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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.32 no.66 Uberlândia set./dez 2018  Epub 22-Set-2020

https://doi.org/10.14393/revedfil.issn.0102-6801.v32n66a2018-11 

Artigos

Para pensar o ensino de história e os passados sensíveis: contribuições do pensamento decolonial

To think the history teaching and the sensible pasts: contributions of the decolonial thinking

Para pensar la enseñanza de historia y los pasados sensibles: contribuciones del pensamiento decolonial

Nilton Mullet Pereira* 

Elison Antonio Paim** 

*Doutor em Educação Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: niltonmp.pead@gmail.com

**Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: elison0406@gmail.com


Resumo

O presente artigo problematiza o ensino de História a partir da perspectiva da Decolonialidade. Considera especificamente o papel das chamadas questões sensíveis como maneira de redefinir o modo de representar a temporalidade e o papel do ensino de História nos processos de resistência política e social. Ao explicitar alguns conceitos utilizados pelos pensadores decoloniais, principalmente Anibal Quijano, o texto se volta para o questionamento ao eurocentrismo e ao processo de colonialidade a que a América Latina está submetida e seus efeitos para o campo educacional. A partir dessa perspectiva, consideramos o campo educacional, em geral, e a área de ensino de História, em particular, como lugares de onde se pode colocar em xeque a colonialidade através de um processo de decolonização do tempo e dos modos de ensinar história, dando ênfase aos aspectos éticos e estéticos do ato de ensinar.

Palavras-chave: Ensino de História; Decolonialidade; Ética

Abstract

This paper problematizes the History teaching, through the Decoloniality perspective, considering specifically the role of the so called sensible questions as a manner to redefine the way of representing the temporality and the role of History teaching in the process of social and political resistance. Expliciting some concepts used by the decolonial thinkers, specially Anibal Quijano, the paper turns itself in questioning the euro centrism and the colonization process that the Latin America is subjected and its effects in the educational field. From this perspective we consider the educational field in general, and the History teaching in particular, as places from where the coloniality could be put in check, through a process of decolonization of the time and the how to teach History, emphasizing the ethical and esthetical aspects of teaching.

Keywords: History teaching; Decoloniality; Ethic

Resumen

Este artículo problematiza la enseñanza de Historia desde la perspectiva de la Decolonialidad. Considera específicamente el papel de las llamadas cuestiones sensibles como forma de redefinir la manera de representar la temporalidad y el papel de la enseñanza de Historia en los procesos de resistencia política y social. Explicando algunos conceptos utilizados por los pensadores decoloniales, principalmente Aníbal Quijano, el texto se vuelve al cuestionamiento al eurocentrismo y al proceso de colonialidad al cual América Latina está sometida y sus efectos para el campo educativo. A partir de esa perspectiva, consideramos el campo educativo, en general, y el área de enseñanza de Historia, en particular, como lugares de donde se puede poner la colonialidad en jaque a través de un proceso de decolonización del tiempo y de los modos de enseñar historia, dando énfasis a los aspectos éticos y estéticos del acto de enseñar.

Palabras clave: Enseñanza de Historia; Decolonialidad; Ética

La idea de “raza” nace con “América” y originalmente se refiere, presumiblemente, a las diferencias fenotípicas entre “indios” y conquistadores, principalmente “castellanos”. Sin embargo, las primeras gentes dominadas a las que los futuros europeos aplican la idea de “color” no fueron los “indios”. Fueron los esclavos secuestrados y negociados desde las costas de lo que ahora se conoce como África y a quienes se llamará “negros”. Pero aunque sin duda parezca ahora extraño, no es a ellos que originalmente se aplica la idea de “raza”, a pesar de que los futuros europeos los conocen desde mucho antes de llegar a las costas dela futura América (QUIJANO, 2014, p. 106).

1. Introdução

Numa época na qual a atividade docente em geral e o ensino de História em particular vem sendo severamente questionados sobre o caráter político e ideológico implicados nos processos de ensino-aprendizagem, torna-se bastante necessário uma reafirmação dos aspectos éticos e estéticos das narrativas e das formas de expressão do conhecimento utilizados pelos professores para criar e recriar conceitos históricos em sala de aula. Desse modo, pensar o ensino de História a partir de formas de pensamento contra-hegemônicas parece ser uma alternativa às correntes que defendem uma prática destituída de fundamentos éticos e políticos. Há uma onda de disseminação de discursos que se apresentam na forma de um resgate1 da ciência, da neutralidade e da imparcialidade, como elementos através dos quais se deve pensar e ensinar a história. Eles se baseiam numa concepção de ciência que reconstitui o velho dualismo cartesiano (QUIJANO, 2005) que supõe um distanciamento entre a razão e o corpo, entre a racionalidade e a sensibilidade. E através dessa concepção eurocêntrica de ciência e de História se revela a constituição de um novo lugar de sujeito: o professor doutrinador. Um lugar que institui um modo de ensinar destituído dos elementos éticos e políticos que, acreditamos, são constitutivos da análise e do estudo da história.

É por isso que propomos, neste artigo, pensar o ensino de História na perspectiva de pensadores decoloniais, sobretudo Anibal Quijano, e tendo como conceito central a “colonialidade do poder”. O objetivo é problematizar a matriz eurocêntrica que constitui o nosso modo de pensar a temporalidade histórica e redefinir a maneira como inserimos (ao desconstituir tanto a história quadripartite, quanto o evolucionismo e a linearidade que tem sido basilares nas organizações curriculares de História) uma abertura a novas temporalidades que possam aglutinar maneiras diversas de pensar e experienciar o tempo. Desse modo, pensamos que há uma colonialidade do tempo, que, tal como a colonialidade do poder, instituiu um modo particular de pensar a temporalidade, como padrão universal e natural, desconsiderando outras formas de povos e culturas se relacionarem com o passado.

