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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.33 no.67 Uberlândia jan./abr 2019  Epub 30-Ago-2021

https://doi.org/10.14393/revedfil.v33n67a2019-47897 

Dossiê Intelectuais entre a educação, a ciência e a política: abordagens

Usos da prosopografia para a história dos intelectuais da educação*

Uses of the prosopography for the history of the intellectuals of education

Usos de la prosopografía para la historia de los intelectuales de la educación

Bruno Bontempi Júnior** 
http://orcid.org/0000-0002-8524-2652

**Doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). E-mail: bontempi@usp.br


Resumo

O artigo discute a potencialidade e os modos de uso da prosopografia em pesquisas sobre intelectuais na história da educação. Apresenta, em percurso bibliográfico, as principais definições, conceitos, operações metodológicas e fontes que a constituem. Sustenta que, no campo da história da educação, a metodologia prosopográfica oferece contribuições para o estudo dos intelectuais, sobretudo em investigações sobre os manifestos e seus signatários, cujos liames societários podem reafirmar ou subverter a lógica das posições individuais; os coletivos docentes, suas trajetórias de formação e movimentação institucional e regional; as histórias institucionais, notadamente quanto à destinação social e política de egressos e à circulação de quadros técnicos e acadêmicos; as associações da sociedade civil, tais como sindicatos e entidades categoriais, cujos quadros atuaram na esfera educacional. Conclui-se que a utilização da prosopografia permite ao historiador extrapolar a usual abordagem individual de autores e ideias em educação, a fim de integrar os intelectuais em coletivos, tais como grupos profissionais, redes de sociabilidade e comunidades disciplinares, nos quais as propriedades relacionais e os jogos de interesse podem revelar tantos significados quanto os discursos, material da maioria das pesquisas em torno do tema.

Palavras-chave: Prosopografia; Intelectuais; Pesquisa histórica

Abstract

The article discusses the potential and modes prosopography is used in research about intellectuals in the History of Education. It presents, in a bibliographic approach, its main definitions, concepts, methodological operations, and sources. In the field of the History of Education, the prosopographical methodology offers contributions for the study about the intellectuals, especially in investigations into: public petitions and signatories, whose co-signer relationship can reaffirm or subvert the logic of individual positions; the teaching collectives, their development trajectories, and their institutional and regional movements; the institutional histories, especially regarding the social and political destination of graduates, and the circulation of technical and academic staff; and associations of civil society, such as trade unions and category entities, whose staff worked in the education field. It is concluded that the use of prosopography allows the historian to extrapolate the usual individual approach of authors and ideas in education in order to integrate the intellectuals into collectives, such as professional bodies, sociability networks, and disciplinary communities, in which the relational properties and interests can reveal as many meanings as the discourses, subject matter of most research on the issue.

Keywords: Prosopography; Intellectuals; Historical Research

Resumen

El artículo discute la potencialidad y los modos de uso de la prosopografía en investigaciones sobre intelectuales en la historia de la educación. Presenta, en recorrido bibliográfico, las principales definiciones, conceptos, operaciones metodológicas y fuentes que la constituyen. En el campo de la historia de la educación, la metodología prosopografica ofrece contribuciones para el estudio de los intelectuales, sobre todo en investigaciones acerca de los manifiestos y sus signatarios, cuyos vínculos societarios pueden reafirmar o subvertir la lógica de las posiciones individuales; los colectivos docentes, sus trayectorias de formación, movimiento institucional y regional; las historias institucionales, especialmente en cuanto a la destinación social y política de egresados y la circulación de cuadros técnicos y académicos; las asociaciones de la sociedad civil, como sindicatos y entidades categoriales, cuyos cuadros actuaron en la esfera educativa. Se concluye que la utilización de la prosopografía permite al historiador extrapolar el usual abordaje individual de autores e ideas en educación, a fin de integrar a los intelectuales en colectivos, tales como grupos profesionales, redes de sociabilidad y comunidades disciplinarias, en las cuales las propiedades relacionales y los juegos de interés pueden revelar tantos significados como los discursos, material de la mayoría de las investigaciones en torno al tema.

Palabras clave: Prosopografía; Intelectuales; Investigación Histórica

Introdução

É de conhecimento generalizado no campo da história da educação brasileira a longeva e expressiva presença do “gênero História das Ideias Pedagógicas” e suas variantes História da Pedagogia, História do Pensamento Educacional em suas narrativas (VIEIRA, 2009, p. 190). Segundo Vieira (2009, p. 190), nesse gênero a produção das pesquisas se familiariza ao modelo hegeliano da História da Filosofia e da História das Ideias, ou seja, “a ênfase sobre o significado das ideias e das correntes de pensamento; a organização cronológica dos capítulos; a estruturação de um cânone de obras e de autores consagrados; a relação indireta com as fontes; e, sobretudo, a análise das ideias a partir de um método internalista”1. Ainda segundo o autor, os manuais didáticos que, a partir dos anos 1930, foram produzidos e utilizados para a formação de professores assentaram como padrão dominante o tratamento diacrônico da educação como uma evolução, em cuja realização as ideias pedagógicas tinham todo o poder e centralidade.

A força paradigmática da história da educação como uma história das ideias pedagógicas em ascensão perdurou por décadas, ainda que houvessem mudado a estrutura do campo, os focos produtores, as finalidades e os veículos da produção de conhecimento na especialidade. No início dos anos 1980, em uma das primeiras incursões ao exame crítico da produção de memória e do conhecimento em história da educação brasileira irradiada pelos programas de pós-graduação, Warde (1984), identificou em trabalhos acadêmicos a presença de quatro tendências, duas delas referidas à história do pensamento e dos pensadores. A primeira, que julgava estar em declínio, examinava o pensamento de intelectuais da educação à maneira internalista, ou seja, recorrendo pouco à relação entre o pensamento e suas condições de criação; a segunda o examinava mediante sua “contextuação político-ideológica”. Esta última tendência era predominante e estava em ascensão, certamente devido à hegemonia do marxismo, em particular, de Gramsci nos programas de pós-graduação em educação (VIEIRA, 1993).

