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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.33 no.67 Uberlândia jan./abr 2019  Epub 30-Ago-2021

https://doi.org/10.14393/revedfil.v33n67a2019-47646 

Artigos

A educação filosófica por meio da narrativa: a experiência de pensar a democracia

The philosophical education through narrative: the experience of thinking democracy

La educación filosófica por medio de la narrativa: la experiencia de pensar la democracia

Darcisio Natal Muraro* 
http://orcid.org/0000-0002-5413-8385

Claudiney José de Sousa** 
http://orcid.org/0000-0001-8008-3173

*Doutorado em Filosofia da Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professor da Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail: dmuraro@uel.br

**Doutorado em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor da Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail: claudineyuel@hotmail.com


Resumo

Este trabalho objetiva apresentar o processo de criação de um material para ensino de filosofia para crianças centrado na temática da democracia. A metodologia filosófica de análise de conceitos, ancorada no trabalho de exploração bibliográfica, orientou o estudo. Como hipótese de trabalho foi analisada a concepção de democracia como modo de vida ético e político e suas relações com a prática educativa a partir do pensamento de Dewey (1979) e Lipman (1990). A compreensão da atitude filosófica como prática educativa na e para a democracia resultou na criação de uma narrativa filosófica sobre democracia. A experiência da casa é a referência para a criação da narrativa metafórica da democracia. Os personagens conceituais que habitam a casa problematizam e discutem a democracia a partir diferentes perspectivas filosóficas: antropológica, epistemológica, ontológica, ética, política, estética etc. A casa se transforma numa comunidade de investigação como ambiente reflexivo e criativo do humano.

Palavras-chave: Democracia; Ensino de Filosofia; Comunidade de investigação; Narrativa

Abstract

This paper aims to present the creation process of a philosophy teaching material for children centered on the theme of democracy. The philosophical methodology of concept analysis, anchored in the work of bibliographic exploration, guided the study. As a working hypothesis we analyzed the conception of democracy as an ethical and political way of life and its relations with educational practice based on the thinking of Dewey (1979) and Lipman (1990). Understanding the philosophical attitude as an educational practice in and for democracy has resulted in the creation of a philosophical narrative about democracy. The experience of the house is the reference for the creation of metaphorical narrative of democracy. The conceptual characters that inhabit the house problematize and discuss democracy from different philosophical perspectives: anthropological, epistemological, ontological, ethical, political, aesthetic, etc. The house becomes a research community as a reflective and creative environment of the human.

Keywords: Democracy; Teaching Philosophy; Community of Inquiry; Narrative

Resumen

Este artículo tiene como objetivo presentar el proceso de creación de un material de enseñanza de filosofía para niños centrado en el tema de la democracia. La metodología filosófica del análisis de conceptos, anclada en el trabajo de exploración bibliográfica, guió el estudio. Como hipótesis de trabajo, analizamos la concepción de la democracia como una forma de vida ética y política y sus relaciones con la práctica educativa basada en el pensamiento de Dewey (1979) y Lipman (1990). La comprensión de la actitud filosófica como una práctica educativa en y para la democracia ha resultado en la creación de una narrativa filosófica sobre la democracia. La experiencia de la casa es la referencia para la creación de narrativa metafórica de la democracia. Los personajes conceptuales que habitan la casa problematizan y discuten la democracia desde diferentes perspectivas filosóficas: antropológica, epistemológica, ontológica, ética, política, estética, etc. La casa se convierte en una comunidad de investigación como un ambiente reflexivo y creativo del ser humano.

Palabras clave: Democracia; Enseñanza de Filosofía; Comunidad de Investigación; Narrativa

Introdução

É sabido, pois, que o educador adota um conjunto de valores que orientam sua atividade docente, assim, compreendemos que as práticas educativas não são neutras. Se estes valores são verdadeiramente um modo de vida, e não uma mera “tábua de valores”, então eles incidirão, inevitavelmente, na escolha dos conteúdos a serem trabalhados em seus compromissos acadêmicos, em seu relacionamento com seus educandos e também na escolha da metodologia que viabilizará o aprendizado. Entendemos o quanto seria desconcertante se Jesus Cristo, tendo feito a opção pelos pobres, procurasse ensiná-los não mediante parábolas, mas através do discurso retórico e hegemônico dos escribas e dos fariseus de seu tempo. Logo constataríamos a contradição na postura de Sócrates se, ao dizer que o papel do mestre é fazer vir à tona, mediante o diálogo, os conhecimentos de que o(a) educando(a) está grávido(a), estimulasse a mera reprodução da tradição filosófica mediante um método de memorização. Como seria estranho (e triste) ver Paulo Freire difundindo a educação libertadora através do método da educação bancária.

Tais exemplos servem apenas para chamar a atenção para uma situação alarmante da educação filosófica. Ficamos chocados ao analisar as supostas contradições dos educadores que citamos acima. Como diz o conhecido provérbio: “seria cômico, se não fosse trágico”, constatar a incompatibilidade entre o discurso e a prática nestas três grandes figuras do pensamento ocidental. O que mais choca, no entanto, é outra constatação, a de que a incompatibilidade entre o discurso e a prática educativa parece perfeitamente aceitável no cenário atual. Como entender que alguém ensine sobre democracia sendo autoritário, antiético e sem nenhum compromisso com a justiça social? Como aceitar que um educador discurse sobre a importância da crítica e da discussão não dando chances para que o aluno conteste sua exposição? Como almejar uma vida social democrática por meio de práticas pedagógicas centradas na transmissão vertical de conteúdos e valores, orientados pelo pressuposto de que a democracia assenta numa fantasiosa igualdade cognitiva dos agentes sociais? Não seria contraditório falar de criatividade em uma aula de artes, exigindo que alunos façam a reprodução de obras clássicas e reprimindo-os quando ensaiam qualquer forma de expressão que traduza suas próprias vivências? Não apenas na educação, mas em todas as esferas da vida social pagamos um alto preço por conta da ausência de um verdadeiro compromisso com a vida pública. Como aceitar, por exemplo, que um político faça a crítica da desigualdade social sendo, ao mesmo tempo, um grande banqueiro sonegador de impostos?