Este artigo se propõe, em primeiro, discutir a perspectiva da decolonialidade e, em segundo, como essa perspectiva pode ajudar a pensar o ensino de História, particularmente das chamadas questões sensíveis e desestruturantes.

2. Notas sobre o pensamento decolonial e suas contribuições para o ensino de história

O pensamento decolonial compreende autores cuja militância intelectual é realizada no campo da latino-americanidade. Trata-se de uma perspectiva crítico-social, ultrapassando os limites tanto do marcador de classe quanto do tempo linear e evolucionista que caracterizam o pensamento hegemônico desde o iluminismo. A análise da realidade, levada a cabo pelos autores da decolonialidade, implica a possibilidade da existência de um pensamento latino-americano que se oponha ao modo de pensar e de produzir conhecimento inaugurado pela modernidade europeia.

Nesse sentido, a análise histórica correlata dessa perspectiva envolve, justamente, uma forte crítica à modernidade e à colonialidade - duas formas que não podem ser pensadas separadamente - ao abordar os processos de colonização da América, formação do capitalismo e do mercado mundial e o longo processo ainda aberto e cristalizado da colonialidade.

Para iniciar, é importante diferenciar o colonialismo da colonialidade. O primeiro é um evento histórico que ocorreu nos séculos XV e XVI, quando países europeus como Espanha, Portugal, Inglaterra e França realizaram um movimento de expansão através do Atlântico, conquistando e submetendo os povos da América num processo de colonização. O colonialismo é, portanto, datado especificamente na época moderna e teve seu fim no momento dos processos de independência dos povos latino-americanos nos séculos XVIII e XIX. Trata-se de um acontecimento histórico que se situa na origem da colonialidade e inaugura a modernidade europeia. Já a colonialidade consiste no que Quijano chama de “novo padrão de poder mundial”, que se inicia com o colonialismo, mas se estende aos dias de hoje, na forma de uma construção de poder que se dá em escala mundial e que tem como característica principal realizar uma hierarquia dos povos com base na categoria de raça.

Para Quijano (2005, p. 122), se a modernidade se define pelas “ideias de novidade, do avançado, do racional-científico, laico, secular, que são as ideias e experiências normalmente associadas a esse conceito, não cabe dúvida de que é necessário admitir que é um fenômeno possível em todas as culturas e em todas as épocas históricas”. Desse modo, mesmo aquelas sociedades, anteriores ainda ao chamado sistema mundo, como Egípcios ou Astecas, podem ser caracterizadas como modernas ou que apresentam sinais dessa modernidade, tanto no campo tecnológico quanto no campo filosófico. Entretanto, a modernidade à qual Quijano se refere, ao situá-la do lado da colonialidade, é construída pelo eurocentrismo europeu, baseada no dualismo entre razão e natureza, modernidade e atraso, alma e corpo e na noção temporal da evolução. Essa modernidade já nasce de um dualismo, pois a concepção de existência de um moderno implica um outro não-moderno e, portanto, menos avançado e menos evoluído. Essa noção decorre da crença dos europeus de que se situariam no ponto máximo do processo evolutivo e que todos que os antecederam encontram-se numa situação de inferioridade e atraso: “O fato de que os europeus ocidentais imaginaram ser a culminação de uma trajetória civilizatória desde um estado de natureza, levou-os também a pensar-se como os modernos da humanidade e de sua história, isto é, como o novo e ao mesmo tempo o mais avançado da espécie” (QUIJANO, 2005, p. 122).

A modernidade é um “padrão de experiência social, material e subjetiva” que constituiu um centro a partir do qual a experiência do outro é avaliada e classificada segundo os padrões da perspectiva eurocêntrica e moderna da experiência. Essa concepção, como já afirmamos, se constrói por meio de duas noções centrais: dualismo e evolucionismo. O dualismo cria uma visão de mundo baseada em um sistema binário e valorativo em que um dos polos tem mais valor que o outro. Constitui-se de uma noção que invadiu o cotidiano de tal forma que nosso modo de ser e de compreender as relações, as pessoas e os grupos passou a estar sempre limitado por essa visão dual, que estabelece uma hierarquia entre os polos do sistema: o tradicional e o moderno, o racional e o mítico, o primitivo e o civilizado, o mágico e o científico. A “versão eurocêntrica da modernidade” estabelece as diferenças entre os dois polos como diferenças de natureza, não como diferenças históricas construídas segundo as injunções do poder. O espelho eurocêntrico nos faz crer que as diferenças entre europeu e não-europeu, por exemplo, são naturais, não criadas pelas relações de poder e pelo processo de colonização.

No decorrer do século XVII, Descartes realiza uma radical divisão entre a razão/sujeito de conhecimento e o corpo/objeto. A partir daí, não só a filosofia perde seu caráter espiritualista, entrando num cientificismo que exclui o âmbito da sensibilidade da atividade racional, mas também estabelece uma identificação do corpo com a natureza e da razão com a humanidade. É esse novo dualismo que se torna o elemento central do pensamento eurocêntrico até os dias de hoje e suas consequências políticas são importantes. Essa forma de conhecer e representar as relações entre o corpo e a alma aproxima povos não europeus a uma corporeidade que lhes torna objetos próximos à natureza, enquanto os europeus são dotados de uma razão que chegou ao seu ápice com a modernidade e, por isso, são mais civilizados e menos apegados aos enganos e perigos que esse corpo/natureza representa. Ao abordar o papel desse modo de pensar relacionado às relações raciais, Quijano (2000, p. 44) afirma que tal dualismo faz pensar que “de otro lado ‘raza’ es también un fenómeno ‘natural’ y algunas‘razas’están más cerca de la‘naturaleza’ que otras y son, pues, ‘inferiores’ a las que han logrado alejar selo más posible del estado de naturaleza”.

