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Educação e Filosofia

versión impresa ISSN 0102-6801versión On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.32 no.66 Uberlândia set./dic 2018  Epub 22-Sep-2020

https://doi.org/10.14393/revedfil.issn.0102-6801.v32n66a2018-15 

Artigos

Schiller, Arendt e a fuga do reino das necessidades: estética, formação e política

Schiller, Arendt and the scape from the scope of needs: aesthetics, education and politics

Schiller, Arendt et la fuite du royaume des nécessités: fomation esthétique et politique

Daiane Eccel* 

*Doutora em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora de filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: daianeeccel@hotmail.com


Resumo

Apesar de pertencerem a diferentes séculos, Friedrich Schiller e Hannah Arendt diagnosticam seu próprio tempo, caracterizam nossa condição humana e identificam-se como devedores intelectuais de Kant. Em sua obra Educação estética do homem: em uma série de cartas, Schiller encontra na arte a via de saída para a decadência política. Arendt, em seu artigo “A crise na cultura: sua importância social e política”, identifica as relações presentes entre cultura, arte e política. Investigar o que há de comum nas teses desses dois autores, assim como identificar as diferenças entre eles, constitui o objetivo deste artigo. Na primeira parte, trataremos das percepções de ambos os autores a respeito da condição animal do homem, bem como da necessidade de transgredi-la. Na segunda, verificaremos se há, na obra de Arendt, elementos correspondentes ao “homem que joga”, de Schiller, e, finalmente, mostraremos os fundamentos kantianos comuns em ambos os pensadores.

Palavras-chave: Arendt; Schiller; Filosofia; Estética; Educação

Abstract

Althoug they belong to diferent centuries, Friedrich Schiller and Hannah Arendt make diagnosis of their own time, outline characteristics about our human condition and identify themselves as intellectuals borrower of Immanuel Kant. Trought his work Letters on the Aesthetical Education of Man, Schiller sees in the art the way out for spiritual and political decadence and Arendt, in her essay Politics and Culture identifies the relations betwenn art, culture and politics. To investigate the similarities as well the differences between both thinkers constitues the aim of this article. Firstly we inquire the perception of both authors about the animal human condition and the need to it transgress. In the second one, we will investigate if there is, in the work of Arendt a correspondente to the “play driver” of Schiller and, finally we will focus on showing the Kantian foundations that permeate the work of both.

Keywords: Arendt; Schiller; Philosophy; Aesthetics; Education

Résumé

Tout en appartenant à des siècles différents, Friedrich Schiller et Hannah Arendt posent le diagnostic de leur propre temps, tracent les caractéristiques de notre condition humaine et s’identifient comme débiteurs intellectuels d’Emmanuel Kant. A travers son ouvrage Lettres sur l’éducation esthétique de l'homme, Schiller trouve dans l'art l’issue pour la décadence politique, et Arendt, dans La Crise de la culture, identifie les relations présentes entre culture, art et politique. Cet article a pour objectif de rechercher ce qu’il y a de commun dans les thèses de ces deux auteurs, ainsi que d’identifier les différences entre eux. Nous aborderons les perceptions des deux auteurs sur la condition animale de l’homme ainsi que la nécessité de la transgresser. Ensuite on verifie s’il y a, dans l’œuvre d’Arendt, quelque élément correspondant à « l’homme qui joue » de Schiller, et enfin nous montrerons les fondements kantiens en commun chez les deux penseurs.

Mots-clés: Arendt; Schiller; Philosophie; Esthétique; Education

Introdução

Mais de dois séculos separam Friedrich Schiller e Hannah Arendt. Nesse intervalo de tempo, o movimento romântico tomou conta da Alemanha, a Primeira Guerra devastou o país e a Segunda foi assolada com a ascensão do Nacional Socialismo. Schiller é um esteta, Arendt pensa a política. Com base em todas essas informações que, de fato, são verídicas, mas bastante superficiais, o leitor é levado a crer que nada de relevante possa se pensar sobre uma possível relação entre a obra do pensador do século XVIII e a politóloga do século XX. Um olhar mais acurado para ambos, no entanto, revela-nos elementos significativos: Arendt não somente pensa sobre política, mas também sobre estética, se levarmos em consideração suas observações sobre literatura, massificação da cultura e sua própria inclinação como poetisa. Por outro lado, é visível que Schiller, em suas conhecidas cartas reunidas e intituladas como Educação estética do homem: numa série de cartas1, está preocupado com a formação de um Estado estético. Para além disso, Schiller, contemporâneo da Revolução Francesa, e Arendt, a quem era permitido um olhar retrospectivo sobre esse evento político, atestaram sua degeneração em terror e mostraram-se decepcionados com o curso dele. Para nos alongarmos nos pontos em comum, importa notar que a tradição que move a ambos é, em seu fundamento, a mesma: eles guardam uma profunda admiração com relação à Grécia pré-platônica e frequentemente são mal interpretados como autores nostálgicos. Embora Schiller enxergasse no homem grego uma fusão entre razão e sentimento, e Arendt louvasse o elemento da ação política presente nos cantos de Homero, por exemplo, nenhum dos dois jamais desejou uma volta ao passado. Para além disso, na relação de elementos partilhados por ambos os autores, encontra-se, talvez, o mais importante deles: a influência kantiana. Parte da obra de Schiller é escrita levando em alta conta os escritos kantianos, ora elogiando-os, ora criticando-os. A admiração de Arendt por Kant, por sua vez, é tão grande que ela o coloca na seleta categoria de filósofos da tradição ocidental que pensam diferente de Platão. As considerações arendtianas sobre a juízo do gosto em Kant - mui comentadas por seu aspecto sui generis - constituem a última seção de sua obra inacabada A vida do espírito2.

Ainda mais do que as influências e os interesses em comum, é possível afirmar que Schiller e Arendt desenvolvem uma espécie de investigação antropológica3. Para o primeiro, o homem é inteiramente homem quando joga (2002, p.80), para Arendt, o é quando age, e agir, no sentido arendtiano, é sempre agir politicamente. No jogo de Schiller há um sentido político, ao passo que na política de Arendt há um certo sentido estético (a julgar pelas suas considerações kantianas). Este artigo tem a intenção, portanto, de investigar esses elementos que se intercruzam na obra dos dois autores. Para mais do que isso, no entanto, gostaríamos de analisar como os escritos de Schiller sobre uma educação estética da humanidade poderiam corroborar as considerações de Arendt a respeito da crise na cultura na modernidade. Em seu artigo Crise na cultura: sua importância social e política4, como é comum em alguns dos seus escritos, Arendt opera por distinções de termos, e neste ela o faz diferenciando arte de cultura. Com tal diferenciação, ela afasta a arte da política, conferindo à essa última um caráter meramente utilitário, aproximando-a das tarefas do mero fazer, atribuição do artesão, do banáusos grego, ou ainda do homo faber5. É verdade que a arte não faz parte da categoria do labor desenvolvido por Arendt, porque ocupa-se, de alguma forma, com alguma coisa a mais do que com a mera manutenção da própria vida. Entretanto, é importante notar que a arte enquanto techné não é cultura, não pode ser associada com a apreciação do belo ou com a fruição estética. Segundo a definição arendtiana, a arte jamais poderia ter algo em comum com o que Schiller chama de Spieltrieb, como o jogo lúdico. O homem que joga não é o animal laborans - aquele que está apenas ocupado com os processos biológicos básicos de sobrevivência -, mas também não é, surpreendentemente, o artista, o bánausos, que se ocupa de fazer arte, mas não de gozar dela. Nossa hipótese de trabalho, portanto, é que o conceito de cultura está para Hannah Arendt assim como o conceito de jogo está para Schiller, a saber, ambos ocupam-se com aquilo que está para além do que é meramente biológico e extrapola a esfera do puro obrar, fabricar, produzir; diferentemente disso, ocupam-se com o que é inútil e belo.

