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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.32 no.66 Uberlândia set./dez 2018  Epub 22-Set-2020

https://doi.org/10.14393/revedfil.issn.0102-6801.v32n66a2018-07 

Artigos

A indústria cultural algorítmica na era da Internet das Coisas

The algorithmic cultural industry in the age of Internet of things

La industria cultural algorítmica en la era de Internet de las cosas

Vânia Gomes Zuin* 

Antônio Álvaro Soares Zuin** 

*Doutora em Química e em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professora Associada do Departamento de Química e dos Programas de Pós-Graduação em Educação e Química (PPGE e PPGQ) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR). Bolsista Produtividade em Pesquisa CNPq. E-mail: vaniaz@ufscar.br

**Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor-Titular do Departamento de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFSCar. Bolsista Produtividade em Pesquisa CNPq. E-mail: dazu@ufscar.br


Resumo

A Internet das Coisas e a tecnologia algorítmica de captura, ranqueamento e classificação de dados aproximam-se cada vez mais na denominada cultura digital. A partir do momento em que os bilhões de objetos puderem como que “conversar initerruptamente entre si”, e estes dados forem coletados, armazenados, interpretados, selecionados e transmitidos para o controle de empresas gigantes tais como Google, Facebook e Amazon, os algoritmos dos mecanismos de busca destes gigantes da Internet poderão ranquear e classificar as informações de tal forma inaudita. Diante deste contexto, os autores deste artigo têm, como principal objetivo, refletir criticamente sobre o modo como determinadas características da indústria cultural se metamorfoseiam diante da consolidação de sua reprodutibilidade algorítmica na sociedade da Internet das Coisas. Pretende-se também analisar as consequências da indústria cultural algorítmica em relação à autoridade, à formação, à personalização, à vigilância e à memória.

Palavras-chave: Indústria cultural algorítmica; Internet das Coisas; Cultura digital; Teoria crítica; Semiformação

Abstract

The Internet of Things and the algorithmic technology of capturing, ranking and classifying data are increasingly approaching each other in the so-called digital culture. From the moment billions of objects are able to “talk uninterruptedly among themselves” and these data are collected, stored, interpreted, selected and transmitted to control giant companies such as Google, Facebook and Amazon, algorithms of the mechanisms of Internet giants may rank and classify information in such an unprecedented way. In this context, the main objective of this article is to reflect critically on the way certain characteristics of the cultural industry morph in face of the consolidation of their algorithmic reproducibility in the Internet society of things. It is also intended to analyse the consequences of the algorithmic cultural industry in relation to, authority, formation, personalisation, vigilance and memory.

Keywords: Algorithmic cultural industry; Internet of things; Digital culture; Critical theory; Semiformation

Resumen

La Internet de las cosas y la tecnología algorítmica de captura, ranqueamiento y clasificación de datos se acercan cada vez más a la denominada cultura digital. A partir del momento en que los miles de millones de objetos puedan como “conversar ininterrumpidamente entre sí” y estos datos se recopilan, almacenan, interpreta, se seleccionan y se transmiten al control de empresas gigantes tales como Google, Facebook y Amazon, los algoritmos de los mecanismos de búsqueda de estos gigantes de Internet podrán ranquear y clasificar las informaciones de tal forma inaudita. Ante este contexto, los autores de este artículo tienen, como principal objetivo, reflexionar críticamente sobre el modo en que determinadas características de la industria cultural se metamorfosean ante la consolidación de su reproducibilidad algorítmica en la sociedad de Internet de las cosas. Se pretende también analizar las consecuencias de la industria cultural algorítmica en relación a la autoridad, la formacion, la personalización, la vigilancia y la memoria.

Palabras clave: Industria cultural algorítmica; Internet de las cosas; Cultura digital; Teoría crítica; Semiformación

Introdução

Quando Adorno e Horkheimer apresentaram ao mundo o conceito de Indústria Cultural, que se tornou decisivo para o desenvolvimento de várias áreas de pesquisa, a ênfase aplicada à crítica da ideologia da personalização dos chamados produtos culturais ocorreu no apogeu da chamada revolução tecnocientífica do capitalismo monopolista. Em meio ao recrudescimento cada vez maior de mercadorias padronizadas, inclusive na dimensão cultural, tal como no caso do filme hollywoodiano, seria fundamental que cada um dos produtos fosse ideologicamente apresentado aos seus consumidores como portadores de características próprias. Justamente esta aparência de diferenciação seria consubstanciada com a sensação dos consumidores de que determinado produto cultural precisaria ser adquirido, pois atenderia completamente as particularidades daqueles que o consumiam, como se fosse projetado para se adequar o denominado jeito de ser de cada um deles.

A crítica da ideologia da personalização dos produtos culturais, os quais seriam padronizados e massificados desde o momento da concepção, foi certamente uma das principais contribuições de Adorno e Horkheimer para a elaboração da denominada Teoria Crítica da sociedade. Através da análise dos elementos objetivos e subjetivos da indústria cultural, estes pensadores frankfurtianos desvelaram os mecanismos de produção, distribuição e consumo dos produtos culturais. Além da investigação dos elementos objetivos de tal processo de mercantilização destes produtos, há que se reconhecer a maneira pela qual estes pensadores investigaram as consequências danosas à formação (Bildung) decorrentes de tal consumo.

