conceitos. É enfático quando exprime que só se produz a obra ou o conhecimento em ambiente de paz, em que a liberdade, a criatividade e a autonomia ganham força.

O que faz progredir, em filosofia, mas igualmente em ciências, é inventar conceitos, e essa invenção se efetua sempre na solidão, na independência e na liberdade, sim, no silêncio. Não nos faltam colóquios, hoje em dia; o que se resulta deles? Reafirmações coletivas. Em contrapartida, somos cruelmente desprovidos de conventos com células calmas e regras taciturnas, de cenobitas, anacoretas. O debate provoca uma pressão que tende sempre a confirmar as ideias estabelecidas; ele as exaspera, as cristaliza, constrói e fecha os grupos de pressão; a rigor, contribui, às vezes, para polir a precisão, mas jamais para a descoberta. Ora, a filosofia não se preocupa em destacar conceitos já existentes, exceto se ela se dedica ao comentário. A discussão conserva, a invenção exige intuição rápida, a leveza do peso (SERRES, 1999, p. 50-51).

Com sua escrita cheia de intersecções e literária, fora dos padrões acadêmicos, estilo totalmente exclusivo, tratando de vários assuntos ao mesmo tempo, mas com a precisão e demasiado cuidado que a ciência espera, expressa por meio de metáforas e diferentes personagens a sua produção.

Segundo Santos (2016, p. 27), dentre os seus personagens destacam: “o Terceiro Instruído, Arlequim, o Ruído, o Quase-objeto, o Fluxo, o Clinamen, o Hominescente, O Incandescente, o Mal próprio, o Canhoto coxo e a Polegarzinha”. E, por meio do seu método comparatista explora, mediante seus mensageiros (os intermediários), as aproximações e reconciliações necessárias e contingentes das ciências humanas e exatas causando assim mestiçagem (SERRES, 1999; 2007). Observemos agora as relações que se estabelecem entre o corpo, conhecimento e educação nas obras de Michel Serres elencadas no início deste texto.

Corpo, Conhecimento e Educação: uma relação contingente e necessária em Michel Serres

Serres (1993a; 2001; 2004) exprime de forma poética, metafórica, misturada e articulada como o corpo, o conhecimento e a educação celebram a conexão necessária e contingente. Aborda as possibilidades de conexão em todos os sentidos dos aprendizados e experiências de vida, numa filosofia mestiça. “O aprendizado consiste numa mestiçagem assim. Estranha e original, já misturado os genes de pai e mãe, a criança só evolui por novos cruzamentos” (SERRES, 1993a, p. 61).

A relação corpo, conhecimento e educação, em Serres (1993a), exige abandonar a razão, deixar de lado o formato fragmentado, linear e hierárquico, permitindo assim mestiçar esses elementos, provocar sempre ou quase sempre a errância3, inserindo-se muito mais nos valores da contingência do que da necessidade.

Um corpo reconciliado, na concepção de Serres, está para a direita e para a esquerda, sincronizado e mestiço, portanto, atravessado. O corpo aprende ao atravessar um braço de rio. Aprende a mestiçagem, torna-se outro, um mestiço. Neste jogo de palavras, Serres (1993a, p. 14-15) aborda que: “[…] quem não se mexe nada aprende. […] Sob a orientação de um guia, a educação empurra para fora. […] Aprender lança a errância”.

O conhecimento e a educação exigem, nas obras de Serres (1993a; 2001; 2004), sair e partir. O lugar-misturado é o lugar das aprendizagens, o lugar mestiço das intercessões em que o aprendizado leva. Caracteriza-se pela viagem, pelo deslocamento, pelo encontro. Serres (1993a) provoca com suas palavras fluidas, o caminho da aprendizagem e da invenção:

Escorregadio, o lugar mestiço expõe o passante. Mas nada se passa sem este escorregão. Ninguém jamais se modificou, nem coisa alguma no mundo, sem se recuperar de uma queda. Toda evolução e todo aprendizado exigem a passagem pelo lugar mestiço. De forma que o conhecimento, seja pensamento ou invenção, não cessa de passar de um lugar mestiço a outro, se expondo sempre portanto, e aquele que conhece, pensa ou inventa logo se torna um passante mestiço. Nem posto nem oposto, incessantemente exposto. Pouco em equilíbrio, e também raramente em desequilíbrio, sempre desviado do lugar, errante, sem moradia fixa (SERRES, 1993a, p. 19-20).