Quando nos deparamos com essas situações-limite nos perguntamos: onde teriam errado nossos educadores? Onde estaríamos errando? Dissemos que todo educador adota um conjunto de valores norteadores de sua atividade docente e que tais valores podem ser um verdadeiro modo de vida. Resta saber qual a natureza dos referidos modos de vida. Nem todo modo de vida é compatível com a vida democrática. Por exemplo, alguém pode optar pela guerra ao invés de optar pela paz, pode escolher construir fronteiras ao invés de pontes, pode fazer a opção por uma educação libertadora ou por uma educação que legitime as desigualdades sociais.

Nesta breve introdução, trouxemos para o debate algumas contradições que permeiam as complexas relações entre a prática educativa e a prática democrática. Entendemos, pois, que a filosofia da educação vem se configurando como um campo de investigações que se debruça cada vez mais sobre esta problemática, especialmente preocupada com a dimensão filosófica nela implícita. Procuramos, assim, elaborar de um modo mais explícito a problemática que nos ocuparemos, ou seja: é possível um modo de vida em que educação e democracia transformem indivíduo e sociedade, tendo em vista o enfrentamento e a desejável superação das profundas contradições do sistema social atual? De que maneira a prática filosófica de ensino, como modo de vida, pode contribuir nesse processo de transformação social?

Para desenvolver essas questões adotaremos como processo metodológico, de caráter bibliográfico, os procedimentos filosóficos de análise, articulação e atualização de conceitos. Na primeira etapa, a pesquisa se ocupa em desenvolver uma concepção de democracia como modo de vida em que a experiência é socialmente comunicada e compartilhada tomando como referência o pensamento de John Dewey (1940, 1979 e 1991). Para desenvolver a concepção de ensino de filosofia a partir da narrativa, tomaremos como referência a obra de Matthew Lipman (1990, 2003 e 2004), ampliando a noção de narrativa como metáfora a partir da contribuição de Paul Ricoeur (2000). Por fim, daremos algumas indicações a respeito da construção de narrativa filosófica como possibilidade de uma prática educativa sobre democracia. O objetivo geral deste estudo é desenvolver uma reflexão filosófica sobre a democracia, para isto, propomos: i) apontar um caminho que configure possibilidades de enfrentamento das contradições no campo educacional e ii) refletir, com base nos autores, a importância do entendimento democrático, para assim contribuir com uma vida social democrática.

O modo de vida ético e político da democracia na perspectiva de Dewey (1979)

A compreensão da democracia como um modo de vida ético e político está ancorada nas teses de Dewey, especialmente no seu tratado de filosofia da educação intitulado Democracia e Educação (1979). É significativa a concepção do autor acerca do ser humano expressa em termos de “imaturidade como possibilidade de crescimento da vida”. Essa concepção se diferencia das concepções maturacionistas que pensam o adulto a partir do padrão de desenvolvimento ou da própria natureza como dotada de fins fixos que ditariam a feitura do ser humano. O autor distingue dois poderes (ou forças) no conceito de imaturidade: um deles é a capacidade social, ou seja, a interdependência que possibilita a cada ser humano viver superando os limites de seu organismo ou de sua impossibilidade física. Seu organismo é equipado com mecanismos de natureza social que direcionam o interesse e a atenção para as relações grupais. A interdependência corresponde à natureza social do ser humano. Outro poder (ou força) que o autor inclui no conceito de imaturidade é a plasticidade, ou seja, as capacidades flexíveis que lhe permitem fazer experiências em que ocorrem variações na interação com o ambiente natural e social, tendo em vista sua sobrevivência. As experiências proporcionam o processo reflexivo sobre os problemas enfrentados, resultando em acúmulo de significados que podem ser aproveitados em novas combinações para enfrentar situações ulteriores. Ambos os poderes (ou forças) habilitam o ser humano a aprender a aprender, condição para que a modificabilidade humana resulte em diferentes formas de crescimento em um mundo de incertezas e imprevisibilidades.

O critério para balizar a concepção deweyana de democracia está ancorado nas noções de interesse compartilhado e experiência associada e comunicada. A este respeito, o autor comenta que: “Uma democracia é mais do que uma forma de governo; é, essencialmente, uma forma de vida associada, de experiência conjunta e mutuamente comunicada” (DEWEY, 1979, p. 93). Partindo da análise das diferentes formas de vida associada, o autor perscruta um critério que não seja nem idealização, nem reprodução da realidade, na verdade um duplo critério, que permita julgar os traços desejáveis e indesejáveis da vida social, bem como um modelo que possa sugerir melhorias: “[…] a extensão em que os interesses de um grupo são compartidos por todos os seus componentes e a plenitude e liberdade com que esse grupo colabora com outros grupos” (DEWEY, 1979, p. 106). O modo de vida de um governo despótico ou de uma quadrilha, por exemplo, não é compatível com grande número de interesses compartilhados, o que impede a livre reciprocidade do dar e receber. A ausência de interesses compartilhados tende a gerar rigidez e institucionalização formal da vida, fato que gera ideais estáticos e egoístas no interior do grupo.

Em contrapartida, em grupos como a família, encontramos um modo de vida em que há uma variedade de interesses conscientemente comunicados e compartilhados - como interesses materiais, intelectuais, estéticos e afetivos. Encontramos, ao mesmo tempo, variadas (e livres) formas de contato com outros grupos sociais. Assim, o autor ressalta que: “A falta do livre e razoável intercâmbio que promana de vários interesses compartidos desequilibra o livre jogo dos estímulos intelectuais. Variedade de estímulos significa novidade e novidade significa desafio e provocação a pesquisa e pensamento” (DEWEY, 1979, p. 91). Desta forma, a variedade de interesses enriquece a experiência e expande as possibilidades da vida social.

Dewey considera ainda que o critério apresentado nos permite a crítica à sociedade rigidamente organizada em classes. Segundo sua análise, em uma sociedade assim organizada, a atividade dos trabalhadores se torna rotineira e maquinal, uma vez que o interesse é imposto de fora, impedindo-os de ver as relações técnicas, intelectuais e sociais naquilo que fazem. Os interesses contrários separam as classes, impossibilitando a endosmose social, nas palavras do autor:

Quanto mais as atividades se restringem a umas tantas linhas definidas - como sucede quando as divisões de classes impedem a mútua comunicação das experiências - mais tendem a se converter em rotina para a classe de condição menos favorecida, e a se tornar caprichosas, impulsivas e sem objetivos para a classe em boa situação material (DEWEY, 1979, p. 91).

