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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.32 no.66 Uberlândia set./dez 2018  Epub 22-Set-2020

https://doi.org/10.14393/revedfil.issn.0102-6801.v32n66a2018-06 

Artigos

A Fita Branca e o caráter autoritário: contribuição da teoria crítica da sociedade

The White Ribbon and authoritarian personality: a Critical Theory’s contribution

Le Ruban Blanc et la personnalité autoritaire: une contribution de la Théorie Critique

Ana Paula de Ávila Gomide* 

*Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP). Professora efetiva da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). E-mail: anapag2@gmail.com


Resumo

Tendo como referencial os autores da teoria crítica da sociedade - Adorno, Horkheimer e Marcuse -, este ensaio volta-se para a discussão do caráter autoritário, a partir de alguns elementos encontrados no filme A Fita Branca, de Michael Haneke. Os temas sobre a educação, a formação do indivíduo e as bases psicossociais da personalidade autoritária, estudados pelos frankfurtianos, foram considerados. Enfim, o filme ilustra o clima cultural propenso ao fascismo, lançando luz aos efeitos perversos das pressões civilizatórias repressivas baseadas na violência e na indiferenciação dos sujeitos: a dominação da natureza e, por sua vez, as formas pelas quais a “natureza” oprimida parece se vingar.

Palavras-chave: Teoria crítica; Indivíduo; Formação; Autoritarismo

Abstract

Assuming philosophical theses by the so-called Critical Theory - Adorno, Horkheimer and Marcuse -, this paper proposes a discussion about the authoritarian personality at taking some elements of Michael Haneke’s “The White Ribbon”. It accounts for the themes on education, individual’s upbringing and authoritarian personality’s psychosocial bases, all of them studied by the Frankfurtian thinkers. Concisely, Haneke’s film depicts a cultural atmosphere inclined towards fascism. It sheds light upon perverse effects of civilization’s repressive load and subjetcs’ non-differentiation: domination of nature and how oppressed nature, in your turn, seems to strike back.

Keywords: Critical Theory; Individua; Education; Authoritarianism

Résumé

Partant de la penseé des philosophes d´École de Frankfurt, comme Adorno, Horkheimer et Marcuse, cet article se tourne vers quelques éléments du film « Le Ruban Blanc », de Michael Haneke, pour essayer d’entreprendre une discussion sur le concept de « la personnalité autoritaire ». On y cherche à rendre compte des thèmes sur l'éducation, la formation de l'individu et les bases psychosociales de la personnalité autoritaire, tous étudiés par les penseurs de la connue Théorie Critique. Bref, le film de Haneke décrit une atmosphère culturelle inclinée vers le fascisme; il met en lumière les effets pervers de la charge répressive de la civilisation, aussi que la non distinction entre les sujets: la domination subie par la nature qui, par son tour, tout à fait opprimé, semble se riposter.

Mots-clés: Théorie Critique; Individu; Éducation; Autoritarisme

“Não podes dizer o que é o absoluto Bem, não podes representá-lo. Com isto, volto ao que já disse anteriormente: podemos assinalar o mal, mas não o absolutamente correto” (HORKHEIMER, 1976).

Introdução

Em 1936, Horkheimer publicou a pesquisa empírica Estudos sobre Autoridade e Família que havia coordenado no Instituto de Pesquisas Sociais, na qual se discutia a questão do autoritarismo e a constituição do caráter autoritário dentro do contexto político e social de ascensão dos totalitarismos na Europa. A pesquisa tratou de mostrar como encontrava-se inerente à educação, na transição do capitalismo liberal para o de monopólios, a formação de sujeitos impotentes e subservientes à realidade tendo em vista a dinâmica psíquica e social da família patriarcal, cuja consolidação se deu graças à imposição espiritual e moral do protestantismo. Horkheimer com a proposta de uma teoria crítica da sociedade, juntamente com outros autores, preocupava-se em fazer uma crítica ferrenha ao fascismo, também lançando luz aos fatores subjetivos do fenômeno para tentar esclarecer os motivos que levaram o burguês, o pequeno burguês e o trabalhador a ansiarem e a apoiarem as políticas autoritárias. A psicanálise foi utilizada para o estudo de mecanismos psíquicos resultantes de forças econômicas e sociais que “moldavam” os homens às estruturas de autoridades decorrentes das relações constituídas pelo incipiente capitalismo industrializado, em que o diagnóstico da situação do indivíduo, juntamente à análise da estrutura da família burguesa e o seu desmantelamento por determinações econômicas dos grandes trustes, revelava as tendências da sociedade e de forças objetivas sobre o particular que impediram uma vida verdadeiramente humana. Diante das atrocidades do nacional-socialismo e da barbárie das perseguições antissemitas estendidas a todos àqueles considerados “inadequados” e frágeis pela mentalidade nazista alemã, os autores da Escola de Frankfurt se voltaram para o desvelamento das condições sociais, históricas e psíquicas das regressões sociais, ao lado da crítica histórico-filosófica da Razão ocidental voltada para a dominação unívoca e totalitária da natureza (HORKHEIMER; ADORNO, 1985). As vítimas de tais atrocidades, ou seja, “os mártires anônimos dos campos de concentração” (HORKHEIMER, 2015a, p. 178) foram reverenciados e lembrados pelos autores da teoria crítica para trazer ao âmbito da filosofia a denúncia do sofrimento daqueles cujas vozes e corpos foram silenciados e mutilados pelos poderes tirânicos.