O corpo, conhecimento e educação encontram-se em um diálogo visceral nas obras de Serres (1993a; 2001; 2004). A mistura de conceitos e personagens dentro de suas obras ultrapassa a fragmentação das coisas e conceitos porque sua filosofia mestiça combate essa exclusão, buscando a inclusão desses elementos. É importante destacar que o conhecimento, nas obras de Serres (1993a; 2001; 2004; 2008), aparece no formato de invenção. O formato quando não criativo e inovador, uniformiza o conhecimento, torna-o apenas científico, preciso, previsível. Melhor será a mestiçagem dessa relação, ou seja, a conjunção entre formato e invenção (SERRES, 2008).

O corpo também se aproxima do conceito de invenção de Serres, quando desloca-se, quando realiza o seu movimentar e provoca a criação. Serres (1993a), nos mobiliza a pensar:

[…] Quer inventar ou produzir? Comece pela cultura física, as sete horas regulares de sono e o regime alimentar. A vida mais severa e a disciplina mais exigente: ascese e austeridade. Resista ferozmente aos discursos em volta que afirmam o contrário. O que debilita, esteriliza: álcool, fumaça, noitadas e farmácia. Resista não só às drogas narcóticas, mas, sobretudo, à química social, de longe a mais forte e, portanto, a pior: às mídias, aos modismos. Todo mundo diz sempre a mesma coisa e, assim como o fluxo da influência, desce junto o maior despenhadeiro. […] A meta da instrução é o fim da instrução, quer dizer, a invenção. A invenção é o único ato intelectual verdadeiro, a única ação inteligente. O resto? Cópia, impostura, reprodução, preguiça, convenção, batalha, sono. Só a descoberta desperta. Só a invenção prova que se pensa de verdade a coisa que se pensa, seja qual for esta coisa. Penso, portanto invento; invento, portanto penso: única prova de que um sábio trabalha ou de que um escritor escreve. Para que trabalhar, para que escrever, se não assim? Nos outros casos, eles dormem ou se batem e se preparam mal para morrer. Repetem. Só o sopro criativo dá vida, pois a vida inventa. A ausência de invenção prova, pela contraprova, ausência de obra e de pensamento. Aquele que não inventa trabalha em outro lugar que não a inteligência. Burro. Em outro lugar que não a vida. Morto. […] A invenção, ágil, rápida, sacode o ventre flácido do lento animal; sem dúvida, a invenção dirigida para a descoberta carrega consigo uma sutileza insuportável para as organizações inchadas, que só podem perseverar em seu ser sob a condição de consumir a redundância e proibir a liberdade de pensamento (SERRES, 1993a, p. 108-109).

Em síntese, a invenção para Serres (1993a) é a habilidade de saber pensar de maneira criativa, original, contingente, ou seja, a possibilidade de se tornar autor da própria existência. Cabe ressaltar que a originalidade nas narrativas de Serres, por meio de suas palavras que fazem dançar o pensamento, conduz ponderar o corpo, o conhecimento e a educação como reconciliados e misturados no processo de construção dos argumentos, que surgem da invenção. Leva o leitor a novas e maiores interpretações no campo científico conectado a cultura, numa forma mestiça.

Na concepção de Serres (1993a), a educação e instrução devem ser desenvolvidas conjuntas no processo formativo. Para ele instrução é o conhecimento construído, é a informação, as ciências, o saber. Já a educação é a formação geral dos sujeitos. Para o autor “[…] não se pode fazer essa ruptura, porque não há educação sem instrução, de maneira nenhuma” (SANTOS, 2015, p. 241). A diferença que há hoje no processo formativo é o acesso à informação, ou seja,

[…] quando eu ensinei há 20 ou 30 anos, meus estudantes não conheciam a resposta para a questão que eu colocava. Hoje, quando eu entro em uma sala ou em um anfiteatro, muitos dos meus estudantes já digitaram na internet o tema do meu curso. Em consequência, há uma diferença entre os meus estudantes de hoje e os meus estudantes de 20 ou 30 anos atrás, e essa diferença está simplesmente no acesso à informação (SANTOS, 2015, p. 240-141).