Não obstante, ainda é importante destacar que, apesar de enfatizarmos elementos em comum nas teorias de Arendt e Schiller, é preciso também atentar para diferenças significativas que aparecerão ao longo deste artigo. A mais marcante delas é, sem dúvida, o peso diferenciado que Schiller e Arendt concebem à política. Apesar do primeiro se preocupar com a atual situação política de seu tempo, parece haver por parte dele um considerável desapontamento com os processos políticos, o que faz com que ele considere a estética ou a fruição do belo como via de formação da humanidade e, por consequência, uma espécie de via salvífica para a política. Para Arendt, por sua vez, há na beleza - segundo sua interpretação da terceira crítica de Kant, um elemento político, mas a política em si, e não o belo, ainda é o leitmotiv de toda a sua obra.

1. Um olhar sobre seu século: a crítica de Schiller e de Arendt ao seu próprio tempo

É verdade que Hannah Arendt viveu em um século sui generis. Ela mesmo parece se atentar para isso quando escreve em seu prefácio em Origens do totalitarismo6:

Duas guerras mundiais em uma geração, separadas por uma série ininterrupta de guerras locais e revoluções, seguidas de nenhum tratado de paz para os vencidos e nenhuma trégua para os vencedores, levaram à antevisão de uma terceira guerra mundial entre as duas potências que ainda restavam. O momento da expectativa é como a calma que sobrevém quando não há mais esperança. Já não ansiamos por uma eventual restauração da antiga ordem do mundo com todas as suas tradições, nem pela reintegração das massas, arremessadas ao caos produzido pela violência das guerras e revoluções e pela progressiva decadência do que sobrou. (1998, p.11)

Friedrich Schiller, por sua vez, apesar de não ter presenciado duas guerras mundiais e, provavelmente, de não ter imaginado um cenário tão catastrófico como os campos de concentração nem no mais trágico de seus romances ou peças, vivenciou a passagem do século XVIII para o século XIX e, da mesma forma que Kant, acompanhou do interior da Alemanha a revolução que se passava na França. Menos catastrófico, mas bastante agitado politicamente, foi o tempo de Schiller, cujo Zeitgeist erigiu-se sob a égide das luzes no Velho Mundo e, mais especificamente, sobre a Aufklärung alemã. O Iluminismo, como espírito do tempo, marcou profundamente os séculos XVIII e XIX, seja em forma de deslumbre por aqueles que encontravam na razão a solução para todos os problemas da época, seja na forma de crítica, como o movimento romântico alemão, por exemplo. Schiller transita de um lado ao outro em parte por meio de suas assíduas leituras de Kant e, em parte, por sua inserção literária e por suas peças de teatro no conhecido movimento Sturm und Drang. Desde jovem, Schiller parece ter alcançado aquilo que mais tarde seria a marca de sua obra: a síntese entre o entendimento racional de um lado e a sensibilidade do outro.

Embora seja frequentemente citado como um autor diretamente ligado ao movimento romântico, talvez o mais correto seja chamá-lo de clássico, como fazem os próprios alemães quando se referem à dupla Schiller-Goethe. O fato que nos interessa aqui, no entanto, é notar que se há algo de romântico em Schiller, é sua percepção quanto ao fracasso do domínio da racionalidade. Tal percepção é resultado da observação concreta da realidade de seu tempo, aliada à leitura das obras de seus contemporâneos. Da mesma forma que Rousseau e Kant, Schiller depositou esperanças na Revolução Francesa. A fundação de um novo corpo político, cujo esteio se dava sob a tão desejada tríade liberté - égalité - fraternité, era motivo suficiente para que ele e boa parte dos intelectuais alemães que olhavam para a França se convencessem de que novos e bons tempos estavam se aproximando. A promessa da Revolução, no entanto, ao menos segundo a percepção de Schiller, não se cumpriu, pois ela não se limitou à violência - que parece ser um elemento intrínseco a cada revolução -, mas degenerou em terror, perdendo, dessa maneira, seu ideal de liberdade. A motivação revolucionária alimentada pelos ideais do iluminismo francês sucumbiu e, segundo os olhos de ferrenhos críticos, degenerou-se em estado de barbárie - o que o Iluminismo pretensamente buscava retirar dos homens.

O envolvimento intelectual de Schiller com os acontecimentos que envolviam a Revolução Francesa era tamanho que o fizera receber o título de citoyen français. O autor, como muitos dos intelectuais de seu tempo, estava convencido de que a dupla formada pelo monarquismo absoluto associado ao luxo e ao requinte palaciano no qual vivia o rei e toda sua corte não era, como indicavam as aparências mais superficiais, sinônimo de progresso moral, mas, ao contrário, apontava claramente para a degeneração dos costumes. Schiller era partidário, assim como Kant, das percepções que Rousseau já havia assinalado tanto em seu Primeiro discurso como no texto de 1760, Discurso sobre as ciências e as artes, a saber, que as pompas da corte, o rococó e um suposto requinte presente na retórica dos intelectuais não conduzia a humanidade rumo ao progresso dos costumes, mas à decadência moral, à degradação das ciências, assim como das artes. Dessa maneira, a expectativa de Schiller com relação à Revolução não era somente ligada a uma regeneração da política, mas de todo um sistema que envolvia a formação dos homens. Se grande era a expectativa, proporcionalmente grande foi a desolação. Muito pouco ou quase nada daquilo que era esperado pelo nosso autor realizou-se do decorrer dos anos depois de 1789. A França era, aos olhos de parte dos intelectuais alemães desse período, o símbolo de esperança que tinha em vista o extermínio da barbárie - barbárie essa que também tomava conta da Alemanha. Enquanto aquela era reconhecida como berço do refinamento, esta era relativamente atrasada em termos de costumes e bastante agrária. Se havia uma espécie de pseudorebuscamento na França monárquica, havia uma exacerbada falta de refinamento na Alemanha desse período que, ao que parece, preocupava-se apenas com níveis de satisfação muito elementares e quase animalescos. Com o decorrer da Revolução e sua degeneração, a decepção estava dada para Schiller: “Esperança vã!” (2002, p.31), como escreve Schiller na Carta V, de sua Educação estética do homem: em uma série de cartas. Os ideais iluministas da razão degeneraram em terror na França, e na Alemanha só havia espaço para o sensível, ou seja, para a mera satisfação das necessidades do corpo. Ainda na quinta carta, o autor assinala que “o homem retrata-se em seus atos, e que figura é esta que se espelha no drama de nossos dias! Aqui, selvageria, mais além, lassidão: os dois extremos da decadência humana, e os dois unidos em um espaço de tempo” (2002, p.31) A decadência da situação social e política na qual se encontrava o tempo de Schiller constituía, em parte, o leitmotiv de seu trabalho.