A teoria crítica da sociedade constitui-se como uma fonte de pensamento e de método de investigação contínua da realidade, na qual a formação do indivíduo, a educação, o conhecimento e a tecnologia produzidos pelas ciências a serviço da reprodução social, bem como os produtos veiculados pela indústria cultural tornaram-se alvos de crítica permanente. Para que Auschwitz não se repita, Adorno (1995) volta-se para elementos presentes na educação que ameaçam o conteúdo ético da formação cultural, sem perder de vista os condicionamentos sociais da educação escolar. Os processos educativos calcados na competição entre os sujeitos, e exclusivamente sustentados pela ideia da adaptação deles à vida social dentro de um realismo supervalorizado, são criticados pelo autor por assim não promoverem a emancipação ou a reflexão necessária acerca das determinações históricas dos conteúdos de bens culturais, fortalecendo o conformismo dos indivíduos frente à dinâmica cega da totalidade objetiva dominada pelo capital. Por outro lado, no texto Teoria da Semiformação (2010), Adorno também chama a atenção sobre uma formação entendida tão somente como a “cultura do espírito” e descolada das relações práticas dos homens. A “espiritualização da cultura” vista como independente na divisão social estabelecida entre o trabalho material e a produção espiritual, e apreendida como um fim em si mesmo, faz com que a educação se converta em pseudoformação na qual os homens tornam-se impotentes e reféns das relações existentes ao desenvolverem uma “consciência dissociada” da vida objetiva. Citando Max Frisch, ele observa que, por meio desta educação que concebe a ideia de cultura como sagrada, “[...] pessoas que se dedicavam, com paixão e compreensão, aos chamados bens culturais puderam encarregar-se tranquilamente da práxis assassina do nacional-socialismo” (ADORNO, 2010, p.10). Ou seja, Adorno ressalta o quanto tal consciência dissociada das práticas sociais revela um desmentido objetivo ao conteúdo destes bens, pois estes, desvinculados de suas finalidades humanas, tornam-se meros objetos de fetiche. Ainda destaca que a barbárie poderá continuar a existir se as condições que geraram a regressão assim persistirem (ADORNO, 1995, p. 119). E para o entendimento de tais condições, o passado histórico do horror deve ser elaborado e memorizado, com o rompimento dos tabus sociais que tentaram recalcar a brutalidade e a barbárie produzidas pela política nacional-socialista, lançando luz sobre os pressupostos objetivos que geraram o fascismo. Desvendar estes fatores também implica num esforço de se compreender as disposições subjetivas que corroboraram com o horror e que lhe deram sustentação, lembrando que o fascismo não pode ser reduzido à psicologia, embora esta seja um elemento importante de análise. Tais disposições são da ordem do privado mediado pelas tendências sociais dominantes, de formas de instituições familiares responsáveis pela formação do caráter e traços psíquicos autoritários, cujos pilares, com a introdução dos valores morais do puritanismo que se fizeram absolutos para a consolidação de uma nova ordem social1, basearam-se em uma educação opressiva, de violência entre os gêneros e entre as diferentes gerações.

O inquietante filme A Fita Branca de Michael Haneke coloca em evidência os aspectos acima, principalmente aqueles referentes aos sintomas decorrentes de um processo educacional/formativo que falha na constituição de sujeitos emancipados. Ele traz elementos importantes para articularmos com os temas estudados e analisados pelos autores da teoria crítica da sociedade: Adorno, Horkheimer e Marcuse. Tais temas que daremos relevo versam sobre as bases psicossociais da “personalidade autoritária” atreladas às condições culturais e históricas da antropologia burguesa, bem como algumas formulações acerca da mentalidade alemã sob o fascismo, discutidas no texto de Marcuse A Nova Mentalidade Alemã. Ainda que Haneke tenha afirmado que a “parábola sobre o nazismo” não define esta produção cinematográfica2, ele quis mostrar no filme “as raízes do mal” vinculadas à uma pedagogia opressiva que, calcada em doutrinas que tentaram se fazer absolutas sobre a formação dos sujeitos para a definição do Bem, contribuíram para a afirmação do indivíduo ascético. O filme mostra a educação formal e erudita que um grupo de crianças recebe, com a presença de punições físicas e simbólicas para que suas “naturezas disformes” sejam contidas e domesticadas. A nosso ver, o diretor com isso sinaliza para uma dimensão peculiar do que seria a Alemanha de Hitler: a participação de sujeitos educados e “cultos” na disseminação da ideologia do Terceiro Reich.