O autor critica a perversão dos interesses sociais por parte da classe privilegiada: “Sua cultura tende a tornar-se estéril, a voltar-se para se alimentar de si mesma; sua arte torna-se uma ostentação espetaculosa e artificial; sua riqueza se transmuda em luxo; seus conhecimentos superespecializam-se; e seus modos e hábitos se tornam mais artificiais do que humanos” (DEWEY, 1979, p. 90-91).

Os dois critérios analisados acima caracterizam aquilo que, na perspectiva de Dewey, deve ser chamado de democracia como modo de vida ético e político. Vejamos como o autor resume o significado dos referidos critérios:

O primeiro significa não só mais numerosos e variados pontos de participação do interesse comum, como também maior confiança no reconhecimento de serem, os interesses recíprocos, fatores da regulação e direção social. E o segundo não só significa uma cooperação mais livre entre os grupos sociais (dantes isolados tanto quanto voluntariamente o podiam ser) como também a mudança dos hábitos sociais - sua contínua readaptação para ajustar-se às novas situações criadas pelos vários intercâmbios (DEWEY, 1979, p. 93).

A mencionada citação nos mostra que os interesses compartilhados servem de critério para os indivíduos pautarem suas ações, tendo em vista as ações dos outros. A existência de numerosos e variados interesses dessa natureza oferece mais estímulos que permitem ao indivíduo variar seus atos e liberar suas energias para outros fins sociais. Por isso, a democracia sugere uma contínua luta pela supressão de barreiras que tornem as interações parciais e unilaterais, como a divisão de classes, de raça, e a distinção entre grupos com interesses excludentes e fechados em si. Tais barreiras resultam de numerosos conflitos de interesses divergentes, que podem ser transformados em interesses compartilhados quando se fazem prevalecer interesses sociais mais amplos. O modo de vida democrático tem papel crucial na eliminação destas barreiras que limitam as experiências e o crescimento social. Por isso, ela depende, sobretudo, de uma educação voltada para o aprimoramento da experiência no sentido da formação de hábitos sociais democráticos.

A democracia é a forma de vida que permite a discussão pública e inteligente dos problemas comuns, uma forma de construção, manutenção e transformação da vida social e política. Uma prática que permite o livre intercâmbio e a comunicação de experiências. O voto, por exemplo, como instrumento político, é apenas um efeito de todo o processo social. Por si só o voto é incapaz de produzir democracia. Se reduzido a seu caráter de dever cívico pode, pelo contrário, até se converter em instrumento antidemocrático. A educação deve se constituir no modo de vida democrático. Precisa ser, por meio da formação cultural e da eficiência social, a condição para o crescimento da liberdade que é a constituinte da vida pública. A educação democrática, assim concebida, significa continuidade da vida da sociedade. Neste sentido, o autor postula a necessária articulação dos conceitos de educação e democracia: “se a democracia tem significação moral e ideal, é porque exige de todos uma retribuição social e porque se proporciona, a todos, oportunidade para o desenvolvimento das suas aptidões distintivas” (DEWEY, 1979, p. 133). O argumento do autor está voltado aos valores da vida democrática, destacando a relação ético-moral pressuposta na sua ideia de democracia:

[…] a causa de democracia é a causa moral da dignidade e do valor do indivíduo. Através do respeito mútuo, da mútua tolerância, do dar e receber, da associação das experiências, ela é, enfim, o único método através do qual o ser humano pode ter sucesso em levar adiante este experimento no qual nós estamos todos engajados, queiramos ou não, o grande experimento da humanidade - o de viver juntos de modo que a vida de cada um de nós seja pelo menos vantajosa, no mais profundo sentido da palavra, vantajosa para si mesmo e que contribua para a construção da individualidade dos outros (DEWEY, 1940, p. 33).

A causa da democracia está, deste modo, articulada com o conceito de imaturidade na medida em que o indivíduo é visto enquanto poder (ou força) de interdependência, capacidade de interação social. Devido à sua modificabilidade e plasticidade, é essencialmente alguém capaz de aprender. A democracia é, conforme essa visão dialética da relação indivíduo/sociedade, a experiência de aprender socialmente:

[…] creio que o indivíduo a ser educado é um indivíduo social e que a sociedade é uma união orgânica de indivíduos. Se eliminamos da criança o fator social, ficamos somente com uma abstração; se eliminamos da sociedade o fator individual, ficamos somente com uma massa inerte e morta (DEWEY, 1940, p. 6).

Ou seja, estamos analisando que a democracia constitui um princípio ético que, como forma de vida, deve afetar completamente a vida do ser humano. O autor entende que a democracia não pode ser reduzida a uma ou outra experiência histórica, mas deve ser vista como um experimento que está em processo de construção. A educação é a esfera social mais profundamente afetada pela noção de democracia, uma vez que não apenas vive a transformação, como deve ser a portadora e avaliadora da mudança. É neste sentido que o estudo sobre a democracia gerou a necessidade de encontrar caminhos que permitam uma educação por meio da própria democracia.

Vejamos como os trabalhos de Lipman (1990 e 1995), referenciados nas teses de Dewey (1940 e 1979), ofereceram uma base para o desenvolvimento de nosso projeto.

A metafilosofia da filosofia para crianças de Mathew Lipman (1990)

Um dos objetivos de Lipman, com sua proposta de filosofa para crianças, é estimular o desenvolvimento das habilidades cognitivas para se atingir um “pensar excelente”, também conhecido como “pensamento multidimensional”. Sua proposta articula três dimensões do pensar: a crítica, a criatividade e o cuidado. O diálogo tem papel fundamental em sua concepção filosófico-educacional. Entende que aqueles que se engajam nesta prática (a comunidade de investigação) a desenvolvem sobretudo a partir da dimensão ético-política. A respeito da importância da comunidade de investigação na educação filosófica de crianças e adolescentes, o autor enfatiza:

Elas acatarão as regras da discussão acadêmica (ou gradualmente aprenderão a fazer isso); elas ouvirão umas às outras, sempre preparadas para dar as razões de seus pontos de vista e pedir pelas razões de seus colegas; elas virão a apreciar a diversidade de perspectivas entre seus colegas e a necessidade de ver as questões dentro de um contexto. O seminário de investigação de valores servirá como um modelo de racionalidade social; elas irão internalizar suas regras e práticas, e isso virá a ser estabelecido em cada uma delas como reflexão, consideração e ponderação (LIPMAN, 1990, p. 77).