Os apontamentos de Warde (1984, p. 4) sobre os traços definidores das narrativas em obras que enfatizavam “o trato concreto da educação” indiciam a projeção do modo “logicista” (VIEIRA, 1993) com que o pensamento gramsciano era apropriado: os trabalhos justapõem o contexto (em regra, a descrição do quadro econômico e social à luz do materialismo histórico - a infraestrutura) e os fatos e ideias caracterizadores da educação, por sua vez, tomada como superestrutura em que se refletem as condições concretas, do que resultavam o reconhecimento do caráter determinado do pensamento educacional e sua denúncia como ideologia, portanto, falsificadora (BONTEMPI Jr., 1995). Nos anos 1970 e 1980, a história das ideias desencarnadas deu lugar à história do pensamento “subsumido na ideologia de classe e contraposto ao „dado de realidade‟ trazido pela história.” (BONTEMPI Jr., 1995, p. 62).

A figura do “intelectual da educação”, ou seja, do indivíduo que manifesta e encarna um pensamento educacional padeceu, por certo tempo, de justificada desconfiança. Não obstante, mesmo na efervescência do debate teórico-metodológico que oporia “marxistas” e “culturalistas” no campo da história da educação, as “ideias pedagógicas” seguiram sob o foco de pesquisadores. Segundo Catani e Faria Filho (2006), o tema apareceu seis vezes, em 192 comunicações apresentadas entre 1985 e 2000, no Grupo de Trabalho História de Educação (GT-HE) da Associação Nacional de Pesquisa em Educação (ANPEd). No primeiro congresso nacional da Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE), em 2000, “Pensamento educacional” nomeava um de seus “subtemas”. Já o termo “intelectual”, pouco usado nesses trabalhos, apareceria como descritor de um eixo temático apenas na terceira edição do Congresso Brasileiro de História da Educação (III CBHE), em 2004 (BONTEMPI Jr., 2017).

Na edição seguinte do CBHE, em 2006, o termo se associaria a “impressos”, na formulação “intelectuais, impressos e história da educação”, mantida até a edição de 2017. Esta associação não é, contudo, fortuita ou extemporânea. Catani e Faria Filho (2006) identificaram o subtema “imprensa pedagógica” no rol do GT-HE em sua 16ª Reunião Anual (1993). Naquela edição, nada menos do que sete pesquisadores apresentaram trabalhos sobre livros e revistas. Estudos sobre impressos, imprensa educacional, práticas de leitura de alunos e professores multiplicaram-se desde então, tendo marcado sua predominância numérica no conjunto das comunicações nas reuniões de 1997 e 1999. A maré montante ressoou nos congressos brasileiros de história da educação, a ponto de Araújo (apudSAVIANI et al., 2011, p. 32) constatar, em balanço da segunda edição, “o progressivo interesse pelos impressos pedagógicos, como manuais, guias curriculares, periódicos, tanto como objeto quanto como fonte de investigações”.

No decorrer das edições do evento verifica-se, finalmente, a convergência destes dois movimentos simultâneos: a integração e diluição da “imprensa pedagógica” em um conjunto mais amplo, denominado “impressos”, e a associação entre “impressos” e “intelectuais” na composição de um eixo temático, marcando assim o modo como foi realocado um antigo objeto da história das ideias no domínio da história cultural (BONTEMPI Jr., 2017). Em razão do predomínio da “nova história cultural” sobre a produção de pesquisa em história da educação ao longo dos anos 1990, a consolidação do eixo “intelectuais, impressos e história da educação” nos congressos da comunidade dos historiadores da educação pode expressar a fusão da atividade de pensar dos intelectuais educadores às atividades editoriais, jornalísticas e empresariais de que foram protagonistas, já que atenção se voltava, tendencialmente, às práticas de representação e à concretude material dos produtos culturais em que as “ideias” se faziam circular.

Completou-se, assim, no limiar do século XX, “a consagração da crítica ao modo filosófico de narrar a educação” (VIEIRA, 2015). Não obstante, como aponta Vieira (2015), outros grupos de pesquisadores insistiram em pautar na historiografia da educação brasileira a história do pensamento e das teorias educacionais, desta feita, recorrendo à história dos intelectuais e à história intelectual, cujo ponto comum reside na oposição às ideias desencarnadas. Há mais de uma década, grupos de pesquisa como “História Intelectual e Educação”, sediado na Universidade Federal do Paraná, e “Intelectuais da Educação Brasileira: formação, ideias e ações”, sediado na Universidade de São Paulo, vêm realizando pesquisas, reuniões científicas e publicações em história das ideias e dos intelectuais da educação brasileira, ou seja, dos homens e mulheres cujas intervenções na cena pública relacionaram-se à educação e à organização da cultura. O desenvolvimento das pesquisas tem progressivamente conduzido os grupos a investigar os intelectuais para além dos objetos canônicos da história cultural da educação praticada no Brasil, os discursos circulantes em produtos de consumo cultural, e da dimensão individual e autorreferente de sua formação, pensamento e ação. Nessa busca, a história social contemporânea pode oferecer insights metodológicos, tais como a prosopografia, ou método das biografias coletivas, em que elementos extradiscursivos referentes às trajetórias, ao poder simbólico e à ideologia dos intelectuais possam ser articuladamente agregados à produção de conhecimento histórico sobre a educação brasileira.