A outra noção, o evolucionismo, pensa o tempo como uma linha progressiva que vai do menos ao mais evoluído, do primitivo ao civilizado. Essa noção temporal estabelece que a modernidade europeia é um divisor de águas entre um tempo de atraso e um tempo avançado, no qual a humanidade, neste caso representada pelos europeus, atinge seu ápice.

Assim, o evolucionismo levou os europeus a criarem uma “ideia-imagem da história da civilização humana como uma trajetória que parte de um estado de natureza e culmina na Europa” (2005, p. 122) e o dualismo outorga “sentido às diferenças entre Europa e não-Europa como diferenças de natureza (racial) e não de história do poder”. Se esses são os dois mitos fundacionais do eurocentrismo, resta saber o modo de funcionamento desse padrão de poder que disseminou pelo planeta a centralidade da Europa, seus modos de pensar e suas formas de organização política e social.

Na leitura de Quijano, o sistema mundo, baseado num processo de mundialização do mercado e supremacia do capitalismo, tem emergência na colonização da América. Logo, a invenção da América é anterior à invenção da Europa. O deslocamento do eixo do mercado europeu do mediterrâneo para o Atlântico atesta esse processo de constituição de um mercado mundial e de uma globalização do capitalismo que tem como consequência o dispositivo da colonialidade. Esta passa a ser o novo padrão do poder mundial, incluindo as formas de trabalho existentes na América no processo de produção capitalista e passando a controlá-las. Esse padrão de poder cria também um sistema de hierarquização das populações mundiais por meio de uma categoria até então estranha tanto aos europeus quanto ao resto do mundo: a raça. Dessa forma,

A globalização em curso é, em primeiro lugar, a culminação de um processo que começou com a constituição da América e do capitalismo colonial/moderno e eurocentrado como um novo padrão de poder mundial. Um dos eixos fundamentais desse padrão de poder é a classificação social da população mundial de acordo com a idéia de raça, uma construção mental que expressa a experiência básica da dominação colonial e que desde então permeia as dimensões mais importantes do poder mundial, incluindo sua racionalidade específica, o eurocentrismo. (QUIJANO, 2005, p. 117).

A ideia de raça possuía um sentido diferente no período anterior ao processo de colonização. Esse conceito passou a fazer sentido nessa sociedade global e hierarquizada que criou novas identidades como o índio, o negro, o mestiço, o espanhol, o português, o europeu, distribuídas na nova divisão do trabalho no Capitalismo. Quijano acredita que a primeira “identidade geocultural” moderna e mundial foi a América, ou seja, a criação da América como um espaço controlado pelo capitalismo e pelo colonialismo, constituído por povos hierarquicamente inferiores aos europeus, é ainda anterior à própria criação da Europa como centro irradiador do sistema mundo. A formação de algo como a Europa apenas foi possível em função da criação da América como identidade geocultural, como um espaço que concede os elementos principais para a existência do capitalismo moderno (força de trabalho, metais preciosos e produtos agrícolas). A partir disso, cria-se uma relação dual que se apresenta como característica de todo o sistema, que opõe o europeu (civilizado, moderno, ápice do processo evolutivo da humanidade) ao não europeu (primitivos, atrasados, numa escala inferior de humanidade).

O que se verifica, portanto, é o estabelecimento de um padrão de poder e de um sistema mundo que controla os processos de trabalho e a formação das subjetividades tendo como base e justificativa a ideia de raça, que implica uma classificação social e cultural baseada no elemento biológico e, sobretudo, na cor da pele. O mais surpreendente, porém, é que as diferenças baseadas na codificação da raça são tratadas como diferenças de natureza. Podemos ver, séculos mais tarde, que a justificativa da colonização da África e da Ásia seguia esse mesmo caminho de ampliação do capitalismo e incorporação dos povos ao sistema mundo segundo o código racial. A justificativa da superioridade do homem branco foi um elemento ideológico central nesse processo, pois os europeus acreditavam ou faziam acreditar que estavam a levar civilização e modernização àqueles povos inferiores e atrasados, como dizia Kipling (1899) quando escreveu O fardo do homem branco.

Tomai o fardo do Homem Branco

Enviai vossos melhores filhos

Ide, condenai seus filhos ao exílio

Para servirem aos vossos cativos;

Para esperar, com chicotes pesados

O povo agitado e selvagem

Vossos cativos, tristes povos,

Metade demônio, metade criança.