Exatamente o conceito de semiformação (Halbbildung), elaborado por Adorno, já ilustrava, no final da década 1960, a maneira pela qual os consumidores dos produtos da indústria cultural como que insistiam na produção e reprodução da ideologia que os escravizava, para fazer uso de uma expressão frankfurtiana. Seguindo esta linha de raciocínio, é interessante enfatizar a escolha de Adorno pelo conceito Halbbildung para expressar os danos na dimensão subjetiva, portanto formativa, derivados do consumo dos produtos da indústria cultural. Pois a sutileza da escolha denota o modo como a semiformação ideologicamente é apresentada como formação completa quando, na verdade, trata-se de uma incompletude que resulta na inimiga mortal da Bildung. Ou seja, a falsidade da semiformação é identificada como resultado da pretensão de se apresentar como completo um processo formativo que está longe de ser caracterizado como tal.

Embora absolutamente atual, a crítica de Adorno e Horkheimer às dimensões objetiva e subjetiva da indústria cultural necessita ser revitalizada de acordo as mediações históricas vigentes, sobretudo na sociedade na qual os algoritmos dos mecanismos de busca de determinadas plataformas digitais possibilitam a realização de um tipo de personalização massificada outrora talvez imaginada apenas em romances de ficção científica. Assim, na sociedade da cultura digital, fazem-se presentes transformações radicais na própria indústria cultural, notadamente a partir da consolidação da revolução microeletrônica.

Diante do atual contexto, os autores deste artigo têm, como principal objetivo, refletir criticamente sobre o modo como determinadas características da indústria cultural se metamorfoseiam diante da consolidação de sua reprodutibilidade algorítmica na sociedade da Internet das Coisas. Pretende-se também analisar as consequências da indústria cultural algorítmica em relação à personalização, à formação, à autoridade, à vigilância e à memória. Mas antes de realizar tais objetivos, é necessário compreender o modo como o conceito de indústria cultural historicamente se consolidou em meio ao processo de instrumentalização da razão em meados da década de 1940.

A indústria cultural e o esclarecimento como autoengodo das massas

Certamente, um dos principais conceitos elaborados por Adorno e Horkheimer ao longo de vasta produção acadêmica se refere ao conceito de indústria cultural. Numa conferência radiofônica, posteriormente publicada no texto: A indústria cultural, Adorno asseverou o seguinte: “Tudo indica que o termo indústria cultural foi empregado pela primeira vez no livro Dialektik der Aufklärung1” (ADORNO, 1994a). A aproximação dialética entre duas esferas aparentemente contraditórias entre si, ou seja, a indústria e a cultura tornou-se, por assim dizer, uma espécie de marca registrada justamente destes pensadores frankfurtianos que tanto criticaram a submissão identitária às marcas dos produtos da indústria cultural. A ilusão da satisfação do desejo individual, mediante o consumo dos produtos da indústria cultural cinematográfica, foi destacada por Adorno da seguinte maneira:

Enquanto o processo de produção no setor central da indústria cultural - o filme - se aproxima de procedimentos técnicos através da avançada divisão do trabalho, da introdução de máquinas, e da separação dos trabalhadores dois meios de produção (…) conservam-se também formas de produção individual. Cada produto se apresenta como individual; a individualidade mesma contribui para o fortalecimento da ideologia, na medida em que se desperta a ilusão de que o que é coisificado e mediatizado é um refúgio de imediatismo e de vida (ADORNO, 1994a).

A ilusão de que os desejos particulares seriam atendidos por meio do consumo do filme se fundamentava na realidade de que, embora tal filme fosse apresentado como algo completamente singular e original era, na verdade, um produto completamente coisificado e mediatizado pela lógica de consumo dos produtos da indústria cultural cinematográfica. Ou seja, o filme que se apresentava como refúgio do imediatismo e da vida era algo mediatizado pela lógica da padronização e da massificação desde o seu nascedouro, de modo que o sofrimento dos heróis e suas respectivas redenções se faziam indefectivelmente presentes nos happy ends tantos dos filmes de western, quanto dos de ficção científica, por exemplo.

Para Adorno e Horkheimer, já na indústria cultural de meados do século 20 os consumidores de seus produtos eram como que mapeados em grupos específicos, de modo que fosse possível relacionar suas propagandas de acordo com as “particularidades” dos membros dos respectivos grupos. Assim, a pretensão era a de que ninguém fosse esquecido em sua condição de potencial consumidor. Segundo Adorno e Horkheimer,

O fornecimento ao público de uma hierarquia de qualidades serve apenas para uma quantificação ainda mais completa. Cada qual deve ser comportar, como que espontaneamente, em conformidade com seu level, previamente caracterizado por certos sinais, e escolher a categoria dos produtos de massa fabricada para seu tipo. Reduzidos a um simples material estatístico, os consumidores são distribuídos nos mapas dos institutos de pesquisa (que não se distinguem mais dos de propaganda) em grupos de rendimentos assinalados por zonas vermelhas, verdes e azuis. O esquematismo do procedimento mostra-se no fato de que os produtos mecanicamente diferenciados acabam por se revelar sempre a mesma coisa (ADORNO & HORKHEIMER, 1986).

De todo modo, a hierarquia de qualidades precisaria ser cada vez mais exaltada para que um dos produtos se destacasse em relação ao outro e tivesse, portanto, mais chances de ser consumido. Para tanto, a publicidade gradativamente se tornou elemento de importância crucial, inclusive na luta titânica que os produtos da indústria cultural já travavam entre si. No final do texto: “A indústria cultural: o esclarecimento como engodo das massas”, que foi publicado em 1944, Adorno e Horkheimer já afirmavam que “a publicidade é o elixir da vida” da indústria cultural (ADORNO & HORKHEIMER, 1986). Estes pensadores já haviam percebido uma mudança estrutural na esfera da mercantilização dos produtos simbólicos em meados da década de 1940, a saber: se, no período do capitalismo liberal, havia a preocupação em informar os consumidores sobre as características funcionais de novos produtos industrializados, tal como no caso da geladeira, já no capitalismo monopolista de produção em massa de mercadorias a publicidade se transformaria em elemento crucial do processo de compra e venda de produtos. Já naquela época, Adorno e Horkheimer afirmaram que “os custos de publicidade, que acabam por retornar aos bolsos das corporações, poupam as dificuldades de eliminar pela concorrência os intrusos indesejáveis” (ADORNO & HORKHEIMER,1986)

Em meio à disseminação em massa de mercadorias, tornava-se cada vez mais imperiosa a necessidade de que determinado produto se diferenciasse do seu semelhante para que pudesse ser percebido e, portanto, comprado. Para que isto ocorresse, seria preciso que o slogan publicitário despertasse não só a atenção, como também propiciasse a sensação de que supriria prazerosamente a realização de um determinado desejo do consumidor.