Os críticos desse pensamento poderiam indagar da seguinte maneira: como isso será viabilizado nos ambientes e circunstâncias em que vivem as classes subalternas? Em muitos lares, uma criança sequer tem o direito à palavra, nas escolas são ensinadas a manter o silêncio. Parece muito abstrata essa afirmação de que “as crianças virão a apreciar a diversidade de perspectivas entre seus colegas e a necessidade de ver as questões dentro de um contexto”. Estes questionamentos refletem a crítica à suposta “educação redentora”, ou o que poderíamos chamar de “otimismo ingênuo” com relação à educação - um otimismo que desconsidera os antagonismos, os conflitos, as contradições inerentes à prática pedagógica. Em geral, uma crítica que demarca o fato de um pensador não estar comprometido com a transformação substancial da estrutura social, limitando-se a constatar a separação da sociedade em classes, quando não a legitimando através de um discurso ideológico.

Neste trabalho nos limitamos a verificar o alcance de uma das propostas do autor; aquela que, a nosso ver, transcende a discussão polarizadora de críticos e admiradores. Acreditamos que os dois grupos admitiriam um ponto em comum: Lipman apresenta uma proposta radical e desafiadora. Veremos que poucos tiveram a sensibilidade deste autor para abrir mão do “pensar adulto”. Sair do lugar-comum e fazer a experiência de pensar como o outro, pensar com o outro, a partir do lugar do outro.

Segundo Lipman, é preciso pensar melhor ou pensar bem. Mas pensar melhor o quê? Pensar melhor sobre fenômenos fundamentais como a própria vida, o viver bem, a existência, a política, a ética, os reveses da vida em sociedade, nossas fragilidades. Como viabilizar isso? Isso não ocorrerá naturalmente à criança. Lipman enfatiza que o pensamento se desenvolve paralelamente à aquisição de uma dada ferramenta, a linguagem. Por isso lembra a importância do diálogo criterioso e logicamente disciplinado. Por sua vez, a filosofia, considerada no conjunto de sua tradição, tem sido um esforço no sentido de mostrar que o pensamento pode ser aperfeiçoado. Negligenciar este instrumental filosófico acumulado na história da filosofia é negar o direito das pessoas de guiarem seu próprio processo formativo, e por consequência, limitar também a ação social dessas pessoas.

Muito se tem discutido a respeito da dificuldade de proporcionarmos às crianças e adolescentes a discussão dos grandes temas da humanidade, dos grandes temas filosóficos. Criança pode discutir a existência de Deus? Pode se perguntar sobre a felicidade? Não seria melhor adiar questões polêmicas como morte, liberdade, violência, poder, democracia? Por que seriam questões apenas para adultos? Qual o momento ideal para serem discutidas? Por que as crianças não se interessam por discussões filosóficas? Elas não gostam de filosofia? Filosofia é difícil? Filosofia é coisa de adulto? A filosofia é discussão chata, abstrata?

A sensibilidade do autor pode ser notada em um aspecto fundamental que os críticos apressados de seu pensamento deixam escapar: não existem temas mais ou menos apropriados para crianças, adolescentes e adultos. Existem, sim, maneiras mais ou menos apropriadas de se trabalhar cada um desses temas que são intrigantes para quaisquer pessoas em diferentes contextos existenciais de vida. Todo professor sabe como é cômodo ensinar qualquer coisa para qualquer pessoa em qualquer circunstância (cada um se adapta à perspectiva redutora do professor e os problemas estão resolvidos). Consequentemente, o professor sabe também como, por outro lado, é desafiador ensinar os mesmos assuntos de diferentes maneiras para diferentes pessoas, em diferentes circunstâncias ou, se quiserem, diferentes temas, para diferentes pessoas em diferentes circunstâncias (as variações seriam muitas). O importante no que estamos dizendo é que essa atitude exige um “desdobrar-se” do pensamento.

As ideias de Lipman versam, antes de tudo, sobre o filosofar do próprio adulto. A filosofia para crianças, ou filosofia com crianças, é uma investigação sobre as deficiências da educação filosófica como um todo. Isto é, qual a maior dificuldade para garantirmos uma verdadeira inclusão de crianças com deficiências na escola regular? A deficiência de nos julgarmos “sem deficiências”, de acreditarmos que carências, insuficiências, limitações, fragilidades e o despreparado estão sempre no outro, naquele que foge aos ditos “padrões de normalidade”. A filosofia para crianças, neste contexto, coloca em pauta uma discussão análoga. Antes de ser uma pergunta sobre a possibilidade de as crianças filosofarem, a proposta é uma pergunta sobre a possibilidade de filosofarmos para além do lugar-comum. Assim, a filosofia para crianças de Lipman converte-se numa metafilosofia que implica a redefinição e a reorganização da filosofia e do próprio filosofar. Tal reconstrução da filosofia e do ensino de filosofia exige uma mudança radical, à qual poucos estão dispostos a aderir, por isso, não devemos estranhar o fato de ser rejeitada por aqueles que se julgam, dogmaticamente, detentores de um saber determinado. A proposta é bem-vinda, por outro lado, entre os mais céticos com relação às suas próprias capacidades de bem filosofar.

Para compreendermos o desafio, tentemos recriar, de maneira metafórica, o movimento do pensamento de Lipman. Perguntemos a um velho sábio marceneiro: uma criança é capaz de aprender a construir uma mesa? Ele dirá: sim, perfeitamente. Com boa orientação aprenderá a construir não somente a mesa, mas a mobília de uma casa inteira. Recorrendo às suas experiências, acrescentará que teme apenas que se machuque com as afiadas ferramentas ou que sequer suporte o peso de algumas delas. Mas, (continua ele) se estou realmente comprometido com a pequena aprendiz, aceito o desafio e entendo que, embora seja perfeitamente possível, ensiná-la não será tarefa fácil. Dentre as medidas necessárias, para que obtenha sucesso na construção, estão a confecção de ferramentas leves e adequadas que, em muitos casos, não se ajustarão mais as minhas mãos de adulto. Mais do que isso, precisarei abdicar do meu fazer costumeiro e encontrar um tempo extra de trabalho para construí-las.

