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Educação e Filosofia

versión impresa ISSN 0102-6801versión On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.32 no.66 Uberlândia set./dic 2018  Epub 22-Sep-2020

https://doi.org/10.14393/revedfil.issn.0102-6801.v32n66a2018-10 

Artigos

A modernidade da infância e a infância da modernidade em Walter Benjamin*

The modernity of childhood and the childhood of modernity in Walter Benjamin

La modernidad de la infancia y la infancia de la modernidad en Walter Benjamin

Eduardo Oliveira Sanches** 

Divino José da Silva*** 

**Doutor em Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP - Presidente Prudente). E-mail: eduardo.uem@hotmail.com

***Doutor em Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Professor de Filosofia da Educação no Departamento de Educação e no Programa de Pós-Graduação - Mestrado e Doutorado da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (FCT/UNESP/Presidente Prudente). E-mail: divino.js21@uol.com.br


Resumo

Este estudo de natureza teórica busca investigar o que Bolle (1984) denominou de cultura da criança no contexto da modernidade na Obra de Walter Benjamin. Para direcionarmos nossa investigação, recorremos à análise dos ensaios benjaminianos em que, privilegiadamente, o tema da infância aparece, em especial as obras Reflexões sobre a criança, o brinquedo, a educação (2002) e Infância berlinense: 1900 (2013). A cultura da criança constitui-se e é apresentada nos ensaios de Benjamin por meio de caminhos em que memória e história se cruzam, portanto, aparece diluída nos elementos históricos que registram uma temporalidade em transformação e reacomodação dos papéis sociais na sociedade em que a própria ideia de infância é redefinida como moderna.

Palavras-chave: Infância; Cultura da criança; Modernidade; Protagonismo infantil; Walter Benjamin

Abstract

This theoretical study seeks to investigate what Bolle (1984) called the child's culture in the context of modernity in Walter Benjamin’s Work. In order to direct our research, we have recourse to the analysis of the Benjamin’s essays in which, in particular, the theme of childhood appears, especially the works Reflections on the child, the toy, the education (2002) and Berlin childhood: 1900 (2013). The culture of the child is constituted and presented in Benjamin’s essays by means of paths in which memory and history intersect, and thus appears diluted in the historical elements that register a temporality in transformation and re-arrangement of social roles in society in which the very The idea of childhood is redefined as modern.

Keywords: Childhood; Culture of the child; Modernity; Child protagonism; Walter Benjamin

Resumen

Este estudio de naturaleza teórica busca investigar lo que Bolle (1984) denominó de cultura del niño en el contexto de la modernidad en la Obra de Walter Benjamin. Para orientar nuestra investigación, recurrimos al análisis de los ensayos benjaminianos en que, privilegiadamente, el tema de la infancia aparece, en especial las obras Reflexiones sobre el niño, el juguete, la educación (2002) y Infancia berlinesa: 1900 (2013). La cultura del niño se constituye y se presenta en los ensayos de Benjamin por medio de caminos en que memoria e historia se cruzan, por lo tanto, aparece diluida en los elementos históricos que registran una temporalidad en transformación y reacomodación de los papeles sociales en la sociedad en que la propia la idea de la infancia es redefinida como moderna.

Palabras-claves: Infancia; Cultura del niño; Modernidad; Protagonismo infantil; Walter Benjamin

Introdução

Walter Benjamin construiu uma complexa trama de ideias e conceitos para delinear uma fisiognomia do moderno. Momento histórico constituído por inúmeras mudanças e transformações sociais, o pensador encontrou nos centros urbanos os traços fisiognômicos que concentraram as contradições e tensões com os quais ele lidou para delimitar o espírito da modernidade. Nesse contexto, a cidade metrópole do século XIX, símbolo dessa civilização, é o local no qual os avanços da técnica ganharam vedetes eternizadas em monumentos e praças, parques infantis; na arquitetura com detalhes em ferro e vidro; na forma da gestão e organização da vida em espaços residenciais, zonas industriais, centros de moda, arte e comércio; na estruturação de locais para a educação e o ensino, bairros nobres e populares, enfim. Neste ambiente urbano, burocraticamente sistematizado, tudo estava mais próximo do que nunca, não somente as multidões, enquanto passantes, mas a produção humana começava a fazer parte de um novo referencial. Por um lado, a indústria e a escola deslocaram adultos e crianças do ambiente privado para o público, por outro, o que é produzido passou a ser um mero item nas gôndolas dos mercados, lojas de brinquedos, livrarias, bodegas, sapatarias, perfumarias, às vezes tudo em uma mesma galeria, quando longe, no bairro vizinho.

As partes da cidade, por sua vez, comunicaram-se umas com as outras por meio de uma complexa ordem criada pelas políticas públicas de transporte. Ruas e avenidas, como um conjunto formado por vasos comunicantes, conectaram-se e ganharam movimento, pavimento, semáforos, indicações, placas; surgiram os trilhos para bondes, transportes subterrâneos e os carros. O intervalo entre os corpos nunca mais seria o das tradicionais epopeias. O tempo se acelera, as distâncias diminuem, a tradição se vê em ruínas e submersas em escombros do progresso. Ser estrangeiro na cidade natal, experiência vivida pelos modernos em cidades que se transformaram tão rapidamente, tornando-se estranhas aos seus nativos.

Lugar de guerras e barricadas; de um novo olhar sobre os seres que faz emergir a criança cidadã; da separação entre o público e o privado; de uma linguagem que contribui para apurar a noção de individual e que tem no romance uma forte expressão: a cidade é o ambiente que funda o indivíduo, transforma a experiência possível nas relações e, com ela, as ideias sobre a noção de infância. Diante disso, a infância adquire cada vez mais características de singularidade e recebe uma série de apreciações do adulto que visa a sua distinção no moderno status da criança. Demorou muito até que a ideia de infância fosse reconhecida como uma característica, como uma especificidade, própria da criança que a diferenciava do adulto. Assinala Benjamin (2002, p. 86), que esse reconhecimento só ocorre tardiamente:

[...] as crianças não são homens ou mulheres em dimensões reduzidas - para não falar do tempo que levou até que essa consciência se impusesse também em relação às bonecas. É sabido que mesmo as roupas infantis só muito tardiamente se emanciparam das adultas. Foi o século XIX que levou a isso.

