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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.33 no.67 Uberlândia jan./abr 2019  Epub 30-Ago-2021

https://doi.org/10.14393/revedfil.v33n67a2019-47899 

Dossiê Intelectuais entre a educação, a ciência e a política: abordagens

Os Escolares e a instituição educativa: cânone e cultura escolar

Schoolchildren and the educational institution: canon and school culture

Les écoliers et l’établissement d'enseignement: canon et culture scolaire

Justino Pereira de Magalhães* 
http://orcid.org/0000-0001-9464-6782

*Doutor em Educação pela Universidade do Minho (UM). Professor catedrático do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa. E-mail: justinomagalhaes@ie.ulisboa.pt


Resumo

A representação da educação envolve uma noção sistémica e os intelectuais podem funcionar como sistema. Eles configuram e demarcam o campo educacional. O intelectual constitui um conceito que pode ser trabalhado enquanto categoria epistémica com educabilidade e historicidade. Os Intelectuais cedo percepcionam o que está ‘de novo’ em crise e o que deverá permanecer. Entre estes emergem os Escolares; combinando as dimensões de intelectualidade e educabilidade, são intelectuais envolvidos institucionalmente e que estabelecem o cruzamento entre educação e sociedade, são instituintes. Reconhecidos como mestres, são, em regra, autores de textos doutrinários e livros escolares; têm especial relevância na constituição do cânone escolar, literário, científico, artístico. Nada do que é humano lhes é indiferente; sabem fazer uso do poder simbólico e material que o institucional e o normativo lhes conferem. Será sobre os Escolares que procurarei desenvolver o meu texto. Tomarei como referência fundamental os intelectuais portugueses e a história da educação em Portugal.

Palavras-chave: História da educação; Cânone; Intelectuais; Educabilidade; Escolares

Summary

The representation of education involves a systemic notion and intellectuals can function as a system. They shape and demarcate the educational field. The intellectual is a concept that can be worked as an epistemic category with educability and historicity. Intellectuals who soon perceive what is ‘new’ in crisis and what should remain. Among these emerge the Scholars. Combining the dimensions of intellectuality and educability, they are intellectuals involved institutionally and who establish the intersection between education and society, are instituting. Recognized as masters, they are, as a rule, authors of doctrinal texts and school books; have special relevance in the constitution of the school, literary, scientific and artistic canon. Nothing that is human is indifferent to them; they know how to make use of the symbolic and material power that institutional and normative power confer on them. It will be on the Scholastics that I will try to develop my text. I will take as fundamental reference the Portuguese intellectuals and the history of education in Portugal.

Keywords: History of education; Canon; Intellectuals; Educability; School children

Résumé

La représentation de l’éducation implique une notion systémique et les intellectuels peuvent fonctionner comme un système. Ils façonnent et délimitent le champ éducatif. L'intellectuel est un concept qui peut être travaillé comme une catégorie épistémique avec éducabilité et historicité. Les intellectuels qui perçoivent bientôt ce qui est ‘nouveau’ en crise et ce qui devrait rester. Parmi ceux-ci émergent les érudits. Combinant les dimensions de l'intellectualité et de l'éducabilité, les Scoliers sont des intellectuels impliqués institutionnellement et qui établissent le point de rencontre entre l'éducation et la société. Ils sont reconnus comme maîtres et sont généralement des auteurs de textes doctrinaux et de manuels scolaires; revêtent une importance particulière dans la constitution du canon scolaire, littéraire, scientifique et artistique. Rien de ce qui est humain ne leur est indifférent. Ils savent utiliser le pouvoir symbolique et matériel que leur confère le pouvoir institutionnel et normatif. Ce sera sur les scolastiques que je vais essayer de développer mon texte. Je prendrai comme référence fondamentale les intellectuels portugais et l’histoire de l’éducation au Portugal.

Mots-clés: Histoire de l'éducation; Canon; Les intellectuels; Éducabilité; Écoliers

Intelectuais e sistema educativo

No livro de Christophe Charle, Les intellectuels en Europe au XIX e siècle. Essai d’histoire comparée, pode ler-se: «Comme pour les autres chapitres de l’histoire sociale, seule une histoire totale peut permettre d’appréhender les intellectuels dans leur complexité et leur évolution contrastée selon les périodes et les pays» (CHARLE, 2001, p. 19). Este livro veio trazer um olhar renovado sobre pensamento e cultura, particularmente sobre a relação entre cultura escrita e educação. A relação dos intelectuais com os sistemas educativos é uma dimensão histórica que permite entendê-los como representantes e agentes, mas também como produto. São depositários do conhecimento a transmitir e são senhores de um saber científico e técnico que possibilita a intelecção e a adequação da aprendizagem, podendo influenciar directa ou indirectamente a evolução sociocultural e pedagógica. São detentores de um capital simbólico que resulta da experiência cognitiva e aprendente, e da acção nos planos epistémico e metódico.

Formados no interior do sistema educativo e cultural, os intelectuais enquanto corpus articulado com a cultura escolar são também produto, desenvolvendo-se, todavia, com singularidade e destino próprios, nos planos individual e grupal. As transformações na educação integram os grandes movimentos culturais da Primeira Modernidade. Os intelectuais participaram dessa evolução. Ficaram associados ao Humanismo e às Reformas Religiosas, Protestante e Católica, dos séculos XV e XVI, como ao Racionalismo e ao Iluminismo, iniciados em finais do século XVII e fortalecidos no decurso do século XVIII. Os estudos e as propostas dos intelectuais repercutiram nas orientações pedagógicas e nos planos curriculares. Fomentaram e deram consistência a mutações na instituição escolar. O estudo histórico-comparativo revela que, desde o século XVIII, vicissitudes, avanços e permanências dos sistemas educativos e da cultura escolar, nos contextos nacionais, na internacionalização e na transversalização, encontraram base e móbil nos intelectuais. Retomando a cultura e o institucional escolares, contestando, conservando, reformando ainda que circunstancialmente, os intelectuais consolidaram-se como corpus e como representação.