É justamente no século XIX que o racismo ganha status de teoria científica através do darwinismo social e outras tendências evolucionistas que estabeleceram cientificamente que as diferenças biológicas e físicas entre os indivíduos e os povos são indicadores de hierarquias intelectuais e culturais. A ideia de raça é a estratégia de dominação mais eficaz dos últimos 500 anos e tenta compreender como a questão da cor da pele se constituiu em elemento central do racismo, uma vez que a cor é identificada com a raça. A compreensão decolonial é que a cor também funciona como um construto mental. Se cor tivesse a ver com raça do mesmo modo, por exemplo, que sexo está relacionado a gênero, cor teria que ver com algum tipo de comportamento físico ou biológico específico, como no caso do sexo, mas isso obviamente não é verdadeiro. O racismo identifica cor à raça, naturalizando uma diferença através de uma construção mental que se deu no interior de relações de poder e de conquista. “De hecho, ‘color’ es un modo tardío y eufemístico de decir ‘raza’ y no se impone mundialmente sino desde fines del siglo XIX” (QUIJANO, 2014, p. 107).

A colonialidade/modernidade, funcionando por meio do eurocentrismo sustentado nos mitos do dualismo e do evolucionismo, constitui um espelho pelo qual os povos latino-americanos se miram ainda nos tempos atuais. Esta mirada é uma tragédia cotidiana; ela mantém, reproduz e dá continuidade a esse padrão mundial de poder e a todas as suas nuances, das quais a mais central é o racismo. Quijano argumenta que esse espelho mostra nossa experiência de modo distorcido e parcial, impedindo manifestações originais ou antieurocêntricas, nos mostrando sempre do modo que o próprio eurocentrismo quer que nos vejamos: numa relação de subalternidade, sem a criatividade e a razão modernas, ligados à natureza de tal forma que somos incapazes de pensar e criar novidades. Eis o pensamento colonizado - aceita o lugar que a colonialidade lhe destinou na hierarquia dos povos, no sistema capitalista mundial.

2.1 Sobre o poder e o controle

O pensamento de Quijano expõe toda a sua complexidade ao se afastar tanto do marxismo quanto do chamado pós-modernismo. O pensador parece compreender que o marxismo foi uma forma de dogmatismo que mantém os traços do eurocentrismo, na medida em que o materialismo histórico-dialético concede atenção especial ao Estado e às razões de Estado, mantendo-se no interior de um pensamento tecnocrático e de uma razão instrumental. Quijano procura justamente pensar os conceitos de nação e de estado como formulações das sociedades colonizadoras e critica o marxismo, sobretudo, o que chama de “sua faceta eurocêntrica”, como tendo negligenciado as experiências históricas especificas da América Latina. Isso se dá em função da concepção de modernização apregoada pelo marxismo, que se revela como profundamente eurocêntrico, na medida em que acredita na evolução e no progresso como temporalidades que devem ter sentido para todos os povos em todos os lugares. Dessa maneira, impõe um modo de organização política e social para a América que desconsidera os modos de vida dos povos originários e as experiências históricas dos latino-americanos.

Mas se Quijano critica a leitura histórica do materialismo histórico e não se deixa seduzir pela fragmentação do chamado pós-modernismo, como podemos pensar o seu conceito de poder? É certo, como afirmamos, que Quijano rechaça o padrão de poder mundial fundado no eurocentrismo porque este, em princípio, cria um espelho que levam os latino-americanos a se verem de acordo com a imagem da América criada pelos europeus; em segundo, porque esse modelo, essa epistemologia, esse saber, a colonialidade, desconsidera a diversidade dos povos da América Latina, impondo um sistema estranho aos modos de vida e dos saberes dos povos que aqui vivem. O autor compreende que a ideia de um Estado-nação é uma invenção do eurocentrismo que, conforme o evolucionismo moderno, representa a razão política em seu estado máximo. E, mais importante, que essa forma política foi instituída na América com os processos de independência, mas descaracterizados de um dos elementos mais importantes que os acompanharam em sua emergência na Europa: a democratização da sociedade. Desse modo, os Estados-nação na América Latina foram sempre produtos de um processo que não se consolida em função de uma experiência democrática das sociedades, que não levam em consideração os direitos e as experiências dos indígenas e dos negros, por exemplo.

Assim, parece que o poder não é uma coisa que se tem e se dá, nem está situado num lugar a partir de onde se irradia, que seria o Estado. A colonialidade não é um poder que funciona desde o Estado, mas desde um sistema-mundo que implica elementos da política, mas também dos saberes, da epistemologia, da ideologia e dos processos de controle do trabalho no capitalismo. Resulta que se tem ai uma lógica de funcionamento que distribui as gentes em lugares hierarquicamente diferentes no mundo todo, uma lógica de funcionamento que, desde o processo de colonização da América, tem criado estratégias de controle das populações numa escala das sociedades inteiras e numa escala mundial. Mas, o que Quijano chama de novo padrão de poder mundial, a colonialidade, é sim uma dominação, é sim uma forma que apaga e invisibiliza, mas ele funciona de modo a criar cada vez mais pontos materiais de sua disseminação e de seu controle. Esses pontos materiais podem ser indivíduos, grupos, produtos culturais, memórias, formas de vigilância do trabalho, filosofias, modos de conhecer, que criam as subjetividades. Logo, o produto desse poder é sempre a produção das subjetividades, de modos de ser e de pensar que num movimento paradoxal, são ao mesmo tempo submetidos aos efeitos desse poder e são os seus pontos de irradiação e estabilidade.