Prosopografia: história, definição e usos

De acordo com Bulst, a palavra prosopografia aparece na literatura ocidental em latim, primeiramente no plural e depois no singular, em obras escritas em meados do século XVI. Poucos anos depois, em 1573, Antoine du Verdier utilizou o termo em francês; em 1583, Nicolas Bergeron (apud BULST, 2005, p. 47-48) descreveu o procedimento adotado em seu Le Valoys royal como “prosopografia ou dedução genealógica e histórica dos senhores e damas, sucessores proprietários deste ducado”. Segundo Delpu (2015), na passagem do século XIX, o termo deslocou-se do significado original, de lista ou genealogia de indivíduos, para designar a descrição de suas características exteriores ou materiais.

Ainda no século XIX, os historiadores do Império Romano passaram a denominar prosopografia a seriação de dados biográficos com que compunham extensas obras sobre as elites políticas e econômicas da história antiga (DELPU, 2015)2. Segundo Verboven, Carlier & Dumolyn (2007), se a metodologia da pesquisa de história antiga baseava-se na filologia e no estudo do direito, a prosopografia surgia como uma nova abordagem para a história política e social. Os autores destacam a obra Prosopographia Imperii Romani (1897-1898), de Klebs, von Rohden e Dessau, como uma espécie de “who’s who” do Império Romano, contando com dados biográficos e um levantamento das carreiras políticas da elite imperial.

Em meados do século XX, ainda segundo Delpu (2015, p. 263), o Grand Larousse Encyclopédique concluiria o deslizamento do sentido original do termo, ao definir prosopografia como uma “ciência auxiliar da epigrafia e da história antiga, que estuda a filiação e a carreira das grandes personagens”. Tendo se integrado ao vocabulário do ofício, no período entreguerras ela se expandiu dos estudos da antiguidade ao medievo, concentrando-se nos corpos administrativos e nas entourages de soberanos dos principais Estados da Europa Ocidental (CHARLE, 2001). A partir dos 1960, a produção tornou-se abundante e aportou à história moderna e contemporânea, impulsionada por tendências intelectuais coetâneas e incrementada por técnicas de arquivamento e processamento de dados. Como principais objetos de estudo afiguravam-se os corpos de funcionários, os magistrados, os comerciantes e financistas e as elites eclesiásticas e intelectuais (CHARLE, 2001; DELPU, 2015; BULST, 2005).

Em história contemporânea, segundo Charle (2001), os trabalhos mais significativos começaram a surgir na metade dos anos 1960, no caso norte-americano, sob o impacto das teses sociológicas sobre as elites, de Pareto e Mosca3, e, no caso francês, motivadas pelos debates sobre a Revolução Francesa, deflagrados em obras revisionistas como Penser la Révolution française (1983), de François Furet4. Heinz e Codato (2015, p. 253) apontam que nos departamentos de História e de Política Comparada Latino-americana de universidades norte-americanas, nos anos 1960 e 1970, a metodologia de biografias coletivas foi introduzida para o enfrentamento das problemáticas do poder político e do lugar de seus agentes, tendo gerado um grande número de estudos. Também na França, a sociologia da educação inspirada em trabalhos de Bourdieu e Passeron já germinava prosopografias intelectuais e universitárias. Na Inglaterra, na Alemanha, na Itália e na Suíça, uma série de biografias coletivas, publicadas nos anos 1970 e 1980, respondiam aos respectivos debates historiográficos nacionais (CHARLE, 2001). Como aponta Bulst, sob o impacto das intervenções de Nicolet (1970), Chastagnol (1970) e Stone (1971)5, o aumento de publicações foi acompanhado da intensificação do debate sobre a utilidade e o valor da prosopografia.

Segundo Charle (2001), na década de 1990, os estudos de biografia coletiva passaram a cingir, além das elites, seu objeto canônico, a história e a sociologia de estratos sociais médios e baixos: mulheres, operários, marginais. Diversos autores (CHARLE, 2001; VERBOVEN, CARLIER, DUMOLYN, 2007; FERRARI, 2010; DELPI, 2015) atribuem o fenômeno à mutação paradigmática em curso no domínio da história social, que se voltava às práticas, experiências e aos jogos de escalas entre fenômenos individuais e coletivos, atribuindo à prosopografia a virtude de dispor em contexto significativo eventos e fenômenos cotidianos e triviais, distinguindo o singular do comum e permitindo ao historiador compreender as relações entre os indivíduos em sociedade. Nas palavras de Charle (2001, p. 3),

A multiplicação de obras da história contemporânea ou da sociologia histórica pelo método prosopográfico deve-se a motivos intelectuais e técnicos peculiares dos últimos trinta anos. O declínio combinado dos métodos estatísticos globais e da influência intelectual do marxismo, que favorecia grandes classes sociais (trabalhadores, camponeses, burguesia) e a preocupação, própria de sociedades cada vez mais baseadas no indivíduo, de aproximar-se da experiência individual e da diversidade de trajetórias sociais levou historiadores dos últimos tempos a praticar a micro história social, que implicava a prosopografia ou a biografia coletiva como um método privilegiado.6

Vale precisar mais o significado de prosopografia. Em sua definição, oscila-se da especificidade à indeterminação, mormente quando a noção é disposta em diacronia ou comparativamente. Entre historiadores alemães, há diferenças que radicam na interpretação corrente nos anos 1970, de que a Prosopographie, como “coleção e catálogo de todas as pessoas de um grupo definido temporal e espacialmente” estaria subordinada, como ciência auxiliar, à Historiche Personenforschung, tida como a “análise de material prosopográfico segundo diferentes pontos de vista da interpretação histórica” (BULST, 2005, p. 50). Para Bulst (2005), entretanto, a distinção tem pouco sentido do ponto de vista metodológico, de vez que a coleta e a interpretação de dados são processos implicados e interdependentes. Como geralmente se aceita na pesquisa anglo-americana e entre os historiadores franceses da época contemporânea, a definição é ampla, abarcando tanto as técnicas clássicas originais como a biografia coletiva e a sociografia. Para o sociólogo brasileiro Flavio Heinz (2006), assim como para a cientista política argentina Marcela Ferrari (2010), as diferenciações são irrelevantes: para Heinz (2006, p. 9), trata-se de um “método de biografias coletivas” que se utiliza do enfoque sociológico a fim de revelar as características comuns de um dado grupo social em determinado período histórico; para Ferrari (2010, p. 530), prosopografia é “o termo preciosista com que se designa a técnica específica para fazer biografias coletivas”7.