A ideologia da personalização tornou-se fundamental para que, já no capitalismo monopolista, houvesse a ilusão da diferenciação entre os produtos culturais. Mesmo se houvesse alguma desconfiança, o pseudoindivíduo se esforçaria para se submeter à sensação de que determinado produto cultural deveria ser consumido por justamente “expressar seu jeito de ser”. E para que este pseudoindivíduo pudesse se aferrar a esta ideologia que desde então já o escravizava, seria absolutamente necessário que as propagandas absolutamente padronizadas lhe fossem ofertadas por meio deste verniz de personalização. Na indústria cultural de meados do século 20, o verniz de personalização se afirmava historicamente como desmentido àquela promessa de emancipação do indivíduo da sua condição de menoridade, que foi tão destacada por Kant em suas obras de final do século 18. O ousar saber, característico de um tempo no qual as promessas de felicidade seriam afeitas à ruptura com as práticas de submissão a qualquer tipo de tutelagem, gradativamente é subsumido ao esforço do pseudoindivíduo em afirmar sua própria passividade diante e por meio do consumo dos produtos da indústria cultural. Seguindo esta linha de raciocínio, talvez fosse mais adequado o seguinte subtítulo do capítulo da indústria cultural da Dialética do Esclarecimento: ao invés de engodo das massas o mais correto seria usar a palavra autoengodo, principalmente pelo fato de que o prazer decorrente do consumo dos produtos da indústria cultural de certa forma já compensava a resignação do indivíduo em relação a este tipo de servidão voluntária, o mesmo indivíduo que foi caracterizado por Adorno como semiformado.

É interessante destacar o fato de que o próprio Adorno reconheceu a intensidade do esforço da pessoa semiformada em contribuir para seu autoengano ao compará-la a um inseto da seguinte forma: “A fim de se tornar um jitterbug não basta, de modo algum, desistir de si mesmo e ficar passivamente alinhado. Para ser transformado em um inseto, o homem precisa daquela energia que eventualmente poderia efetuar sua transformação em homem” (ADORNO, 1994b).

Mas o processo de danificação do espírito não ocorreu da noite para o dia. Pois durante o período de ascensão da burguesia como classe politicamente hegemônica, a autoridade exercia um papel de fundamental relevância para que o indivíduo pudesse elaborar sua própria identidade e exercer algum tipo de autonomia, mesmo se tal processo fosse identificado como algo doloroso e desafiador. Na esfera educacional, tal processo de elaboração identitária, por meio da relação estabelecida sob a vigilância do educador, foi enfatizado por Kant (1996), sobretudo na sua preocupação de que os educadores fomentassem o exercício da liberdade entre seus alunos em meio ao constrangimento da obediência das regras vigentes nas instituições escolares. Para resolver o impasse da prática da liberdade dos alunos em meio à obediência das leis dos contratos pedagógicos, Kant asseverou o seguinte:

É preciso habituar o educando a suportar que a sua liberdade seja submetida ao constrangimento de outrem e que, ao mesmo tempo, dirija corretamente a sua liberdade (…). É necessário que ele sinta logo a inevitável resistência da sociedade, para que aprenda a conhecer o quanto é difícil bastar-se a si mesmo, tolerar as privações e adquirir o que é necessário para tornar-se independente (KANT, 1996).

De acordo com o raciocínio kantiano, o aluno poderia gradativamente desenvolver sua condição de maioridade, na medida em que se conscientizasse de que sua capacidade de intervenção se alicerçaria na internalização da disciplina necessária, disciplina esta que seria engendrada por meio da relação dialógica com o educador reconhecido como figura de autoridade. Evidentemente, o desenvolvimento desta relação teria seus percalços, uma vez que determinados conflitos poderiam surgir entre educadores e educandos. Não por acaso, Freud posteriormente salientou a ambivalência de sentimentos de amor e ódio entre professores e alunos da seguinte maneira: “Bisbilhotávamos suas pequenas fraquezas (dos professores) e orgulhávamo-nos de sua excelência, seu reconhecimento e sua justiça. No fundo, sentíamos grande afeição por eles, se nos davam algum fundamento para ela, embora não possa dizer quantos se davam conta disso (…)”. E completa: “Estávamos, desde o princípio, igualmente inclinados a amá-los e a odiá-los, a criticá-los e respeitá-los” (FREUD, 1969, 286).

De certa forma, Freud revitalizou o dilema kantiano da possibilidade do exercício da liberdade em meio a práticas coercitivas na dimensão psicopedagógica, sobretudo quando observou que a internalização da disciplina por parte do aluno estava cognitiva e emocionalmente associada com o reconhecimento de que, por detrás do desejo de bisbilhotar as fraquezas dos educadores, havia um sentimento notório de admiração, pois eram estes que, gradativamente, expunham as informações que seriam coletivamente metamorfoseadas em conhecimento. É como se o aluno dissesse para si: “Não é fácil focar a atenção nos estudos, pois isso exige esforços físico e mental. Mas vou-me disciplinar para fazê-lo, pois um dia eu também poderei, quem sabe, me tornar um professor ou figura de autoridade equivalente”.