A colonialidade, pensada dessa forma, consiste em um dispositivo que integra demarcadores muito potentes, pois são elevados ao status de elementos da nossa natureza. É o caso do principal marcador desse padrão de poder que é a raça. Trata-se de um dispositivo que relaciona o poder - as formas de controle do trabalho no capitalismo -, e o saber - um modo de conhecer e uma cosmovisão que cria as diferenças raciais e as coloca como o plano a partir do qual a humanidade é dividida e hierarquizada. Esse dispositivo é de tal forma constitutivo do que somos que se revela como um poder sobre a vida. Na leitura de Foucault (2007), um Biopoder que administra os corpos e constitui sua produtividade. Mas, é mais do que isso, na medida em que constitui não só um padrão de poder mundial que gere a vida e a constitui do modo como quer, segundo os limites estabelecidos pelo eurocentrismo, mas consiste também numa experiência histórica muito complexa que nasce no processo de colonização e constrói pela primeira vez na história, uma divisão hierárquica em escala mundial, um “moderno sistema-mundo”, como diria Wallerstein, fundado no marcador da raça. Ainda mais, transforma essa divisão no elemento chave do processo de exploração e controle do trabalho pelo sistema capitalista, criando uma escala de humanidade que coloca o europeu no topo e os povos explorados da América e da África na base, sobretudo, negros e indígenas.

Trata-se mesmo do que Quijano chama de padrão de poder mundial que, no limite de uma vida a gere, a constitui subjetivamente e a faz ser um ponto material de existência formal desse poder. O que ocorre é que esse padrão de poder mundial também é um poder de morte, ele gere a vida, mas produz a morte, a dizimação dos corpos, o genocídio e amplos processos de apagamento cultural e de saberes. Além disso, é um padrão de poder que cria uma estrutura de dominação dos povos, estabelecendo formas de controle do trabalho (empresa capitalista), do sexo (família burguesa), da autoridade (Estado-nação) e da subjetividade (eurocentrismo). Na perspectiva de Mignolo, na medida em que o biopoder “nombra el despliegue de las estratégias del estado secular moderno en Europa para controlar los cuerpos”, a colonialidade “nombra el despliegue de las estratégias para controlar tierras, trabajo, ley internacional, estrutura jerárquicas de las sexualidade, estrutura jerárquica de religiones y de formas de gobernabilidad” (2014, p. 9). Nesse sentido, a colonialidade é mais ampla que o biopoder, uma vez que compreende o controle de subjetividades, de territorialidades, de formas de trabalho e de sexualidade.

3. As questões sensíveis e a crítica ao eurocentrismo

É justamente contra os efeitos que esse espelho produz nos povos latino-americanos e em sua constituição histórica que esse conjunto de pensadores e particularmente, Anibal Quijano, pensam a decolonialidade, ou seja, um processo de autoafirmação latino-americana que desfaz as formas de controle do trabalho e da subjetividade que o padrão de poder mundial da colonialidade construiu. No artigo “Colonialidad y modernidade-racionalidad” (2014), o autor mostra que a descolonização se dá por um processo “nostálgico” de recusa do eurocentrismo e de sua epistemologia. O pensador propõe uma problematização da noção de totalidade, afirmando que é preciso contestar a totalidade própria da modernidade europeia, que consiste num reducionismo teórico e numa metafísica que constitui um sujeito universal, racional e superior em relação às diferenças e as especificidades de cada grupo, povo ou indivíduo. Não é que ele proponha o abandono da totalidade como categoria de análise da sociedade, uma vez que ela permite uma compreensão de outras culturas que também se utilizaram de uma perspectiva de totalidade para elaborar suas cosmovisões, seus imaginários e suas visões de mundo, mas defende que é preciso abandonar essa racionalidade moderna europeia, que é totalitária na medida em que desconhece, invalida e destrói outras formas de conhecer, ver o mundo e construir modos de vida. Quijano compreende que a contestação das formas de saber do eurocentrismo implica apoiar a diversidade e a heterogeneidade histórica das sociedades e dos povos. Nesse sentido, as diferenças que brotam dessa recusa consistem numa afirmação do outro, não na sua eliminação. Quanto mais se afirmar a diferença do outro e se atribuir a ele um espaço de existência, mais será possível uma prática intercultural.

Isso implica, também, uma crítica à teleologia histórica típica do evolucionismo da modernidade europeia, uma vez que este supõe um “fim da história” ao encontrar o momento mais alto e civilizado de racionalidade, reduzindo, sem dúvida, tal civilidade e racionalidade aos europeus e sua cosmovisão. Esse reducionismo funciona com a suposição de que se o Estado nacional é o máximo de racionalidade e de organização social, aqueles povos e grupos que não possuem essa forma política são inferiores e não chegaram ainda a termo. A liberação da racionalidade europeia implica negar a instrumentalização da razão levada a efeito pelo projeto moderno e se apropriar das “promessas libertadoras da modernidade”, mas a possibilidade dessa libertação depende da liberdade dos povos em fazer suas escolhas e, sobretudo, desenvolver formas de vida que desviem da lógica do capitalismo (economia solidária, reciprocidade, por exemplo), criando novos mundos possíveis. Quijano conclui que “la descolonización epistemológica” deve dar “paso a uma nueva comunicación intercultural, a un intercambio de experiencias y de significaciones como base de otra racionalidade que pueda pretender, con legitimidade, alguna universalidade” (2014, p. 69). Nesse sentido, uma utopia possível para a América Latina passa pelo abandono da racionalidade instrumental moderna, baseada na centralidade do estado-nacional. Será, portanto, segundo Quijano, necessário afirmar outras racionalidades, formas de vida que se dão exatamente contra e fora desse estado colonizado, o que implica pensar racionalidades que consideram a equidade, a reciprocidade, a solidariedade e a democracia (1988).