Voltando à epígrafe deste trabalho, em conexão com dos alguns aspectos mostrados no filme, tais palavras de Horkheimer apresentam a proposta de um pensamento verdadeiramente crítico voltado para a consciência sobre como a nossa atual civilização é um resultado de um “passado horroroso” (HORKHEIMER, 1976), e de que o protesto contra o sofrimento e a injustiça deve ser colocado no centro de toda conduta ética. Para tal, o esforço da crítica é o de questionar todo movimento ou forças de ideais que tentaram em vão definir o que é “a boa sociedade”, pois em nome disso se produziram as maiores atrocidades na história. Isso diz respeito à incursão do filósofo à teologia negativa nos seus últimos escritos para introduzir a dúvida nos dogmas religiosos que concebem um “Deus Todo Poderoso”, assim combatendo os demais fundamentalismos religiosos ou políticos que causaram na nossa civilização a destruição, a intolerância e o assassinato, tendo como pano de fundo uma causa declarada como virtuosa ou correta. Incorporando à teoria crítica a dimensão negativa da mística judaico-cristã representada na ideia de “pecado original” e no conceito de “anseio pelo inteiramente outro”, Horkheimer quis assinalar aquilo que não pode ser expressado, tal como a herança que guardamos da responsabilidade sobre o horror do passado, das vítimas assassinadas, e da violência que se fez em nome da nação, do progresso ou da inculcação de valores morais para configurar o indivíduo moderno. E quando Haneke no filme mostra a história de um grupo de crianças que oprimidas pelos ideais supremos de pureza, de virtude e de abnegação, acabam se vingando da opressão que sofreram cometendo crimes e torturas, também vislumbramos uma crítica do diretor aos ingredientes autoritários e irracionais contidos nas formas de autoridade abstrata e absoluta fornecidas e impostas pelas instituições, tais como a família, a igreja e a propriedade. Além disso, o filme aborda as bases psicossociais da individualidade fria racional que, sob a égide de uma educação doutrinária cristã, voltada para interiorização do martírio e do auto sacrifício, torna os sujeitos incapazes de identificação com a dor do outro ou com a alteridade, assim alimentando uma sociedade desumana. A filosofia de Horkheimer, que incorpora a proibição judaico-cristã de representar a imagem de Deus e do paraíso3, manifesta não a denominação do que é bom, mas do que é ruim. Isso significa que a teoria crítica traz em seu cerne a dimensão teológica negativa de um anseio de um “outro”, de uma outra humanidade, ao assinalar o que é o mau e lutar para que o mal desapareça. Fazendo relação com o filme, A Fita Branca expõe os efeitos de um clima cultural calcado em certezas dogmáticas religiosas e morais que infligiram nos humanos o sofrimento que, incapaz de ser simbolizado ou de encontrar vazão pelas vias da criação e da liberdade, resvalou-se nas ações individuais inconscientes de crueldade e de indiferença. Ou seja, de forma mais abrangente, o filme acaba por ilustrar os efeitos perversos das pressões civilizatórias repressivas baseadas na violência e na indiferenciação dos sujeitos, a partir das quais a não realização dos ideais culturais ou suas formas imperativas revelam o lado obscuro da civilização ocidental: a opressão da natureza e, por sua vez, as formas pelas quais esta parece se vingar. Pois bem, falemos do filme.

Em cena: a ambiguidade da cultura e a educação para a barbárie

A Fita Branca trata da história de moradores de um vilarejo rural alemão luterano, nos anos de 1913 e 1914, pouco antes da eclosão da Primeira Guerra Mundial. A alusão sobre aos gérmens do nazismo é clara, na qual a trama é apresentada pelo professor da aldeia, o narrador, que diz querer explicar aqueles acontecimentos fazendo relação ao que ocorreu depois na Alemanha. O filme, apresentando a origem do mal, mostra os vínculos existentes entre a perversão, a moralidade, a religião, o ascetismo, a subserviência, a frieza e a brutalidade, inerentes às relações entre os personagens submetidos a um forte clima opressivo familiar, no qual há uma presença constante de dominação violenta dos adultos sobre as crianças (vide o personagem do pastor protestante rigoroso com seus filhos, como também a figura do médico perverso e autoritário). A narrativa volta-se para a exposição de acontecimentos sombrios ocorridos na aldeia, ao lado das cenas que mostram a violência física e psíquica presentes nas relações privativas familiares, contrastadas com a psicologia de personagens pretensamente austeros e virtuosos que defendem de forma cega os valores morais. Assim, não à toa, Haneke aborda o caldo de cultura propenso a formar personalidades autoritárias. As crianças, autoras dos crimes, humilhadas pelos castigos desmedidos que recebem, seriam os futuros participantes dos comícios promovidos pelo partido nazista ou os possíveis algozes do holocausto. É importante mencionar que a película é toda rodada em preto e branco para passar ao espectador a atmosfera sombria e claustrofóbica que assola os moradores do vilarejo. Os planos da narrativa transitam entre as imagens de uma escuridão opaca e a de uma branquitude translúcida, nas quais a sobriedade dos personagens acaba se chocando com as cenas de surras, abusos sexuais e de opressão que atravessam toda a trama.

Os personagens revelam a própria contradição instalada no tipo propenso às tendências autoritárias: aqueles sujeitos educados para interiorizar os valores espirituais rigorosos, mas que, na prática, revelam-se cruéis como reação ao moralismo imposto pela ordem social. Os filhos do pastor, obrigados a amarrarem uma fita branca para lembrarem de sua pureza e retidão, são os mesmos que, vítimas dos abusos físicos e psicológicos cometidos pelo pai, voltam a violência que sofreram contra os outros. A sexualidade é fortemente reprimida nos personagens chegando ao ponto de o pastor amarrar as mãos de seu filho para que ele não sucumba às tentações da carne. Nas palavras do pastor, “para se evitar o pecado, o egoísmo, a inveja, a indecência, a mentira e a preguiça”. Antes mesmo da publicação da pesquisa Estudos sobre Autoridade e Família, psicanalistas como Wilheim Reich e Paul Federn haviam se voltado para o fator subjetivo do autoritarismo, analisando, em obras distintas, a família patriarcal como a matriz da submissão do indivíduo à autoridade e da disjunção entre interesses racionais e pulsões irracionais (GENEL, 2017). Desde 1919 já se achava como objeto de análise os efeitos psíquicos de uma família patriarcal autoritária sobre o caráter para explicar o declínio das ações revolucionárias e a futura adesão das massas aos coletivos totalitários.