Christophe Charle refere-se à segunda metade do século XIX como a “idade de ouro dos universitários”, que tanto cultivaram as disciplinas tradicionais quanto geraram novas disciplinas, nos domínios das Ciências Sociais e da História. Na generalidade, formados nas universidades, também no ensino secundário se distinguiram como professores: como intelectuais orgânicos, participaram na modernização da administração, na renovação dos sistemas políticos, na formalização e normalização da docência, na criação e adaptação de manuais escolares. Desde finais de Setecentos que a educação esteve presente na modernização científica, tecnológica, política e os intelectuais souberam retirar benefício dessa aliança, actuando dentro e a partir da escola, ou, correlativamente, actuando como jornalistas, publicistas, escritores, conselheiros. Como escolares, agindo de dentro da instituição ou transformando-a do exterior, os intelectuais influenciaram a instituição educativa.

Destinada às elites e às classes médias, e progressivamente extensiva a outros sectores socioculturais - assim as classes médias, as populações urbanas, a aristocracia rural -, a escola e a cultura escolar evoluíram tendo como referência a representação do letrado, que, no decurso do século XIX, encontrou alternativa nos modelos científico e técnico. Progressivamente, as formações humanista, científica e técnica tenderam para uma harmonização, variando todavia em função dos planos curriculares e dos perfis profissionais. Tal sistemática correspondeu a modalidades da educação secundária, nomeadamente ao ensino liceal, em que prevaleceu a matriz humanística, e ao ensino técnico e profissional, em que aquela matriz foi integrada num tronco comum técnico-científico.

Distintamente da alfabetização, desenvolvida de baixo para cima, a escolarização foi constituída de cima para baixo. Asseguradas as capacidades básicas de ler, escrever, contar e calcular, da síntese curricular escolar faziam também parte rudimentos de doutrina e moral cristãs, rudimentos de cronologia e história pátria, elementos de corografia. A literacia escolar visava a conversão, a integração nacional, a assimilação de uma base doutrinária religiosa e cívica, como patriotismo e manifestação de lealdade às autoridades instituídas. Inspirada em modelos e valores superiores, esta base de alfabetização escolar foi estruturada em finais do século XVIII. Como escolarização primária, foi progressivamente nacionalizada, normalizada e tornada obrigatória ao longo do século XIX.

Escolar - relação de intelectividade e educacionalidade

O Escolar caracteriza-se pela proximidade e pela representação do institucional escolar. Seja por aquisição e percursos próprios, enquanto agente, formador e instituinte, seja por representação delegada e legitimamente reconhecida, o escolar notabiliza-se através de um crescente de intelectualidade e educabilidade incorporadas e ciclicamente submetidas a tirocínio pedagógico e sociocultural. Pode admitir-se uma escala de intelectividade no âmbito da educação, combinada com uma escala de educacionalidade. O escolar pontua e está na intersecção destas duas escalas. No contexto histórico e no quadro da cultura escrita, há variáveis e variantes que se prendem com as circunstâncias e as modalidades de acesso, sociabilidade e aculturação da escrita. Nos movimentos do Humanismo e das Reformas Religiosas, os intelectuais assumiram um papel destacado na exegese e na difusão dos textos bíblicos. Tal tirocínio incluiu a interpretação, a tradução e a actualização dos mesmos como fundamento e destino último dos indivíduos, da sociedade, da humanidade. A noção de verdade estava plasmada nos textos sagrados. As religiões do livro digladiavam-se pela hegemonia religiosa.

Na transição da Primeira Modernidade, o Racionalismo apoiado no experimentalismo e na Ilustração, obtida através da aprendizagem pelos textos e de uma pedagogia interpelativa e conclusiva, tornaram possível uma autonomização dos indivíduos, combinando autogoverno, sentido crítico, responsabilidade. As transformações políticas e socioculturais revolucionárias que assinalaram a superação do Antigo Regime e a construção de regimes políticos assentes na divisão de poderes, na participação dos cidadãos e na melhoria das condições de produção e progresso económico trouxeram de novo os intelectuais para o centro da polémica e da construção das estruturas discursivas, orgânicas, materiais. O envolvimento na interpretação do presente e na ideação, fundamentado em novos modos de pensar, implementando novos métodos e novas modalidades de informação e mobilização, através da imprensa e da formação de partidos, gerou conflitualidades mas também desafios para a convergência. A emergência da esfera pública foi, no essencial, obra de intelectuais, que também criaram novos locais privativos de encontro, discussão e sociabilidades.

Tirando benefício das circunstâncias e das potencialidades dos meios de informação e sociabilidade, estavam em curso novas formas de concorrência, traduzidas em hegemonias intelectuais e culturais. Com efeito, a Ilustração tornou possível a progressão cognoscente e de humanitude incorporada na escolarização, nos percursos de vida, na representação dos indivíduos e das sociedades. A noção de perfectitude do humano, individual e social, explica que, desde o século XVIII, educação e história tenham estado intrinsecamente associadas. A educação dá sentido e faz avançar a história; a história torna a educação significativa e transformativa. Transmitido e reinterpretado no presente, o texto educativo encontra substância e sentido na história. A história ilumina e torna possível a compreensão do presente e gera perspectivas de futuro. Presente-passado e acção-reinterpretação são condição de futuro. Como escola e institucional escolar, a educação foi sendo estruturada e tendeu para a universalização, sob a configuração e o estatuto de norma e cânone.