É nesse sentido, que o pensamento decolonial torna possível repensar o ensino de História, sobretudo, o modo como temos dado sentido às diferentes realidades históricas, povos e culturas as quais o discurso histórico descreve e narra. Implica também repensar a temporalidade e romper tanto com o evolucionismo, quanto com o dualismo típico do pensamento eurocêntrico.

Nesse sentido, esse pensamento nos leva a introduzir o elemento ético e político no ensino de História, o que implica desconsiderar uma explicação distanciada do passado. O caráter ético do ensino de História está justamente no processo de construção de si mesmo como sujeito de um olhar, como subjetividade marcada por se permitir realizar uma determinada interpretação do passado e do seu lugar no presente. Nesse sentido, o estudo dos passados sensíveis e desestruturantes não significa apenas colocar o aluno diante de um conteúdo disciplinado e frio (WHITE, 1994), mas diante de algo que desperta um posicionamento ético e político, de indignação frente à injustiça e à violação dos direitos humanos mais fundamentais. Logo, o estudo desses passados, a escrita da História sobre esses passados e seu ensino não são atitudes desinteressadas, mas voltadas ao futuro, um futuro de tolerância, de reconciliação com a justiça e com os direitos.

As narrativas que dão conta de apresentar o holocausto, a tortura, a escravidão não podem ser apenas sequências factuais, científicas e continuas e obedecer a um tempo contínuo, linear e evolucionista. O que se supõe é que as formas de expressão da verdade histórica não estão apartadas do conteúdo das verdades que expressa, logo, utilizar uma forma de exprimir o que ocorreu no período da ditadura civil-militar no Brasil, implica pensar num modo de inserir os jovens na dramaticidade daquele tempo, de modo a permitir problematizar sobre o quanto esse passado ainda é constituidor dos modos de criar nossas relações no presente. O mesmo se pode dizer das formas de expressão da escravidão, pois que esses modos expressivos precisam dar vasão a racionalizações, mas também a sensações sobre o que foi a escravidão e como ela ainda se constitui em um elemento definidor das relações étnico-raciais que estabelecemos hoje no Brasil.

Pensar as questões sensíveis exige um rompimento com a temporalidade eurocentrada, que mira o passado como anterior ao presente e este como o ápice de um processo evolutivo. Abordar questões sensíveis, como escravidão ou violência de gênero, implica uma nova compreensão da temporalidade, uma vez que o passado ai se alonga no presente. Portanto, trata-se de não supor que o estudo do passado seja uma ação fria, cientificamente sustentada por um método rigoroso, que não implique uma porção de intuição e de sensibilidades, dos lugares e dos sujeitos. Quer dizer estudar o passado considerando que ele convive com o presente, sem que se possa estabelecer as fronteiras entre passado e presente. Na perspectiva de Ávila (2006, p. 191):

A condição pós-colonial nos confronta com um presente eivado de heranças do colonialismo ao mesmo tempo em que reconhece a ruptura produzida pelos processos de descolonização. Isso significa admitir, dentre outras coisas, que certos pretéritos considerados como efetivamente encerrados (o da escravidão ou da destruição dos diversos povos originários, por exemplo) são agora tomados, nos termos de Stuart Hall (2013, p. 120), como fundamentais, ainda que recalcados, para a emergência da própria modernidade. Consequentemente, se fazem, assim, “passados presentes” e produtores de uma desordem no regime temporal linear e progressivo da modernidade. (2016, p. 191)

A opção pela abordagem de questões sensíveis, como escravidão, ditadura, genocídios, violência ou homofobia parece ser algo não muito distante das aulas de história. Ao contrário, parece ter sido uma opção que tem feito redefinir a velha narrativa que parece natural, de que a história é cronologia e de que consiste nas ações do homem num tempo contínuo. Elas mostram que as fronteiras entre passado e presente não são tão rígidas ou nem mesmo são dados da realidade quanto à historia ensinada poderiam supor. Tal narrativa é resultado de uma concepção temporal típica da modernidade europeia e do que Quijano (2005) chama de Colonialidade do Poder.

No que se refere à questão da expressão das questões sensíveis, a nova temporalidade que borra as fronteiras entre passado e presente indica que uma aula de História é um ato dramático. É a dramatização o elemento expressivo que torna o passado e o presente vivos e pulsantes. O ato dramático recupera o elemento estético que cria um conjunto de encontros e relações que chamamos aula de História. “Ensinar História pode bem ser o mesmo que expandir a vida, submeter-se à vida, subjugar-se ao impulso vital” (PEREIRA, 2013). Esse elemento estético torna a aula um exercício que envolve o conteúdo da verdade histórica apresentada ao modo de sua enunciação.

4. As questões sensíveis e o dever de memória

A historiografia e a pesquisa em ensino de História têm se ocupado, nos últimos tempos, com a questão dos passados sensíveis, a pesquisa que se propõe a resgatar elementos do passado de grupos identitários, invisibilizados pela história oficial, as salas de aula da Escola Básica procuram formas de reconstituir lugares de memória que permitam aos grupos reatar relações com seu próprio passado e com a construção de uma memória. Nesse sentido, a noção de “dever de memória” se torna conceito teórico adequado para pensar, por exemplo, o passado traumático da escravidão no Brasil e as permanências sensíveis que fizeram ficar pouco visíveis a história dos negros, seus elementos afirmativos, suas práticas culturais, suas lutas e conquistas políticas e identitárias, suas religiosidades.