No entanto, o que intrigava Schiller não residia apenas na realidade política em si, mas também na situação espiritualmente decadente na qual se encontravam os homens e mulheres da época. O homem encontrava-se cindido. Arte e natureza estavam rompidas, corpo e alma também, assim como razão e sensibilidade. Onde o físico se esforçava para sobreviver ou buscar prazer, o espírito não atuava mais - eis o problema apontado por Schiller. Não somente isso, mas como assinala ele na carta VI: “o entendimento intuitivo e o especulativo dividiram-se com intenções belicosas em campos opostos, cujos limites passaram a vigiar com desconfiança e ciúme, e com a esfera à qual limitou sua atuação, cada um deu a si mesmo um senhor, que não raro termina por oprimir as demais potencialidades” (2002, p. 37). O ponto antagônico do homem moderno cindido é o povo grego. Neste sentido, Schiller reproduz, em parte, o lugar comum de seu tempo, pois não somente para ele, mas também para outros pensadores, como Goethe e Hölderlin, bem como para o movimento romântico de forma geral, a Grécia antiga significava um ideal a ser admirado7. No entanto, importa ressaltar aqui que não havia pretensões nostálgicas utópicas de retorno a um passado remoto. O fato é que a relação entre política, arte, ética, religião, razão e sensibilidade era unificada entre os gregos, mas fragmentada na modernidade. Trata-se, no final das contas, de uma unidade grega harmônica e de um homem-fragmento moderno cujas artes, ciências e costumes estavam em constante decadência.

Mutatis mutandis, as linhas do texto de Schiller não constituem algo estranho às linhas escritas por Arendt no século XX. Em seu ensaio Culture and politics, cuja versão concluída se encontra sob o título A crise na cultura: sua importância social e política, reunido com outros ensaios em Entre o passado e o futuro, denuncia também um tipo de homem típico de seu tempo - o filisteu, seja ele ignorante ou educado, cujo aparecimento está diretamente relacionado com a sociedade de massa do século XX, mas tem suas raízes naquilo que chama ironicamente de “boa” sociedade:

A “boa” sociedade, na forma em que a conhecemos nos séculos XVIII e XIX, originou-se provavelmente das cortes europeias do período absolutista, e sobretudo da corte de Luís XIV, que soube reduzir tão bem a nobreza da França à insignificância política mediante o simples expediente de reuni-los em Versalhes, transformá-los em cortesãos e fazê-los se entreter mutuamente com as intrigas, tramas e bisbilhotices intermináveis engendradas inevitavelmente por essa perpétua festa. (2005, p.251)

O filisteu ignorante, segundo Arendt, é um fenômeno típico do novo rico norte-americano, que “tem apenas um conhecimento superficial do filiteísmo cultural e educado, igualmente irritante, da sociedade europeia, onde a cultura adquiriu um valor de esnobismo e onde tornou-se questão de status ser educado o suficiente para apreciar a cultura (...)” (2005, p.250). O filisteu, que, nos termos expostos por ela, foi introduzido na literatura por Brentano e quase contemporaneamente por Nietzsche, não corresponde exatamente ao homem de massa, mas tem relação direta com ele na medida em que se encontra preocupado com seus afazeres particulares, com sua família e com seus bens. Ele é uma espécie de burguês, alheio inclusive aos interesses de sua própria classe. Não há por parte dele o menor grau de preocupação com o interesse comum e tampouco com assuntos relacionados à política. Importa-lhe apenas a manutenção do próprio status econômico, material (no caso dos novos ricos americanos) e cultural (no caso do europeu dos séculos XVIII e XIX). Esse tipo de indivíduo desintegrado tem seu aparecimento e sua permanência favorecida em uma sociedade cujo núcleo também se encontra desestruturado. Trata-se de uma sociedade de massas na qual não somente o interesse comum foi levado à bancarrota, mas também todo tipo de individualidade foi suprimida pela massificação. No homogêneo dissolve-se todo indivíduo e todas as classes e, por agora, interessa apenas manter as posições alcançadas em nome do seu próprio conforto, esperando-se consumir tudo o que for possível em nome de seu bem-estar. As considerações acerca do homem de massa encontram-se em algumas obras de Arendt, como Origens do totalitarismo8 e Eichmann em Jerusalém9. Nessa última, a autora procura mostrar de que forma Eichmann, em vez de um monstro, como muitos o consideraram diante de seu julgamento, era, no final das contas, um filisteu fruto da sociedade de massas, um sujeito medíocre, de formação mediana, que cumpria ordens e mantinha seu emprego10.

O ponto fulcral de nosso interesse reside em uma simples constatação de Arendt em seu artigo A crise na cultura: o fato de que uma sociedade de massas só poderia resultar em uma cultura de massas. Se há, portanto, essa cultura, qual é o tipo de arte que a alimenta? E como é o artista que a produz? Importa notar que o artista, segundo a autora, é o último indivíduo restante em uma sociedade massificada. Seu objetivo, desde os tempos de Rousseau, é colocar-se contra a sociedade e contra as suas regras. O problema, entretanto, é que a cultura criada pela formação e pelos objetos de arte produzidos pelo artista já não é mais necessária em uma sociedade de massa. Se, na Europa do século de Schiller, o aprimoramento cultural era uma espécie de necessidade para as classes mais baixas ascenderem socialmente e uma condição para as classes mais altas manterem seu status quo, isso não está mais em questão em uma sociedade moderna massificada que, segundo Arendt, “não precisa de cultura, mas de diversão, e os produtos oferecidos pela indústria de diversão são consumidos pela sociedade exatamente como quaisquer outros bens de consumo” (2005, p.257).

A denúncia de Arendt acerca dos bens culturais transformados em meros bens de consumo já está presente em sua crítica à modernidade em A condição humana11. A skolé, típica entre os gregos, ou o ócio em sua acepção latina, ou seja, o fato de podermos permanecer “sem fazer nada”, ou de destinar nosso tempo à mera contemplação, já não é mais realizável na modernidade, cujos homens necessitam constantemente de se divertir. A arte transformou-se em um tipo de entretenimento cuja finalidade última não é a mera fruição do belo, mas apenas “passar o tempo”. É verdade, afirma ela, que o filisteu culto dos séculos XVIII e XIX desprezava qualquer atividade que visasse apenas ao divertimento, porque isso era, sob o ponto de vista da “boa sociedade”, desprezível - já que era bom e bonito que se gozasse das atividades culturais por elas mesmas, sem que houvesse por trás disso intenções materiais. É verdade também que o artista da época de Schiller e o afã de se colocar contra a sociedade acabava por levar a “uma fuga da realidade por intermédio da arte e cultura” (2005, p.254). No entanto, negar que necessitamos de divertimento constitui apenas uma espécie de “esnobismo social” por parte do filisteísmo educado; a modernidade caiu em outro extremo, consumindo toda e qualquer coisa que esteja sob a égide da arte. Nossa autora faleceu na década de 70, e assim como seus conterrâneos alemães da Escola de Frankfurt, atentava-se para a decadência resultante da indústria de entretenimentos que não busca outra coisa a não ser produzir interminavelmente bens culturais que possam ser consumidos. Mas esse fenômeno parece ter se alargado na era das redes sociais e dos dispositivos móveis, na qual não somente se vai ao museu com a intenção de se educar culturalmente como fazia um filisteu do século XVIII, mas importa fotografar-se em frente às obras de arte e divulgar a foto em redes sociais.