Ora, a concentração dos alunos nos conteúdos estudados não poderia ser apartada do tipo de relação que seria desenvolvida com os respectivos professores. É verdade que, em muitas ocasiões, os “educadores” obtiveram tal disciplina do alunado literalmente através do ferro e fogo, haja vista o histórico do emprego de violências física e psicológica, desde a Grécia antiga, aos alunos identificados como indisciplinados (LEGRAS, 2008). Porém, não menos verdadeiro foi o fato de que os alunos se sentiam estimulados a internalizar a disciplina necessária para a concentração nos conteúdos estudados em decorrência da admiração que sentiam por seus educadores, principalmente aqueles que promoviam relações dialógicas respeitosas no transcorrer do cotidiano escolar. Entretanto, o papel representado pela figura da autoridade do professor, bem como seu arrefecimento na sociedade da indústria cultural e da semiformação foi assim destacado por Adorno:

A autoridade fazia mediação, mais mal que bem, entre a tradição e os sujeitos. A formação desenvolvia-se socialmente da mesma maneira como, segundo Freud, a autonomia, o princípio do ego, brota da identificação com a figura paterna, ao passo que as categorias a que se chega por intermédio desta se voltam contra a irracionalidade das relações familiares. As reformas escolares cuja necessidade não se pode colocar em dúvida, descartaram a antiga autoridade, mas também enfraqueceram mais ainda a dedicação e o aprofundamento íntimo do espiritual, ao que estava vinculada a liberdade; e esta - contrafigura da violência - atrofia-se sem ela, conquanto não caiba reativar opressões por amor à liberdade (ADORNO, 2010).

É relevante observar que Adorno tinha consciência dos danos psicológicos, muitas vezes inconscientes, resultantes das relações afetuosamente tensas estabelecidas com as figuras de autoridade, tal como no caso dos professores. Contudo, as reformas escolares, que tiveram como fundamento epistemológico a necessidade de elaborar as práticas didáticas de acordo com os interesses dos alunos, em algumas ocasiões praticamente desconsideraram a identificação do professor como figura de autoridade, fato este que enfraqueceu “a dedicação e o aprofundamento íntimo do espiritual, a que estava vinculada a liberdade”. Com efeito, em todo o esforço do aluno na memorização dos conteúdos das disciplinas escolares também se fazia presente o desejo de demonstrar aos educadores ele ou ela era capaz de tal feito, o que poderia engendrar um sentimento de orgulho por parte dos educadores, sentimento este facilmente percebido pelo aluno no sorriso e no olhar de satisfação dos professores. Mas a atrofia da memória não poderia ser exclusivamente notada na relação professor-aluno, pois, segundo Adorno, ela seria característica do modo como a semiformação se espraiava na sociedade da indústria cultural do final da década de 1960:

A experiência - a continuidade da consciência em que perdura o ainda não existente e em que o exercício e a associação fundamentam uma tradição no indivíduo - fica substituída por um estado informativo pontual, desconectado, intercambiável e efêmero, e que se sabe que ficará borrado no próximo instante por outras informações (…). A semiformação é uma fraqueza em relação ao tempo, à memória, única mediação capaz de fazer na consciência aquela síntese da experiência que caracterizou a formação cultural em outros tempos (ADORNO, 2010).

O enfraquecimento da memória tornou-se decisivo para que a semiformação se consolidasse em 1960, justamente porque a experiência formativa, que se desenvolvia, mediante as relações conceituais entre elementos do passado, do presente e do futuro, foi substituída pelo estado “informativo pontual, desconectado, intercambiável e efêmero”. Este estado fora caracterizado por Adorno como a pedra angular da mentalidade do ticket, uma vez que quem a portava regredia “ao nível infantil da estereotipia e da personalização”. (ADORNO et al., 1972).

Na sociedade da hegemonia dos clichês pretensamente autossuficientes e absolutamente afeitos à indústria cultural, robusteciam-se tanto o pensamento estereotipado, quanto o preconceito delirante, na medida em que os vínculos históricos espaço-temporais conceitualmente elaborados eram solapados pela convicção açodada do “É isso, e ponto final!”, “Just do it!2. Pois esta expressão estava presente tanto nas etiquetas atribuídas aos que não faziam parte de um determinado grupo, quanto na atitude preconceituosa delirante que rotulava os chamados outsiders que deveriam ser alvo de humilhação e perseguição.

Se já no final da década de 1960 o arrefecimento da memória e o recrudescimento da semiformação se consubstanciavam com a propagação da mentalidade do ticket, nas formas da estereotipia e da personalização, o que dizer do cenário contemporâneo no qual os mecanismos de buscas do Google, por exemplo, permitem fazer com que nada mais possa ser esquecido? Será que, no atual contexto da memória eletronicamente eterna, a semiformação não mais existiria? Para responder questões como estas, faz-se necessária a análise da maneira pela qual a indústria cultural se revitaliza na sociedade da Internet das coisas.

A indústria cultural algorítmica na sociedade da Internet das coisas

Há diferenças significativas entre a indústria cultural de meados do século 20 e a que se torna hegemônica nestas primeiras décadas do século 21, cujo contexto é o da cultura digital. Pois é justamente nestas primeiras décadas do século 21 que se consolida a chamada Internet das coisas. Elaborado por um cientista britânico chamado Kevin Ashton em 1999, o conceito de Internet das Coisas se fundamentou na ideia de que, por meio da tecnologia de identificação por radiofrequência (RFID technology), os objetos não apenas poderiam como que se “comunicar”, como também selecionar, armazenar e “interpretar” os dados obtidos através desta comunicação, os quais seriam então retransmitidos para outros objetos.