Há, além disso, diferenças na acepção e no uso do termo segundo tradições nacionais. Assim, se entre os cientistas sociais e historiadores franceses tem predominado o uso generalizado do termo prosopographie, para os historiadores anglo-saxões prosopography vem a ser o método aplicado em estudos da antiguidade e do medievo, reservando-se para os estudos contemporâneos a designação collective biography (HEINZ, 2006, p. 9). Tendo em vista esta relativa imprecisão teórica, produzida pela variedade de acepções e usos segundo tradições nacionais, objetos e períodos históricos, bem como por sua familiaridade com diferentes práticas da história social, tais como a biografia coletiva, o dicionário biográfico e a construção de bases de dados, Delpu (2015, p. 265), arrisca-se a definir prosopografia, “minimamente”, como

[…] um estudo coletivo que procura encontrar as características comuns de um grupo de atores históricos, fundando-se na observação sistemática de suas vidas e trajetórias. Sua ambição primeira é, portanto, descritiva: trata-se de investigar a estrutura social de um coletivo mediante o acúmulo de dados estruturados sob a forma de fichas individuais relativas a cada um de seus membros, com o objetivo final de apreender a estrutura de um grupo para além dos discursos que ele produz8.

Questão polêmica, notadamente incorporada ao debate desde a intervenção de Stone (1971), versa sobre o caráter da prosopografia. Seria ela um método ou uma abordagem? Para Bulst (2005, p. 56-57), se a prosopografia não é propriamente um método histórico, tampouco pode ser reduzida a uma ciência auxiliar.

A meu ver, ela deveria ser vista, mais apropriadamente, como um aporte da história social que propõe novas questões e aponta para novos caminhos de pesquisa, e para a qual os problemas históricos a serem resolvidos exigem que seja utilizado um amplo espectro de métodos especificamente históricos, mas também, em parte, aqueles de outras disciplinas. […] Como não existe o método prosopográfico, é necessário tentar encontrar, em cada caso (segundo a questão de investigação e o estado das fontes disponíveis), as mais variadas possibilidades de solução.

Para Verboven, Carlier & Dumolyn (2007), a prosopografia não é um método sui generis, mas uma abordagem de pesquisa, pela qual se buscam reunir os dados biográficos relevantes de grupos sociais de modo sistemático e lhes atribuir significados reveladores de conexões e padrões influentes em processos históricos. A literatura descreve os passos da pesquisa em abordagem prosopográfica: delimita-se com base em critérios pré-definidos um conjunto de indivíduos que integrem um “ator coletivo” - político, social, econômico etc. (FERRARI, 2010, p. 530); elabora-se e aplica-se ao grupo um questionário biográfico uniforme, referido a suas características (idade, nacionalidade etc.) e atributos (escolaridade, ocupação etc.) e traçam-se as trajetórias dos indivíduos no campo a que se integram, ou em outros nos quais possam ter-se posicionado. Processadas as informações, avaliam-se os dados mediante técnicas quantitativas ou qualitativas (CHARLE, 2001), de modo a “contribuir para explicar o ator coletivo como uma configuração social sempre cambiante e de fronteiras instáveis, que atua dentro de uma sociedade em um tempo determinado” (FERRARI, 2010, p. 530)9. Para Chastagnol (1970, p. 1229), estudioso da história romana do Baixo Império, nesta etapa deve-se realizar um exame comparativo do conjunto, destacar o que nele há de comum e singular e extrair o máximo de dados e informações possíveis sobre o plano da história. A análise cruzada deve permitir ao historiador reconstruir as trajetórias individuais imbricadas nos fenômenos coletivos e reavaliar o lugar dos indivíduos da história, ultrapassando o horizonte individual da biografia (DELPU, 2015).

Quanto às relações entre biografia individual e prosopografia, a propósito, Verboven, Carlier & Dumolyn (2007) apontam que se a primeira estuda as histórias de vida de pessoas singulares, dando atenção aos eventos e à personalidade, a segunda se interessa pelas similaridades externas e diferenças entre os indivíduos de uma dada população. A prosopografia tem como alvo, por conseguinte, os aspectos comuns das vidas individuais, como a estratificação e a mobilidade social, os processos de tomada de decisão, o funcionamento das instituições etc., que são recolhidos e examinados a fim de sustentar explicações para fenômenos que transcendem essas vidas e que podem iluminar a compreensão de suas motivações e do desenlace das ações. Neste aspecto, a biografia coletiva pode se apresentar como “antídoto” ao perigo da falta de representatividade da base documental, ou seja, a tendência de generalizar as conclusões derivadas de casos individuais ou típicos (VERBOVEN; CARLIER, DUMOLYN, 2007)10.