Em que pese as diferentes abordagens sobre o tema, tendo todas a teoria psicanalítica articulada com o marxismo como referencial, a especificidade da pesquisa coordenada por Horkheimer, citada no início deste texto, foi a de ter aprofundado a dialética da família (a função provedora e moral do pai para com a criança pode se revelar tanto como fonte de emancipação do indivíduo, quanto de aprendizagem de submissão e de conformismo), e a de ter apontado os valores espirituais propagados pelo protestantismo como os responsáveis pela configuração dos traços pulsionais da individualidade burguesa. Os desdobramentos desta individualidade resultaram no caráter autoritário, tendo como pano de fundo as transformações históricas de instituições sociais determinadas pela cartelização da economia que, por sua vez, incidiu na estrutura da família patriarcal e na função da autoridade paterna. Dentre tais traços, encontram-se o elogio à modéstia, a autodisciplina do corpo e o respeito à autoridade, pois tais valores foram inculcados como qualidades essenciais à economia moderna e às novas formas de relações humanas que viriam a se instalar com a expansão do capitalismo industrializado. Desta forma, o rechaço contra os impulsos irracionais marcou antropologicamente a origem do indivíduo burguês, cujo fundamento e ascensão se deu na relação entre autossacrifício/renúncia e busca pela autoconservação (HORKHEIMER, 2015a). A autoconservação como qualidade a ser incentivada para o ajustamento dos sujeitos à sociedade que, cada vez mais, desenvolve forças produtivas para a exploração totalitária da natureza, foi potencializada com o predomínio da razão instrumental (HORKHEIMER, 1971). O sujeito que ainda mantinha relativa autonomia no capitalismo liberal foi eliminado por meio de sua autoconservação que não mais visou ultrapassar a sociedade altamente administrada pelas grandes corporações.

Como mencionado mais acima, a respeito da educação disseminada pelo protestantismo, Horkheimer ilustra isso nas seguintes passagens da introdução de Estudos sobre Autoridade e Família:

O protestantismo ajudou o sistema social em preparação a introduzir aquele sentimento pelo qual o trabalho, lucro e poder de dispor do capital como um fim em si mesmo substituísse uma vida centralizada numa felicidade terrena ou também celeste. O homem não deve curvar-se perante a Igreja, como acontecia no catolicismo; deve apenas a aprender a curvar-se, a obedecer e a trabalhar [...].

A teimosia da criança tem de ser quebrada, e o desejo primitivo de um desenvolvimento livre de seus impulsos e faculdades deve ser substituído pela obrigação interior de cumprir o dever incondicionalmente. A sujeição ao imperativo categórico do dever foi, desde o início, um objetivo consciente da família burguesa (HORKHEIMER, 2015b, p. 214-215).

A individualidade que se configurava na família burguesa respaldou-se no senso do dever e na contenção das pulsões. O amor ao trabalho e a ideia de sacrifício tornaram-se qualidades essenciais para a implementação da incipiente economia moderna e às novas formas de vida que, timidamente, e tardiamente, apareceriam na Alemanha no início do séc. XX. Embora o filme retrate um vilarejo alemão ainda com resquícios semifeudais, a questão da educação autoritária e da formação do caráter individual voltado para o trabalho, a retidão e o repúdio ao prazer, necessário para as transformações históricas e econômicas que viriam se configurar, estão no centro do enredo da película O novo regime econômico precisou não somente de coação moral, política e religiosa para se instalar e reforçar a linguagem dos fatos econômicos como naturais como também de pessoas subordinadas aos poderes “sacros e profanos” para incorporarem uma ética autoritária, voltada para a coibição da satisfação pulsional e erótica (HORKHEIMER, 2015a). Lembra Horkheimer que o resultado desta renúncia, proclamada como “virtude burguesa”, foi o desenvolvimento da hostilidade contra o prazer livre, também se revertendo em impulsos de crueldade contra tudo aquilo que se “desviasse” da moral idealista. Contudo, a opressão gerada por uma formação baseada na rigidez e na resignação necessárias ao processo de individuação, bem como as fortes pressões econômicas advindas do progresso cultural sobre os homens, resultariam na revolta de muitos contra os valores civilizatórios cristãos ou aos ideais culturais que, no fundo, nunca tiveram forte ascendência sobre as massas oprimidas, principalmente para as pessoas que viviam nos campos (HORKHEIMER, 2015a). Ou seja, o “ressentimento erótico” advindo da rigidez moral e da educação burguesa deslocou-se para a introjeção do ódio pela felicidade e pelo prazer, cuja revolta transmutou-se no desprezo pelos valores espirituais e culturais da civilização, bem como contra todos aqueles que pudessem rememorar “imaginariamente” o prazer ou tais valores. Veremos mais adiante que todos estes fatores foram explorados pelo fascismo. Assim, os traços encontrados no caráter autoritário, pelos quais a propaganda e política fascista se apoiaram, foram os produtos da internalização de componentes irracionais da sociedade moderna: a cisão estabelecida entre vida espiritual e a prática burguesa de dominação totalitária sobre a natureza pelo trabalho.

No caso do filme, demonstram-se alguns destes aspectos no tipo de educação em jogo nas cenas mostradas, principalmente a lógica da hierarquia instalada nas diversas relações de submissão de um a outros: a submissão da população ao pastor, a submissão dos trabalhadores rurais ao barão, a submissão das mulheres aos homens e a submissão das crianças ao pai e a todos os adultos do vilarejo. Parte do projeto ideológico de moralização para a implementação do “espírito burguês”, segundo Horkheimer (2001), foi a projeção de uma imagem de infância associada à pureza, um ideal que acabou por revelar a forçada interiorização das pulsões. Como ilustrado no filme, a formação das crianças vinculou-se à imposição de uma moral idealista em contradição com a prática brutal de humilhação e controle do corpo, entendido como sede natural do homem e fonte do “mal”.