Coube aos intelectuais um papel determinante. O Letrado do Antigo Regime encontrou na figura do Escolar, mais que um rival, um construtor de pensamento e conhecimento e um pragmático que afectou decisivamente os destinos da sociedade contemporânea.

A instituição escolar foi tornada extensiva da instrução elementar à universidade, ou porque, como surgia nos modelos napoleónicos, a universidade era o cume da pirâmide letrada, ou porque, como sucedeu com os modelos de inspiração alemã, as universidades incorporavam uma formação específica. Christophe Charle fala do século XIX como a idade do ouro dos universitários, combinando o intelectual e o escolar, ou tão só valorizando o escolar. Na medida em que a instituição escolar se tornou a instância por excelência para a educação dos indivíduos e para a modernização da sociedade, os escolares souberam retirar benefício de tais valências, submetendo a instituição a depurados juízos críticos, transformando-a e transformando a partir dela. O século XIX foi de convergência e de conflitualidade. A partir da universidade, os intelectuais, particularmente os escolares, afectavam a sociedade. O perfil sincrético do letrado saído do Antigo Regime deu oportunidade a novos perfis, nos planos científico, técnico e profissional.

A Ilustração ficou associada à formação do currículo elementar e à emergência de dois modelos de universidade: a universidade - investigação, construção da ciência e do conhecimento; a universidade - instância de verticalização e superintendência do conhecimento em aliança com o Estado. De modo sumário, estes dois modelos ficaram conhecidos por modelo humboldtiano, posto que inspirado em Wilhelm von Humboldt e na Universidade de Berlim fundada em 1810, e modelo napoleónico de cariz centralizador. A constituição dos Estados-Nação estava associada ao sistema escolar, numa sequência de processos de Ilustração, que se desenvolveram no século XIX: estatalização, liberalização, nacionalização. Com as revoluções liberais, a universidade foi envolvida nas transformações políticas, ideológicas, culturais, científicas e gradualmente também artísticas. O núcleo do currículo escolar passou a ser constituído pela história, a norma linguística, a ciência e técnica ligadas à economia e à sociedade - enfim, o cânone. Os escolares surgem associados a estes campos.

A historiografia recente tem-se referido aos intelectuais como objecto epistémico autónomo associado à História Intelectual. Neste texto, retoma-se a relação dos Intelectuais com a Educação, particularmente com a instituição-escola, em Portugal e Brasil, para introduzir a figura do Escolar. Dá-se sequência a estudos anteriores (MAGALHÃES, 2016, MAGALHÃES et al., 2016). Neste contexto, cabe também referir Vieira e Chiozzini (2018, p. 69), autores que apresentam o que designam de Espiral de Intelectualidade na Educação.

Escolar - intelectual comprometido

A constituição da narrativa histórica, a constituição dos cânones literários, a constituição de um currículo de ciências, geografia, direito foram obra de intelectuais. Os universitários intervieram, mas foi através do professor do ensino secundário que a universidade participou de forma decisiva no sistema escolar. No fundamental dos planos humanístico e científico, a educação secundária foi ditada de cima para baixo. Se, nos planos técnico, artístico, profissional, tal hegemonia cedeu ao diálogo entre prática e inovação (tomando em atenção a tradição, consignada na evolução técnica e na regulamentação dos ofícios), e, por outro lado, a experiência e a formação profissional, que, num quadro de educação integral, deveriam ser articuladas com a componente humanística, na educação secundária liceal, onde a matriz humanística era mais acentuada, tal harmonização foi mais lenta. A disciplinarização das humanidades não foi facilitadora da constituição de currículos integrados.

No final do medieval, o humanista surgiu como modelo e meta-humano; no final do século XVIII, em boa parte, foi o letrado que surgiu como modelo, rivalizando, ao tempo, com o engenheiro, o militar, o técnico-científico. As dimensões constitutivas destes perfis convergiram e, ao longo do século XIX, foram sendo reconfiguradas, focalizadas no intelectual e deste no escolar. Para além do escolar, que tinha uma sobrevivência assegurada, do universo intelectual, como representação da esfera pública, faziam parte sectores ligados à criatividade literária e artística: homens de letras, escritores, publicistas. Mediando com o institucional escolar, a esfera pública comportava um outro tipo de intelectuais - assim pedagogistas, curricularistas, reformadores das políticas de ensino. Frequentemente, eram profissionais liberais.

A figura do escolar assumiu relevo desde a transição do século XIX e, ainda que muitos escolares tenham actuado fora do sistema educativo, entrou em crise no terceiro quartel do século XX, correlativamente à crise da instituição escolar. O campo de acção dos escolares foi diversificado, podendo referir-se a inovação pedagógica, fazendo circular a investigação e as boas práticas, estruturando correntes pedagógicas, sugerindo e enunciando novas disciplinas, induzindo alterações curriculares e actualizações dos planos de estudo. O papel instituinte dos escolares ressalta fundamentalmente da influência sobre o cânone e a norma escolares. Conhecedores e representantes legitimados da cultura escolar, em que intervêm como estruturantes, autores, avaliadores, mas, simultaneamente, portadores de um olhar externo, posto que atentos e sensíveis à evolução da ciência e à inovação estética; observadores críticos em face das circunstâncias socioculturais e das articulações da escola com a sociedade, passavam por eles o inquérito e a aferição das aprendizagens, bem como o estudo sobre o egresso dos diplomados escolares. Ganharam assim legitimidade para interferir no cânone.