A prosopografia e a história social das elites

Para Bulst (2005, p. 47), o interesse e a controvérsia em torno da prosopografia teriam se acentuado com o “redirecionamento […] do foco do interesse historiográfico para o papel do homem na história, e não necessariamente dos ‘grandes homens’”. Notadamente no ambiente anglo-saxônico, o estímulo dado pela história from below para pesquisas sobre grupos sociais externos ao topo das estruturas sociais teria apoiado a subversão do foco original da prosopografia: as elites. Dessa mudança de foco teria derivado, segundo Verboven, Carlier & Dumolyn (2007), a formação de duas “escolas” discerníveis: uma que estuda as elites, que são grupos pequenos e relativamente bem documentados, outra que estuda grupos maiores de indivíduos, quase anônimos ou pouco documentados. Em geral, essas escolas diferem quanto à metodologia: se nos estudos de elites privilegiam-se métodos qualitativos, mais profícuos para iluminar casos individuais de aquisição de poder e recursos materiais, nos estudos de grupos de “anônimos”, que buscam revelar mecanismos de mobilidade social e atribuição de posições, recorre-se a métodos estatísticos, análise fatorial, cálculos de probabilidade, amostragem etc.

Retomando a definição de Stone (1971), de que “a prosopografia é a investigação das características comuns do passado de um grupo de atores na história através do estudo coletivo de suas vidas”, Bulst (2005, p. 25) considera que a prosopografia não se restringe a seu objeto original, ou seja, os grupos de elite, ao tomar como “atores históricos” todo o grupo social, e não apenas aqueles que têm ocupado o seu proscênio, e ao assumir como critério de composição todo o tipo de atividade e status. Desse modo, prossegue, pode-se aceitar a definição de prosopografia como “análise do indivíduo em função da totalidade da qual ele faz parte” (BULST, 2005, p. 25). Todavia, ainda que possa ser extensiva e que venha sendo aplicada por cientistas sociais a qualquer indivíduo em suas relações com o coletivo, a abordagem prosopográfica tem sido mais comumente utilizada nos estudos de elites.

Segundo Chistophe Charle (1994, p. 46), os historiadores retomaram o tema das elites nos anos 1970, por estarem interessados em abordar realidades sociais cuja diferenciação dificilmente poderia ser percebida pelo estudo das classes sociais, ou seja, dos grupos definidos pelas relações de produção. Além da possibilidade de escapar à terminologia marxista em descrédito, o termo teria a vantagem de ser “suficientemente abstrato para se aplicar a todos os tipos de sociedade”11. Para Charle (1994, p. 46), “as elites são definidas pela detenção de um certo poder ou como produto de uma seleção social ou intelectual”12, logo, não são dadas objetivamente ou projetadas de sua condição econômica, mas construídas em suas ações e relações. Na terminologia sociológica, a elite pode ser definida como grupo minoritário que ocupa a parte superior da hierarquia social e que dispõe, sobre a coletividade, de poderes inerentes a propriedades materiais e/ou simbólicas. Em razão do autorreconhecimento de sua excelência de origem, sua riqueza ou cultura, esses grupos se arvoram a dirigir e negociar as questões de interesse da coletividade (HEINZ, 2006), motivo pelo qual as elites figuram entre os objetos centrais da ciência política (PERISSINOTO; CODATO, 2015).

Charle (1994, p. 45) destaca que o interesse pelo estudo das elites na perspectiva historiográfica corresponde ao tempo em que os historiadores começaram a se interessar pela história cultural, o que representaria uma dupla reorientação da pesquisa historiográfica: de um lado, o deslocamento de estudos globais (na perspectiva da história econômica e social) para estudos temáticos de subgrupos profissionais; de outro, a convicção de que “a análise da mudança social passa pela investigação das minorias ativas, das vanguardas ou dos desviantes”. Charle (1993, p. 45) defende que a história social evoluiu “na direção de um novo paradigma”, a que denomina “micro-história social”, em alusão à escala dos objetos e ao modo de apreensão13. Ao invés de tentar apreender milhares de indivíduos por meio de cálculos estatísticos, os historiadores buscariam “conhecer intimamente, pode-se dizer, sob todos os recortes possíveis, as pequenas coletividades representativas de um problema” (CHARLE, 1993, p. 49)14.

Segundo Heinz (2006, p.8), “a apropriação da noção de elite pelos historiadores permitiria dar conta, através da microanálise dos grupos sociais, da diversidade, das relações e das trajetórias do mundo social”. Ao se aproximar dos indivíduos, reduzindo a escala, pode-se mostrar que “as palavras empregadas para designar os grupos, classificar os indivíduos, estabelecer hierarquias etc., não têm um valor em si, mas somente segundo o momento e o lugar em que foram empregadas” (CHARLE, 1993, p. 53)15. Desse modo, as biografias coletivas ajudariam a construir perfis sociais, ao destacar mecanismos de recrutamento, seleção e reprodução social compartilhados. Ademais, com essa perspectiva metodológica, os historiadores escapariam da tentação clássica de narrar uma história baseada em grandes personagens e seus atos excepcionais.

As elites distinguem-se segundo a natureza de seu capital, como elites de sangue, econômicas, políticas, culturais etc., muito embora essas propriedades com frequência confluam para um mesmo conjunto de indivíduos, especialmente em sociedades mais “fechadas”. Em sociedades mais “abertas” verifica-se a tensão constante entre as elites, seja em luta pelo poder político ou pela influência sobre o seu círculo mais próximo, seja à conquista, senão do Estado, ao menos do acesso a suas concessões e agenciamentos. Na disputa por esses lugares de ação e de fala, as elites compõem e portam projetos de organização e liderança das sociedades. Nessa perspectiva, os grupos estudados seriam definidos por suas relações, pelas imagens que produzem uns dos outros ou ainda por sua capacidade de impor uma autoimagem aos outros grupos e aos seus membros. Seu estudo seria, portanto, um meio de determinar quais são os espaços, os mecanismos, os princípios de acesso ao poder em diferentes sociedades, privilegiando a construção das hierarquias e distâncias sociais, os conflitos e jogos de interesse entre os grupos e no interior de grupos aparentemente homogêneos. Trata-se de buscar a compreensão da complexidade de suas relações internas e das relações com outros setores da sociedade.