Na sua Filosofia Mestiça, Serres (1993a) aborda a mestiçagem como via de educação e instrução. O que é colocado em questão é que na ideia de mestiçagem importa reunir as ciências, portanto, é necessário e contingente a reconciliação entre as ciências humanas e exatas. Santos (2015), em seu estudo, mostra como Serres expressa, em suas obras, a ideia de mestiçagem nas ciências. Exprime essa intenção mais exatamente da seguinte forma:

[…] Então minha ideia em Filosofia Mestiça era de reunir precisamente; mestiçar precisamente o que se sabe das ciências exatas e o que se sabe das ciências humanas, porque, sempre quando praticamos as ciências humanas sem conhecer as ciências exatas, nos expomos a enormes erros. E, reciprocamente, quando você é um engenheiro, por exemplo, e você impõe um tal tipo de técnica sobre um terreno, mas você não conhece a etimologia, a psicologia, a sociologia que envolvem o terreno em questão, você faz barbaridades. Dessa forma, o meu “terceiro instruído” era por essa mestiçagem entre as ciências exatas e as ciências humanistas (SANTOS, 2015, p. 244).

Serres (1999, p. 173) nos conta que foi num momento de grande curto-circuito que escreveu Os Cinco Sentidos (2001), cuja obra apresenta de forma complexa e fluida a sua filosofia mestiça. Na obra revela que no corpo, pelo corpo e com o corpo está os cinco sentidos, mistura necessária e contingente para a cultura da paz, da diversidade, do perdão e da aprendizagem. Para Serres (2001, p. 231):

O corpo compõe-se como um livro: topologia da costura, as peças se associam por alinhavo, no início; geometria dos sons, em seguida, primeira síntese global pelo suporte do verbo; e, outra vez, topologia das misturas o cozinheiro refina as vizinhanças entre as peças. E sabe dissolver líquidos em fluidos, ou sólidos, tão pouco coerentes quanto carnes, em molhos curtos ou copiosos, para obter ligações insensíveis. […] O corpo mal sabe onde começam um sentido, um lugar, uma peça e onde terminam um outro sentido, um segundo lugar, uma placa próxima. O corpo tigrado, misturado é feito de matizes vizinhos. Vai de um sentido a outro insensivelmente.

O corpo, espaço que acolhe e sente, por onde começa o nosso saber, as nossas referências, misturado e mestiçado, sempre se movimenta para aprender e conhecer. Aí está a relação entre o corpo, o conhecimento e a educação! Nele (o corpo) está a resposta da pergunta que ainda não chegou. No corpo está o lugar da invenção. Quando se está no processo de construção da obra, o corpo todo mobiliza-se para pensar, não apenas a partir da redução falsa do intelecto ao sistema nervoso ou aos neurônios, contudo na totalidade do organismo. “[…] A invenção da obra mobiliza a carne toda. […] O intelectual simula e recopia, o corpo inventa. Esgotado, ele desperta, na manhã seguinte, ressuscitado pela novidade” (SERRES, 2008, p. 171).

Michel Serres, ao discorrer sobre o corpo, orienta como ele necessita movimentar-se, colocar-se no entre-lugar ou lugar-meio, para aprender e conhecer. No corpo está a variedade de contingência que se misturam ao mundo, que se mistura a nós todos.

O corpo dobra-se, curva-se, adapta-se, gozando de pelo menos trezentos graus de liberdade, desenha dos pés à cabeça ou à ponta dos dedos um caminho variável e complexo entre as coisas do mundo, cambiante como uma alga no fundo da água, mil e um caminhos de circulação ou de semáforo. Conhecer as coisas exige que nos coloquemos primeiro entre elas. Não apenas em frente para vê-las, mas no meio de sua mistura, nos caminhos que as unem, a dama do licorne segura firmemente na mão direita o bastão azul salpicado de crescentes e, na mão esquerda, o único corno do animal, o tato está situado entre, a pele realiza nossas circulações, o corpo desenha o caminho atado, ligado, pregueado, complexo, entre as coisas a serem conhecidas (SERRES, 2001, p. 76).

Com sua grande capacidade de relação, agudeza e reconciliação de conceitos, por meio de exemplos da vida no cotidiano, Serres (2004) consegue nos fazer refletir sobre o bom escritor e o medíocre. Ele compara o ato da escrita ou do escritor com a capacidade do nosso corpo em exercitar-se. Na prática da autoria, o corpo é referencia da invenção, portanto, exige-se entrega, impõe-se esforço inteligente total do corpo.