Correlativamente, enquanto professores reconhecidos e creditados, os escolares não deixaram de interferir na formação de professores e na autoria de manuais ou guiões escolares. Por esta via, interferiram directamente na norma escolar. Não raro, integraram ou dirigiram as equipas que elaboraram os programas e logo após, as matrizes para exames.

A constituição das Ciências Sociais e das Ciências Humanas, e a sua escolarização, desde finais do século XIX, como disciplinas autónomas ou como componentes curriculares integradas, trouxe um novo alento à figura do escolar. Actuando dentro e fora do institucional escolar, interferiu decisivamente no diagnóstico científico à escola dita tradicional, e na emergência do que ficou denominado de Escola Nova. No amplo espectro do Movimento da Escola Nova, transversal a diferentes países e aberto a uma diversidade de interventores, foram sendo dirimidos e convencionados princípios; foram teorizados e experimentados métodos e planos curriculares; foram ensaiadas e legitimadas práticas de grande diversidade e abrangência. A figura central da Escola Nova não foram o cientista e o pedagogista, menos ainda o político escolar, ou o publicista, mas, sim, o intelectual-prático que, chamando a si a capacidade, a oportunidade e a legitimidade de inovar, avançou “tacteando” (para fazermos uso de um termo muito familiar a Célestin Freinet). Numa palavra, foi o Escolar.

A sobreposição ainda que circunstancial entre a figura do Escolar e a do professor inovador foi de tal modo intrínseca, que nenhum dos 30 trinta princípios do Movimento da Escola Nova se refere directamente ao professor. Do conjunto dos trinta princípios, ressaltam um ideário, uma praxeologia, uma meta-educação, mas não ressalta um quadro normalista.

Escolares brasileiros

Os critérios que presidiram à elaboração do Dicionário de Educadores do Brasil. Da Colónia aos nossos Dias (1999), organizado por Maria de Lourdes de Albuquerque Fávero e Jader de Medeiros Britto, são: “análise das ideias de nossos educadores, sua formação acadêmico-científica e a contribuição que prestaram em seu campo de atuação” (FÁVERO E BRITTO, 1999, p. 15). Depurando, este conjunto de critérios e assumindo uma orientação mais pragmática, os Organizadores deste Dicionário especificam que

[…] em se tratando da experiência de ação e reflexão dos educadores que atuaram no Brasil, é a partir dos anos 30 que se vem documentando melhor a produção científica dos profissionais de educação […]. Merecem destaque as atuações de Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Lourenço Filho, ao lado de outros que, no exercício de funções públicas ou em articulação com a iniciativa privada, organizaram a edição de bibliotecas especializadas, séries, monografias e periódicos (FÁVERO E BRITTO, 1999, 15).

Fazendo aplicação do critério multidimensional que combina produção científica sobre teoria e prática pedagógica, envolvimento profissional e exercício de funções públicas na administração educacional, Fávero e Britto agregam àqueles nomes o de Carneiro Leão. Emerge assim um núcleo de educadores que, pela familiaridade com o institucional escolar, cultivaram diferentes modalidades de intervenção. A sua acção revestiu-se de carácter fundante.

Há, de acordo com os Organizadores deste Dicionário, um segundo grupo de educadores que deixou “a sua marca em propostas políticas para a Educação, em estudos teóricos produzidos ou através de experiências pedagógicas que se notabilizaram pelo caráter inovador, pela consistência científica e filosófica ou pela significação social” (FÁVERO E BRITTO, 1999, p. 17). Neste grupo incluem os nomes de Manuel da Nóbrega, José de Anchieta, Ruy Barbosa, Afrânio Peixoto, Alceu Amoroso Lima, Jayme Abreu, Vieira Pinto, Almeida Júnior, João Roberto Moreira, Durmeval Trigueiro Mendes, Paulo Freire, Paschoal Lemme, Darcy Ribeiro. Os dois grupos elencados correspondem a Escolares, ou intelectuais que, pela proximidade e pelo envolvimento na instituição educativa, exerceram influência na manutenção ou na transformação da escola. Foram, a seu modo, instituintes. Intervieram e deixaram marcas na constituição e no currículo, conciliando a evolução do conhecimento com o perfil de saída e a progressão do plano de estudos.

Mas enquanto aquele primeiro grupo emerge como representação da instituição educativa, pois que congrega educadores que, intervindo através de diferentes modos e em diferentes tempos, eram senhores de um ideário que converteram em projecto, os segundos, muito embora determinantes e decisivos, em algumas circunstâncias, actuaram essencialmente como especialistas. Admito que seja adequado fazer uso do conceito Escolares para incluir uns e outros. No entanto, poder-se-á admitir uma escala de intelectividade, como factor de diferenciação entre um e outro grupo. Como intelectuais, no sentido mais rigoroso do termo, é-lhes conferido um capital simbólico constituído por conhecimento e por saber técnico. Mas o poder simbólico não deixa de ser fortalecido pelo processo de fazer escola. Quais, de uns e de outros, fizeram escola? Em todo o caso, agrupando aqueles e estes, obtém-se um total de apenas 17, no conjunto dos 74 educadores biografados.