Para Heinz (2006, p. 9), a virtude fundamental da prosopografia consistiria em permitir a construção de perfis de grupos sociais, categorias profissionais ou coletividades, “dando destaque aos mecanismos coletivos - de recrutamento, seleção e de reprodução social - que caracterizam as trajetórias sociais (e estratégias de carreira) dos indivíduos”. Verboven, Carlier & Dumolyn (2007) oferecem exemplos de objetos e suas possibilidades: um estudo prosopográfico da classe política sob um dado regime poderia revelar o perfil médio de seus indivíduos, as propriedades e etapas fundamentais de uma carreira política média; um estudo dos membros de uma corporação de ofícios poderia trazer à luz critérios e mecanismos de recrutamento, além de recíprocas relações sociais, econômicas e políticas; um estudo de corpos docentes poderia levar à compreensão de trajetórias escolares e capitais simbólicos, das perspectivas sociais e profissionais.

A microanálise de grupos, ao estreitar o foco para iluminar os círculos mais próximos da vida social dos indivíduos, tem a vantagem de resguardar-se de falácias interpretativas, tais como a da cesura entre indivíduo e sociedade, e a da determinação da ação individual pelo pertencimento a classes sociais formuladas com base em condicionamentos econômicos. Não obstante a funcional redução da escala, torna-se possível cingir as estruturas. Para Bulst (2005, p. 58),

De uma maneira geral, podemos dizer que as estruturas políticas e sociais de certos grupos, fenômenos, como a continuidade e a descontinuidade, a ascensão e o declínio de sistemas políticos, de instituições eclesiásticas ou seculares, a ação política, a mobilidade social, a transformação social e tantos outros, não podem ser analisados com precisão sem o conhecimento prévio das pessoas. É apenas graças a esse conhecimento que é possível relacionar diferentes grupos, considerando que certos indivíduos se encontram freqüentemente no campo de ação de mais de um grupo. O fato de que, neste contexto, as pessoas tenham moldado as instituições e tenham sido também por elas impregnadas (ainda que de maneiras bem diversas), deve ser levado em consideração em cada análise prosopográfica.

Contra o senso comum da excepcionalidade e da autoformação dos “grandes homens do pensamento”, os intelectuais podem ser analisados como coletivos. Como sugere Sirinelli (1998, p. 261), esses tipos sociais integram parte significativa das “elites culturais”, seja em razão de sua proporção nas sociedades históricas, condicionada tanto pela aquisição de meios quanto de capitais simbólicos de difícil acesso às massas, seja pelo fato de acalentarem uma auto imagem imbuída do “sentido de missão” (VIEIRA, 2011, p. 25), que amiúde se apresenta e se impõe nas manifestações públicas de reivindicação da palavra em nome de princípios universais. Inventariar as estratégias de ascensão, recrutamento, manutenção ou reconversão próprios dos meios intelectuais em cada época histórica permitiria evidenciar características comuns e construir perfis sociais e laços de sociabilidade que, para além das representações de si e do mundo que formulam, indiciam os lugares de associação, as modalidades de relação e as propriedades posicionais que os conduzem ao reconhecimento social de sua condição, seja de experto, seja de ideólogo, na distinção de Bobbio (1997). Como apontou Miceli (2001), em tese clássica sobre os intelectuais brasileiros na Primeira República, dados biográficos como origem social e capitais familiares, escolaridade, handicaps, posição na frátria, matrimônios, empregos e cargos etc. permitem, quando analisados à luz do plano histórico, dar ao pensamento, à ação social e às tomadas de posição dessas personagem significados transcendentes à mera condição individual, à medida que as biografias revelam os elementos extra discursivos intervenientes na construção das situações de enunciação, tais como a sucessão geracional, a posição e o estatuto dos sujeitos e de seus interlocutores.

Prosopografia e história intelectuais/dos intelectuais

Por volta dos anos 1980, em movimento de superação do desprestígio conhecido nas décadas anteriores, em que os historiadores desvalorizavam a ação individual consciente em favor dos fenômenos de massa, a história intelectual começou, na França, a se desenvolver como um domínio específico, situado no cruzamento das histórias política, social e cultural (DOSSE, 2010). Segundo Schorske (apud DOSSE, 2010, p. 379), na prática dessa modalidade de história intelectual,

o historiador procura situar e interpretar a obra no tempo e inscrevê-la no cruzamento de duas linhas de força: uma vertical, diacrônica, pela qual liga um texto ou um sistema de pensamento a tudo o que os precedeu em um mesmo ramo de atividade cultural… a outra, horizontal, sincrônica, pela qual o historiador estabelece uma relação entre o conteúdo do objeto intelectual e o que se faz em outros domínios nessa mesma época.16

Nos domínios da história política, a história intelectual francesa tomou a forma predominante de história dos intelectuais, certamente em razão do interesse nacional pela longa tradição de engajamento político dos intelectuais franceses, cuja vocação universal fora posta em dúvida pela geração de 1968. Segundo Dosse (2010, p. 381), essa vertente, que tem Jean-François Sirinelli como nome de destaque, vê-se como uma articulação de “arqueologia, pela busca das solidariedades originais e estratificações geracionais; geografia, pela iluminação dos lugares e das redes da produção intelectual, e genealogia, por evidenciar as relações de filiação ligadas ao passado”. Esse estudo social dos intelectuais, que se volta ao domínio da política e que busca no campo da produção cultural e nos campos conexos de atuação desses agentes as redes de sociabilidade e os movimentos de “recrutamento, reconhecimento e estratificação” (DOSSE, 2010, p. 381), não se desprende, todavia, da história intelectual, entendida como história das ideias. Isto porque, para Sirinelli (1988, p. 9), a própria produção intelectual acaba por responder à causalidade dos engajamentos e ao desenho transitório do campo, que em boa medida são despertados pela eclosão de eventos e polêmicas políticas, pela disseminação de ideologias e por relações afetivas. Ainda que não se engaje, o intelectual não deixa de ser um “agente da circulação das massas de ar culturais que determinam a instalação das grandes zonas ideológicas de uma época”, podendo marcar a classe a que pertence com sua visão de mundo e sua intervenção política (SIRINELLI, 1988, p. 9-10).