Dado que a escrita perdoa tão pouco como a montanha, a maioria dos turistas-escritores se faz preceder de guias e rodear-se de um conjunto de recursos: citações-garantia, notas-refúgio, referências-pítons. Um trabalho falso consiste em multiplicar os nomes próprios; o trabalho do verdadeiro escritor exige totalidade do corpo e um engajamento único, singular e solitário. Exige exercícios físicos, dieta bastante austera, vida ao ar livre, práticas intermináveis de força e adaptação; em comparação com a escrita, um percurso na montanha vale dez bibliotecas. Específico, particular e original, o corpo todo inventa; a cabeça adora repetir. A cabeça é ingênua. O corpo é genial. Não sei por que não aprendi mais cedo sua força criadora, por que não compreendi, quando mais jovem, que somente um corpo glorioso poderia ser real. Eu celebro esse porquê no crepúsculo de minha vida para que meus sucessores tenham conhecimento dele. O que você vai fazer na alta montanha, na sua idade? Preparar minha escrita. Estudem, aprendam, certamente sempre restará alguma coisa, mas, sobretudo, treinem o corpo e confiem nele, pois ele se lembra de tudo, sem qualquer dificuldade ou impedimento. O que nos distingue das máquinas é unicamente nossa carne divina; a inteligência humana se distingue da artificial apenas pelo corpo (SERRES, 2004, p. 17-18).

Eis que para o filósofo Michel Serres a escrita e a autoria requerem a necessidade do esquecimento e da solidão, do livrar-se das referências para criar e inventar. Essa necessidade poderá ocorrer em um ambiente que provoque as pessoas de maneira independente, criativa e autônoma. Tarefa bastante complexa, pois nossas instituições, na maior parte do tempo, não permitem atitudes inventivas e inovadoras porque mantem a noção de imobilidade e do não movimento no centro da aprendizagem.

Reclama-se, portanto, que sempre ou quase sempre o(a) estudante construa conhecimento, que exercite a escrita, que lance-se a autoria, que movimente-se. Na educação tal sequência deveria ser provocada quando os(as) estudantes visitam o conhecimento construído por outrem e logo em seguida esquecem para reconstruir e inventar. Como exemplo de educação, Michel Serres (2004) cita que os professores que o ajudaram a inventar a sua obra foram aqueles que o fizeram movimentar o corpo, ou melhor, foram as referências para a autoria e invenção. Em síntese, Serres (2004, p. 35-36) descreve:

Nenhum professor que permaneceu sentado à frente de sua mesa ensinou-me o que é trabalho produtivo, o único que vale a pena, enquanto meus professores de ginástica, treinadores e, mais tarde, meus guias, condicionaram meus músculos e ossos. Eles ensinam o poder do corpo. Vocês querem escrever, pesquisar, começar uma vida operosa? Sigam seus conselhos e seu exemplo. […] O pesquisador que trapaceia ou mente, não descobre nem inventa nada, da mesma maneira que quem pratica salto em altura não trapaceia nem mente quanto à lei da gravidade. […] Em qualquer atividade a que nos dedicamos, o corpo é o suporte da intuição, da memória, do saber, do trabalho e, sobretudo, da invenção. Um procedimento maquinal pode substituir qualquer operação do entendimento, jamais as ações do corpo. Em minha atividade intelectual, ninguém me ajudou como o fizeram meus professores de ginástica. A eles todo meu respeito e reconhecimento.

É importante destacar o quanto Serres valoriza o professor que trabalha com o movimentar do corpo, como aquele que promove bons inventores (SERRES, 2004). Aquele que promove a experiência dos cincos sentidos, por meio do empirismo. O empirismo permite viajar e conhecer, permite a frouxidão e a fluidez, permite a mistura e a mestiçagem, longe da dureza do sólido que não permite a ligação.

O empirismo, costureiro, constrói localmente, pensa por prolongamentos, de vizinhança próxima à proximidade vicinal, de singularidade à singularidade, de germe à camada, de cavidade a ponto, desenha mapas finos por caminhos de rato, cartografa o corpo, o mundo, os padrões: recorta, alfineta, costura. Sutil e refinado, ama o detalhe e fabrica o frágil. Topólogo tem o senso das bordas e dos fios, das superfícies e das guinadas, nunca seguro de que as coisas ou o estado das coisas, a menos de um passo a frente, continuem as mesmas, tecelão de variedades, no detalhe (SERRES, 2001, p. 230).