O problema do consumo de bens artísticos parece estar posto para alguns autores que se ocupam com a problemática da estética, mas, para Arendt, ganha contornos ainda mais dramáticos. Isso porque o que está em jogo é a durabilidade do mundo. O homo faber - e o artista se encontra nesta categoria -, diferente do animal laborans, produz bens duráveis. Esses bens permanecem no mundo por gerações e o constituem. A cultura, formada pelo resultado final da produção artística12, aquilo que precisa de um lugar no mundo, não encontra mais esse lugar na modernidade, que muito convenientemente a substituiu pela diversão, e esta, por sua vez, é consumida. Segundo a categorização de Arendt presente em A condição humana, tudo o que é consumido se encontra no âmbito do animal laborans, nossa condição mais básica, aquela que nos permite apenas suprir nossas necessidades mais imediatas, aquela que nos faz mais animais do que humanos. O animal laborans vive segundo seu metabolismo, por isso apenas consome os bens de consumo para a sua sobrevivência. O problema evidenciado aqui é que a modernidade transformou a cultura em um bem de consumo a fim de suprir as necessidades da diversão. Segundo Arendt:

A indústria de entretenimentos se defronta com apetites pantagruélicos, e visto seus produtos desaparecerem com o consumo, ela precisa oferecer constantemente novas mercadorias. Nessa situação premente, os que produzem para os meios de comunicação de massa esgaravatam toda a gama da cultura passada e presente na ânsia de encontrar material aproveitável. Esse material, além do mais, não pode ser fornecido tal qual é; deve ser alterado para se tornar entretenimento, deve ser preparado para consumo fácil.

A cultura de massas passa a existir quando a sociedade de massas se apodera dos objetos culturais, e o perigo é de que o processo vital da sociedade (que como todos os processos biológicos arrasta insaciavelmente tudo o que é disponível para o ciclo do seu metabolismo) venha literalmente a consumir os objetos culturais, que os coma e os destrua. (2005, p.259-260)

As linhas de A crise na cultura evidenciam o fato de Arendt não poupar a Europa educada dos séculos XVIII e XIX e, inclusive, de criticar a ânsia do artista ao se alienar da sociedade em nome da arte. Schiller, por sua vez, critica, por um lado, as altas classes moldadas sob a égide das aparências a la Rousseau e, por outro, reconhece que a selvageria tomou conta tanto da França bem-educada quanto da Alemanha, cujos indivíduos se ocupavam apenas de suas necessidades mais básicas. Se está claro que o homem de massa de Arendt não é o mesmo homem cindido descrito por Schiller, é certo que há uma semelhança entre a antropologia traçada pelos dois pensadores no que tange à crítica ao homem de seus respectivos tempos: ambos padecem sob sua insígnia mais selvagem, reduzindo-se à categoria de animal laborans. No caso de Arendt, isso está exposto nas suas constatações presentes nas últimas páginas de A condição humana: importa viver e manter o ritmo laborioso alimentando o corpo com pão e a alma com diversão - ambos produtos de consumo imediato. No caso de Schiller, é salutar a passagem da Carta V, que afirma que

Nas classes mais baixas e numerosas são-nos expostos impulsos grosseiros e sem lei, que pela dissolução do vínculo da ordem civil se libertam e buscam, com furor indomável, sua satisfação animal (...). Do outro lado, as classes civilizadas dão-nos a visão ainda mais repugnante da languidez e de uma depravação de caráter tanto mais revoltante porque sua fonte é a própria cultura. (2002, p.33)

A crítica do autor desenvolve-se no mesmo sentido que a de Arendt, denunciando quais limitações do homem do seu tempo não se restringem a apenas uma classe, mas, diferentemente disso, parecem ser uma condição a qual todos estão submetidos.

2. Libertando-se das necessidades: jogar e agir

Se é inegável que há uma teoria da estética em Friedrich Schiller, é altamente questionável, e inclusive duvidoso, que isso ocorra na obra de Arendt. Em sua obra Doing aesthetics with Arendt: how to see things, Cecilia Sjöholm13 afirma que “ela nunca escreveu sobre estética. Mas ela era engajada em problemas de arte e teoria estética - refletindo sobre sensibilidade, julgamento e obras de arte de uma maneira igualmente radical e consistente” (2015, p. IX). Nesse sentido, talvez seja válido nos perguntar o motivo pelo qual uma politóloga, ou seja, alguém que tem a política como o centro de seus interesses, se ocupe de assuntos estéticos, mesmo que não formule nenhuma teoria em específico sobre eles. A resposta para essa pergunta não está muito longe do motivo pelo qual o próprio Schiller se ocupa com a estética, conferindo a ela, inclusive, um certo caráter formativo: ambos acreditavam que somos mais do que um animal laborans, como Arendt, ou que podemos viver muito além do mero estado selvagem, como Schiller. A diferença entre um e outro autor é que Schiller dedicou parte de sua obra à empreitada da formação do homem, enquanto Arendt não o fez. Não obstante, encontram-se por trás de ambos os trabalhos dois conceitos antropológicos: o do homem que joga, no caso de Schiller, e o do homem de ação, em Arendt. Ambos têm em comum o fato de transpor a mera esfera da necessidade animal e encontram em Kant referências basilares.

Entre outras coisas, é visando à eliminação de um estado de selvageria e traçando um caminho rumo à liberdade que Schiller redige suas Cartas14 ao seu mecenas, o príncipe de Augustenburg, entre 1971 e 1973, publicadas em 1795, contemporâneas ao diálogo Kálias: sobre a beleza15, e anterior às Cartas estéticas. É nessa obra epistolar que Schiller se ocupa em discutir o framework da estética de seu tempo, nunca deixando escapar o quanto é devedor de Kant. É por meio da beleza que o homem cindido moderno passaria a uma condição de homem total ou íntegro. Sendo o Estado incapaz de tal façanha, o único meio para se atingir tal objetivo seria, então, a beleza. Daí a necessidade urgente de uma teoria da arte. É por esse motivo que Schiller tenta reaver o papel da Estética, pois com a tentativa kantiana de unir suas duas primeiras Críticas por meio da Crítica do juízo estético, Kant teria reduzido a estética à moral16. Segundo Suzuki17:

(...) a filosofia kantiana para Schiller parece carecer de um acabamento: a Crítica do Juízo, que abalara toda a estética de até então, não conseguia elevá-la à condição de doutrina do gosto. A estética kantiana parece ter permanecido uma mera “propedêutica” - na medida em que “preparou os fundamentos” - à teoria da arte (...). (2002, p.9)

Depois de constatar que o belo não pode ser fruto de um puro sentimento individual proveniente de um sensualismo desenfreado, mas tampouco pode ser objeto de uma dedução que é puramente racional, o tour de force de Schiller, portanto, passa a ser encontrar um fundamento objetivo para o belo. Outrossim, tal fundamento não advém nem da experiência nem puramente das regras da lógica, mas não obstante esse último, ele deve ser sempre objetivo18. A necessidade dessa objetividade também lhe confere o caráter de universalidade e, portanto, deve se estender a toda a humanidade19 - elemento que já estava presente nas teses de Kant. Suas principais críticas a Kant surgem, no entanto, em função do demasiado acento kantiano à moral e à formalidade com a qual são expressas as teses do pensador de Königsberg.