Considerações finais

Na história da educação praticada no Brasil, os objetos mais comuns da história intelectual têm sido, desde as primeiras obras acadêmicas da especialidade, os sistemas de pensamento político, filosófico e educacional (autoritarismo, positivismo, escolanovismo etc.) e os intelectuais (autores, reformadores, professores etc.) que se envolveram com a educação ou que formularam teses influentes sobre o campo educacional. Dominantemente, quando o objeto é um intelectual, a abordagem tem sido individualizada, ou seja, centrada na díade “vida e obra”, mesmo quando os autores se apresentam cientes dos perigos da “ilusão biográfica”. Nessa perspectiva, que prefere o termo “trajetória” em lugar de “vida”, as narrativas são comumente construídas de modo cronológico e as “redes de sociabilidade” partem do próprio indivíduo e o circundam, como se os relacionamentos firmados durante a trajetória fossem uma espécie de capital acumulado em prol da ascensão calculada ao lugar social que iria, afinal, ocupar17.

A abordagem prosopográfica, seja por colher e dispor dados biográficos que se podem associar e comparar, minimizando o extraordinário em prol do que pode ser comum ao grupo, seja por se despregar, ao menos de início, do fetiche das obras e dos discursos autorreferentes dos intelectuais, pode ancorar metodologicamente um movimento contributivo para a história da educação. Ela oferece, por exemplo, ao historiador a opção de investigar petições, inquéritos e manifestos, tais como os de 1932 e 1959, em busca de associações e convergências entre os signatários que extrapolem o mero teor das declarações, fazendo evidenciar as motivações conjunturais, o percurso de elaboração e circulação do documento, as hierarquias e geografias do campo etc. O encontro de liames societários extra discursivos podem, neste caso, subverter a lógica das posições individuais, confortavelmente explicadas pelo recurso à onisciência18. Da mesma maneira, ainda que não se identifiquem como intelectuais, os grupos sociais que se engajaram em questões políticas de primeira ordem, nas quais a instrução e a educação estiveram implicadas podem ter traçadas as origens sociais, os interesses econômicos, os percursos e capitais políticos que explicam seus interesses no trato dessas questões19. Também no domínio da história institucional, especialmente considerando o peso da escolaridade na formação dos quadros ilustrados e intelectualizados dos agrupamentos de elite e dos coletivos intelectuais, a prosopografia pode revelar dados relevantes quanto à origem e destinação social e política dos egressos e à formação de gerações de quadros técnicos, profissionais e acadêmicos20. O exame sociográfico de entidades categoriais, sindicatos e sociedades civis cujos quadros atuaram na esfera educacional pode revelar, por sua vez, as motivações de seu empenho nas causas da instrução e as relações que, pela vinculação de seus membros ou propriamente como entidade, travaram com poderes públicos; as reconversões de capital que, em razão desse empenho, tiveram lugar no âmbito da economia simbólico da própria entidade21.

Por fim, caberia sugerir à comunidade dos interessados na história dos intelectuais na educação brasileira o engajamento na elaboração de futuros projetos coletivos de prosopografia, que, superando as clivagens temporais e territoriais, façam confluir dados biográficos para categorias mensuráveis e comparáveis. Para além dos sempre úteis dicionários biográficos que venham a auxiliar a operação historiográfica, a elaboração de grandes quadros poderia cooperar, enfim, para oferecer ao campo respostas a questões intrigantes, tais como as que dizem respeito à própria validade da noção de “intelectual” para designar os homens e mulheres que têm sido objeto de nossas investigações.

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* Este artigo é produto do Projeto de Pesquisa “Pensamento educacional e intelectuais como objetos da história da educação brasileira”. Processo 304757/2017-9. Bolsas de Produtividade em Pesquisa - PQ Modalidade: PQ Nível: 2.

1Segundo a definição de Vieira (2009), “o método internalista supõe, em síntese, a investigação das ideias, sem considerar seus contextos de produção, de maneira a privilegiar o movimento lógico do pensamento presente nos textos canônicos das diferentes áreas. Nessa perspectiva, o processo de produção das ideias não sofre espécie alguma de constrangimento ou de determinação oriundos de outros contextos, sejam eles econômicos, políticos ou sociais. Pelo contrário, quando as relações entre ideias e outros contextos sociais mais amplos são tratadas, elas aparecem em um sentido unívoco de determinação do plano espiritual sobre o plano das práticas sociais”.

2Mais precisamente, segundo Nicolet (1970), a primeira fase das pesquisas prosopográficas em história romana republicana consistiu da elaboração de dois tipos de instrumentos de trabalho: os dicionários biográficos, ditos “Onomastica” e, em segundo passo metodológico, o agrupamento de indivíduos com características comuns e os que exerciam as mesmas funções sociais.

3Para Pareto (1996) e Mosca (1975), as elites são categorias sociais minoritárias que, compostas por indivíduos acima da média, são a força motriz da história. Ambos dispõem no centro das abordagens as relações de dominação política, sendo o exercício do poder ou a submissão à autoridade política que definem os grupos sociais.

4Nesta obra, publicada no Brasil com o título Pensando a revolução francesa (1989), Furet realiza uma reflexão sobre o significado da revolução francesa e uma revisão crítica sobre os modos como ela foi interpretada através dos tempos, opondo-se tanto às mais antigas vertentes comemorativas como às interpretações dominantes dos historiadores marxistas.