Educadores Portugueses e institucional escolar

No Dicionário de Educadores Portugueses (2003), publicado sob a direcção de António Nóvoa, foram incluídos “educadores que juntam a reflexão teórica e a prática educativa” (NÓVOA, 2003, p. 7), e que houvessem nascido após 1800. Foi tomada em atenção, de forma abrangente, a ligação à prática, possibilitando a inclusão de autores que “em algum momento do seu percurso biográfico [elaboraram] uma reflexão escrita sobre temáticas educativas e, sempre que possível, no âmbito da sua própria esfera de acção” (NÓVOA, 2003, p. 8). Foram incluídos universitários que escreveram sobre educação ou actuaram nos planos político e administrativo, mas nem sempre ficou garantida a inclusão de professores que não deixaram depoimentos escritos, apesar dos testemunhos sobre a validade da sua prática.

Foram biografados 900 educadores, dos quais 790 são homens. No conjunto dos 900 biografados, é notória a associação dos respectivos percursos formativos e profissionais com a constituição e o desenvolvimento pleno do sistema educativo, particularmente do subsistema escolar. Com efeito, 92% dos biografados nasceu entre finais do século XIX e primeiras décadas do século XX. No corpo deste Dicionário, os biografados estão agrupados em 16 categorias: Políticos, Reformadores e Dirigentes; Intelectuais; Reitores e Professores Universitários; Autores de Literatura para a Infância; Educação Popular; Pedagogos; Dirigentes Associativos; Médicos Escolares e Psicopedagogos; Normalistas e Metodólogos; Educação Religiosa; Educadores Sociais; Missionários e Educação Colonial; Directores e Professores de Colégios Particulares; Reitores e Professores do Liceu; Directores e Professores do Ensino Técnico; Professores do Ensino Primário e Infantil.

Interpretando os percursos de vida e a relevância de conjunto, António Nóvoa esboçou uma representação geométrica estruturada segundo os eixos horizontal e vertical (ver figura abaixo). Para além destas orientações, a leitura da imagem faz ressaltar também a transversalidade. Lido da esquerda para a direita, o eixo horizontal dispõe os biografados por categorias que vão das práticas educativas mais informais às práticas formais de ensino, enquanto o eixo vertical sobe da educação de base ao ensino universitário. Estes eixos são mediados por categorias transversais, as que se alongam no plano horizontal e as que se alongam na verticalidade.

Fonte: NÓVOA, 2003, p. 12

Tomando como referência as três categorias situadas no topo do esquema, surge à esquerda a categoria que agrupa políticos, reformadores e dirigentes, e, no extremo da direita, a categoria que agrupa reitores e professores universitários. Entre estas categorias surge a dos intelectuais. Mas enquanto a categoria políticos, reformadores e dirigentes se prolonga no sentido descendente, o que revela uma visão e um compromisso político de progressão curricular e institucional por parte dos biografados nela incluídos, a categoria dos Reitores e Professores Universitários alonga-se no sentido horizontal, combinando intelectualidade com funções de poder e superintendência. Esta categoria engloba profissionais de Ensino Liceal e de ensino universitário. Ainda que cada uma destas categorias consagre uma especificidade e tenha sido cumprida por indivíduos portadores de uma vocação, é no quadro da instituição escolar como um todo multidimensional e hierárquico que esta esquematização se torna representativa e assume significado em termos de uma hermenêutica biografada e crítica. Pela especificidade e pelas características do sistema educativo português, a categoria mais transversal em sentido vertical é Directores e Professores de Colégios Particulares.

Combinando o numérico e o posicional, as três categorias mais numerosas situam-se na parte superior do esquema esboçado por António Nóvoa. São elas: os Reitores e Professores Universitários, categoria que se distingue pela escrita (escrita didáctica, escrita pedagógica) enquanto professores e pensadores, e pelo exercício do poder nas instituições e no sistema educativo. Esta categoria contabiliza 115 biografados, que representam 13% do total. Uma segunda categoria (Políticos, Reformadores e Dirigentes) inclui ministros da educação, altos dirigentes, inspectores; contabiliza 108 biografados e representa 12%. Uma terceira categoria (Reitores e Professores do Liceu) contabiliza 127 e representa 14%. Nestas três categorias convergem o poder simbólico, patente na função, na produção escrita, no pensamento, e o poder inerente ao governo e à administração das instituições educativas.

Ainda na esfera do poder deve ser incluída a categoria Directores e Professores do Ensino Técnico, formada por 49 biografados, a que corresponde a percentagem de 5%. No conjunto, estas quatro categorias representam 44% dos biografados. Se a estas se agregarem a categoria Intelectuais (que contabiliza 49 biografados, representando 5% do total) e a categoria Pedagogos (que contabiliza 20 e representa 2%), conclui-se que, em conjunto, as categorias compostas pelos educadores mais influentes no sistema totalizam 468 biografados e representam 51% do total. A categoria Intelectuais é composta por autores e pensadores da educação; a categoria Pedagogos integra aqueles que produziram reflecções originais sobre educação.

No sistema educativo português, não pode deixar de destacar-se a categoria Directores e Professores de Colégios Particulares, não apenas porque o ensino particular manteve uma conotação elitista, quanto, em períodos de perseguição política, muitos professores e intelectuais distintos exerceram funções docentes e de direcção dos Colégios. Assim sendo, se se agrupar esta categoria (que é composta por 44 biografados) às anteriormente referidas, obtém-se um total de 512 biografados que representam 56% do total.