O trabalho de Schiller, composto de 27 cartas, ocupa-se primeiramente de traçar um diagnóstico crítico do seu tempo nas dez primeiras cartas. A partir daí os elementos formais em busca de um conceito objetivo do belo passam a aparecer de forma mais clara, apesar de o autor não conseguir cumprir sua tarefa.

Ainda que os esforços de Schiller não tenham atingido êxito completo, importa-nos notar que ele chegou próximo de encontrar seu conceito objetivo do belo por meio da conhecida ideia de Spieltrieb, o jogo ou o impulso lúdico. O homem, aquele que segundo Schiller só é verdadeiramente humano quando joga20, é composto por uma natureza mista formada por dois impulsos aparentemente opostos - impulso sensível (Sachtrieb) e impulso formal (Formtrieb) - que, em sua ação recíproca, desencadeiam o impulso lúdico21. O primeiro impulso, aquele mais próximo à natureza, “parte da existência física do homem ou de sua natureza sensível, ocupando-se em submetê-lo às limitações do tempo e em torná-lo matéria (...)” (2002, p.63). O segundo, por sua vez, caracterizado pelo aprimoramento cultural, “parte da existência absoluta do homem ou de sua natureza racional e está empenhado em pô-lo em liberdade, levar harmonia à multiplicidade dos fenômenos e afirmar sua pessoa em detrimento de toda alternância de estado” (2002, p.64). A cada vez que há submissão de um impulso ao outro, há um estado de desarmonia. O terceiro impulso, contudo, é resultado da alternância equilibrada de ambos e é capaz de conferir ao homem a experiência plena da liberdade estética22.

O jogo ou impulso lúdico é objeto de várias investigações por parte dos estudiosos e comentadores de Schiller. A letra do próprio texto, porém, aponta os jogos gregos de Olímpia, “nos quais os povos gregos rejubilam com competições de força, velocidade (...) e com a disputa mais nobre dos talentos” (2002, p.80), como um exemplo concreto de Spieltrieb23. Nas linhas abaixo de sua afirmação, surge outra pista importante na investigação, pois Schiller cita o ócio e a indiferença como qualidades do homem que joga. Nesse sentido, há uma espécie de relação desinteressada com a beleza, livre de qualquer excitação ou angústia causadas por sentimentos como dever ou coação. Isso ocorre quando o homem que joga (o artista ou aquele que admira a beleza) goza da liberdade estética, é liberto de toda esfera das necessidades por um lado, mas também das grades da moralidade. Esse aspecto parece ficar mais elucidado quando Schiller se refere à estátua de Juno Ludovisi: “Toda a figura repousa e habita em si mesma, criação inteiramente fechada que não cede nem resiste, como se estivesse para além do espaço; ali não há força que lute contra forças, nem ponto fraco em que pudesse irromper a temporalidade” (2002, p.81). É por essa completa autonomia que o homem, no estado estético, chega a um estado de neutralidade ou, como afirma o próprio autor, a um estado zero, que é livre de qualquer determinação pessoal, bem como imune a qualquer efeito que possa exercer a realidade sobre ele. O livre jogo é, portanto, desinteressado de tudo na medida em que não tem nenhuma intenção de melhoramento do indivíduo. Por outro lado - e esse aspecto nos importa de forma considerável - é esse mesmo jogo que conduz o homem a um estado de liberdade e, por conseguinte, a formar um estado de homens livres, pois mesmo que não haja nenhuma finalidade por parte do Spieltrieb, ele acaba atuando como meio para a realização de um Estado estético.

Na categorização arendtiana a respeito da nossa condição humana, não parece haver um espaço próprio para o homem que joga. Não obstante, há alguns elementos no texto de A condição humana com base nos quais é possível traçar uma reflexão sobre a questão. Antes de tratarmos diretamente deles, é de grande importância novamente enfatizar o fato de que o movimento interno da teoria de ambos autores não é o mesmo. É preciso ter sempre presente que Schiller está à procura de um fundamento objetivo para o belo a fim de conferir à Estética a dignidade que lhe foi retirada. O próprio autor não hesita em afirmar que sua tarefa exige um alto grau de abstração, apesar de surgirem exemplos concretos no tocante ao conceito de Spieltrieb. Em A condição humana, por sua vez, Hannah Arendt não está preocupada com os fundamentos do belo, mas antes em investigar, em suas próprias palavras, “o que estamos fazendo” (2010, p.13). Apesar das notáveis diferenças, o artista está presente nas considerações de Arendt. Entre todas as atividades desempenhadas pelo homo faber, o fazedor de coisas, a arte é a que parece ter o caráter mais perene e mais nobre. O homo faber diferencia-se do animal laborans por produzir bens duráveis úteis ao mundo; o artista, no entanto, mesmo compondo a categoria do homo faber, produz bens duráveis inúteis ao mundo, ou, ao menos, sem finalidade alguma que não seja a mera apreciação do belo. No texto da Condição humana, a autora parece ser generosa com o artista - embora nunca o considere como gênio, como é comum à teoria da arte dos séculos XVIII e XIX - e confere a ele um status mais elevado atentando-se especialmente ao papel do poeta. Isso ocorre porque, segundo a autora, de todas as coisas produzidas pelo artista, “dentre as obras de arte a que menos é uma coisa é um poema” (2010, p.212). Ou seja: mesmo que um poema assuma a forma reificada do pensamento, ele nunca é uma coisa, como é o caso de um quadro, por exemplo.

Em seu texto, a A crise na cultura, a autora reitera a ideia que já estava presente em A condição humana, a saber, de que o artista é, apesar de tudo, um fazedor de coisas e que, por isso, não escapa à categoria meios e fins a qual está sujeitado todo tipo de homo faber. O artista é uma espécie de demiurgo que tem um plano prévio a ser cumprido - mesmo que a obra de arte não tenha qualquer finalidade prática. Arendt observa ter sido esse o motivo de os gregos sempre colocarem o artista na categoria de bánausos:

Os gregos, ao contrário dos romanos, possuíam uma palavra para o filiteísmo, e essa palavra, bastante curiosamente, deriva de uma palavra para artistas e artesãos, banáusos; ser um filisteu, um homem de espírito ‘banáusico’, indicava, assim como hoje em dia, uma mentalidade exclusivamente utilitarista, uma incapacidade para pensar em uma coisa e para julgá-la à parte de sua função ou utilidade. (2005, p.269)24