Podemos afirmar, portanto, que há uma modernidade para a infância e para os elementos que a constituem. Existe também uma experiência particular sobre o tempo de infância que só cabe ao mundo moderno. Podemos encontrá-las, infância e modernidade, caminhando juntas, de mãos dadas, nos ensaios benjaminianos, cuja temática circunscreve e caracteriza de algum modo a criança.

Nosso objetivo, neste estudo, será o de seguir essas pistas. Tomaremos como objeto de análise os textos contidos em duas obras “Infância berlinense: 1900” e “Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação” e as perguntas às quais tentaremos responder serão: como, por meio de elementos de uma cultura da criança (BOLLE, 1984), podemos compreender a noção de modernidade em Walter Benjamin?; De que modo o autor apresenta certa noção de infância moderna a partir de suas reflexões?

As cinco divisões do percurso que compreendem este estudo buscaram dar conta dessas questões. O percurso evidencia a perspectiva de modernidade da qual trata Benjamin, a partir da imagem que ele condensa dessa modernidade ao escrever e refletir sobre a infância. Verificamos que a consolidação do mundo moderno trouxe consigo a afirmação de um modelo de infância inédito. A modernidade da infância, neste caso, reside justamente na afirmação do indivíduo criança como o sujeito representante da infância na modernidade. O lugar do indivíduo burguês, cidadão, liberal foi estendido para a criança, que passou a ter para si, nas casas burguesas, um quarto somente para si, seus brinquedos e livros e toda forma de bugiganga ou parafernália imaginada pelo adulto para “confortar” a criança em suas necessidades lúdicas. O estatuto que individualizou a vida sob a forma do liberalismo é o mesmo que radicalizou o lugar da infância na modernidade e criou para ela todo um universo infantil como forma de lembrar que este mundo diminuto pertence às crianças ou que para elas foi projetado. Em oposição a essa infância, lugar seguro da criança burguesa, Benjamin se lembra das crianças proletárias e pensa formas de acomodar suas necessidades, sobretudo, a necessidade da transformação das relações sociais que roubam, total ou parcialmente, a infância das crianças da classe operária. Finalmente, evidenciamos que do protagonismo infantil pode ser retirada dos textos benjaminianos uma “lição” sobre profanação e modernidade.

Parte I - Sobre a infância e os modernos

Podemos afirmar que há uma modernidade para a infância e para os elementos que a constituem no contexto da obra de Walter Benjamin? Se sim, como ele evidencia a experiência particular sobre o tempo de infância que só cabe ao mundo moderno? Na busca em enunciar de modo mais substancial e concreto caminhos para responder a tais questionamentos, é recomendável nos reportarmos ao próprio autor. No ensaio “História cultural do brinquedo”, o pensador afirmava que no mundo pré-capitalista não havia uma grande indústria de brinquedos e que esta era uma questão em segundo plano na vida social: “antes do século XIX, a produção de brinquedos não era função de uma única indústria”, segundo o autor, este era “um produto secundário das diversas oficinas manufatureiras” (BENJAMIN, 2002, p. 90).

Com o advento dos grandes centros urbanos e da industrialização, isso se modifica, ou seja, “ali começam os exportadores a açambarcar os brinquedos provenientes das manufaturas da cidade, e, sobretudo, da indústria doméstica da região [de Nuremberg na Alemanha], e a distribuí-los”, nas análises do autor, efetivou-se assim “o predomínio dos brinquedos alemães no mercado mundial” (BENJAMIN, 2002, p. 91). Tal reconfiguração da indústria evidencia marcas de um capitalismo em expansão e que, ao mesmo tempo, visa à criança reconhecida e acalentada por uma infância moderna e em plena constituição de sentidos. O pensador, ao refletir sobre os elementos de uma cultura infantil (BOLLE, 1984), como o brinquedo, dispõe de situações que ajudam a definir a criança da qual ele fala. Se em momentos anteriores ao século XIX, a criança não tinha um lugar evidentemente manifesto, a infância moderna se encarrega de colocá-la sob os holofotes. Uma situação que torna evidente essa reconfiguração é o fato de a produção de brinquedos passar de um campo secundário, no plano econômico, a um ofício industrial especializado na modernidade, mudança que ocorre ao começar a se reconhecer um estatuto novo sobre a infância.

Nessa vertente, o Iluminismo e a era das revoluções se impõem e avançam por meio de seus artífices e artifícios, o que incide nas expressões sobre a criança. Em tal contexto, a instituição da infância e o desenvolvimento da indústria no século XIX colaboraram para estabelecer mudanças na concepção, na produção, na estrutura e no material do brinquedo. Tais mudanças contribuíram para mudar a sensibilidade e as relações interpessoais, favorecendo a adaptação humana em direção ao mundo moderno. Benjamin afirma que a industrialização transformou os objetos do brincar no tamanho e na composição. Segundo ele, “de modo geral, é este ponto de vista extremamente exterior - a questão da técnica e do material - que permite ao observador penetrar fundo no mundo dos brinquedos” (BENJAMIN, 2002, p. 92) e, por que não dizer, uma profundidade tal que nos permita aproximarmos também da infância e de sua modernidade. A relevância disso decorre, pois, a partir da segunda metade do século XIX, conforme, por exemplo, os brinquedos ficaram maiores, perdendo, aos poucos, características lúdicas que prescindiam da presença do adulto de modo mais íntimo na relação da criança com o brincar: “Uma emancipação do brinquedo põe-se a caminho; quanto mais a industrialização avança, tanto mais decididamente o brinquedo se subtrai ao controle da família, tornando-se cada vez mais estranho não só às crianças, mas também aos pais” (BENJAMIN, 2002, p. 91-92).

Semelhantes elementos sociais levaram Benjamin a se questionar se foi esse o ponto que levou a criança a ganhar o próprio quarto de brinquedos. Ele não chega a responder a essa questão, porém, ela nos é esclarecedora se a tomarmos não como uma interrogação apenas, mas como uma constatação: de que quando o pensador se pergunta sobre tal origem é devido ao fato de ela situar-se em algum ponto entre os séculos XVIII e XIX. Um local de individuação - a modernidade - que leva a família a fixar na casa um espaço para a construção da identidade do indivíduo criança. Essa questão antecipa a efetivação social da ideia de escola universal, que um dia separou a formação das crianças da família, no sentido tradicional, compartilhando-a com o Estado.