A instituição educativa, com relevo para a Escola e o Institucional Escolar, é instância de poder, nos planos interno, gerando hierarquias e, no plano externo, influenciando e, em algumas circunstâncias, determinando os destinos da sociedade. Isso se comprova com a relevância que a esfera do poder, nas suas diversas componentes, assume no universo dos educadores biografados. As categorias relativas ao poder são cumulativas, ainda que o conjunto de temas que abrangem não correspondam integralmente a uma especificidade. Mas há uma outra categoria, a de Normalistas e Metodólogos, composta por 78 biografados e representando 9%, que comporta certa ambiguidade, pois que não corresponde a referências temáticas precisas. Admitindo, todavia, que, quer no plano interno quer no exterior da instituição- escola, os normalistas cultivavam a norma, preservando-a e fazendo-a aplicar, nomeadamente junto dos professores em formação, e que os metodólogos (designação frequentemente aplicada aos orientadores de estágio do ensino secundário) dispunham de autoridade na manutenção e adequação dos métodos de ensino, a categoria Normalistas e Metodólogos não poderá deixar de ser incluída no conjunto das categorias de poder - poder simbólico e poder efectivo. Cabe-lhe uma função instituinte. Deste modo, em 900 educadores biografados, 590, perfazendo 65%, ou seja, bem mais de metade, estão associados ao poder institucional.

Enunciadas na esquerda da figura, as restantes oito categorias consignadas no Dicionário, são: Autores de Literatura para a Infância (23/ 3%); Educação Popular (58/ 6%); Médicos Escolares e Psicopedagogos (41/ 5%); Dirigentes Associativos (52/ 6%); Missionários e Educação Colonial (20/ 2%); Educadores Sociais (23/ 3%); Educação Religiosa (32/ 4%); Professores do Ensino Primário e Infantil (58/ 6%). Todas estas categorias estão, por inerência, ligadas ou institucional escolar, havendo circunstâncias e quadros decisórios em que não deixaram de ser determinantes. Com efeito, a adaptação e a construção dos espaços, as normas e as práticas escolares não deixaram de ser profundamente afectadas, senão mesmo determinadas, por correntes higienistas, orientações médico-sanitárias e psicológicas, aqui simbolizadas na categoria Médicos Escolares e Psicopedagogos. Por outro lado, não pode deixar de ser considerada a influência dos Autores de Literatura para a Infância na constituição do cânone escolar, como também não é negligenciável a influência da Educação Religiosa na axiologia e na normatividade escolar.

Pode concluir-se que o conjunto dos biografados são personalidades que tiveram relevância no campo da educação. Deles existe uma memória colectiva, testemunhada e registada. Recuperando narrativas anteriores e fazendo uso de fontes de diversa natureza, o Dicionário de Educadores Portugueses é uma representação histórico-pedagógica e torna-se significativo para a história dos Escolares.

Dos Escolares Portugueses

A elaboração do Dicionário de Educadores Portugueses obedeceu a um plano rigorosamente definido. No entanto, a escrita não deixa de reflectir a sensibilidade dos autores e de ressentir-se da especificidade dos biografados. Entre os biografados selecionados, alguns foram abordados pela primeira vez e outros estavam biografados noutros campos, sendo necessário trazê-los para o campo da educação. Há também um pequeno conjunto que, pela relevância como personalidades destacadas, mereceu desde logo um tratamento mais alargado.

A unidade de representação da escrita biográfica é o indivíduo. A biografia ganha sentido na dialéctica entre o interno e o externo, pelo que a escrita não pode deixar de ressentir-se das fontes primárias, sua especificidade, sua diversidade, seu campo de representação. Relativamente a muitos biografados, o corpus documental disponível era de âmbito local e reincidente numa tópica tão estreita, quanto elementar, enquanto para outros foi possível a combinação entre fontes primárias e fontes secundárias - elaboradas e actualizadas estas em consonância com a evolução conceptual e a reestruturação do sistema educativo. Aliás, as biografias dos educadores mais estudados apresentam, em regra, um grau de elaboração e sofisticação, que se torna difícil, através da leitura, reconstituir o espectro temático e a factologia de base.

O respeito pela diversidade ficou plasmado no compromisso entre o homogéneo do plano e a heterogeneidade das circunstâncias, dos tempos e das especificidades dos biografados. Acresce a diversidade autoral inerente ao respectivo modo de escrever. O índice temático deste Dicionário é resultado de tal compromisso, pelo que está apresentado por constelações de assuntos e de itens.

Como referido, para um núcleo de educadores considerado portador de significado histórico-pedagógico, seja pela participação na constituição da instituição-escola, seja porque a representou ou representa na historiografia publicada, foram escritos verbetes mais longos. Numa primeira aproximação, seria esperado que a estas personalidades correspondessem ou uma forte especialização ou uma representação significativa num conjunto de campos e que este conjunto formasse uma biografia fecunda e coerente. O Dicionário de Educadores Portugueses apresenta um índice temático que agrupa e desdobra o elenco de categorias, inscrevendo em cada uma o número correspondente à identificação dos biografados nela representados.

Fazendo uso do índice temático deste Dicionário, e procedendo ao inventário de menções por categoria e por biografado, observa-se desde logo que a expectativa depositada sobre alguns dos biografados a quem foi atribuída uma biografia alargada não foi inteiramente comprovada pelo espectro temático. Assim, em conformidade com o índice temático, António Feliciano de Castilho surge associado a Educação Popular, Ensino da Leitura, Manuais Escolares, Método de Ensino. A biografia revela coerência temática mas não confere igual destaque a aspectos como a influência de António Feliciano de Castilho na constituição do cânone escolar e a participação na Junta Consultiva de Instrução Pública.