Todos os ajustes, desde os mais simples até os mais complexos e radicais, caracterizam uma reorganização do trabalho do velho sábio marceneiro. Ele testa cuidadosamente cada uma das pequenas ferramentas à medida que as confecciona e é surpreendido com o fato de que um mundo novo se descortina diante dele. A matéria-prima do seu trabalho (a madeira) continua sendo a mesma, mas as exigências com relação a seu tratamento são outras. Ganha uma nova perspectiva, percebe que ouve um aprendizado; não somente porque agora sabe construir como uma criança, mas porque pode olhar à distância sua antiga e costumeira maneira de construir.

Para os marceneiros incrédulos com relação à possibilidade de as crianças aprenderem o complexo ofício, o sábio marceneiro dirá que, “curiosas que são, se sentirão ainda mais atraídas exatamente por conta do desafio”. O que não se resolve facilmente é a indisponibilidade de muitos marceneiros e a arrogante postura de que somente eles podem construir mesas. O melhor seria privá-las, dirão, não somente do contato com as ferramentas, mas também do contato com a própria matéria-prima do seu ofício. Isso parece suficiente para mostrar que a filosofia para crianças de Lipman é “filosofia para gente grande”, para gente que é capaz de transbordar, que é capaz de ir além da própria borda. É uma proposta radical porque faz vir à tona a fragilidade, a limitação, a deficiência e a insuficiência do costumeiro filosofar. Privar a criança do pensar correto é apenas uma das muitas maneiras de matar nelas, e em si mesmo, a possibilidade do novo pensamento, da nova perspectiva, a possibilidade de crescer.

É curioso que os grandes mestres da filosofia e da religião (Sócrates e Jesus Cristo) resolveram ensinar exatamente por meio do diálogo e da parábola. Não porque quisessem facilitar as coisas, mas porque foram homens radicais, comprometidos com suas causas. Homens que compreenderam o verdadeiro significado da educação e da postura democrática. Foram, antes de tudo, homens pragmáticos, porque optaram pelas metodologias mais eficazes e compatíveis com suas propostas pedagógicas.

O que é o diálogo socrático senão uma arena de debates, uma comunidade de investigação? Sócrates democratiza a discussão filosófica e adota uma nova estratégia de ensino, uma metodologia de autorreflexão. Da mesma forma, esta prática revela a fragilidade daquele que foi privado da discussão verdadeiramente filosófica. Faz o general com anos de experiência perceber que é incapaz de explicar o que é coragem, do mesmo modo que o sacerdote respeitado por seus fiéis, tem que reconhecer sua incapacidade para definir a própria fé. Ao se perguntar pela coragem mesma e pela fé mesma e não pelos exemplos de coragem e fé, Sócrates revela a pseudo-sabedoria dos seus interlocutores. Mais do que isso, o diálogo socrático é democrático porque o educador se coloca na posição de aprendiz. Há abertura, desprendimento, troca e, acima de tudo, respeito à perspectiva daquele que aprende. Neste sentido, Freire explicita o que aqui pretendemos destacar com o diálogo:

A dialogicidade não nega a validade de momentos explicativos, narrativos, em que o professor expõe ou fala do objeto. O fundamental é que professor e alunos saibam que a postura deles, do professor e dos alunos, é dialógica, aberta, curiosa, indagadora e não apassivada, enquanto fala ou enquanto ouve (FREIRE, 2011, p. 83).

Ao exigir de nós um olhar a partir de outro ponto de vista, a filosofia de Lipman, da mesma forma, não só revela a possibilidade do filosofar prematuro, como também a consciência da deficiência gerada pela pretensa sabedoria adulta, o pseudo-conhecimento filosófico. O exercício de pensar com a criança é também um exercício de pensar como criança, ou seja, o reaprender a ver o mundo. Diante desta constatação, uma questão se apresenta: como realizaremos o exercício do pensar com e como a criança? Como viabilizar essa difícil tarefa? A tradição filosófica e literária tem nos legado diversas experiências bem-sucedidas que nos remetem ao exercício do “olhar a partir de outro ponto de vista”: o diálogo, a metáfora, a poesia, a parábola, etc.

Tomemos como exemplo a parábola. Qual a natureza e o propósito de uma parábola? A parábola é mais do que um “colocar ao lado de” para efeito de comparação, contraste, analogia. A parábola é, no fundo, uma postura e um exemplo de humildade. É um atrativo, um recurso metodológico e profundamente didático. Parábola é a expressão da sensibilidade daquele que ensina; é um desdobramento do pensamento, uma postura democrática. A parábola torna acessível, palpável, coloca ao alcance do outro. Por isso, esse recurso significa não somente partir do imaginário popular, mas também retornar a ele. Segundo Bailey, “ao invés da declaração abstrata seguida de uma ilustração elucidadora, [na parábola] temos uma confrontação dramática, expressa com brevidade em termos inesquecíveis” (1995, p. 14). As parábolas de Jesus são, antes de tudo, situações que geram um diálogo, deixam o interlocutor pensativo, dando possibilidade para que encontre sua própria resposta.

A narrativa da novela filosófica de Lipman revela o quanto a filosofia é pobre de diálogo, é pobre de parábola e da metáfora. Em geral o texto filosófico nos oferece um paradigma descritivo de um sistema de conceitos como resultado final da investigação de um pensador. Para Lipman (1990), a complexidade do paradigma do texto filosófico pode ser uma barreira para o acesso das crianças à filosofia. Essa dificuldade fez com que o autor pensasse uma forma de reconstruir esse saber por meio da narrativa. Quais as potencialidades didáticas da narrativa, do diálogo, da parábola, enfim, da metáfora? O desenvolvimento desta questão requer a compreensão das relações entre a filosofia e a criança ou, mais especificamente, a compreensão da filosofia da infância, conceito original de Lipman.

A filosofia da infância

A expressão ‘filosofia da infância’ aparece de forma pioneira na história da tradição filosófica com a concepção de Lipman acerca da própria filosofia, e desta com a educação. Para o filósofo: “a infância é uma dimensão legítima do comportamento humano e da experiência humana e que não é menos habilitada ao tratamento filosófico que as outras dimensões para as quais já existe filosofias” (LIPMAN, 1990, p. 215).