No texto A Nova Mentalidade Alemã, Marcuse (1999), com base em uma vasta literatura sobre o tema, apresenta outros elementos para o entendimento das raízes do nazismo e seus componentes subjetivos. Estas se encontrariam em toda a história da Alemanha desde a Reforma, nas quais os fatores psíquicos que fizeram parte disso, além das questões políticas, tecnológicas e econômicas, estariam interligados aos traços mais “profundos e arraigados do caráter alemão” (MARCUSE, 1999, p. 208). Apresentando a racionalidade pragmática do totalitarismo que, afinada com os objetivos econômicos do industrialismo estabeleceu o pleno emprego num País em crise após a primeira guerra, Marcuse não deixou de analisar os mecanismos psicológicos que a política nazista soube explorar a fim de aliciar as massas para aderirem às suas pautas irracionais e autoritárias. As propagandas nacional-socialistas apelaram para os sentimentos e os afetos de revolta das massas contra as ideias civilizatórias cristãs, principalmente aquelas alavancadas pelo protestantismo desde Lutero. Assim, a abolição dos tabus sobre a sexualidade, o ataque contra a família burguesa com o fim da separação entre a esfera pública e a privada, e mais a destruição da ética secular foram alguns dos elementos utilizados pela linguagem das propagandas para manter os indivíduos “felizes” e comprometidos com a pátria, além de promoverem suas “satisfações” materiais imediatas. Diz Marcuse: “O nacional-socialismo se viu obrigado a atacar alguns dos tabus que a civilização cristã havia imposto sobre a vida privada e social. O lado mais evidente é o ataque a certos tabus sobre a sexualidade, a família e código moral” (MARCUSE, 1999, p. 199). As estratégias utilizadas pela política nazista foi a de incitar o descontentamento latente com a civilização e revertê-lo em forças agressivas e reacionárias, fomentando o protesto contra todas as frustrações infligidas pela imposição de um modo de ser “burguês”, e das pressões advindas de instituições sociais e culturais mediadoras da constituição da individualidade. Horkheimer, também discutindo a respeito dos agitadores totalitários, levanta a ideia de que “Hitler apelou para o inconsciente de seu público sugerindo que poderia forjar um poder no qual seria suspenso os interditos à natureza reprimida”, com a liberação controlada dos tabus tradicionais (HORKHEIMER, 2015b, p. 134). Somado a isso tudo, acerca dos pressupostos objetivos do nazismo, Marcuse analisa os fatores relacionados à malograda revolução da classe média alemã, bem como a tardia modernização na Alemanha que impediram uma autêntica formação para a autodeterminação, além de ter sido preservada uma arraigada mentalidade antiburguesa em amplas camadas sociais. O prolongado semifeudalismo na Alemanha e suas relações de dominação e subordinação em parte explicariam os elementos autoritários e patriarcais presentes nestas relações, já que as formas de integração social produzidas pela economia de mercado das sociedades liberais, também baseadas no modelo de democracia formal nunca foram totalmente inculcadas na população. A rebelião contra os ideais de direitos humanos, de liberdade e de igualdade que nunca de fato se efetivaram, serviu de fermento para os movimentos de massa manipulados pela política nacional-socialista que se utilizou da “revolta” social popular para suas finalidades destrutivas. Estes elementos mobilizados pelo nacional-socialismo, para também implementar a industrialização e toda a tecnologia para a reprodução bélica, tornaram-se fortes aliados para a difusão da ideologia do terceiro Reich. As restrições e frustrações advindas de uma educação autoritária baseada nos padrões patriarcais e monogâmicos, somadas à impotência dos valores democráticos que não vingaram com a crise econômica surgida durante a República de Weimar, todos estes aspectos foram utilizados pelos nazistas para chegarem ao poder. Eles instigaram os estratos mais atrasados e excluídos pelo processo de desenvolvimento do capitalismo industrial a participarem da estrutura demagógica fascista, a fim de reforçar o domínio dos grupos industriais que queriam predominar na sociedade alemã, com a manutenção do status quo. Diz Marcuse:

O fato de a República de Weimar ter deixado de cumprir suas promessas foi usado pelos nacional-socialistas para fomentar a desconfiança e o ódio com relação às ideias supremas da civilização cristã como tal, uma desconfiança e um ódio que se enraizaram profundamente em grande parte da população alemã [...]. A revolta contra a civilização cristã surge de várias formas: antissemitismo, terrorismo, darwinismo social, anti-intelectualismo, naturalismo. Comum a todos eles são a rebelião contra os princípios restritivos e transcendentais da moralidade cristã (MARCUSE, 1999, p. 198).

O autor também ressalta o papel peculiar que o conceito de natureza ocupou no pensamento e sentimento alemão, sendo este fator também responsável pelo veemente protesto contra a civilização utilizado pelas propagandas nacionalistas. Os apelos das propagandas para ideias irracionais como “sangue e solo”, raça, povo e nação mobilizaram não somente os componentes mais regressivos das massas, como constituíram as bases dos movimentos eugenistas e antissemitas, cujos registros se respaldaram na ordem do “natural” em detrimento de uma verdadeira consciência das relações sociais de dominação. A natureza ideologicamente interpretada pelo nacional-socialismo como fonte de impulsos, instintos e também como a essência da “alma alemã”4, em contraposição aos valores e padrões culturais ocidentais, teve papel fundamental nas políticas autoritárias para o estabelecimento da falsa ideia de hierarquia entre os povos apoiada na concepção de desigualdade “natural”. Toda esta “mitologia” serviu para justificar a expansão do imperialismo em larga escala: “A aparente irracionalidade da mitologia nacional-socialista emerge como racionalidade da dominação imperialista” (MARCUSE, 1999, p. 207).