Através da interface entre a biologia e a computação, nanosensores poderiam ser instalados em pessoas cardíacas, de modo que tais objetos como que “interpretariam” as alterações bioquímicas sinalizadores de um infarto iminente e as retransmitiriam para o aparelho celular de um médico. Desta forma, o paciente poderia receber a seguinte orientação em seu WhatsApp: “Vá imediatamente para o hospital, pois você sofrerá um ataque cardíaco em, no máximo, 20 minutos”.

Este tipo de aviso remete à lembrança do conto de ficção científica de Philip K. Dick, intitulado The Minority Report e publicado em 1956, no qual mutantes conectados com aparelhos eletrônicos previam os assassinatos de quaisquer pessoas, antes que os crimes fossem cometidos, e transmitiam estas informações para a polícia. Na sociedade da cultura digital, a temática deste conto de Dick (2002) já não pode ser mais caracterizada como ficção científica. Pois a tecnologia da Internet das coisas possibilita a conversão desta ficção numa realidade que pode salvar um número incalculável de vidas.

Porém, não se pode ignorar o fato de que a tendência hegemônica, na sociedade do capitalismo transnacional, seja a de que também esta tecnologia se transforme num fetiche, justamente porque, como asseverou Adorno, tal fetiche ocorre quando “os fins - uma existência digna do ser humano, são encobertos e apartados do consciente humano” (ADORNO, 1971). Sendo assim, o poder de vigilância inaugurado pela Internet das coisas torna-se incomensuravelmente maior do que a vigilância proporcionada por meio da instalação de câmeras, justamente porque:

1) Os sensores estão se tornando cada vez menores, de tal modo que, com os avanços da nanotecnologia, não se sabe como e quando as informações de quaisquer pessoas estarão sendo coletadas; 2) Consequentemente, bilhões de objetos do cotidiano podem ser equipados com tais sensores, fazendo com que novos tipos de dados sejam amealhados e 3) Uma vez que os dados coletados façam parte de um sistema de rede globalizado, eles podem ser potencialmente agregados a outras informações pessoais registradas a qualquer momento (WINTER, 2014).

Se Adorno e Horkheimer já haviam observado, em meados do século passado, que a indústria cultural tinha a pretensão de operar de tal forma que nenhum potencial consumidor fosse esquecido, uma vez que todos poderiam ser agrupados e classificados em determinados grupos de consumo de seus produtos, já na cultura da Internet das Coisas a vigilância ocorre de uma tal maneira que se cumpre que aquela pretensão de onipresença destacada pelos pensadores frankfurtianos em 1944. Evidentemente, vigilância implica em controle, tal como foi tão bem destacado por Foucault no livro de sugestivo título “Vigiar e punir” (FOUCAULT, 2001). Já o controle, obtido pelas informações dos nanosensores praticamente invisíveis, faz com que se desenvolva um tipo de visibilidade inaudita. Por meio da tecnologia da Internet das Coisas, uma videocâmara de um celular poderia ser conectada, de modo que “observar o que uma pessoa ou família estaria fazendo poderia não só exibir publicamente vidas privadas, como também possibilitar o acesso a dados e registros confidenciais” (GREENGARD, 2015).

Decerto, o controle onipotente de tamanha visibilidade não se restringe aos chamados produtos da indústria cultural atual, mas sim pode ser empregado em pessoas, de tal maneira que podem muito bem serem imaginadas novas formas de dominação, inclusive na esfera educacional. Por meio de nanosensores instalados nas roupas, pulseiras, ou até mesmo no corpo, os alunos poderão ser monitorados através de um tipo de panóptico de tempo contínuo, portanto atemporal, e sem quaisquer restrições de espaços.

Se a internalização das disciplinas, inclusive daquelas que, kantianamente falando, impeliam o indivíduo para sua emancipação (Mündigkeit) pautaram-se historicamente pelo aprendizado do controle das tensões estabelecidas mediante os confrontos respeitosos de opiniões divergentes, há que se perguntar que tipo de consciência moral poderia ser desenvolvida na sociedade na qual a Internet das Coisas possibilita o exercício da onipotência do panóptico atemporal e espacialmente ubíquo. Provavelmente, em termos psicológicos, a consciência moral tenderá a ser substituída pelo mecanismo de identificação com o agressor de forma inédita, pois a criança hoje vigiada se submeterá ao controle em nome do desejo de futuramente poder vigiar e garantir pretensa segurança através da manipulação dos nanosensores.

Além do poder de vigilância ubíqua que a Internet das Coisas porta consigo, é preciso também considerar o fato de que as informações coletadas pelos nanosensores implantados nos mais variados objetos, e mesmo seres vivos, alimentam, por assim dizer, a formação de um conjunto de dados cuja dimensão é atualmente exposta por meio da expressão: big data. Ou seja, a partir do momento em que os bilhões de objetos puderem como que “conversar initerruptamente entre si” e estes dados forem coletados, armazenados, interpretados, selecionados e transmitidos para o controle de empresas gigantes tais como Google, Facebook e Amazon, os algoritmos dos mecanismos de busca destes gigantes da Internet poderão ranquear e classificar as informações, de tal forma que finalmente se realizará em toda a sua amplitude a profética constatação de Bacon de que ciência e poder deveriam plenamente coincidir (BACON, 1973).