O pensamento do autor tem como base “a descoberta de que as crianças podem fazer filosofia - e que elas o fazem de maneira competente e com prazer […]” (LIPMAN, 1990, p. 218). Assim, Lipman critica as teorias desenvolvimentistas que colocam a infância como período preparatório para a maioridade: “[…] frequentemente assumem que a infância é um preparo para a maioridade e deve ser vista apenas como um meio para um fim, ou como uma condição incompleta movendo-se em direção da completude” (LIPMAN, 1990, p. 219). Para o autor, as crianças não estão se movendo em direção ao que os adultos sabem, acreditam e valorizam. Ou seja, a infância abre as portas à novidade, ela é criatividade. Desta forma, a concepção de infância se articula ao conceito de imaturidade de Dewey.

O que Lipman coloca em questão é a dimensão educativa da filosofia. Ele entende que é necessário considerar seriamente o pensar da criança como condição para uma prática dialógica em uma comunidade de infância. O alerta parece ser pertinente para as experiências da educação atual, um convite para repensarmos nossa prática:

Se não pudermos fazer filosofia com crianças, privamos sua educação do verdadeiro componente que pode fazer tal educação mais significativa. E se negamos às crianças uma educação significativa, asseguramos que a ignorância, irresponsabilidade e mediocridade que prevalecem atualmente entre os adultos continuarão a acontecer. Tratar as crianças como pessoas pode ser um preço baixo para se pagar, a longo prazo, alguns benefícios sociais substanciais” (LIPMAN, 1990, p. 223).

Lipman encontrou, na filosofia, a possibilidade de oferecermos às crianças um caminho para que elas próprias atribuam sentido às suas experiências por meio da reflexão. “[…] não simplesmente gostar e amar, mas gostar e amar significativamente; as crianças querem aprender, mas aprender significativamente. (LIPMAN; OSCANYAN; SHARP, 1994, p. 25). A partir desse pensar, nos indagamos: o que pode ocorrer quando a criança não consegue construir os sentidos de suas experiências? Para Lipman, a consequência poderá ser desastrosa. Se tornam “[…] mais propensas a buscar atalhos para alcançar experiências plenas e eventualmente podem se envolver com drogas ou sucumbir à psicose (LIPMAN; OSCANYAN; SHARP, 1994, p. 24).

A busca de significados está associada diretamente à dimensão problemática da experiência: “[…] alguns destes problemas são específicos do seu estágio de crescimento pelo qual estão passando no momento. Outros são problemas comuns a todos os seres humanos” (LIPMAN; OSCANYAN; SHARP, 1994, p. 37). Tais problemas “comuns a todos os seres humanos” são os chamados problemas de fundo da experiência humana. Como trabalhá-los com as crianças? Lipman destaca que uma vez que as crianças relutam em falar sobre seus problemas, o enfrentamento delas pode ser aliviado como parte de uma história de ficção. A literatura é, talvez, a grande possibilidade para as crianças lidarem com seus “problemas filosóficos”. Essa é a razão para que o interesse pela leitura se torne duradouro:

[…] se as crianças devem desenvolver um interesse duradouro pela leitura, esta deve estar significativamente relacionada com suas principais preocupações - com as coisas com que mais se ocupam na vida. O que importa não é só aprender a ver as palavras e pronunciá-las, mas aprender a captar o sentido das palavras, das frases, das orações nos contextos em que aparecem (LIPMAN; OSCANYAN; SHARP, 1994, p. 38).

A literatura é uma fonte de significados, porque atinge a imaginação da criança e estimula o movimento de indagar e pensar. Isso vem ao encontro de sua necessidade de totalidade e globalidade dos sentidos em sua experiência. O que interessa à criança na leitura é sobremaneira aqueles conceitos que permeiam a experiência mais ampla das pessoas e que são objeto da reflexão da filosofia. Exemplo destes conceitos são:

[…] justiça, verdade, liberdade, bondade, beleza, mundo, identidade pessoal, personalidade, tempo, amizade, comunidade. Alguns destes conceitos, todavia, estão mal definidos, e muitos deles são altamente controversos” (LIPMAN; OSCANYAN; SHARP, 1994, p. 47-48).

A ligação das temáticas filosóficas com a experiência intriga as crianças e faz com que a filosofia seja uma exigência educacional. Na medida em que tais questões são tratadas filosoficamente, conseguimos evitar que qualquer sentido pronto de crenças religiosas ou de senso comum embote o pensamento da criança. Em contraposição, Lipman entende que a filosofia também gera certo encantamento, independentemente da idade:

Na verdade, uma das coisas mais maravilhosas da filosofia é que as pessoas de qualquer idade podem refletir sobre temas filosóficos e discuti-los de modo proveitoso. As crianças ficam tão fascinadas quanto os adultos com noções como amizade e imparcialidade, e tanto as crianças quanto os adultos podem reconhecer que ninguém ainda disse a última palavra sobre esses temas (LIPMAN; OSCANYAN; SHARP, 1994, p. 48-49).

Considerando essa relação da filosofia com a experiência vital dos humanos em geral e da experiência da criança em formação de maneira mais intensa e específica, Lipman procura pensar o problema da filosofia no contexto da educação. Para ele, o que precisa ser considerado é a superação da fragmentação do currículo escolar. Desta forma, a filosofia pode ser aliada ao professor para dar continuidade ao processo educacional. A criança é naturalmente questionadora, uma característica que está perfeitamente sintonizada com o fazer filosófico.

[…] se a principal contribuição da criança ao processo educacional é seu caráter questionador, e se a filosofia é caracteristicamente uma disciplina que levanta questões, então a filosofia e a criança são aliadas naturais. O que melhor poderia estabelecer uma conexão entre as crianças e a estrutura formal do conhecimento humano que uma disciplina que tradicionalmente tem se preocupado com a inter-relação entre as diferentes disciplinas intelectuais e com a apresentação de perguntas sobre como interpretar e compreender a experiência humana? (LIPMAN; OSCANYAN; SHARP, 1994, p. 50).