Ainda sobre tematizar os objetos do brincar, Benjamin percebe certos anseios dos adultos sobre os brinquedos. Projetados sobre eles, o pensador compreendeu que havia algo de uma genuína nostalgia na qual

“subjazia certamente o autêntico anelo de reconquistar o vínculo com o primitivo, com o estilo de uma indústria doméstica que exatamente por essa época […] luta cada vez mais sem perspectivas pela sua existência […] quando o brinquedo era ainda a peça do processo de produção que ligava pais e filhos” (BENJAMIN, 2002, p. 92).

Está implícito nesse raciocínio que as questões referentes à perda da aura e ao declínio da experiência passam a fazer parte do modo como o universo infantil moderno se constituiu.

Em sociedades pré-capitalistas, o autor afirma que a aura se manifestava em criações que estavam associadas ao ritual mágico e/ou religioso. Ele relaciona a aura a um dado movimento prático e transcendental da vida ao qual ela se vinculava. Na tradição, a aura que dotava de sentido os objetos do ritual, ganha esse sentido também no ritual, cuja forma mais primitiva é o culto. O ritual, neste caso, é o momento, a distância e o tempo da contemplação, não há reprodução, é único, autêntico. A fruição se dá no momento em que ele acontece, como o ritual de produzir os objetos do brincar, artesanalmente, processo que ligava pais e filhos antes de a indústria moderna de brinquedos surgir.

Na tradição, a aura das coisas só é captável por meio desse tipo de processo de relação com a vida. Mesmo ao se narrar uma história, a cada nova vez que a história se repetia, era única, pois as experiências do narrador e do ouvinte comportavam reinterpretações das narrativas já conhecidas; bem como nas brincadeiras, como um ritual de humanização, que transforma, segundo Benjamin, as experiências mais profundas e comoventes em hábito, cada vez que a criança brinca e repete a brincadeira; ou nas histórias contadas pelos pais antes de dormir ou nos momentos de doença. Há um alento nesse ritual que acolhe a criança em seus momentos de fragilidade, o adoecimento e o medo do abandono, ao deitar-se sozinha para dormir em seu quarto individual, o qual já é fruto da configuração burguesa na modernidade.

O brincar comporta a criança fazer uso dos objetos separados pelos adultos em seus rituais. “Conhecemos muito bem alguns instrumentos de brincar arcaicos, que desprezam toda máscara imaginária (possivelmente vinculados na época a rituais): bola, arco, roda de penas, pipa - autênticos brinquedos” (BENJAMIN, 2002, p. 93). Em atividades rituais, como sentar-se junto à soleira da porta ou ao lado da fogueira e dar-se a conversar, contar história, brincar, correr, imitar, fazer brinquedos, carregava consigo espaços profanos como habitação da aura, locais que foram sendo urbanizados, pavimentados, comercializados e, aos poucos, fomos os perdendo.

A aura, no contexto da tradição, foi possível, pois ela era a “sociedade cuja técnica se fundia inteiramente com o ritual. Essa sociedade é a antítese da nossa, cuja técnica é a mais emancipada que já existiu” (BENJAMIN, 1994, p. 174). Com a emancipação da técnica, a arte, bem como o brinquedo como objeto que ganha sentido no momento do brincar, aos poucos também se emancipa do seu uso ritual. O seu valor de culto, ligado ao ritual/brincar na tradição, vai convergindo para outra noção que se radicaliza no contexto moderno que é o valor de exposição. Benjamin explica que o quadro tem maior valor de exposição que o mosaico feito em uma parede, pois este está fixo e só pode ter sua aura experimentada pelo observador se ele se deslocar até o ponto onde está situado o mosaico, enquanto o quadro pode se mover pelo mundo, facilitando o seu acesso às massas. Como uma consequência moderna, o valor de exposição se expande conforme se aumenta a capacidade de se produzir, reproduzir e circular o material simbólico consequente deste processo civilizatório. Como exemplo, o filósofo cita o cinema como arte que tem, na exposição, seu fundamento, além de “fazer do gigantesco aparelho técnico do nosso tempo o objeto das intervenções humanas [...] o filme serve para exercitar o homem nas novas percepções e reações exigidas por um aparelho técnico cujo papel cresce cada vez mais em sua vida cotidiana” (BENJAMIN, 1994, p. 174).

Tal aplicação feita à arte também é analisada pelo pensador, ao falar sobre o brinquedo. Ele chama de máscara imaginária as formas do adulto tentar impor certos brinquedos, cujo princípio moderno é o realismo. Esse realismo proposital que se verificava nas bonecas industriais contribuiu para o fim da aura que existia nos brinquedos artesanais e ampliou o valor de exposição pela relação imediata com que o brinquedo realista se impõe sobre a imaginação infantil. Essa característica realista era o sentido corrente que o pensador apresenta para o brinquedo feito pela indústria moderna: “Pois quanto mais atraentes, no sentido corrente, são os brinquedos, mais se distanciam dos instrumentos de brincar; quanto mais ilimitadamente a imitação se manifesta neles, tanto mais se distanciam da brincadeira viva” (BENJAMIN, 2002, p. 92). A brincadeira viva a que o autor se refere é aquela que se distancia de um hiper-realismo e se aproxima do mundo imaginário da criança por meio do ritual/brincar. Sobre essa centelha, “a criança quer puxar alguma coisa e tornar-se cavalo, quer brincar com areia e tornar-se padeiro, quer esconder-se e tornar-se bandido ou guarda” (BENJAMIN, 2002, p. 93).

A noção de aura ajuda-nos a situar o contexto moderno, pois Benjamin afirma que a perda da aura se dá em um ambiente social em que os valores se transformam e a noção de aceleração do tempo e o encurtamento das distâncias contribuem para modificar de modo radical a noção de culto, dos rituais, do brincar, da sensibilidade e das relações humanas. A infância está, nesse mesmo contingente, em transformação, pois “as crianças não constituem nenhuma sociedade isolada, mas antes fazem parte do povo e da classe a que pertencem. Da mesma forma, os seus brinquedos não dão testemunho de uma vida autônoma e segregada, mas são um mudo diálogo de sinais entre a criança e o povo” (BENJAMIN, 2002, p. 94).