Por oposição, Rui Grácio, que viveu um século mais tarde, surge associado a Ciências da Educação, Democratização do Ensino, Pedagogia, Políticas Educativas, Reformas Educativas. Da biografia transparece uma abrangência do campo obtida por variações na escala de linguagem. Significativo na diversidade temática é o caso de José Augusto Coelho, que surge associado a Ensino Normal, Ensino da Leitura, História da Educação, Pedagogia, Métodos, Reformas de Ensino, Correntes de Pensamento. Mais restrito é o campo temático de Francisco Adolfo Coelho: Ensino de Língua Materna, Ginástica, Reformas de Ensino, Literatura para a Infância e Juventude. O índice temático não salienta a influência decisiva de Adolfo Coelho na constituição do cânone literário escolar. Igualmente restrito é o campo temático de Luís Filipe Leite. Surge referenciado a Educação de Adultos, Ensino Normal, Métodos de Ensino, Professores do Ensino Primário perfil e função; não é dado o devido relevo à autoria, tradução e selecção de textos constitutivos do cânone escolar. No intermédio, podem referir-se os casos de Joaquim Alves dos Santos, que ficou associado a História da Educação, Pedagogia e Reformas Educativas; Faria de Vasconcelos, associado a Educação Nova, Educação Popular, Universidades Livres e Populares; João dos Santos, associado a Ensino de Farmácia e a Métodos de Ensino.

Sem que tivessem sido incluídos entre os biografados com espaço alargado, surgem casos, bem expressivos, na diversidade temática. Refiram-se alguns. António da Costa surge associado a Assistência e protecção a menores/ instituições, Educação da mulher, Educação feminina, Educação popular, História da Educação, Ministério da Instrução Pública, Política Educativa, Reformas do ensino. António Sérgio surge associado a Correntes de Pensamento Pedagógico, Educação Nova, Educação Popular, História da Educação, Políticas Educativas; Reformas do Ensino. De modo análogo, Leonardo Coimbra surge associado a Educação da Mulher, Ensino de Filosofia, Escola Única, Pedagogia; Reformas de Ensino, Universidade. Contemporâneo destes, João de Barros surge associado a Educação Cívica, Educação Integral, Educação Nova, Formação de Professores, Políticas Educativas, Regime Educativo; Agostinho de Campos surge associado a Educação Colonial, Educação da Mulher, Educação familiar, Educação Informal, Educação Popular, Políticas Educativas, Reformas de Ensino; António Figueirinhas surge associado a Alfabetização, Associativismo docente, Didáctica e Ensino Primário, Inspecção pedagógica, Manuais Escolares, Professores do Ensino Básico/ situação socio-económica; João de Deus Ramos surge associado a Alfabetização, Educação Infantil, Educação Nova, Educação Popular, Métodos de Ensino, Reformas de Ensino.

Casos distintos, porque actuando fundamentalmente como investigadores e formadores de professores, são os de Émile Planchard (associado a Democratização do Ensino, Educação Nova, História da Educação, Pedagogia, Política Educativa, Universidades) e o de João Dias Agudo (associado a Associativismo Docente, Educação Nova, Educação para a paz, Ensino Cooperativo, Ensino de Literatura, Métodos). Distinguindo-se pela singularidade do conjunto das dimensões a que está vinculado, pela acção dentro e fora da instituição universitária e fazendo ‘escola’, ressalta a biografia do Padre Manuel Antunes, associada a Axiologia, Educação Permanente, Ensino de Filosofia, Pedagogia, Reformas Educativas.

Continuando a observar o quadro geral das biografias, ressaltam personalidades tutelares como Teófilo Braga, Bento de Jesus Caraça, Delfim Santos, António José Saraiva, Mário Dionísio, Rómulo de Carvalho, que tiveram influência como canonistas, doutrinários, metodólogos, mas que surgem associados a um espectro reduzido de assuntos. São, no entanto, personalidades que não estão suficientemente estudadas no campo da história da educação ou que continuam votadas ao silêncio. Anote-se que, em regra, as biografias são pouco incisivas em dimensões como a história do currículo e a história do livro escolar, sendo escassas as referências a autoria de livros e à participação na constituição do cânone escolar. No mesmo sentido, sendo a biografia, por natureza, uma fonte cuja unidade epistémica é o biografado, são muitas escassas as referências expressas, ou mesmo indirectas, a processos de sociabilidade. Tal escassez condiciona as inferências sobre a noção de ‘fazer escola’.

Com base nos casos referidos, é possível, no entanto, sistematizar um apontamento de conjunto. 1) Os pressupostos de que certas personalidades, tendo em atenção a representação e a historiografia anterior, mereceriam um tratamento mais amplo, não foram inteiramente comprovados pelas biografias em apreço, particularmente no que se refere à amplitude do espectro temático. 2) Há personalidades, nomeadamente António da Costa e António Sérgio, que, não sendo tomadas como directamente associadas à instituição-escola, são representativas do campo educacional. 3) Há personalidades como Leonardo Coimbra, Agostinho de Campos e António Figueirinhas que incorporam uma dupla representação do campo educacional, pois que actuaram dentro e fora da instituição escolar. 4) Há personalidades como João de Barros, João de Deus Ramos, João Dias Agudo, que dentro do campo educacional cumpriram diferentes papéis, inovando em diferentes frentes. 5) Há personalidades tutelares, dentro e fora da instituição, como Delfim Santos e António José Saraiva, e a quem pode ser atribuída a distinção de ‘fazer escola’ que continuam colocadas em segundo plano. 6) Émile Planchard é o caso de uma personalidade que construiu, investigou e escreve sobre uma constelação temática.