Todos os elementos aqui esboçados, e mais outros, aparecem no filme, a saber: a educação de crianças pautada na frieza e na dureza, destinada à imposição de valores absolutos dados como um fim em si mesmos; a imposição de uma rígida moralidade cristã como instrumento de controle do corpo (em contraponto às perversões e à violência liberadas na vida daqueles que se dizem portadores da virtude e da moral); as relações coisificadas entre os personagens como sintomas do clima autoritário promovido pela educação repressiva (a filha do médico que se torna objeto de abuso e de gozo por parte do pai); o falso ideal de pureza inerente ao puritanismo burguês projetado na infância; as relações patriarcais de dominação presentes nas famílias; o ascetismo e mais o culto à terra e à natureza pela tradição da aldeia. A este respeito, ressaltamos as cenas de quadros suntuosos da natureza do norte da Alemanha onde se encontra o vilarejo em que se passa o filme. Tais cenas evocam a exaltação da natureza e da terra promovida pelas campanhas publicitárias totalitárias, cujos elementos reverberaram na mentalidade alemã, assim incitando a fúria assassina das massas contra todas aquelas minorias que pudessem rememorar a fragilidade da natureza dominada: os judeus, os negros, os loucos, as pessoas com deficiência e as crianças (HORKHEIMER; ADORNO, 1985).

Acerca da ambivalência amor/ódio pela natureza que atravessa a história da civilização ocidental, Horkheimer e Adorno (1985) no fragmento “Interesse pelo corpo” refletem sobre a exploração disto pelo fascismo, e seus efeitos nas relações patogênicas dos homens com o corpo. Eles descrevem que “Sob a história conhecida da Europa corre, subterrânea, uma outra história. Ela consiste no destino dos instintos e paixões humanas recalcados e desfigurados pela civilização” (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 216). Os autores, também se apropriando das ideias freudianas sobre o “retorno do recalcado” para a análise filosófica, social e psíquica da dominação do corpo, apresentam as raízes do rebaixamento deste como objeto de coisificação e de crueldade que aparecem nas tendências regressivas da sociedade, como, por exemplo, nas políticas autoritárias. A história da civilização burguesa teve como resultado a vingança da natureza mutilada como resposta à divisão social do trabalho que, fonte de todas as injustiças sociais, promoveu a ideia de superioridade do trabalho intelectual em detrimento do trabalho físico. A escravização e a exploração do corpo do outro, e a violência das grandes colonizações fizeram parte desta história. Como dizem Horkheimer e Adorno (1985, p. 217), “com o auto rebaixamento do homem ao corpus, a natureza se vinga do fato de que o homem a rebaixou a um objeto de dominação, de matéria bruta”. Isso pode ser visto nos excessos de puritanismo presente na hostilização da “carne”, na redução das vítimas ao “corpo natural/biológico”, como nas campanhas fascistas de louvação do corpo jovem e viril. Também a natureza parece triunfar de forma deturpada em nossa cultura nas compulsões à crueldade contra os desamparados e inadequados pela lógica dominante, na reificação do corpo nos excessos de higiene e de cuidados de beleza, mas, principalmente, na humilhação sádica dos prisioneiros dos campos de concentração. Em geral, os judeus e todas as outras “raças diferentes” foram colocados na condição de espécies inferiores na escala evolutiva.

Ainda acrescentam os autores que o amor da propaganda nazista pela natureza não foi nada mais do que uma superficial reação formativa ao reconhecimento de que somos também natureza (corpo biológico-natural), relacionada à recordação ancestral da proto-história biológica da espécie humana que teve que ser recalcada para fins do progresso: “Não podemos nos livrar do corpo e nós o louvamos quando não podemos golpeá-lo” (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 219). Na idealização e na exaltação do corpo e da natureza escondem-se o ódio a eles, instilado pelo medo do sujeito dominador de perder a sua identidade. Este medo e terror, contudo, são projetados nas imagens sobre as minorias que, socialmente mais frágeis e desamparadas, aparecem aos olhos do dominador como próximas à natureza arcaica (e, por isso, violentadas e massacradas). Na violência do carrasco sobre as vítimas, repete-se a brutalidade da dominação da natureza que deve sempre ser negada e transformada em objeto, matéria a ser explorada. Concluem Horkheimer e Adorno que as manifestações de um corpo sensível pulsional foram obstadas e silenciadas pela lógica que sustenta a abstrata racionalidade do mundo moderno, no qual os homens, impedidos de obter prazer e do próprio senso de felicidade pelo processo civilizatório, manifestaram sua fúria nos atos bárbaros contra aqueles que possam vir a representar a alteridade (a “não identidade”). As “alteridades” nos fazem recordar de nossa própria impotência imposta por uma sociedade marcada pela não realização dos conceitos de justiça, igualdade e liberdade propugnados pelos ideais da modernidade. A louvação do trabalho trazida pelo cristianismo e pelo puritanismo, a fim de estabelecer a ordem burguesa moderna, teve como fundamento a humilhação do corpo, interpretado como a fonte de todo o mal. Como já apontado aqui, nosso processo histórico e a constituição da subjetividade também se basearam na negação e rebaixamento do corpo como algo “inferior” e ignominioso.