Parte II - Sobre a infância e a educação dos modernos

A respeito dessa muda conversação, Benjamin demonstra como certas preocupações quanto à educação e ao sistema escolar o perturbaram e o inquietaram. Sobre as formas modernas de educação, ele menciona em suas obras a escola, o papel da ciência na busca de métodos de ensino, a psicologia e a ética liberal como princípios norteadores da formação da infância moderna e a constituição dos livros e brinquedos com princípios didáticos. Por outro lado, ele evidencia o como as crianças são inclinadas a se desviarem de toda essa parafernália estrutural de adestramento social, que visa urbanizar o suposto ser selvagem que as habita. Essas são marcas que ajudam a compor melhor o cenário das relações modernas entre indivíduo e sociedade, entre infância e modernidade. No contexto dessas questões todas, ele demarca em vários momentos a distinção entre a infância das crianças de famílias burguesas e as de famílias proletárias. Ao registrar tais distinções, ele o faz ao mesmo tempo em que assume, de certo modo, a existência de diferentes infâncias coexistindo. Assim afirma o autor,

A burguesia encara sua prole enquanto herdeiros; os deserdados, porém, a encarnam enquanto apoio, vingadores ou libertadores. Essa é uma diferença suficientemente drástica. Suas consequências pedagógicas são incalculáveis. Em primeiro lugar, a pedagogia proletária não parte de duas datas abstratas, mas de uma concreta. A criança proletária nasce dentro de sua classe. Mais exatamente, dentro da prole de sua classe, e não no seio da família. Ela é, desde o início, um elemento dessa prole, e não é nenhuma meta educacional doutrinária que determina aquilo que essa criança deve tornar-se, mas sim a situação de classe. Esta situação penetra-a desde o primeiro instante, já no ventre materno, como a própria vida, e o contato com ela está inteiramente direcionado no sentido de aguçar desde cedo, na escola da necessidade e do sofrimento, sua consciência. Esta transforma-se então em consciência de classe. Pois a família proletária não é para a criança melhor proteção contra uma compreensão cortante da vida social do que o seu puído casaquinho de verão contra o cortante vento de inverno (BENJAMIN, 2002, p. 122).

Benjamin reconhece, nos primórdios do século XX, que a instituição da ideia de infância, por mais que proteja de algum modo a criança, não se estende de modo imediato para aquelas que nasceram num berço proletário. Essa diferenciação evidencia que, ainda que tenha sido instituída a infância como uma forma de compreender/proteger o sujeito-criança, essa seguridade social tende a ser assegurada para a infância das crianças da classe burguesa, haja vista que o trabalho infantil era prática muito comum à época. Nesse sentido, mesmo que a modernidade tenha buscado por meio de elementos científicos uma infância universal - a criança biológica e sua psique - verificamos, por meio da leitura de Benjamin, que ela não era vivida de modo universal - a criança social e histórica - e vive-se, até a atualidade, a infância possível segundo as condições de classe.

O ideal do ajustamento da classe operária ao status quo é ensinado já na infância, para que a criança viva-o como possível, sem almejar se desviar dele, rumo ao adulto adaptado e íntegro, o cidadão burguês. Tal interesse em modelar a criança é algo que carrega consigo não somente a ideia de classe, apesar de ela compor intensamente o repertório dos ensinamentos, essa ânsia reside também no fato de o adulto ser o fim da criança como processo natural de seu desenvolvimento. Portanto, cabe aos modernos pensar meios de como educá-la, moldá-la para este fim. Consequentemente, a modernidade cria métodos educacionais cuja

[...] psicologia e ética são os polos em torno dos quais se agrupa a pedagogia burguesa. […] Por um lado, a pergunta pela natureza do educando: psicologia da infância, da adolescência; por outro lado, a meta da educação: o homem integral, o cidadão. [...] Na verdade, ambas as essências são máscaras complementares entre si, do concidadão útil, socialmente confiável e ciente de sua posição. É o caráter inconsciente dessa educação, ao qual corresponde uma estratégia de insinuações e empatias: 'As crianças têm mais necessidade de nós do que nós delas', eis a máxima inconfessada dessa classe, que subjaz tanto às especulações mais sutis de sua pedagogia como à sua prática de reprodução (BENJAMIN, 2002, p. 122).

No ajustamento, a criança deve estar enquadrada quase que literalmente à moldura da carteira, à parede da sala de aula. O corpo deve perder a dinâmica própria para incorporar, enquanto disciplina e ordem, e o comando alheio: o do professor. Devem ser respeitados os horários e as autoridades da escola que obedecem a uma hierarquia que chega até o grau maior, na figura de seu diretor. Assim, como na indústria, a fantasia deve ser retirada ao máximo para que a criança aprenda a racionalidade eficiente, porque, em tese, é o modo de pensar racional e pragmático do adulto liberal que se deve impor. Na educação burguesa, a finalidade é desarticular as tensões das relações, retirar a dialética do vivido, com o objetivo de ensinar as crianças os sentidos da ordem como progresso. Um grande processo de alienação programada.

Afinal, como Benjamin apresenta a criança burguesa no ambiente escolar? No aforismo “Atrasado”, da obra “Infância Berlinense: 1900” encontramos a representação de uma criança burguesa imersa na cultura de Berlim à época. Nesse pequeno e revelador ensaio, de apenas um parágrafo, memória e história se encontram, iluminando a face do momento histórico. O ajustamento social ocorre para cada qual a seu modo, vejamos:

O relógio no pátio da escola parecia ter sido danificado por culpa minha. Marcava a hora “atrasado”. E ao corredor chegava, vindos das salas de aula por onde eu passava o murmúrio de misteriosas conversações. Do lado de lá das portas, professores e alunos eram amigos. Ou então, ficava tudo em silêncio, como se esperassem alguém. Imperceptivelmente levei a mão à maçaneta da porta. O sol banhava de luz o ponto onde me encontrava. E eu, para entrar, profanei o meu dia ainda a nascer. Ninguém parecia conhecer-me, nem mesmo ver-me. Tal como o diabo ficou a sombra de Peter Schlemihl, também o professor reteve o meu nome no começo da aula. Eu já não ia ser chamado. Trabalhei com os outros em silêncio até o toque da campainha. Mas não havia nisso nada de reconfortante (BENJAMIN, 2013a, p. 80).