Escolar - representação e instituição

Pierre Bourdieu designou de actes d’institution aqueles que acontecem quando há uma instituição que define as regras e em face das quais os agentes revelam familiaridade, legitimidade e habilidade de execução (BOURDIEU, 2001, p. 108). Os actos de instituição revelam conhecimento e capacidade de acção, pelos que são devidos a personalidades com capital simbólico e capital efectivo. Em face das biografias dos educadores brasileiros e dos educadores portugueses, pode aventar-se que tais actos são resultado da combinatória entre uma escala de intelectividade, que traduz capacidade de diagnóstico e racional de acção; uma escala de educacionalidade, que combina intencionalidade, ideário e pedagogia; uma escala de institucionalidade, traduzida pela legitimidade de idear, participar e intervir nos destinos da instituição-escola.

Tomando a instituição educativa em geral e a instituição-escola em particular e, combinando as escalas de intelectividade, educacionalidade, institucionalidade, poder-se-á aventar que emerge um complexo que reporta ao eixo formado por representação e significado do institucional escolar; ao eixo formado por intelectividade, correspondendo à variação no grau de compreensão e realização nos planos teórico e prático; ao eixo de educacionalidade, variando na especificidade de lidar e transformar o humano. Pela especificidade da instituição educativa, há três categorias fundamentais de representação e acção: o cânone; a norma; o institucional. Os autores de manuais e os curricularistas são, por regra, os que interferem com propriedade e eficácia no cânone; os metodólogos e os normalistas são os que, por regra, preservam e adequam a norma; os agentes de poder e os políticos são, em regra, os que fazem evoluir a instituição seja no plano interno, seja a partir do exterior.

Sucede, pela observação das biografias incluídas no Dicionário de Educadores Portugueses, que políticos, publicistas, pedagogistas também exercem uma influência fundamental sobre o institucional escolar. Tal verifica-se com as biografias de António da Costa, António Sérgio, António Figuerinhas. Os dois primeiros actuaram essencialmente de fora, ainda que o segundo se tenha caracterizado a si próprio de pedagogista; ambos exerceram, ainda que por tempo curto, a função ministros da instrução pública. O terceiro, tomando-se a si mesmo como pedagogo, doutrinando e traduzindo tratados de pedagogia, tendo sido professor, autor e editor de revistas e livros escolares, exerceu influência dentro e fora da instituição-escola. Interferiu directamente no cânone e na norma, influenciou os profissionais de ensino e a opinião pública. De modo quase contrastante, a influência sobre o institucional escolar por parte de personalidades como Adolfo Coelho foi indirecta e subtil, mas não menos determinante. Adolfo Coelho foi investigador de educação, fundador (de escola e museu), autor de um cânone literário para o ensino primário complementar e para o ensino secundário. Teófilo Braga ou mais recentemente António José Saraiva foram autores com influência decisiva no cânone escolar. Quem verdadeiramente realiza actos de instituição? A quem se aplica efectivamente o termo Escolares?

O Escolar é um conceito que comporta características internas e intrínsecas ao institucional, e características externas que se prendem com a legitimidade de representação. Figura destacável na cultura escolar, por regra interfere no cânone, na norma e no institucional enquanto, simultaneamente, forma e exerce influência sobre os pares e a sociedade. Será de esperar que um Escolar congregue todas estas valências. Porventura, perfis como os de José Augusto Coelho, Leonardo Coimbra, Manuel Antunes ou, de forma menos elaborado mas mais abrangente, o de António Figueirinhas se aproximem daquele complexo conceptual. Recuperar os perfis de políticos e pedagogistas, como António da Costa e António Sérgio, é deixar em segundo plano a dimensão do cânone e substituir a norma escolar feita de teoria e experiência por um corpo doutrinário. Por contraste, na biografia de Manuel Antunes há dimensões externas e internas; há uma teoria educativa sobre o aperfeiçoamento do humano (educação permanente- axiologia) e sobre a interacção institucional (pedagogia); há uma matéria curricular, que possibilita melhorias no cânone e no método (Ensino de Filosofia); há uma intervenção dentro e fora do quadro institucional (Reformas Educativas). Está cumprido o complexo: intelectividade, educacionalidade, institucionalidade, e a biografia contém indicações sobre ‘fazer escola’, posto que indicia um ideário, uma sensibilidade, uma interacção, uma discipulação por parte de alunos, leitores e discípulos. Também a revista Brotéria de que foi director, deu consistência e prolongou o magistério do Padre Manuel Antunes.

Conclua-se que representação e instituição se congregam na figura do Escolar. O Escolar é um intelectual influente na cultura escolar e na dinâmica institucional. Articulando intelectividade e educacionalidade, nada do que é humano lhe é indiferente. Três dimensões fundamentais em que interfere são a educação, a cultura escolar, a instituição. Criador de ideias, observador crítico, idealizador de planos curriculares e de textos, o Escolar interfere nas práticas e na constituição de modelos, mas interfere sobretudo na mudança de paradigmas, nos planos axiológico, pedagógico, científico, cultural. Os Escolares têm especial relevância na constituição do cânone, seja do cânone literário, científico, artístico; seja da Memória e da História. Mais que académicos fechados numa especialidade e numa instituição, os Escolares fazem e representam a instituição. A cultura escolar como arquitexto (simbolização, representação, (in)formação) assenta no cânone, na instituição - campo em que Académicos/ Escolares foram os principais fundadores, criadores, divulgadores.

Os Intelectuais representam a educação em sentido total, pois que prefiguram as distintas acepções de educabilidade e, fundamentalmente, asseguram a relação entre educação e sociedade. Há uma cartografia dos intelectuais na Cultura Escrita; na Modernização; na Educação e na Escolarização de que ressaltam os Escolares. É do grupo dos ‘grandes intelectuais’ que frequentemente emergem fações e se distinguem os que idealizam e se tornam apologéticos da mudança institucional.

Referências

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Recebido: 05 de Abril de 2019; Aceito: 23 de Outubro de 2019

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