Não é à toa que a relação entre auto sacrifício/repressão/recalque e atos de crueldade contra o “outro” como respostas à opressão é mostrada no enredo do filme. Neste sentido, remetemos à cena na qual a filha do pastor, depois de ser duramente punida pelo pai na escola durante a aula de catecismo (e que pela humilhação sofrida, acaba tendo um desmaio), assassina o pássaro do pai pastor com uma tesoura. Isso por si só apresenta o clima de ódio e de terror que ronda os fatos narrados no filme, como também, a nosso ver, anuncia o que seria o holocausto alguns anos depois. Também não é à toa que o filme aborda as raízes do mal ao apresentar as condições psíquicas e culturais da barbárie que viriam a tomar forma durante a Segunda Guerra. O grupo de crianças liderado pela filha do pastor comete atos de torturas contra as crianças da aldeia que simbolizam a felicidade e a fragilidade do corpo: o filho da baronesa (criança de uma classe social mais abastada e protegida pelo amor da mãe) e o filho da parteira (criança que tem uma deficiência).

Na pesquisa A Personalidade Autoritária publicada em 1950 na Universidade de Berkeley, coordenada por Adorno, uma das características que distinguiu o sujeito com potencial fascista foi justamente a frieza e a incapacidade de levar a cabo experiências humanas, em que nele se revelava a afeição exagerada a coisas e a objetos que, por sua vez, se manifestava num tipo de relação coisificada com as pessoas, vistas também como objetos a serem manipulados e descartados (ADORNO, 1995). Apresentou-se nesta “tipologia” um modo de raciocínio estereotipado sobre a realidade e sobre as minorias, juntamente a um realismo sem freios a partir do qual o caráter potencialmente fascista não consegue imaginar o mundo diferente do que é. Relembra Adorno nos seus textos tardios sobre uma educação contra a barbárie que este tipo se encontra muito mais disseminado do que se pode imaginar, dadas a condições objetivas que privilegiam de forma muito mais contundente o homem pragmático e eficiente na nossa sociedade, sendo que a tendência de desenvolvimento deste caráter encontra-se vinculado ao conjunto de nossa civilização. As pessoas com tendências autoritárias são o resultado de elementos antidemocráticos presentes em nossa cultura e educação, e o retorno ou não do fascismo, para além de uma questão psicológica, relaciona-se a tais elementos. Mas Adorno não deixa de chamar a atenção para a educação na primeira infância que impeça a formação de pessoas “frias” (a frieza da “mônada social” incentivada pelo modo de vida baseado estritamente na autoconservação, na concorrência e no esforço pela subsistência). E acrescenta que “o único poder efetivo contra o princípio de Auschwuitz seria a autonomia, para usar a expressão kantiana; o poder para a reflexão, a autodeterminação, a não-participação” (ADORNO, 1995, p. 125).

A respeito da atmosfera social recheada de componentes autoritários, as pressões de uma sociedade irracional e de forças econômicas cegas sobre as vidas dos homens têm aumentado em graus crescentes enquanto condições de desenvolvimento do capitalismo tardio (ADORNO, 1995). Como mesmo afirmou Adorno (1995, p.120), apoiado pelas ideias de Freud sobre o mal-estar na cultura, “se a barbárie encontra-se no próprio princípio civilizatório, então pretender se opor a isso tem algo de desesperador”, pois quanto mais fechada a estrutura social e menor possibilidade de liberdade, mais hostilidade e mais agressividade são geradas nas relações humanas. Entretanto, como a estrutura básica da sociedade capitalista de produção ainda prevalece, agora acelerada pelo desenvolvimento do aparato tecnológico, e como cada vez mais as pessoas estão sendo reduzidas a meras funcionárias da engrenagem do sistema, a questão da educação/formação torna-se algo importante para se contrapor à repetição de Auschwitz.

De fato, na contemporaneidade encontramos cada vez mais o enfraquecimento de antigas autoridades e modelos de educação baseadas nelas5, o que não significa que a reprodução do pensamento padronizado e de comportamentos preconceituosos, além da relação fetichizada com os conteúdos culturais tenham desaparecido. Pelo contrário. A educação hoje entendida como adaptação e conformidade à vida real, e fomentadora da competição entre os sujeitos na qual a mera apropriação técnica dos conteúdos torna-se a meta das políticas pedagógicas, impede, assim, aos homens o desenvolvimento de seu pensamento autônomo. Além disso, substituídos os modelos de autoridade de tempos pretéritos pelas formas de socialização diretamente oferecidas pelo mass media ou pelos coletivos que se impõem desde cedo na vida dos sujeitos, a contraposição e resistência do indivíduo contra a realidade social tornou-se cada vez mais impossível. Destacando-se unilateralmente o momento de adaptação nos processos educacionais e impedindo outras relações com os saberes e as pessoas que não sejam aquelas estabelecidas pela racionalidade instrumental, cria-se assim uma atmosfera opressiva em que as pessoas acabam por achar natural “se darem cotoveladas” num mundo altamente administrado. O que ainda se encontra por trás das concepções educacionais são as ideias de adaptação e de ajustamento dos sujeitos a uma realidade inquestionável, dadas como imperativas para o bom desempenho das pessoas na vida social e do trabalho. Não podemos também deixar de lembrar sobre o legado de representações e práticas violentas que as escolas historicamente carregam consigo (por exemplo, a antigas punições físicas e, ainda, a hierarquia estabelecida entre alunos que obtêm “boas notas” versus os alunos-problemas e não adaptados), tendo em vista a sociedade prenhe de manifestações bárbaras que atravessam as relações escolares. Quando as escolas privilegiam os “bons comportamentos” e a competição entre os alunos tendo como centro o desenvolvimento da racionalidade formal, impedindo a possibilidade de aprofundamento de contatos mais “espontâneos” entre os sujeitos e destes com os bens culturais dentro de experiências culturais significativas (música, teatro, dança), segundo Adorno (1995), isso acaba contribuindo para a formação do caráter potencialmente autoritário.