Podemos situar nele não apenas o mal-estar sentido pelo pequeno Benjamin sobre algo vivido em sua infância. O relógio danificado não marca hora alguma e sim uma condição, o atraso. Essa paralisia do tempo remete aos dispositivos de adaptação a uma cultura cujo tempo não deve ser o do humano e sim o da sociedade moderna, de seus dispositivos e suas instituições. A representação do tempo em paralisia configura uma paralisia do humano diante da violência ou imposição das mudanças com as quais se precisa aprender a lidar ainda na infância. Demonstra, ainda, o sentimento das crianças, não apenas do pequeno Benjamin, mas todas elas, ao terem que enfrentar a fuga da norma e do enquadramento no contexto de seu “ofício”: estudar.

O professor é amigo daqueles que chegam no horário e realizam seus afazeres; aos profanadores resta o silêncio e a perda do nome. A alusão ao diabo, que ficou a sombra de Peter Schlemihl, remete-nos ainda a uma questão mais profunda. Em “A história maravilhosa de Peter Schlemihl”, peça de onde Benjamin retirou a analogia, Peter faz um pacto com o diabo e troca sua sombra por uma ilimitada riqueza. Ele se torna um homem sem sombra desse dia em diante. Uma condição de completa solidão, visto que nem a companhia de sua sombra ele pode ter mais, apesar de toda a riqueza do mundo. Essa condição remete ao homem moderno, cujo tempo vazio torna-o estranho aos outros - afinal não é comum um homem sem sombra - como a criança no aforismo, que ninguém parecia ver ou reconhecer.

Outra situação é que o diabo pode ser associado à imagem do professor, que retém o nome do profanador e este, mesmo com toda a riqueza de uma infância burguesa, não via nada de reconfortante nisso. Para Peter, é a expressão de uma materialidade que está em jogo - a riqueza material em troca da sua projeção material, x sua sombra. Para Benjamin, é a identidade infantil já que, diferentemente de Peter, o filósofo teve aprisionado a expressão de sua imagem como indivíduo, o nome, em troca de ser disciplinado pelo atraso e, assim, ser reintegrado ao grupo com o qual trabalhou em silêncio. No fragmento intitulado “Tiergarten”, Benjamin escreveu: “O trabalho é a glória do cidadão, /A prosperidade, o prêmio pelo esforço” (BENJAMIN, 2013a, p. 79), e não é que essa lição foi aprendida na escola?

Parte III - Sobre infância e as fantasmagorias na modernidade

O impacto do redimensionamento do tempo e do espaço, que caracterizam o mundo moderno, é evidenciado em “Infância Berlinense: 1900”, por meio das marcas da infância vivida por Benjamin na cidade natal. Nos ensaios ali contidos, fica claro, no estabelecido entre a criança e o povo, o cruzamento entre a subjetividade infantil moderna, em plena construção de sentidos, e a objetividade do mundo concreto, no limiar da modernidade. De certa maneira, o que encontramos nessa obra foram reflexões sobre o moderno, certamente, radicados na experiência infantil do autor, porém, impregnados dos resíduos e das particularidades históricas da modernidade. Entretanto, o que esperávamos encontrar nessa obra? O pensador alemão, de certo modo, responde a essa questão em outra, na introdução que faz em “Paris, capital do século XIX”1

ilusão expressa por Schopenhauer numa fórmula, segundo a qual, para aprender a essência da história basta comparar Heródoto e o jornal de amanhã. É a expressão da sensação de vertigem característica da concepção que no século XIX se fazia da história. Corresponde a um ponto de vista que considera o curso do mundo como uma série ilimitada de fatos congelados em forma de coisas. O resíduo característico dessa concepção é o que se chamou “A História da Civilização”. […] Nossa pesquisa procura mostrar como, em consequência dessa representação coisificada da civilização, as formas de vida nova e as novas criações de base econômica e técnica, que devemos ao século XIX, entram ao universo de uma fantasmagoria. Tais criações sofrem essa “iluminação” não somente de maneira teórica por sua transposição ideológica, mas também na imediatez da presença sensível. Manifestam-se enquanto fantasmagorias (BENJAMIN, 2006, p. 53).

Se na primeira parte da longa citação o pensador compara “a História da Civilização” - aquela que se lê nos livros e que fora tantas vezes mencionada no contexto dos textos sobre a infância, ao lembrar os festejos e feriados, das narrativas dos jornais, dos monumentos das praças, ou sobre a composição da cidade - com a sensação da vertigem, uma tontura extremada e que pode causar desmaios. Na segunda parte, o que se busca é evidenciar o seu real espírito moderno enquanto “coisificação da civilização”, expressa na fugacidade com que o cotidiano escapa e nas inscrições culturais como espectro de uma realidade “feita por homens, porém, sem consciência e sem plano, como em um sonho”, conforme afirma Tiedemann (2006, p. 17). De certo modo, nesse trabalho, os contrastes entre o glamour da modernidade e seus subterrâneos obscuros se condensam para demonstrar que, com a perda da tradição, a humanidade inaugura um ambiente histórico e social que se assemelha ao mundo onírico, o qual o século XIX representa para Benjamin.

Esse universo transitório do sonho, petrificado no mundo objetivo na forma de fantasmagorias, se dispõe, alegoricamente, como a um pesadelo do qual devemos acordar. “Escovar a história a contrapelo” é nada mais do que esse despertar. Nessa figura, que se aproxima da imagem do fantasma, está implícita uma análise que demonstra como o liberalismo e a economia de mercado são transpostos para o plano cultural de modo a permear nossa vida nos detalhes. A fantasmagoria pode ser lida nesse contexto como uma falsa aparência do real. Nos textos sobre a infância, ela aparece como traços de uma cultura moderna que, por meio das descrições feitas pelo pensador sobre a criança, pelo modo de ela operar no mundo, realçados por um olhar aguçado e pululante, demarca a infância e o moderno. No ensaio “Um fantasma”, da obra “Infância Berlinense: 1900”, existem indícios de tais relações. O ensaio se divide em três atos; no primeiro, estão descritas situações de uma vida infantil, nas quais Benjamin, aparentemente, recorda situações de um dia qualquer, vividas no fundo do quintal da casa, e observa a criada da família, além de brincar. No segundo, ele descreve um sonho e, no terceiro momento, relata uma mistura entre sonho e realidade. O que nos interessa nesse fragmento são duas situações: o elemento onírico e o conteúdo.