A despeito de o artista ser um exemplar aparentemente “mais livre” de homo faber, o fato de ele estar constantemente submetido à categoria de meios e fins o torna uma espécie de servo. O escultor tem seu projeto de escultura de mármore a cumprir, exatamente como tem o sapateiro quando talha e costura seu sapato. Nenhum deles trabalha de forma completamente livre, apesar de, no final das contas, o sapato ser um utensílio, enquanto a estátua, não. É por esse motivo que o artista de Arendt é certamente diferente do artista de Schiller e não goza completamente da fruição do belo como em um livre jogo - embora não esteja tão longe disso como está o animal laborans, por exemplo. Reproduzindo o modelo aristotélico, todavia, há também nos escritos de Arendt alguém que, da mesma forma que no impulso lúdico schilleriano, está liberto das necessidades mais básicas e não se encontra submetido à categoria de meios e fins: o homem de ação. Este não age de forma pré-planejada, não consegue prever ao certo o resultado da cadeia de ações iniciada por ele. No entanto, é preciso notar: a liberdade da qual goza esse homem não é a liberdade estética proporcionada pelo Spieltrieb. O homem de ação age, não contempla a beleza e nem a produz - essa é, no final das contas, a tarefa do artista. Embora ele goze do ócio, jamais adquire uma postura de puro deleite e de completo “desinteresse”. Ao contrário disso, a exemplo de Aquiles, citado por Arendt em A condição humana, aquele que atua na esfera pública pode ser tomado pelo pathos da cólera ou, como qualquer sofista, pode praticar ativamente a arte da persuasão empenhando-se em longos discursos a fim de convencer o adversário de suas posições. O que há de definitivamente comum entre o homem de ação arendtiano e o livre jogador de Schiller, aquele que tem seus impulsos equilibrados pelo Spieltrieb, é que ambos aspiram a uma espécie de ascensão de uma categoria mais elevada de humanidade. O primeiro via esfera pública, na qual todos se liberam das esfera das necessidades e gozam de plena liberdade política e de igualdade entre pares, construindo atrás de si aquilo a que chamamos de história. O segundo, por meio de um estado estético através do qual se goza da liberdade estética, cujo equilíbrio entre a parte física e a parte racional do homem permite que ele se liberte das submissões do corpo ou da moralidade. Dessa forma, não fosse, por um lado, a desconfiança de Schiller com a política em si e, segundo Habermas25 em seu Excurso sobre as cartas de Schiller acerca da educação estética do homem, a criação de uma espécie de utopia estética ao creditar à beleza um papel salvífico para a humanidade; e não fosse, por outro, o fato de Arendt ver como limitada a liberdade do artista e enxergá-lo como sempre submetido à esfera dos meios e fins, o homem que joga, no caso de Schiller, poderia ser muito semelhante ao homem de ação arendtiano.

3. O papel público da beleza: os subsídios kantianos de Schiller e Arendt

A preocupação de Schiller com a ideia de liberdade tem raízes mais antigas do que suas próprias reflexões e se encontra em Kant. Schiller, por sua vez, não abandona completamente o conceito de liberdade kantiano, mas, antes, está preocupado com um Estado estético no qual se encontra a liberdade estética. Arte, liberdade (estética) e Estado (estético) parecem formar um triângulo fundamental sobre o qual se faz sua obra sobre a educação estética do homem.

A famosa sentença presente na Carta II, “(...) é pela beleza que se vai à liberdade” (2002, p.22), é precedida pela quase contraditória frase “a arte é filha da liberdade” (2002, p.21), algumas linhas acima. Na carta XXVIII, ao tratar do Estado, afirma Schiller: “Dar liberdade através da liberdade” (2002, p.140). Apesar de a contradição tomar conta dessas passagens26, importa-nos observar um elemento que é comum em Schiller e Arendt e que, aparentemente, provém de Kant: por que há uma relação direta entre arte e Estado (Schiller) ou entre cultura e política (Arendt) e, por conseguinte, com a liberdade? A fim de responder a tal pergunta, seguiremos traçando as relações presentes entre os dois autores e tentando mostrar qual é o papel de Kant nesse processo. Nesse sentido, importa-nos reiterar o fato de que tanto Schiller quanto Arendt mostram-se claramente devedores dele27, pois, no caso de Schiller, as próprias cartas são uma espécie de tentativa de realização de uma façanha com a qual Kant não logrou sucesso e, no caso de Arendt, importa-nos sobretudo averiguar algumas passagens das suas considerações sobre a filosofia política de Kant que compõem a terceira e última parte de sua Vida do espírito. Importa-nos ainda observar o quão distinto é o modus operandi de ambos os autores ao lidar com as teses kantianas: embora Schiller não seja tão formal quanto Kant ao longo dos seus escritos, ele toma as teses kantianas de maneira ortodoxa, ao passo que a interpretação arendtiana de Kant é bastante heterodoxa, pois atribui à terceira Crítica o legado político do filósofo, justamente porque, como afirma Beiner (2009, p.243), Arendt equipara o juízo político ao estético e, ao citar o próprio Kant, ela esclarece: “[a questão do gosto e] o belo, interessam somente em sociedade... Um homem que se deixe abandonar numa ilha deserta não enfeitaria sua casa ou a si mesmo (...)” (Kant apud Arendt, 2009, p.522).

A resposta para a pergunta acima encontra-se no papel público exercido pela beleza. Em Schiller, a apreciação da beleza por parte do homem que joga conduz a uma situação ética elevada, a do Estado estético. Em sua utopia estética - para usar as palavras de Habermas -, em um Estado estético, todos os homens gozariam de liberdade, conforme atesta na Carta XXVII:

No Estado estético, todos - mesmo o que é instrumento servil - são cidadãos livres que têm os mesmos direitos que o mais nobre (...). No reino da aparência estética, portanto, realiza-se o Ideal da igualdade, que o fanático tanto amaria ver realizado em essência; e se é verdade que o belo tom madura mais cedo e com maior perfeição próximo ao trono, seria preciso reconhecer também a bondosa providência, que por vezes parece limitar o homem na realidade somente para impeli-lo a um mundo ideal. (2002, p.141)

A respeito do caráter público da beleza, observemos o que afirma Arendt em suas primeiras linhas em A vida do espírito: “os homens nasceram em um mundo que contém muitas coisas, naturais e artificiais, vivas e mortas, transitórias e sempiternas. E o que há de comum entre elas é que aparecem e, portanto, são próprias para ser vistas, ouvidas, tocadas, provadas e cheiradas, para ser percebidas por criaturas sensíveis, dotadas dos órgãos sensoriais apropriados” (2009, p.35). Nota-se, por ambas as citações, que há algo de comum entre elas, o fato de que algo aparece aos homens e que esse aparecer, associado com nossos sentidos, faz com que todos estejamos aptos para, por meio do juízo do gosto, gostar ou desgostar, apreciar ou não o belo. Em Schiller, ao mesmo tempo em que ele existe por meio da liberdade, ele é caminho para ela. Para Arendt, via Kant, a beleza só tem sentido em um espaço público que, da mesma forma circular que em Schiller, permite que a beleza apareça.