A noção de dever de memória está relacionada, então, a “ressignificação do discurso memorial ligado ao holocausto de milhares de judeus que viviam na França” (HEYMANN, 2007, p. 18-19). O que nos leva a supor que, no Brasil, tais processos estão ligados a uma dívida de memória em relação aos indígenas e aos negros, sobretudo, uma vez que no caso específico da Escola Básica verifica-se um brutal esquecimento em relação às suas histórias e suas lutas, razão pela qual tanto o Artigo 26A da LDB quanto às leis nº. 10.639/2003 e nº. 11645/2008 constituem-se numa tentativa de reconstituir o lugar desses grupos e povos na constituição e na construção do que se pode chamar de Brasil ou de sociedade brasileira.

É assim que este artigo se insere num esforço intelectual e político de pensar o modo como as aulas de História poderão entrar numa guerra de representações (CHARTIER, 2002) que se propõe a redefinir as formas de expressão dos passados sensíveis. Como permitir que o encontro com as práticas racistas decorrentes de um passado traumático como a escravidão pode ser bem mais que um encontro com o conteúdo histórico, com um fato definido apenas pelo campo da pesquisa, com um relato frio e disciplinado que apresenta um passado?

Pensar a verdade histórica sobre escravidão implica uma dose bem significativa de subjetividade e uma imensa dose de sensações. Ou seja, a expressão de um passado sensível e suas continuidades históricas no presente está implicada no componente ético que exige o diálogo com os saberes da memória dos agentes e dos sujeitos históricos em questão e com a dramaticidade que exige uma postura ética, sensível e política diante dos acontecimentos, não apenas de contemplação, mas de ação e de posicionamento, porque não dizer, de indignação diante da injustiça e do sofrimento. Trata-se de uma guerra de representações, uma vez que o que está em jogo é o modo de representar o passado: se de uma maneira disciplinada e fria, como relato não problemático e sem o envolvimento de professores e alunos ou se de um modo dramático que convida à problematização do passado e o questionamento do presente, através de uma aprendizagem que ultrapassa os limites da ciência histórica e se insere nos saberes, nas memórias e no sofrimento do outro. Trata-se de uma aprendizagem da experiência, de um ter com a experiência alheia, para com ela redefinir os parâmetros do presente e as possibilidades de futuro.

O dever de memória está relacionado, então, ao inextricável comprometimento entre o ensino de História e a justiça. Quer dizer que o compromisso ético do ensino de História consiste na difusão de memórias que reagrupe no campo do visível e do dizível, através de estratégias estéticas dramáticas, o sofrimento, a tortura e a violação aos direitos humanos, justamente para realizar os objetivos de uma educação para os direitos humanos.

Em boa parte das vezes, essa história suspendeu a visibilidade de uma história menor (PEREIRA, 2017), seja do corpo, seja da vida cotidiana, seja, sobretudo, do acontecimento. Uma história menor acontece em outras instâncias que não apenas nas decisões governamentais ou nas grandes mudanças de sistemas políticos e econômicos. Ela viabiliza um ensino de História que se ocupa de pessoas comuns, suas angústias, medos, lutas e amores cotidianos. Uma história menor é uma história dos vencidos, adequada ao conceito e ao ponto de emergência deste. O filósofo Walter Benjamin (1983) declarou que a escrita da história deveria se ocupar da vida daqueles que a história oficial silenciou - os “sem nome”, os esquecidos -, tanto pela apatia dos grandes heróis quanto pelo peso das grandes estruturas.

O estudo dos Quilombos, por exemplo, é um modo de pensar sobre a vida dos escravizados, mas também sobre suas formas de resistência ao jugo escravista. Além do mais, constitui um dever de memória aos afrodescendentes e à sociedade brasileira, que sofreu com os efeitos do regime escravocrata. Nos tempos atuais, por dever de justiça, luta-se por espaços nos diversos lugares sociais para os negros, e, por dever de memória, se estudam a história e a cultura dos afrodescendentes na escola.

O dever de memória não se limita a guardar o rastro material, escrito ou outro, dos fatos acabados, mas entretém o sentimento de dever a outros, dos quais diremos mais adiante que não são mais, mas já foram. Pagar a dívida, diremos, mas também submeter a herança a inventário (RICOEUR, 2007, p. 101).

Desse modo, as formas de expressão do passado nas aulas de História estão ligadas tanto a um estranhamento (PEREIRA; MARQUES, 2013), quanto a um pertencimento, na relação do presente com os passados. O estranhamento se relaciona com o inusitado das experiências que os diversos povos, culturas ou grupos humanos se oferecem sob a forma de uma experiência singular. A partir da qual se pode aprender e ampliar a percepção em relação ao presente e ao próprio futuro, uma vez que cada nova experiência aprendida se torna uma infinidade de novas possibilidades de resolução da vida atual com vistas ao futuro. Portanto, trata-se de permitir que o estudo do passado seja um envolvimento com um processo criativo. O pertencimento se relaciona com um conjunto de referências que criam uma relação nova do indivíduo consigo mesmo, uma relação de afirmação e de construção de um lugar na história e de uma nova memória. Os passados que se lhes ensinamos são decorrentes do passado das suas referências de memórias, dos seus pertencimentos identitários. Logo, o objetivo é criar uma relação das novas gerações com suas histórias, sobretudo, daqueles que tiveram seus passados invisibilizados pela própria escola e pela aula de História. Trata-se de se valer do ensino de História para criar uma consciência histórica de si mesmo e dos grupos aos quais faz parte.