Para relatar o sonho, ele faz a seguinte introdução: “os velhos feitiços associados ao trabalho da tecelagem, outrora sempre referidos à roda de fiar, se dividiram em céu e inferno. O sonho situa-se nesse último” (BENJAMIN, 2013a, p. 104). Como poderia o sonho e não o pesadelo ser originado do inferno? O que representa esse inferno de onde emerge o sonho? Assim, configura o autor uma assertiva que tomaremos como uma possibilidade de resposta a essas duas inquietações: “O “moderno”, o tempo do inferno. […] Determinar a totalidade dos traços em que se manifesta o “moderno” significaria representar o inferno” (BENJAMIN, 2007, p. 586 [S 1, 5]). Da totalidade dos traços do moderno, emerge a matéria bruta da qual Benjamin retira as evidências daquilo tudo que subjaz à constituição desse moderno como inferno. Esses traços que mostram a novidade como suposto sonho compartilhado, como uma epifania coletiva e bem comum, na verdade, esconde seu engodo. É justamente nele que se encontra uma das materializações do verdugo que assola a humanidade. Para o pensador, o inferno é aqui, o tempo moderno.

No ensaio “Um fantasma” surge como matéria do sonho na seguinte exposição:

[...] um fantasma ocupado com uma armação de madeira da qual pendia fios de seda. O fantasma roubava esses fios. Não ficava com eles, nem os levava consigo; de fato, não fazia nada com eles. E, no entanto, eu sabia que ele os roubava. Era como naquelas lendas em que pessoas assistem a um banquete de fantasmas e, sem os verem comer ou beber, sabem que eles estão no meio de uma refeição (BENJAMIN, 2013a, p. 104).

Na continuidade do ensaio, ele descreve que os pais entraram no seu quarto no meio da noite, pois a casa havia sido pega em assalto por um bando, “e foi como se um segundo sonho se encaixasse no primeiro” (BENJAMIN, 2013a, p. 104). O pesadelo de ser roubado num assalto em casa se mistura à imagem enigmática de um fantasma - uma fantasmagoria - que rouba a matéria da tradição sem retirar dela sua substância, de modo invisível, assim como os pais que não viram nada ser levado devido ao fato de se trancarem no quarto do pequeno Benjamin, mas sabiam que estava tudo a ser revirado. A imagem do fantasma em “Infância Berlinense: 1900” se confunde com a do inferno moderno, que nos assalta cotidianamente, retira os fios que nos ligam à tradição, porém, sem desmobilizar a produção que se torna o banquete liberal para os donos dos meios de produção. Ou seja, são retirados da história os fatos que não interessam, fazendo permanecer, como história da civilização, apenas o conveniente.

O Fantasma que aparece neste ensaio de “Infância Berlinense: 1900” se confunde com a fantasmagoria de “Paris, capital do século XIX”. O fantasma que rouba sem tirar algo é aquilo que espalha o inferno a ser cotado como paraíso pela história oficial. Essa figura, que se confunde com usurpadores, cria um reino de fantasmagorias que nos toma, no cotidiano das relações, na imediatez da presença sensível. A história oficial, em tal contexto, marca outra coisa que nos foi tirada: os elementos de uma experiência compartilhada e que era a referência para uma memória coletiva sobre o vivido, portanto, uma memória coletiva sobre a história.

Essa noção de assalto e assombro emerge em outros ensaios de “Infância Berlinense: 1900” e gostaríamos de trazer para o contexto desta reflexão um outro intitulado “O telefone”. Benjamin escreve sobre algo muito distante para nossos padrões contemporâneos. Ele descreve a relação dos humanos com uma máquina que ficava nos corredores ou porões das casas e cuja única portabilidade era a da voz que era aproximada a ouvidos distantes. Assim versa a descrição sobre as primeiras conversas ao aparelho que ele presenciou: “Eram ruídos noturnos. Nenhuma musa os transmitiam. A noite de onde vinham era a mesma que antecede qualquer verdadeiro nascimento” (BENJAMIN, 2013a, p. 75). Quem passou pela experiência da paternidade ou da maternidade sabe muito bem a tensão que antecede as noites e os dias do parto. Nesse sentido, essa voz perdida que vinha de longe não era como sussurros noturnos provocados por uma musa, mas sim como a tensão de um nascimento e todos os riscos envolvidos, nos pegava a todos de assalto - Está nascendo! “E era a voz de um recém-nascido aquela que cochilava lá dentro. Nesse exato momento o telefone tornou-se meu irmão gêmeo” (BENJAMIN, 2013a, p. 75), continua em sua descrição. A uma criança, o aparelho é comparado e Benjamin afirma que pôde ver todas as fases de seu crescimento até o momento em que o aparelho sai da escuridão dos corredores e subterrâneos para as salas iluminadas, habitadas:

[...] por gerações mais novas. Para esta, ele era o aconchego da solidão. Para os desesperados que queriam deixar este mundo imperfeito, ele brilhava com a luz da última esperança. Partilhava a cama com os abandonados. Agora todos esperavam pela sua chamada, a voz estridente que viera do exílio agora soava mais quente e abafada. […] Ficava sem apelo nem agravo entregue à voz que falava do outro lado. Impotente, deixava que ela me anulasse a noção do tempo, dos meus propósitos e deveres. E tal como o médium obedece à voz que, do lado de lá, o domina, eu me rendia à primeira proposta que me chegava através do telefone (BENJAMIN, 2013a, p. 75-76).

Com o tempo, o telefone foi sendo querido, de fato, como a um ente. Verdadeiro aconchego para a solidão moderna é receber um telefonema cujo tom seja de uma voz amiga, sentimento que até hoje nos é familiar. Essa fantasmagoria que levou de nós o contato vivo e nos aproximou dos vivos por meio da maquinaria é uma verdadeira expressão do fantasma usurpador, que nos toma sem que percebamos que algo nos foi roubado. O aparelho é descrito como portador de uma entidade que se transubstancia em algo que se toma o corpo dos modernos. Ninguém escapa a magia e aos encantos dessa sereia. O autor denuncia a si mesmo, nesse sentido, ao dizer que o pequeno Benjamin, como quem entra em um transe hipnótico, se rendia aos imperativos deste objeto inanimado que ele o comparou a um irmão gêmeo. A máquina é personificada e divide a cama com os abandonados, enquanto o humano perde sua essência e se torna parente da máquina. Uma sensibilidade própria dos modernos que carrega consigo a adaptação das gerações mais novas às exigências do tempo que se impõe. O inferno moderno da solidão sendo amenizado pela voz que seduz, hipnotiza, põe em transe os interlocutores e cria, assim, uma falsa aparência de que, ao recebermos uma ligação, por alguns instantes, temos o consolo de um paraíso perdido.