No contexto da indústria cultural algorítmica, destaca-se o PageRank. Desenvolvido em 1998 por Larry Page e Sergey Brin, este algoritmo fez com que o Google ranqueasse websites por meio de seus mecanismos de busca, de modo que se tornou possível calcular a importância de determinados websites através na quantidade de links que, quando acessados, remetiam à conexão destes websites. O Pagerank não é o único algoritmo utilizado pelo Google, até porque, de lá para cá, o desenvolvimento tecnológico dos algoritmos dos mecanismos de busca não só do Google, como também da Amazon, do Facebook, do YouTube, entre outros, não parou de crescer. E justamente o recrudescimento do poder social destes algoritmos e, portanto, de quem os controla, determina e determinará ainda mais a maneira como qualquer tipo de informação será coletada, armazenada, selecionada, ranqueada e disponibilizada.

É nesse sentido que o poder social dos algoritmos se manifesta na forma explícita que contrasta com o resguardo das empresas gigantes, anteriormente citadas, em relação à exposição de seu modo de funcionamento nos atuais mecanismos de busca. E quanto mais estes algoritmos atuam de forma despercebida, mais eles passam a ser incorporados nas atitudes cotidianas, a ponto de ocorrer o seguinte fetiche tecnológico: o de que o acesso a qualquer tipo de informação deva ser feito exclusivamente através de tais mecanismos de busca, como se não houvesse alternativa. Seguindo esta linha de raciocínio, é preciso:

(…) refletir sobre o papel dos algoritmos quando influenciam a forma como as pessoas são tratadas e julgadas. E também pensar sobre o modo como os algoritmos produzem resultados e oportunidades. Isso implica em refletir sobre como os sistemas algorítmicos são fabricados na forma de estruturas organizacionais, como eles influenciam decisões ou então se integram nas escolhas que são feitas e como estas se tornam parte da vida das pessoas (BEER, 2016).

Este tipo de reflexão crítica torna-se cada vez mais necessária, haja vista o fato de que uma nova reificação se instaura na sociedade da cultura digital: a chamada autoridade algorítmica. De acordo com Pasquale, as decisões “não são mais feitas com base nos dados per se, mas sim fundamentadas nos dados analisados de forma algorítmica” (PASQUALE, 2015).

Em relação à indústria cultural contemporânea, a chamada autoridade algorítmica também está provocando transformações inéditas. Se em meados de 1940, Adorno e Horkheimer já haviam enfatizado a pretensão da indústria cultural de classificar e atingir quaisquer tipos de consumidores, de modo a fazer com que ninguém fosse esquecido, já na era da indústria cultural algorítmica a denominada personalização algoritmicamente massificada permite fazer com que, por exemplo, o consumidor de determinado produto se depare com uma página personalizada do Google com caracteres alusivos ao seu aniversário.

Surpreso com a “homenagem”, tal consumidor poderia se perguntar: “Mas como o Google sabe que justamente hoje é o meu aniversário?” Na verdade, o Google sabe isso e muito mais. Pois não há somente o conhecimento da localização, inclusive espacial, da pessoa que está digitando qualquer tipo de palavra-chave no seu mecanismo de busca. Há também a ciência de praticamente todas as preferências de consumo de tal pessoa, uma vez que estas informações cada vez mais são algoritmicamente obtidas, agrupadas, classificadas e ranqueadas num tipo de precisão que remete a lembrança de que, atualmente, as agulhas podem ser mesmo encontradas em qualquer tipo palheiro. Pululam aplicativos “didáticos e fáceis de usar” que prometem auxiliar no controle de obesidade, sono e beber água3. bem como a “esvaziar a mente” por meio do acesso aos “cantinhos zen”, com exercícios personalizados, guiados e divididos em fases que partem de 3 a 30 minutos em geral, de acordo com a disponibilidade do usuário (e desenvoltura para navegar pela loja virtual). Assim, de posse de dados pessoais fornecidos pelo próprio indivíduo, como idade, grau de stress, hábitos etc., outros são coletados até mesmo enquanto o indivíduo dorme ou medita. Mas isso significa que, finalmente, o desenvolvimento tecnológico permite fazer com que a ideologia da personalização, que sempre foi a base psicossocial da indústria cultural, não mais exista, uma vez que hoje todos os desejos individuais podem ser atendidos mediante o consumo dos produtos algoritmicamente ofertados?

Definitivamente, este não parece ser o caso, pois o mais correto seria asseverar que esta personalização algoritmicamente massificada é a forma como a ideologia da personalização da indústria cultural se revitaliza na chamada cultura digital. Seguindo esta linha de raciocínio, é interessante analisar o verbo buscar que é tão caro, com o perdão do trocadilho, às empresas gigantes da comunicação. A utilização desta palavra implica na ação que é feita por alguém quando há a necessidade de realização de algum tipo de desejo. Ou seja, quem busca algo ou alguém realiza uma ação de intervenção. Ora, no caso da busca que é feita por meio dos search engines de tais empresas, os resultados já são pré-estabelecidos, por maior que seja a sofisticação tecnológica que referenda a ilusão da intervenção e, portanto, de algum tipo de livre-arbítrio.

De forma provocativa, Bruce Sterling denomina esta situação de feudalismo digital. Pois no contexto atual, no qual a Internet das Coisas e a indústria cultural algorítmica se consolidam cada vez mais, as pessoas se comportam bovinamente diante de seus senhores. De modo semelhante ao feudalismo, os atuais camponeses “nunca votaram na escolha dos seus senhores residentes nos castelos-nuvens. Mas mesmo assim eles os consideram atraentes e glamorosos. Eles os respeitam e sentem que lhes são realmente fiéis, de modo que não podem mais seguir a vida sem que estejam juntos com tais senhores” (STERLING, 2014).