No que se refere especificamente aos passados sensíveis e aos modos de expressão desses passados, pensamos que a decolonialidade nos indica uma relação íntima com o debate sobre os usos do passado no presente e sobre como o passado só pode ser visto, contemplado e usado no presente, através das perguntas que a ele fizermos, de acordo com as problemáticas que hoje se apresentam, o que demonstra que passado e presente ai convivem num só tempo, não simplesmente de um passado que não passa, mas de um presente que é acúmulo e que se desenvolve no exato instante em que passa.

O tema dos direitos humanos, o tema da intolerância, do racismo, da homofobia e mesmo da violência são temáticas com as quais nos debatemos no presente. São elas que, sobretudo, ensejam que possamos pensar que os recortes que fazemos para dar visibilidade a esses passados se deem na perspectiva de um passado prático (WHITE, 2014), na perspectiva de tornar o ensino de História com uma forte dimensão ética e política, com um objetivo de permitir não apenas a não repetição de erros do passado, mas com o objetivo de permitir que se possa problematizar esse presente, do preconceito, da intolerância e da discriminação e do silenciamento, e repensar nossa abertura para o futuro.

Nesse sentido, a dimensão estética toma também relevância. Na crença de que o modo de enunciação de uma verdade está intimamente ligado ao conteúdo dessa verdade, não se pode deixar de considerar que as formas de expressão do passado, neste caso, dos passados sensíveis, têm um papel importante no processo de ensino-aprendizagem. Afinal de contas, é preciso um modo de exprimir um passado que possa responder perguntas como aquelas feitas por Hannah Arendt (2006) à sua geração, em As origens do totalitarismo, numa clara tentativa de compreender os horrores do nazismo, de como a sociedade liberal europeia sucumbiu à desumanização: O que havia acontecido? Por que havia acontecido? No Brasil, torna-se necessário perguntar como se pôde conviver com a tortura, com o desaparecimento e com a morte. Por que se tenta jogar ao fundo do esquecimento tais práticas? Como se pode conviver hoje com o genocídio dos jovens negros, com o assassinato de gays, com a intolerância de toda a ordem? Eis algumas das inquietações que a abordagem dos passados sensíveis, na perspectiva de um passado prático, partem para levar a efeito uma arte e uma política do recorte.

O ensino dos passados sensíveis diz respeito ao um ensino dos conteúdos do passado, mas com a perspectiva do futuro. “Estudar o passado é um modo de romper com o presente, com o estado atual das coisas, mas, sobretudo, para produzir a novidade (o futuro), para criar ‘novos mundos possíveis’” (PEREIRA; GITZ, 2014, p, 17). Mas de mundos nos quais a diferença seja respeitada, nos quais a vida não seja limitada por modelos pré-estabelecidos ou padrões que definem os modos de ser. “Somente uma sociedade plural, pensada como espaço de trânsito contínuo da diferença, é que pode livrar-se do amalgama legado pelo nazismo. E é nessa sociedade plural que manifestações antissemitas, homofóbicas, sexistas, racistas ou de qualquer outro gênero podem já ter deixado de existir” (PEREIRA; GITZ, 2014, p. 18).

Nesse sentido, o ensino dos passados sensíveis permitem aos estudantes realizar dois movimentos importantes: um consiste na compreensão da historicidade do que nos acontece, logo, estudar os passados sensíveis é pensar perspectivamente a intolerância, o racismo e o genocídio; outro movimento é o de permitir que os estudantes possam mudar o seu presente, e possam levar a efeito um exercício ético de constituição de si e de novos modos de se relacionar com os outros.

Na esteira desses dois movimentos, aparece a necessidade de o ensino de História se comprometer com os valores que dizem respeito aos direitos humanos e à memória. Isso quer dizer não permitir que a sala de aula de História possa se tornar um lugar onde seja possível revisar aqueles acontecimentos que feriram e abandonaram os direitos humanos, como o próprio holocausto ou a ditadura civil-militar no Brasil. O direito à memória tem a ver tanto com a possibilidade do estudo da documentação sobre os acontecimentos que marcaram a nossa história quanto com a manutenção de lembranças que nos informam sobre as violações à vida e aos direitos que não se quer mais que voltem a ocorrer.

Por fim, devemos considerar que o ensino dos passados sensíveis não pode se basear apenas na oralidade do professor ou na cópia de textos do quadro ou mesmo da leitura de textos. É evidente que escutar uma aula expositiva, copiar um texto ou fazer uma leitura são elementos importantes e até indispensáveis de uma aula de História. Elas ensinam sobre argumentação, sobre como escutar o outro e mesmo a ler e a escrever. Mas o elemento dramático de uma aula de História precisa, ao ensinar os conceitos históricos - razão de ser de toda a aula -, provocar nos alunos sensações que lhes coloquem no centro do acontecimento ensinado. Essa provocação é uma maneira de aproximar o tempo da aula ao tempo do estudante; de modo que ele possa não apenas interessar-se pelo tema, mas que possa estranhar-se, sair do lugar comum e do hábito ao qual sua memória está acostumada: a violência, a tortura e o extermínio precisam aparecer com tal impacto que não se tornem algo aceitável.

Referências

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1Referimo-nos aqui ao movimento Escola Sem Partido. O movimento chamado de Escola Sem Partido é tanto um movimento social (http://www.escolasempartido.org/) quanto um programa (http://www.programaescolasempartido.org/) com o objetivo de cercear a liberdade de ensinar, direito constitucional assegurado na Constituição Federal brasileira de 1988, através da proposição de leis em âmbito municipal, estadual e federal que tipificam o crime de assédio intelectual, dentre outras iniciativas.

Recebido: 10 de Outubro de 2017; Aceito: 21 de Fevereiro de 2018

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