Parte IV - Sobre a infância e o protagonismo infantil

A essa geração mais nova que se amolda rapidamente à maquinaria, por meio da recomposição sensível, Benjamin sugere caminhos alternativos aos da mera adaptação. Sempre a contrapelo, o pensador propõe outra forma de pensar uma estrutura ou sistema de educação da criança que no contexto das reflexões dele é direcionada à criança proletária. A proposição é interessante, pois demonstra uma preocupação do autor com o protagonismo infantil, como um antídoto ou vacina contra o ajustamento burguês. Nossa afirmação pode ser exemplificada na fala do pensador, ao afirmar ser imprescindível à educação proletária, “primeiramente de um contexto, um terreno objetivo no qual se educa. Não necessita, como a burguesia, de uma ideia para a qual se educa” (BENJAMIN, 2002, p. 113). Benjamin propõe um programa educacional baseado no teatro, pois “o teatro infantil proletário é para a criança proletária o lugar de educação dialeticamente determinado” (BENJAMIN, 2002, p. 113).

Não sabemos exatamente se seria possível tal meio como educação, no entanto, os argumentos são interessantes no sentido do reconhecimento das capacidades da criança como protagonista em seu aprendizado e processo de aculturação e formação. Segundo o autor, no modo de aprendizado proposto por ele à criança “leva o gênio da variação a plenos poderes. A encenação contrapõe-se ao treinamento educativo como libertação radical do jogo, num processo que o adulto pode tão-somente observar” (BENJAMIN, 2002, p. 119). Nesse contexto de trabalho, ele fala de uma “cultura juvenil” e afirma que “as tensões do trabalho coletivo são os verdadeiros educadores” (BENJAMIN, 2002, p. 114). Interessante perspectiva essa, pois acusa certa produção cultural que pertence e procede das relações entre crianças e jovens.

O ensaio intitulado “A carteira” versa sobre essa mesma questão, o protagonismo infantil, porém, no contexto de uma criança que participa dos meandros e rituais da vida burguesa. Ele fala de como o pequeno Benjamin lida com o mundo dos compromissos escolares. Assim, ao chegar à sua casa, em seu quarto, domina o que chama de objetos de tortura infantil, modo como denominou seu material e afazeres escolares. Ao chegar a sua escrivaninha, colocada próxima à janela do quarto, um novo horizonte se abria. Nesse mundo particular a ele, em seu universo infantil, realizava as atividades com as quais tinha alguma ligação afetiva e, portanto, uma forma de identificação real. Lá ele brincava. Essa mesa de sua casa, que se parecia com a da escola, segundo ele, era uma espécie de confidente e amiga contra a inimiga da imaginação e do fazer lúdico: a carteira escolar. Nesse ambiente de proteção, ele viajava em suas leituras e podia dominar o ritmo e o conteúdo de seu aprendizado. Situação distinta da vivida pela criança da classe operária, porém que se junta a esta e ajuda-nos a formar uma pequena constelação com imagens que permitem inferir sobre certas figurações feitas sobre a criança pelo autor que, neste caso, afirma relativa autonomia e protagonismo da criança.

Ao adquirir o status social da infância moderna, algumas questões começam a ser colocadas como sendo próprias dessa fase da vida. A educação talvez seja uma das mais reconhecidas e vinculadas à criança. No entanto, notadamente existem outras. Em alguns momentos, percebemos que Benjamin sinaliza para alguns qualificantes da criança e sua natureza. Há nelas algo de subversivo que perturba a pragmática ordem em construção: “as crianças são insolentes e alheias ao mundo”, afirmou ele (BENJANIN, 2002, p. 86), e são aptas em corrigir os brinquedos e criar os próprios a partir de qualquer matéria solta no mundo, inclusive o próprio corpo, como verificamos no ensaio “Canteiro de obras”, que compõe a obra “Rua de mão única”.

Parte V - Sobre a infância e profanação

Em outra linha de abordagem, o pensador trabalha a infância por meio de um percurso que associa a ideia da experiência e da memória, como verificamos em “Infância Berlinense: 1900”. Nesse sentido ele é a outra geração de sua infância, o adulto que acolhe suas memórias e, a partir delas, constitui uma nova experiência, diferente daquela vivida na primeira vez. Desviante, incoerente, criativa, insolente, imaginativa, sonhadora e profanadora, a criança que Benjamin descreve ao rememorar é lembrada a partir do olhar itinerante do adulto que projeta todo o vivido em suas imagens da infância em Berlim. Esse passado revisitado faz com que o autor redescubra sentidos sobre a criança e os modernos.

No contexto da iminência da Segunda Guerra Mundial, o pensador encontra na infância, no olhar da criança para o mundo, um meio de resistir às asperezas da vida. Assim, nos alerta Bolle (1984, p. 13), Benjamin “recupera a cultura de seus pais; mas, concomitantemente, nessa volta ao tempo, recupera em certo sentido a maneira de ver da criança, a sensibilidade, e os valores dela”. A infância, nos termos benjaminianos, inverte o mundo adulto, permite uma experiência com as coisas, com a cidade, com a história, diferente daquela já marcada pelas demandas do trabalho, do mercado, das fantasmagorias e do inferno moderno.

Uma característica relevante a essa abordagem é um “estar aberto” para o mundo, próprio da vida infantil, e que apresenta uma tendência a fazer história dos restos que ela recolhe aqui e acolá. A criança produz seus resíduos históricos ao criar, “um pequeno mundo inserido no grande” e faz isso por meio do modo como significa o que foi descartado: brincando, colecionando, fantasiando, (re)atribuindo sentido ao mundo. Essa atitude lúdica pode ser considerada profundamente profanadora no sentido que Agamben (2007) explora este conceito. Reconstruir dos cacos é, portanto, fazer a partir do desviante, do que é deixado à parte, daquilo que foi esquecido. A expressão lúdica como atitude profanadora é, deste modo, um aspecto essencial à cultura da criança. Na relação entre consagrado e profano, percebemos que o primeiro “tem a ver com o exercício do poder, o que é assegurado remetendo-o a um modelo sagrado; a segunda desativa os dispositivos do poder e devolve ao seu uso comum o espaço que ele havia confiscado” (AGAMBEN, 2007, p. 68).