A ironia de Sterling, ao identificar as grandes empresas de comunicação como os senhores feudais residentes nos castelos-nuvens, desvela que tais senhores não apenas se situam num plano absolutamente mais elevado do que os consumidores, ou seja, os atuais camponeses, como também se assenhoram do controle dos big data nas chamadas nuvens da cultura digital. Assim, de acordo com Sterling, o negócio que realmente importa à empresa Google é “vender vigilância em rede e inteligência coletiva (…) “Buscar” é meramente a parte dianteira do Google, uma fachada brilhante que fomenta a livre interação do público. Na verdade, as pessoas não são mais “compradoras” ou mesmo “usuárias” do Google, mas sim são seu gado feudal” (STERLING, 2014).

Se há um conteúdo de verdade neste exagero de Sterling - de que as pessoas atualmente são classificadas como rebanho e que, portanto, são bovinamente submissas à vigilância algoritmicamente calculada pelos senhores em seus castelos-nuvens - este conteúdo concerne ao risco do pensamento ser digitalmente instrumentalizado diante da ilusão da liberdade de se buscar escolhas que já foram prévia e digitalmente feitas. Em relação ao fato de que as informações de quaisquer naturezas já são apresentadas aos internautas antes mesmo que sejam solicitadas, há um desdobramento na esfera educacional relevante que precisa ser enfatizado: o direcionamento impositivo de informações que podem ser já identificadas como verdades sem que sejam minimamente confrontadas entre si.

Se quanto mais determinados links forem acessados e, portanto, forem ranqueados de modo a se tornar hegemonicamente visíveis na primeira página do mecanismo de busca do Google, estes 10 primeiros links podem muito bem ser identificados como aqueles que verdadeira e corretamente contém as informações necessárias para que quaisquer dúvidas sejam dirimidas sobre determinado assunto. Estas informações podem, inclusive, ser separadas em categorias para facilitar o acesso aos 10 links previamente selecionados pela ferramenta de acordo com a preferência ou condições de leitura do usuário, a saber: “todos os resultados”, “imagens”, “vídeos”, “mapas”, “novidades”, e “mais” (“compras”, “livros”, “viagens”, “finanças”). Se isso de fato acontecer, corre-se o risco do professor ou da professora, por exemplo, acessar determinadas informações que sejam tomadas como corretas sem serem contrastadas, as chamadas fake news, de tal maneira que viceje um terreno propício à revitalização do pensamento estereotipado e do preconceito delirante na cultura digital. É neste sentido que a supremacia da denominada autoridade algorítmica se impõe sobre a autoridade dos professores. Pois, ao invés dos professores acessarem as informações para que sejam confrontadas entre si, de modo a suscitar a elaboração de novos conceitos, estas mesmas informações algoritmicamente obtidas são instrumentalmente consideradas pelos próprios professores como verdades absolutas.

Desta forma, também se revigora o significado da semiformação como fraqueza da memória, haja vista que novos tipos de esquecimento são desenvolvidos na sociedade na qual é possível lembra-se de tudo. Tais esquecimentos são produzidos justamente porque as informações se tornam algoritmicamente pontuais, desconectadas, intercambiáveis e efêmeras. Ou seja, em muitas ocasiões estas mesmas informações que são ranqueadas e classificadas pelos mecanismos de busca das plataformas digitais, tais como o Google e o Facebook, são utilizadas esquecendo-se dos contextos históricos que as engendraram.

Assim, a expressão citada anteriormente: “É isso, e ponto final!” adquire novas tonalidades na era da indústria cultural algorítmica, uma vez que se esquece quais são as histórias das contradições humanas que produziram as informações empregadas como algo per se. Consequentemente, pessoas são rotuladas e etiquetadas por comportamentos que tiveram no passado num determinado contexto histórico que, evidentemente se transformou com o passar do tempo. Mas a análise das mediações históricas que determinaram inclusive as mudanças de comportamento é absolutamente desprezada diante da sedução da força das imagens e comentários que se eternizam nas redes sociais. Ou seja, a condenação já é fomentada de antemão, como se as imagens e comentários sobre determinada pessoa, os quais foram postados no Facebook ou YouTube, nunca mais pudessem ser separadas do novo “É isso, e ponto final!”

Não é fortuito o fato de que novas formas de regressão psíquica proliferam nesta era da conexão contínua entre as pessoas: ao invés das atitudes que definem o comportamento adulto - tais como pensar por meio da articulação das informações transformadas em conceitos, e ter a capacidade de adiar a realização do desejo em decorrência da convivência com o outro -, prevalece a atitude sadonarcísica do pseudoindivíduo que se recusa a dialogar nas redes sociais. Pois ele ou ela a todo tempo procura impor seu ponto de vista sobre determinado assunto a qualquer custo, nem que seja de forma extremamente violenta. De certo modo, frente à atual compulsão à conexão, a ansiedade produzida pelo fato de não se estar conectado nas redes sociais em função de quaisquer motivos, “sugere a apreensão maior de que os humanos estão se tornando gradualmente insignificantes diante das redes tecnológicas porque os dados importam mais do que as pessoas” (BOLLMER, 2013).

Diante da possibilidade da indústria cultural e da semiformação reavivarem na sociedade contemporânea, pode-se açodadamente concluir que as tecnologias digitais não poderiam ser utilizadas, a não ser de modo a cada vez mais reafirmarem o fetiche tecnológico e a reificação das consciências em novas tonalidades. Contudo, há que se lembrar da advertência de Marcuse de que a tecnologia é muito mais do que a soma de determinadas técnicas, mas sim um modo de produção engendrado num processo social, em cujas contradições encontram-se mediadas as dimensões da barbárie e da emancipação:

A tecnologia como modo de produção, como a totalidade dos instrumentos, dispositivos e invenções que caracterizam a era da máquina, é assim, ao mesmo tempo, uma forma de organizar e perpetuar (ou modificar) as relações sociais, uma manifestação do pensamento dominante, um instrumento de controle e dominação. A técnica por si só pode promover tanto o autoritarismo quanto a liberdade, tanto a escassez quanto a abundância, tanto o aumento quanto a abolição do trabalho árduo (MARCUSE, 1999).