Enfim, no filme, a lógica que perfaz a educação presente nas relações hierárquicas estabelecidas entre os adultos e as crianças é a brutalidade, em franca contradição aos ideais de virtude proclamados no seio da família e pela religião de uma falsa sociedade ordeira e austera. Tais conceitos elevados a um plano abstrato, descolados da realidade social e colocados como valores absolutos, ao lado de ações voltadas para o controle e dominação das idiossincrasias e “naturezas disformes” das crianças (os castigos físicos e psicológicos aplicados como técnicas pedagógicas), só puderam atuar a favor da constituição do caráter autoritário, cujas características revelam a inclinação de sujeitos à violência, entregues sem críticas às forças cegas de coletivos totalitários que historicamente surgiram para atender os fins de uma racionalidade dominadora. A “virtude burguesa” baseada na mutilação da natureza e, concomitantemente, da subjetividade teve como resultado o desenvolvimento da hostilidade contra o prazer livre, revertendo-se em impulsos de crueldade contra tudo aquilo que se desviasse da moral idealista. O distanciamento e a frieza tornaram-se verdadeiras categorias antropológicas da individualidade burguesa, cuja crise propiciada pelas mediações econômicas e pela racionalidade dominadora totalitária sobre a natureza culminou no irracionalismo e na autodestruição da cultura. Como foi aqui apontado, tudo isso serviu de instrumento para as políticas autoritárias e para sua práxis assassina. A cultura que não cumpriu suas promessas e que se estabeleceu pela brutal divisão entre os homens a partir da cisão entre trabalho material e espiritual, entre corpo e intelecto, entre trabalho e prazer, entre a idealização do homem e o desprezo pelo homem concreto, produziu o ressentimento naqueles que nela se encontraram mutilados e oprimidos. A Fita Branca, assim, anuncia as condições psicossociais que permitiram o fascismo e o tipo antropológico chamado de “personalidade autoritária”. Michael Haneke expõe em sua narrativa perturbadora os desdobramentos da violência instalada no seio do processo civilizatório: a reprodução do horror como resposta ao ressentimento provocado pela pseudoformação.

Referências

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1Numa passagem de Autoridade e Família, Horkheimer chama a atenção para o fato de que a tarefa da família de educar para o comportamento autoritário na sociedade foi descoberta muito antes pelo cristianismo, e exemplifica citando os ensinamentos de Santo Agostinho sobre a educação de crianças. Porém, como a teoria crítica desdobra-se sobre o percurso da antropologia burguesa a fim de esclarecer as transformações históricas dos destinos do indivíduo moderno, para traçar a “tipologia” do caráter autoritário sob o desenvolvimento do capitalismo tardio, a questão do protestantismo e da Reforma tiveram destaque nos textos de Horkheimer para apontar os fundamentos desta individualidade em seus aspectos ideológicos e psíquicos, necessários para a economia burguesa (remetemos ao texto Egoísmo y Movimiento liberador, de 1933). Claro que Horkheimer também não deixa de mencionar os elementos revolucionários contidos na Reforma para ajudar a instalar a nova sociedade. Mas para intuitos deste trabalho, os aspectos regressivos e autoritários presentes na educação puritana são discutidos, principalmente porque são estes que aparecem no filme.

2Em uma entrevista, Haneke afirma que o filme não é só uma condenação do nazismo, mas também explicita o perigo das ideologias extremistas tanto de direita quanto de esquerda, além dos fanatismos religiosos. Ele diz: “As crianças [do filme] são doutrinadas e se tornam juízes dos outros. Justamente daqueles que empurram sua ideologia “goela a baixo” dessas crianças” (Trecho livremente traduzido por Mauricio Stycer de entrevista de Haneke a revista New Yorker).

3A este respeito da teologia negativa presente na teoria crítica, diz Silva (2011, p. 237) que tanto Horkheimer quanto Adorno fazem desta máxima proibitiva a justificativa para não definir a sociedade ideal, pois isso equivaleria a construir uma imagem do “paraíso” que, por sua vez, iria contra os preceitos do judaísmo.

4Marcuse faz menção numa nota de rodapé ao livro Mein Kampf no qual Hitler se utiliza do conceito de natureza para confrontar as verdadeiras relações humanas com as formas “pervertidas da civilização” (MARCUSE, 1999, p. 213).

5Não podemos deixar de mencionar que no contexto político e social atual no Brasil estamos vivenciando grandes retrocessos nas políticas sobre a educação com a forte presença de vários segmentos políticos ultraconservadores (parlamentares evangélicos e católicos) no congresso, que tem continuamente interferido no Plano Nacional de Educação e contra conquistas de movimentos sociais. O conservadorismo moral, principalmente advindo das igrejas neopetencostais, com grande peso do Congresso Nacional, tem retomado as ideias sobre a família patriarcal e tradicional como modelo a ser defendido e reconhecido.

Recebido: 02 de Abril de 2018; Aceito: 21 de Novembro de 2018

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