Arendt insiste veementemente no juízo de gosto como uma espécie de juízo político. Ela o faz não somente em suas considerações sobre a filosofia política de Kant, mas também em Crise na cultura: sua importância social e política, onde afirma que o “julgamento é uma, se não a mais importante atividade em que ocorre esse compartilhar-o-mundo” (2005, p.276). A mesma ideia aparece na terceira parte de A vida do espírito, quando a autora enfatiza que, segundo Kant, o deleite desinteressado do belo só é pleno de sentido na medida em que pode ser comunicado. As sensações, sobretudo aquelas que nos fazem apreciar o belo, como o tato, a visão e a audição, são comunicáveis, e o próprio critério para esse tipo de julgamento é o sensus communis, ou seja, o fato de que há um sentido comum e partilhado entre os homens. A faculdade do juízo, portanto, é política por si própria, segundo Arendt, apesar de não passar pelo crivo da razão prática. É nesse sentido que o gosto - ao contrário do que afirma o ditado que todos conhecemos - é discutível, sim. O belo é debatido, inclusive sendo possível convencer alguém a respeito do que é ou não apreciável. Kant percebeu - e tanto Schiller quanto Arendt acataram suas considerações - o quão problemático poderia ser considerar o gosto como um sentimento puramente íntimo. Segundo Arendt: “O gosto, portanto, na medida em que, como qualquer outro juízo, apela ao senso comum, é próprio oposto dos ‘sentimentos íntimos’” (2005, p.276). É verdade que a subjetividade não é eliminada, mas buscar um conceito de beleza somente baseado no puro gosto pessoal seria uma empreitada desgostosa.

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1SCHILLER, Friedrich. A educação estética do homem: numa série de cartas. Trad. Roberto Schwartz e Márcio Suzuki. São Paulo: Pólen, 2002.

2ARENDT, Hannah. A vida do espírito. Trad.: Antônio Abranches. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

3No caso de Schiller, conferir o artigo de Pedro Süssekind: O impulso lúdico: sobre a questão antropológica em Schiller. In Arteefilosofia. Ouro Preto, n. 10, p. 11-24, 2011.

4ARENDT, Hannah. A crise na cultura: sua importância social e política. In ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 248-281.

5Schiller o faz, segundo Márcio Suzuki, diferenciando arte de belas artes.

6ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

7Mais especificamente com relação à Grécia, importa notar que Johannes Winckelmann e sua obra desempenham um importante papel na retomada da Grécia Antiga como ideal. Depois de ser tomada pelos turcos e de passar por séculos de esquecimento e de decadência, os séculos XVIII e XIX figuram como uma espécie de redescoberta da Grécia por parte do restante da Europa, sobretudo da Alemanha. É nesse período que Winckelmann participa de escavações e leva à Alemanha uma considerável quantidade de estátuas gregas. A respeito delas, o arqueólogo escreveu A história da arte da Antiguidade redespertando o interesse pelo mundo grego antigo. No mais das vezes, os autores supracitados interessavam-se pela Grécia pré-filosófica, com mais influência oriental.

8A análise de Arendt a respeito do surgimento da sociedade de massas é ampla e ocupa boa parte de Origens. Não é a intenção deste artigo reproduzir os argumentos, mas importa que o leitor se atente às relações construídas pela autora, como a rede existente entre povo, ralé e sociedade de massas.

9ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Trad. Samuel Titan Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

10Sobre Eichmann, Arendt escreve: “(...) ele tinha certeza absoluta que, no fundo do seu coração, não aquilo que chamava de innere Schweinehund, um bastardo imundo; e quanto a sua consciência, ele se lembrava perfeitamente de que só ficava com a consciência pesada quando não faziam aquilo que lhe ordenavam - embarcar milhões de homens, mulheres e crianças para a morte, com grande aplicação e o mais meticuloso cuidado (...) Meia dúzia de psiquiatras haviam atestado a sua ‘normalidade’ - ‘pelo menos mais normal do que eu fiquei depois de examiná-lo’, teria exclamado um deles, enquanto outros consideraram seu perfil psicológico, sua atitude quanto à esposa e filhos, mãe e pai, irmão, irmã e amigos, ‘não apenas normal, mas inteiramente desejável’” (2013, p.37).

11ARENDT, Hannah. A condição humana. 11. ed. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.

12Aqui se encontra a diferença entre arte e cultura, segundo Arendt. A arte é o processo pelo qual se dá a obra e é um mero processo ligado à práxis. Nesse sentido, o artista é um bánausos, um sujeito que se ocupa de atividades práticas e, por isso, desprezado entre os gregos que valorizavam o ócio ou as atividades políticas. A cultura, no entanto, não se refere mais ao processo de fabricação, mas ao resultado final dela, que deve ter seu lugar no mundo. Esse lugar seria, segundo Arendt, garantido pela política.

13SJÖHOLM, Cecilia. Doing Aesthetics with Arendt: how to see things. New York: Columbia University Press, 2015.

14Referimo-nos à Educação estética do homem.

15SCHILLER, Friedrich. Kallias ou sobre a beleza. Trad. Roberto Barbosa. São Paulo: Jorge Zahar Editor, 2002.

16É verdade que é possível interpretar a tarefa schilleriana com base em um outro ponto de vista: na medida em que Schiller critica Kant por conferir uma redução da estética à moral, imediatamente é possível afirmar que ele faz uso do aparato montado na razão prática de Kant a favor de seu desafio estético, a saber, encontrar um fundamento objetivo para o belo. Mencionamos essa apropriação da razão prática kantiana por Schiller a favor de uma objetividade do belo na nota de número 22, já que isso está diretamente relacionado com o fato de que a autonomia do fenômeno, sua autodeterminação ou sua liberdade é conferida por meio da razão prática. Nesse sentido, em última instância, entendemos a crítica ao uso que Schiller faz de Kant, sobretudo porque ele afirma que deseja criticar o filósofo de Königsberg. No entanto, partilhamos aqui da posição de Ricardo Barbosa, que em sua introdução afirma que “a consideração estética dos fenômenos é precisamente o que o uso regulativo da razão prática torna possível. Não creio que Schiller tenha confundido os limites entre as esferas moral e estética, nem submetido esta àquela, e sim mostrado de modo convincente, segundo os meios de que dispunha, que as esferas da ação e da contemplação são, por assim dizer, os dois modos de liberdade”. (2002, p. 21)

17Márcio Suzuki é responsável pela introdução e pelas notas da edição de A educação estética do homem: numa série de cartas em português. Conferir SUZUKI, Márcio. O belo como imperativo. In SCHILLER, Friedrich. A educação estética do homem: numa série de cartas. Trad. Roberto Schwartz e Márcio Suzuki. 4. ed. São Paulo: Iluminuras, 2002, p. 7-17.

18Conforme o autor: “Aqueles filósofos que se entregam cegamente à direção do sentimento na reflexão sobre este objeto não podem alcançar nenhum conceito de beleza, pois que não distinguem absolutamente nada no conjunto da impressão sensível. Os outros que tomam o entendimento como guia exclusivo, jamais podem alcançar um conceito de beleza, pois no todo nada vêem além das partes, e espírito e matéria aparecem-lhes eternamente separados, mesmo em sua unidade mais perfeita”. (2002, p.92)

19Segundo Schiller, na Carta X: “É possível, contudo, que a experiência não seja o tribunal frente ao qual se deva resolver esta questão, e antes de aceitarmos seu testemunho devemos decidir se é a mesma beleza a de que falamos e aquela contra a qual se dirigem os exemplos”. (2002, p.56)

20Segundo consta na Carta XV: “Pois, para dizer tudo de vez, o homem joga somente quando é homem no pleno sentido da palavra, e somente é homem pleno quando joga”. (2002, p.80)