Exatamente esta lembrança porta a possibilidade de que as tecnologias digitais sejam utilizadas para fomentar a proeminência efetiva da comunicação primária, presencial, sobre a comunicação secundária, não presencial, e não o contrário que atualmente parece se afirmar cada vez mais. Isso nenhum aplicativo pode operar, pois precisamos muito mais que nos manter hidratados por meio de “Hydro Coaches” ou informados por meio de feeds pré-selecionados ininterrupta e algoritmicamente, de acordo com as características coletadas de cada usuário que, muitas vezes sequer tem consciência das consequências de ser estar online.

Conclusão

Diante do quadro atual, no qual justamente o pensamento estereotipado e o preconceito são digitalmente, por assim dizer, reconfigurados, é preciso que as relações sejam revitalizadas no sentido de que fomentem o que Christoph Türcke (2016, p.143) denominou como um “tempo-agora comum” (gemeinsame Jetztzeit). No caso das relações estabelecidas entre professores e alunos, quando ambos estão efetivamente juntos na análise e na discussão dos conteúdos trabalhados, conteúdos estes que podem ser acessados também pelo emprego da tecnologia digital, então há uma possibilidade real de que o virtual seja utilizado para estimular o “contato corporal com as ideias”, de acordo com a expressão de Adorno (2010, p.21).

Porém, este estar efetivamente junto é que se arrefece tanto em relação às multidões que solitariamente se conectam por meio do uso das redes sociais, quanto nas salas de aula quando os alunos e, até mesmo, os professores, fazem uso de seus celulares para poderem sair do ambiente escolar e se conectarem com outras pessoas por meio de seus perfis particulares do Facebook. Quando isto acontece, professores e alunos podem até estar fisicamente juntos nas salas de aula, mas estão espiritualmente apartados, haja vista que não mais experimentam este tempo-agora comum. Justamente este tipo de tempo esmorece na mesma velocidade em que a Internet das Coisas e a tecnologia algorítmica se desenvolvem. Pois são práticas individualistas as que aprazem àqueles que procuram impor de qualquer forma seu ponto de vista, principalmente nas redes sociais, e praticamente nunca estão abertos ao diálogo que poderia fazer com estas mesmas pessoas refletissem criticamente sobre seus próprios preconceitos e sobre as estruturas binárias de seu pensamento estereotipado.

Certamente, nunca houve condições de se acessar dados como as que agora vigoram. E são inegáveis os benefícios obtidos nas mais variadas áreas de conhecimento, tal como foi anteriormente observado. Mas também talvez nunca esteve tão próximo de ser realizada a aspiração de Bacon de que ciência e poder definitivamente caminhassem juntos. As leis que regem o alfabeto da natureza, para usar a expressão do filósofo inglês do século 16, estão realmente próximas de ser conhecidas e controladas na forma de códigos, sejam eles de nosso arcabouço genético, sejam eles da estrutura binária que compõem os algorítmicos de busca do Google, por exemplo.

Neste sentido, as forças produtivas que estão hoje em voga poderiam fazer com que, na forma das tecnologias digitais, a comunicação secundária fomentasse condições efetivas para o recrudescimento da comunicação primária entre as pessoas. Mas quando estas mesmas pessoas são julgadas e estereotipadamente condenadas em função de imagens e comentários que, por permanecerem eternizados nas redes sociais, são recuperados e utilizados de forma completamente descontextualizada, então também se renova o que Adorno denominou como semiformação. Quando a autoridade algorítmica se transforma num absoluto, então se consolidam as condições necessárias para que os dados se tornem realmente mais importantes do que as pessoas, as quais parecem cada vez mais se aferrar à ideologia da personalização algoritmicamente massificada, como se não houvesse alternativa de ser.

É exatamente na sociedade da indústria cultural algorítmica que a semiformação se revela como uma fraqueza em relação à memória, pois é na sociedade cuja tecnologia digital permite fazer com que tudo possa ser lembrado que novas formas de esquecimento se desenvolvem. Mas se perdurar a lembrança de Adorno e Horkheimer de que a “maldição do progresso irrefreável é a irrefreável regressão” (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p.46), então permanecerá a possibilidade não só da crítica à indústria cultural algorítmica, como também de que um tempo-agora comum seja incorporado como condição de autoconservação dos indivíduos na cultura digital.

Referências

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1Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos, publicado no Brasil pela Jorge Zahar editor em 1985, com tradução de Guido Antônio de Almeida.

2O clássico slogan “Just do it”, criado pela agência Wieden+Kennedy para a Nike, tem como origem as últimas palavras de um condenado à morte. O homem chamava-se Gary Gilmore e, instantes antes de morrer, ele disse ao pelotão de fuzilamento a seguinte frase: “Let’s do it!” (“Vamos fazer isso!”). Cf. ADNEWS: A criação do Just do it da Nike. Disponível em: http://adnews.com.br/adallstars/conheca-a-historia-do--just-do-it--da-nike.html. Acesso em 19 mar. 2018.

3De acordo com os aplicativos criados para smartphones e tablets, o objetivo central destes é atuar como lembretes para ajudar o individuo se manter hidratado, caso de “Beba Água”, “Beba água alarme”, “Hydro: beba água”, “Water your body”, “Drink-o-matic”, “Drinking water”, “Waterbalance”, “Water Drink Rememder” e “Hydro Coach”, por exemplo.

Recebido: 20 de Março de 2018; Aceito: 21 de Novembro de 2018

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