Perto dessa variedade que possibilita pensar a educação e o corpo em uma mistura contingente e necessária, o conhecimento ou a construção de conhecimento deve permitir, na concepção de Michel Serres (2004), que a ordem da aprendizagem construa-se na seguinte perspectiva: adquirir, aprender e depois compreender. E exemplifica essa relação:

Se tivesse sido necessário que eu compreendesse tudo o que me ensinaram no próprio momento do aprendizado, eu mal teria dominado a soma, o plural e o singular ou o nome da junção dos rios defronte dos quais minha família habitava. Na escola municipal, o que entendemos verdadeiramente por número? Um conceito tão simples, mas que apresenta tantas dificuldades que os melhores matemáticos ainda não conseguiram entendê-lo. Na verdade, o número de coisas que aprendemos é muito maior do que aquilo que podemos dominar; também compreendemos mal aquelas que nos são mal explicadas. […] Depois de quarenta anos, compreendi o que havia aprendido de cor aos seis anos e não teria compreendido nada se não tivesse inicialmente aprendido sem compreender, se não tivesse simplesmente retido a lição tal como ela era. […] Em resumo, a compreensão depende mais da capacidade de evoluir, de perder-se, de retornar, morrer ou expandir-se do que da explicação dada no momento da aprendizagem. […] Invertam esse processo que vocês estagnarão, pois a claridade projeta uma sombra ou descobre uma profundidade infinita mesmo a partir dos primeiros números. Andem, corram, vocês irão recuperar a fé, o corpo vai resolver a situação. O saber mergulha nele e dele ressurge. Oculto nas sombras, ele assimila lentamente o que foi simulado (SERRES, 2004, p. 73 - 75).

Assim, as relações entre corpo, conhecimento e educação se organizam de forma fluida, misturada, matizada, zebrada, tigrada, mestiça. Neste cenário, as interseções e os cruzamentos na construção do conhecimento apresentam-se inacabados e em transubstanciação, e neste processo, o corpo se compõe como suporte do saber e das aprendizagens.

Como um canhoto contrariado-completado, no qual se define, Serres (2004) nos alimenta com a rede flutuante de conhecimentos que desenvolveu ao longo de sua vida com sua filosofia mestiça. Da mesma maneira, nos orienta de forma inventiva a sua invenção. E afirma: O corpo aprende em movimento (SERRES, 2004).

[…] o corpo não se reduz nem à fixidez nem à realidade: menos real do que virtual, ele visa o potencial, ou melhor, ele vive no modal. Longe de um estar lá, ele se movimenta; não se desloca apenas no trajeto daqui para acolá, mas forma-se, deforma-se, transforma-se, estende-se, alonga-se, figura-se, desfigura-se, transfigura-se; poliformo e proteiforme, vocês não interromperão essas variações, a não ser que definam o corpo como capaz. O corpo pode. Como uma integral indefinida, essa capacidade sintetiza a soma do conjunto aberto das posturas e caretas, dos portes e posições (SERRES, 2004, p. 138).

O corpo pode viajar na rede turbulenta da construção do conhecimento e na aprendizagem corajosa experimentada e inventada por este filósofo. O corpo voa para outro lugar, para o lugar mestiço que exige sempre uma nova adaptação, uma nova paisagem a conhecer. Nesse sentido, requer construir caminhos, desbravar mares e rios, embrenhar-se na selva, escrever, pensar, nadar, correr, escalar, saltar, dançar, enfim, trabalhar e compor.

Em síntese, o corpo, o conhecimento e a educação não somente são móveis ou são movidos por algumas coisas, entretanto assumem variadas formas imprevisíveis para Michel Serres. Conceitos não estáveis, se transformam e se movimentam a todo tempo e em todo espaço. São definidos como contingências que permeiam o saber nas obras de Serres (1993a; 2001; 2004).

Conclusões iniciais

Consideramos que, na concepção de Serres (1993a; 2001; 2004), a educação exige passagem por muitos lugares, pois a aprendizagem requer passar por muitas experiências e observar muitas paisagens. Serres (1993a) aborda que é no lugar mestiço que ocorrem as aprendizagens e a evolução não existe sem aprendizagem, sem conhecer o lugar mestiço. Esse lugar caracteriza-se sempre pelo não-lugar, ou melhor, traz consigo a ideia de liberdade e de autonomia, portanto, o passante mestiço naturalmente não está alojado em lugar algum, enfim, é livre! Sendo livre o(a) passante mestiço(a) pode criar e inventar sua própria obra.