21Como esclarece o início da Carta XVI: “Da ação recíproca de dois impulsos antagônicos e da combinação de dois princípios opostos vimos nascer o belo, cujo Ideal mais elevado deve ser procurado, pois, na ligação e no equilíbrio mais perfeito de realidade e forma”. (2002, p.83)

22A despeito da ideia de liberdade estética, o próprio Schiller enfatiza o fato de que não se trata da mesma liberdade moral que é teorizada por Kant em suas críticas. Importa-nos aqui notar que a necessidade da busca por uma objetividade do belo já aparecia poucos anos antes na troca de cartas com seu colega Christian Gottfried Körner, em janeiro e fevereiro de 1793. Nelas, Schiller esforça-se por mostrar a conexão entre liberdade e objetividade da beleza, ou, mais propriamente, mostra que há um princípio de liberdade na beleza. O autor argumenta que há uma autodeterminação do objeto emprestada pela razão prática. Aquilo que regula o objeto não é dado de fora, mas autônomo, autodeterminado. Justamente por autodeterminar-se, é livre, ou guarda uma similaridade com a liberdade. Na famosa passagem da carta de 8 de fevereiro de 1793, Schiller afirma: “(...) se na consideração de um ser natural a razão prática descobre que ele é determinado por si mesmo, então ela lhe atribui (como a razão teórica, no mesmo caso, concede similaridade à liberdade) ou, numa palavra, liberdade. Mas porque essa liberdade é apenas emprestada pela razão ao objeto, como nada pode ser livre a não ser o suprassensível, e a liberdade mesma como tal nunca pode cair sobre os sentidos - numa palavra - como se trata aqui apenas de que um objeto apareça como livre, e não que o seja efetivamente: então essa analogia de um objeto como a forma da razão prática não é liberdade de fato, e sim meramente liberdade no fenômeno, autonomia no fenômeno” (2002, p.59). Por meio disso, Schiller mantém, por um lado, a dependência dos conceitos kantianos com os quais lida a todo momento, mas, por outro, indica que tal objetividade buscada nas cartas não pode corresponder ao tipo de objetividade que encontramos na Crítica da razão pura, já que ele não é conceitual, ou seja, não se trata aqui de conhecer conceitualmente o belo. Segundo o autor, em carta ao amigo de 8 de fevereiro de 1793, “Suponho que você se surpreenderá por não encontrar a beleza sob a rubrica da razão teórica e que isso o deixará bastante inquieto. Mas não posso sequer lhe socorrer; ela certamente não se encontra na razão teórica, pois é simplesmente independente de conceitos (...)” (2002, p.57). Se há uma conexão, portanto, entre a objetividade do belo e a liberdade, é na razão prática kantiana onde Schiller deve encontrar tal fundamento. Em carta de 13 de janeiro, Schiller refere-se à passagem na qual Kant se refere à beleza como sendo “vaga e fixa”. É contra tal ideia de beleza que Schiller lança mão da liberdade emprestada da razão prática e manifesta no fenômeno. Para uma leitura crítica da concepção schilleriana sugere-se o artigo de Wolfgag Welsch, Um Retorno a Schiller: A beleza e a liberdade na aparência - estética como desafio para o modo moderno de pensar traduzido por Vitor Luiz Rigoti dos Anjos, 2014. Para além disso, sugerimos também a introdução escrita pelo tradutor do Kallias ao português, Ricardo Barbosa.

23Gostaríamos de citar o esclarecedor artigo de Giorgia Cecchinato, “O impulso lúdico e o espaço político em F. Schiller”, no qual a autora defende que um possível entendimento acerca do conceito de impulso lúdico se dá em conjunto com o papel do coro em um dos dramas de Schiller, A noiva de Messina, bem como a estátua romana de mármore, Juno Ludovisi, citada pelo autor na Carta XV. Apoiamo-nos em parte no argumento de Cecchinato na medida em que associamos a ideia de impulso lúdico com o ócio. Para tanto, conferir CECCHINATO, Giorgia. O impulso lúdico e o espaço político em F. Schiller. In Ipseitas, São Carlos, v. 1. n. 1, 2015, p. 159-165.

24Nota-se que é dessa concepção grega do artista que surge a diferenciação traçada por Arendt entre arte e cultura, conforme já observado na nota 5 deste texto.

25HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade: doze lições. Trad. Luiz S. Repa e Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

26A respeito disso, observar nota 16, escrita por Márcio Suzuki: “(...) o círculo que envolve a estética e a ética (ou a política) nas Cartas foi desde logo assinalado por Fichte em seu ensaio Über Geist und Buchstabe in der Philosophie. In einer Reihe von Briefe (que, para preservar o tom paródico-polêmico, poder-se-ia verter assim: O espírito e a letra na filosofia: numa série de cartas), recusado por Schiller para a publicação na sua Horen: ‘As épocas e regiões da servidão são, portanto, ao mesmo tempo as da falta de gosto, e se por um lado, não é aconselhável deixar os homens livres antes que seu sentido estético esteja desenvolvido, por outro é impossível desenvolvê-lo antes que sejam livres; e a ideia de elevar os homens à dignidade da liberdade e, com ela, à liberdade mesma mediante educação estética, põe-se num círculo, se antes não encontrarmos um meio de despertar em indivíduos de grande massa a coragem de não serem nem senhores nem escravos de ninguém’”. Johann Gottlieb Fichte, Sämtliche Werke - Berlin, Walter de Gruyter, 1965. Volume VI, Seção III: Populärphilosophische Schriften, p.286-287.

27O nome de Kant é uma constante nos escritos de Arendt. Conterrânea de Kant, ela teria lido A crítica da razão pura aos 14 anos, segundo consta em sua biografia mais conhecida escrita por Elisabeth Young-Bruehl. Arendt não poupa elogios a Kant, porque ele seria o primeiro filósofo depois de Platão a levar em consideração os homens no plural e não o homem, como teria feito toda a filosofia política ocidental. No conjunto da sua obra, Kant assume um papel fundamental em dois momentos: tanto quando Arendt, ele se ocupa da ideia de “banalidade do mal”, ao tratar do caso de Eichmann, do qual parte, mas se distancia do conceito de “mal radical” kantiano em suas considerações sobre o “julgar”, ao escrever os Excertos das conferências sobre a filosofia política de Kant. Além desses dois escritos principais, Kant aparece aqui e ali em muitos outros de seus textos. Quanto a Schiller, a primeira referência que temos é que não havia pensador do seu tempo que não fosse, de certa forma, “devedor” do filósofo de Königsberg. Em seu caso isso fica ainda mais urgente, já que se deparou com questões que eram diretamente provenientes da filosofia kantiana. Sua maneira de escrever, mais poética e menos formal, parecia justamente revelar uma tentativa de fazer algo belo em vez de somente tratar da beleza como fizera Kant. Mais do que isso, o próprio Schiller afirma, nas Cartas a Augustenburg em 1973, segundo a referência da nota 6, de Márcio Suzuki: “Confesso, desde logo, que penso de maneira inteiramente kantiana no ponto principal da doutrina dos costumes (...)”. Essa nota é marcada na passagem da primeira Carta, na qual Schiller afirma textualmente: “Não quero ocultar a origem kantiana da maior parte dos princípios em que repousam as afirmações que se seguirão (...)” (2002, p.20).

Recebido: 26 de Março de 2019; Aceito: 24 de Abril de 2019

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