Esse olhar infantil, movediço e desviante sobre o sagrado se contrapõe ao olhar do adulto, enrijecido, instrumentalizado e mascarado. Benjamin, estrategicamente, retoma os labirintos das memórias de infância para afirmar o que foi negado pela história oficial, pela história consagrada, narrada pelo viés dos vencedores. Conforme observa o pensador, o capitalismo historicamente foi se constituindo como um tipo peculiar de religião, que tornou sagrado e objeto de culto permanente o seu modo de ser (BENJAMIN, 2013a). Nesse caso, a infância é tomada alegoricamente como um contraponto ao ambiente litúrgico desta religião, pois o olhar incoerente da criança pode romper ou tencionar os aspectos instrumentais inerentes àquela. Para Agamben (2007, p. 71), “profanar significa restituir ao uso comum o que havia sido separado na esfera do sagrado”, o que “não significa simplesmente abolir e cancelar as separações, mas fazer delas um uso novo, a brincar com elas” (AGAMBEN, 2007, p. 75).

Enquanto infância do homem, outro registro importante na relação entre infância e modernidade, o olhar profanador pode representar uma alternativa à tendência unificadora e administrada da razão instrumental (AGAMBEN, 2007; 2008). Um estar aberto para novas falas, na tensão entre despertar e rememorar, no qual o passado fortalece no presente a dimensão do olhar desviante próprio da infância. “Como infância do homem, a experiência é simplesmente a diferença entre humano e linguístico. Que o homem não seja sempre já falante, que ele tenha sido e seja ainda in-fant, isto é a experiência” (AGAMBEN, 2008, p. 62). Assim, se a cidade inaugura os pilares para o indivíduo ideal burguês emergir, no modo como Benjamin apresenta e valoriza a infância em sua obra, a imagem de uma infância do homem funda a ideia de “fazer experiência do ser falante” (AGAMBEN, 2008, p. 17). Tal qual a criança que sem fala articulada se lança e se arrisca em meio ao vazio inicial da vida, a infância do homem é pensada como espaço de possibilidades em um mundo reificado.

Essa atitude de inconformidade em relação ao presente reificado, pobre de humanidade, busca redenção nos valores e na sensibilidade da criança frente ao mundo (BOLLE, 1984), pois na medida em que na criança existe um espaço vazio de linguagem está presente da mesma forma a potencialidade da expressão. Essa atitude de inacabamento infantil anunciada no jogo, no brincar, no emprego que a criança faz das coisas, devolve, de certo modo, ‘o mundo’ a um tipo especial de uso que, para Agamben (2007, p. 67), “não coincide com o consumo utilitarista”. Ao se buscar contrapontos em relação ao tempo presente, encontramos, na imagem da infância, a condição da habilidade em profanar o dado consagrado. Como ser dotado de linguagem, a perspectiva de infância do homem prevê também um estado de mudez ou gagueira frente ao conhecido e ao desconhecido. Uma aptidão à fala que permite a descontinuidade e a pausa como tensão na relação com a continuidade e o fluxo inexorável da experiência constituída por choques.

Considerações finais

O trajeto feito nos auxilia a compreender o modo pelo qual o filósofo compôs o seu diagnóstico sobre a modernidade. Foi possível evidenciar uma noção de infância no centro deste mesmo processo que descreveu os sintomas sociais do mundo moderno. Podemos afirmar, então, que a transformação da fisiognomia do espaço urbano foi fundamental para o emergir das manifestações sociais na modernidade. Foi nesse ambiente social que se deu a emergência e consolidação de um ideal novo sobre a criança. Sem essa nova arquitetura, sem os espaços para a produção e circulação das mercadorias e a inserção da técnica no cotidiano urbano das metrópoles, enfim, não teria sido possível a reordenação de nossa sensibilidade e corporeidade em direção ao plano industrial.

A instituição da infância moderna carrega consigo todos os elementos de um tempo histórico que determinou a criança como sujeito. Benjamin não apenas caracterizou essa perspectiva da história, como trouxe à tona o projeto burguês de sociedade que, ao instituir a infância moderna, o fez pensando nela como herdeira natural de seu legado. O aparente naturalismo é criticado pelo autor que, ao demonstrar seu olhar sobre a criança, denuncia aquilo que fora deixado de lado da própria história oficial sobre a infância e a modernidade: a história burguesa que consagrou a infância e, nela, os estigmas de uma sociedade; uma sensibilidade que se acostuma a lidar com aquilo que choca; de uma nova experiência com o mundo. As características da criança e as preocupações do pensador sobre o tema condensam desse modo uma espécie de alegoria sobre a experiência da infância moderna. A experiência na cidade feita de passagens, “adota aí uma estrutura que faz dela, com suas lojas e seus apartamentos, o cenário ideal para o flâneur” (BENJAMIN, 2006, p. 56), contexto de uma nova forma de ser e estar no mundo, de um projeto para criança e o jovem, e dos desvios para uma infância do homem.

Referências

AGAMBEN, Gilles. Infância e História: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. [ Links ]

AGAMBEN, Gilles. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. [ Links ]

BENJAMIN, Walter. Paris, capital do século XIX. Exposé de 1939. In: BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. p. 53-63. [ Links ]

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1994. [ Links ]

BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: editora UFMG, São Paulo: imprensa oficial do Estado de São Paulo, 2007. [ Links ]

BENJAMIN, Walter. Reflexões: sobre a criança, o brinquedo e o brincar, a educação. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2002. [ Links ]

BENJAMIN, Walter. Rua de mão única: infância berlinense: 1900. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. [ Links ]

BOLLE, Willi. Walter Benjamin e a cultura da criança. In: BENJAMIN, Walter. Reflexões: a criança, o brinquedo e o brincar, a educação. São Paulo: Summus, 1984. p. 13-16. [ Links ]

TIEDEMANN, Rolf. Introdução à edição alemã (1882). In: TIEDEMANN, Rolf. Passagens. Belo Horizonte: UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. [ Links ]

*Fonte de financiamento: FAPESP Processo: 2013/21152-3/CAPES Processo: BEX 7915/14-4.

1Existem duas versões conhecidas sobre o texto “Paris, a capital do século XIX”. Benjamin escreve o primeiro exposé em 1935 e o segundo em 1939.

Recebido: 09 de Junho de 2017; Aceito: 21 de Março de 2018

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