O corpo é o suporte da intuição e da invenção. Nele (o corpo), por ele e com ele vivencia-se e constrói-se o saber, a educação (SERRES, 2004). Nos ensaios de Serres (1993a; 2001; 2004), o corpo ganha sempre destaque em razão de considerar que todo o conhecimento começa no corpo. É constante nas suas narrativas a presença do corpo e as possibilidades que ele apresenta de transubstanciação, ou como melhor chama Serres (2004, p. 146), “[…] as admiráveis metamorfoses que o corpo pode realizar”. A relação do corpo, conhecimento e educação estão visceralmente articuladas nas obras de Serres, tem potencial de comunicação entre todos os sentidos e ainda explora de maneira muito singular a criativa a importância dele na educação.

Ao abordar o conhecimento, é notório que o exercício de comparar e de aproximar saberes e conhecimentos do campo teórico da filosofia e de outros campos do conhecimento se faz presente, em razão de que por meio de sua filosofia mestiça mais vale causar a misturas e quimera do que fragmentar o conhecimento. Seu Os Cinco Sentidos (2001, p. 368) consegue misturar muito bem e com muita naturalidade “[…] Hermes e Cinderela, a morte de Sócrates e a Última Ceia, a metafísica e o esporte, a literatura, a geometria, os mitos, as artes, as musas, a paisagem, enfim, os dados para descobrirem e celebrarem as belezas do mundo”. E, neste cenário, nos sugere construir uma nova universidade, uma nova escola, que ajude a pensar, que seja voltada à autoria, a construção de conhecimento, que promova a invenção. Serres (2015) nos indica um possível caminho dessa nova universidade:

O Terceiro Instruído já imaginava uma universidade com seus espaços misturados, sarapintados, matizados, desarrumados, mesclados, constelados… real como uma paisagem! Era preciso, antigamente, ir longe para chegar até onde estava o outro, ou ficar em casa para não ouvi-lo, mas agora tropeçamos nele o tempo todo, sem que nem seja preciso se movimentar. Aqueles cujas obras desafiam as classificações e semeiam em todas as direções fecundam a inventividade; já os métodos pseudorracionais nunca serviram para grandes coisas. Como redesenhar a página? Esquecendo a ordem das razões - ordem, é verdade, mas desarrazoada. É preciso mudar a razão. O único ato intelectual autêntico é a invenção. Vamos dar preferência, então, ao labirinto dos chips eletrônicos. “Viva Boucicaut e viva a minha avó!”, exclama a Polegarzinha (SERRES, 2015, p. 54-55).

Assim, consideramos que, em meio a essa grande mestiçagem, que foi tomada como referência para a construção deste texto, concluímos com as conclusões de Serres (2004, p. 74): “[…] Raramente temos conhecimento do que sabemos e do que não sabemos, estas duas enormes proezas da inteligência; o que ocorre com mais frequência é que sabemos o que não sabemos e sabemos mal o que sabemos”. Para sabermos o que sabemos, é necessário colocar o corpo no centro do processo de educação para a construção de novos conhecimentos, conectar saberes e vivenciar experiências de mestiçagem.

Referências

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SERRES, Michel. Ramos. Tradução de Edgar de Assis Carvalho, Mariza Perassi Bosco. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008. [ Links ]

SERRES, Michel. Polegarzinha. Tradução de Jorge Bastos. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2015. [ Links ]

1Pesquisa financiada com bolsa de pós-doutorado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Capes.

2Essa série de livros trazem variadas críticas sobre a ciência: Hermes I: A comunicação; Hermes II: A interferência. Hermes III: A tradução. Hermes IV: A distribuição. Hermes V: a passagem do noroeste (SANTOS, 2016).

3Lançar-se a errância, para Serres (1993a), significa desviar-se do caminho em termos de orientar-se pela não orientação. Existe a contingência de perder-se para aprender. O passante vagueia por todas as direções aprendendo a todo tempo, inventando novos caminhos.

Recebido: 01 de Abril de 2018; Aceito: 20 de Junho de 2018

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