Na continuidade desse argumento, Lipman se defronta com duas perspectivas de abordagem dos sentidos da experiência: a narrativa e a descrição. Em geral, estas perspectivas têm sido tomadas de forma dualista. Valoriza-se o discurso descritivo como meio mais confiável para se apreender a verdade acerca do mundo e coloca-se em segundo plano a narrativa como mero entretenimento. Em crítica ao pressuposto descritivo, o autor afirma: “[…] devem aprender a verdade, pois têm que ser preparadas para enfrentar o mundo como realmente ele é, e não serem expostas a uma versão fantasiosa de algum escritor sobre o mundo” (LIPMAN, 1995, p. 311). O autor argumenta o exposto afirmando que o pressuposto epistemológico de preferência da descrição esconde razões morais: Nas palavras de Lipman “A descrição é sensata; a narrativa é excitante. A descrição é objetiva e reservada; a narrativa é atraente e sedutora. A descrição exercita a mente; a narrativa exercita simplesmente os sentidos e a imaginação” (LIPMAN, 1995, p. 312). A moral puritana não vê com bons olhos a narrativa, a história a literatura. Assim, o autor continua seu pensamento:

A literatura faz mais que oferecer-nos outros mundos pelos quais podemos perambular. Ela nos sugere outros modos de vida e outras maneiras de pensar o mundo no qual vivem - maneiras que podem estar em desacordo com o bom senso e os costumes vigentes. A literatura nos fornece os modelos de pensamento, sentimento e ações, modelos que tememos serem sedutores para a mente da criança. Freud acertou no alvo ao chamar esta questão de conflito entre o princípio de realidade e o princípio de prazer (LIPMAN, 1995, p. 312).

O autor destaca que a organização curricular é indiferente ou mesmo resistente à utilização textual da narrativa. Narrativa e descrição são tomadas como gêneros diferentes, com objetivos diversos: “[…] para os objetivos didáticos, utilizamos a prosa descritiva; para o entretenimento, usamos a narrativa, como as histórias. Uma história que poderia servir como um texto para os fins curriculares do ensino de verdades é algo inconcebível” (LIPMAN, 1995, p. 312). Lipman considera problemática essa antinomia, uma vez que interfere no desenvolvimento de um conjunto amplo de capacidades das crianças. O autor diverge do caráter secundário dado à narrativa num currículo fragmentado e centrado em textos meramente descritivos, característicos das ciências, problema que pode ser trazido para o campo do ensino de filosofia.

A abordagem da filosofia com as crianças, por meio do texto filosófico, marcadamente descritivo, esbarra na dificuldade de suas explicações conceituais - que são altamente abstratas e técnicas. O que poderia minimizar essa dificuldade? A criação de uma narrativa, um gênero história que ficou conhecido em seus trabalhos como “novela filosófica”. No caso da filosofia é possível porque os termos familiares das crianças são tematizados nos conceitos filosóficos. Tomemos como exemplo uma de suas novelas, intitulada Pimpa em que trata do tema história com as crianças. Ao destacar a importância da noção de história afirma: “[…] as histórias exemplificam a fronteira problemática entre a verdade e o faz-de-conta” (LIPMAN, 2004, p. 5). Para o autor, a narrativa ficcional é uma possibilidade de dramatizar também a filosofia para as crianças, uma possibilidade de fazer uma filosofia alternativa a partir da própria filosofia. O mérito dessa narrativa está no fato de operar de forma cooperativa e complementar com dois componentes do pensar que são a racionalidade e a criatividade: “[…] a racionalidade e a criatividade são simplesmente a urdidura e a trama da estrutura do pensar” (LIPMAN, 1995, p. 313).

O que nos interessa explorar nesta empreitada inovadora de Lipman é sua preocupação com a dimensão filosófica-literária-psicológica da narrativa. De modo a explicitar como tais aspectos se consubstanciam nas narrativas do autor: “[…] as personagens fictícias precisam estar suficientemente delineadas para que os alunos queiram identificar-se com elas. Por outro lado, devem ser suficientemente abstratas e genéricas para que se sintam familiarizados com elas” (LIPMAN, 1995, p. 314-315).

Isso quer dizer que uma filosofia da infância requer uma narrativa própria, articulada com a tradição filosófica. Nesse caso, a narrativa tem o caráter dialógico próprio do movimento do filosofar ao longo da história - uma dialética entre problemas e argumentos. O próprio autor indica aos professores que a fonte de suas referências são os Diálogos de Platão: “[…] interessados em encontrar modelos fariam muito bem em ler os Diálogos de Platão, em que Sócrates é apresentado como um professor de filosofia, isto é, um mestre na arte de obter um diálogo produtivo” (LIPMAN; OSCANYAN; SHARP, 1994, p. 157). A maestria filosófica de Sócrates para obter um diálogo produtivo está na capacidade de criar alegorias que geram o encantamento filosófico. O que restaria dos diálogos se fossem suprimidas as metáforas? Ressaltamos que o próprio Sócrates declara ser a analogia seu gênero de discurso. No diálogo Fedro, para falar acerca da especificidade da alma, Sócrates explicita que a analogia é a alternativa dada ao ser humano para buscar a compreensão:

Expressar o que ela realmente é exigiria uma longa e minuciosa exposição que seria inteiramente a tarefa de um deus. Está, porém, ao alcance do ser humano fazer dela uma breve descrição através de uma analogia, e esse será nosso gênero de discurso. Comparemos a alma à natureza composta de uma parelha de cavalos alados e um auriga (PLATÃO, 2008, p. 58-59).

Lipman, ao declarar serem os diálogos de Platão sua fonte inspiradora, constrói, de forma analógica, suas novelas filosóficas como narrativas que se propõem dramatizar a filosofia para as crianças. A narrativa filosófica para crianças, na forma de diálogo, gira em torno de problemáticas relacionadas a conceitos que permeiam a experiência da criança. O que deve conter um texto dialógico? Para o autor, deve conter: “ambiguidades, insinuações, ironias e muitas outras qualidades que não aparecem na prosa descritiva de um livro didático, mas que as crianças examinarão cuidadosamente para tirarem algum significado” (LIPMAN, 1995, p. 314).

Essa discussão nos leva a entender a necessidade posta por Lipman, ou seja, oferecer uma narrativa com modelos de racionalidade e criatividade:

Um dos méritos das novelas do programa de Filosofia para Crianças é que oferecem modelos de diálogo, tanto entre crianças como entre crianças e adultos. São modelos (não-autoritários e não-doutrinadores, que respeitam os valores da investigação e do raciocínio,) que incentivam o desenvolvimento de modos alternativos de pensamento e imaginação, e descrevem como seria viver numa comunidade onde as crianças tivessem seus próprios interesses e se respeitassem como pessoas capazes de, às vezes, participarem de uma investigação cooperativa sem nenhuma outra razão que a satisfação que têm em fazê-la (LIPMAN; OSCANYAN; SHARP, 1994, p. 147).