5 Charle (2001, p. 5) sintetiza as principais críticas de Lawrence Stone (1971) aos trabalhos de história moderna, feitos ao modo prosopográfico: “les biais des sources officielles sur lesquelles reposent les biographies induisent une vue partielle de la réalité, la délimitation des populations est largement arbitraire, les critères retenus pour les biographies sont souvent réducteurs. Tout ceci conduirait à une vision élitiste, cynique et conformiste des groupes dirigeants et de leurs relations à la société englobante.”

6“La multiplication des travaux d'histoire contemporaine ou de sociologie historique utilisant la méthode prosopographique tient à des raisons intellectuelles et techniques propres aux trente dernières années. Le déclin conjoint des méthodes statistiques globales et de l'influence intellectuelle du marxisme, qui faisaient privilégier les classes sociales à gros effectifs (ouvriers, paysans, bourgeoisie) et le souci, propre à des sociétés de plus en plus fondées sur l'individu, de se rapprocher du vécu individuel et de la diversité des trajectoires sociales ont conduit les historiens des époques récentes à pratiquer la micro histoire sociale qui impliquait la prosopographie ou la biographie collective comme méthode privilégiée” (Tradução livre do autor).

7No original: “… prosopografía es el término preciosista con que se designa la técnica específica para hacer biografías colectivas” (Tradução livre do autor).

8Para Bulst (2005, p. 52), as múltiplas definições de proposografia têm em comum sua compreensão como “análise do indivíduo em função da totalidade da qual ele faz parte”.

9No original: “contribuir a explicar al actor colectivo como una configuración social siempre cambiante y de fronteras lábiles, que actúa dentro de una sociedad en un tiempo determinado” (Tradução livre do autor).

10Vale dizer que a generalização abusiva não é desvio inerente à biografia como gênero historiográfico. Em defesa da biografia e seu potencial de compreensão das sociedades na história, consultar Dosse (2009).

11“Il [le thème des elites] présentait l’intérêt pour eux, en cette période d’affrontement avec la vision marxiste du monde, d’échapper à la terminologie des classes et d’être suffisamment abstrait pour s’appliquer à tous les types de société” (Tradução livre do autor).

12“Les élites sont définies par la détention d’un certain pouvoir ou comme le produit d’une sélection sociale ou intellectuelle” (Tradução livre do autor).

13“L’histoire sociale a évolué, depuis une quinzaine d’années, en direction d’un nouveau ‘paradigme’ que j’appelle, par analogie avec la micro-économie ou la microphysique, la micro-histoire sociale. Le préfixe fait allusion non seulement à l’échelle des objets sociaux observés, mais surtout au mode d’aprpréhension de ceux-ci. On peut tener en effet une macro-histoire sociale des microphénomènes sociaux” (Tradução livre do autor).

14“…les historiens de la dernière décennie ont, de plus en plus, voulu connaître intimement, sous toutes les coutures pourrait-on dire, des petites collectivités representatives d’un problème” (Tradução livre do autor).

15“La micro-histoire sociale met en évidence, dans l’expérience même de la collecte des données, que les mots qu’on emploie pour désigner les groupes, classer les individus, établir les hiérarchies, etc., n’ont pas de valeur en soi mais seulement selon le moment et le lieu d’emploi” (Tradução livre do autor).

16“L’historien cherche à situer et à interpreter l’ouvre dans le temps et à l’inscrire à la croisée de deux lignes de force: l’une verticale, diachronique, par laquelle il relie un texte ou un système de pensée dans un même branche d’activité culturelle… l’autre, horizontale, synchronique, par laquelle l’historien établit une relation entre le contenu de l’objet intellectuel et ce que se fait dans d’autres domaines à la même époque” (Tradução livre do autor).

17Essas considerações se fundamentam em experiências de leitura, debate, análise e avaliação da produção acadêmica na especialidade, que venho acumulando como docente e pesquisador, sem as pretensões de abarcar a variedade da produção ou de indicar tendências de massa com base em um corpus definido.

18Bontempi Jr. (2011), tendo como objeto o Inquérito sobre a instrução pública em São Paulo e suas necessidades (1914), procurou, mediante o cruzamento de biografias identificar os respondentes no campo educacional em formação, considerando sua condição comum de egressos da Escola Normal, sua trajetória na administração pública e na entidade representativa de classe etc., a fim de compreender o tom de seus discursos e a lógica de suas posições.

19Carolina Mostaro Neves da Silva (2016), tendo como objeto as propostas de instrução para o trabalho pelas “classes produtoras” de Minas Gerais no começo do século XX, realizou uma prosopografia dos participantes do Congresso Agrícola, Comercial e Industrial, de 1903, estabelecendo relações entre os dados sociográficos e as finalidades e sentidos das teses que formularam naquele certame.

20Juliana Fernandes Lança (2018) desvelou o perfil socioeconômico e de escolaridade que caracteriza os formados nos cursos de primeira divisão (formação de engenheiros) da Escola Politécnica de São Paulo, entre 1899 a 1905. A pesquisa desvelou os vínculos entre origem, posição social e formação escolar, bem como as características comuns relativas ao grupo que concluiu sua formação em engenharia.

21Tomando como categoria de análise a noção de elite, Silva e Bontempi Jr. (2018) elaboraram uma prosopografia de expoentes maçons de São Paulo entre 1912 e 1932, apontando a natureza e o volume dos capitais que perfazem um perfil comum, e examinaram a proposta e a experiência das escolas da Loja Sete de Setembro, destinadas às crianças pobres, aos filhos de operários e estrangeiros.

Recebido: 05 de Abril de 2018; Aceito: 27 de Novembro de 2019

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