A prática dialógica em uma comunidade de investigação faz surgir diferentes modelos ou estilos de pensamento latentes aos membros do grupo. Para que esses estilos possam surgir, o autor defende a necessidade de contato com a multiplicidade de modelos: “O que é extremamente benéfico para elas é estarem cercadas de modelos que valorizem o processo de investigação acima de qualquer troca dialógica específica (LIPMAN, 1995, p. 318).

A narrativa proposta por Lipman é, portanto, uma forma de criar ficcionalmente uma comunidade de investigação, sendo assim um protótipo da comunidade de crianças e professores reais. A filosofia da infância de Lipman é alimentada por uma pedagogia de comunidade de investigação, cuja experiência deve envolver empática e vitalmente os membros em um movimento cognitivo. Isso exige ações como: fazer perguntas, criar e averiguar hipóteses, pedir e dar razões, exemplos e contraexemplos, questionar os pressupostos, fazer inferências e seguir a trilha da investigação. Como modo de vida social, dialógico e cooperativo, ela requer dos estudantes a partilha de suas perspectivas. As contribuições de cada membro são submetidas à reflexão do grupo, são submetidas ao olhar e à escuta atenta do outro. A proposta consiste em colocar-se no lugar do outro, perceber novas perspectivas, ser capaz de reconstruir suas próprias ideias. Essa atividade possibilita a aquisição de habilidades cognitivas e sociais fundamentais para a vida democrática.

Apesar das limitações históricas e pedagógicas, a proposta de Lipman nos parece bastante desafiadora no que se refere ao texto filosófico para crianças. Em sua concepção existem dois mecanismos que permitem a operacionalização dos conhecimentos e informações: o conceito e o esquema. O conceito tem aspecto mais estático e mecânico, enquanto o esquema é mais dinâmico e orgânico; aquele se assemelha a um quebra-cabeças, este a uma onda, um caminho, uma aventura; um é mais linear, o outro é aberto à criação de analogias. O paradigma da organização do conceito é a explicação descritiva por meio da estruturação e categorização lógica - altamente abstrata e técnica. A atitude esperada do leitor é a ingestão de um produto refinado para uma digestão lenta do mesmo. O esforço de concentração requerido tende a exaurir as energias do leitor, o que faz com que um aluno facilmente se desencante com esta leitura. No caso da filosofia, parece bastante claro que o texto filosófico, com seu conhecido rigor descritivo é, primordialmente, dirigido à comunidade dos filósofos e não às crianças.

Por outro lado, um texto esquematicamente organizado na forma de história, traz um dinamismo próprio. O esquema, ao movimentar-se por meio de uma investigação indireta, é propulsivo, faz com que cada detalhe novo conte e acrescente algo às demais partes do todo. Desta forma, o esquema energiza, fascina e cativa o leitor, envolvendo-o no movimento crescente da narrativa. O perigo do esquema, como alerta Lipman, é seu poder manipulador (geralmente encontrado em uma propaganda). Desta forma, para evitar os desvios e responder a uma exigência filosófico-pedagógica, o autor indica a possibilidade de equilíbrio interativo no texto: “[…] o texto do futuro deve ser um equilíbrio entre o narrativo e o descritivo, também deve haver um equilíbrio entre o conceitual e o esquemático. Não menos equilibrados devem ser o crítico e o criativo” (LIPMAN, 1995, p. 320-321).

Em suma, nosso intento não é julgar se Lipman antecipou o texto do futuro em seus textos filosóficos para crianças. Pretendemos salientar um aspecto do trabalho de Lipman a partir da categorização do texto conceitual e do texto esquemático, assim desenvolver uma forma específica de narrativa esquemática ou uma forma de tratar o conceito esquematicamente, que é a metáfora.

A metáfora como esquema imagético em Paul Ricoeur (2000)

A discussão sobre metáfora nos leva à obra de Paul Ricoeur, A metáfora viva (2000). Segundo o autor, na metáfora, a imagem como esquema opera uma articulação do verbal com o não verbal e é a fonte do conceitual: “Tratada como esquema, a imagem apresenta uma dimensão verbal e, antes de ser o lugar dos perceptos desbotados ela o é das significações nascentes” (RICOUER, 2000, p. 305-306). Assim, a imagem faz emergir o sentido no jogo do confronto do semelhante com o diferente:

A metáfora surge então como o esquematismo no qual se produz a atribuição metafórica. Tal esquematismo faz da imaginação o lugar da emergência do sentido figurativo no jogo da identidade e da diferença. E a metáfora é o lugar no discurso em que esse esquematismo é visível porque identidade e diferença não são confundidas, mas afrontadas (RICOUER, 2000, p. 306).

Tal afrontamento de semelhanças e diferenças faz ver pela imagem e leva ao ato de pensar. A metáfora faz operar o paradoxo da semelhança e da diferença:

A metáfora mostra o trabalho da semelhança porque, no enunciado metafórico, a contradição literal mantém a diferença, o “mesmo” e o “diferente” não são simplesmente misturados, mas permanecem opostos. Por este traço específico, o enigma é retido no próprio coração da metáfora. Na metáfora, o “mesmo” opera apesar [sic] do “diferente” (RICOUER, 2000, p. 301).

O esquema em que opera a metáfora na junção do verbal com o não verbal, do literal com o icônico tem função educativa:

A metáfora […] é capaz, em primeiro lugar, de ampliar o vocabulário, seja ao fornecer um guia para denominar novos objetos, seja ao oferecer para os termos abstratos similitudes concretas (assim a palavra cosmos [sic], após ter significado a disposição dos cabelos ou o arreamento de um cavalo, veio a designar a ordem de um exército, depois a ordem do universo). Mas a ampliação do vocabulário é o menor dos efeitos dessa inclinação ao desenvolvimento: em virtude da semelhança, podemos operar com novas situações, e, se a metáfora nada acrescenta à descrição do mundo, pelo menos amplia nossas maneiras de sentir; é a função poética da metáfora. Esta repousa ainda sobre a semelhança, mas no nível dos sentimentos: ao simbolizar uma situação por meio de outra, a metáfora “infunde” no coração da situação simbolizada os sentimentos ligados à situação que simboliza. Nessa “transferência de sentimentos”, a semelhança entre sentimentos é induzida; na função poética a metáfora amplia o poder do duplo sentido do cognitivo ao afetivo (RICOUER, 2000, p. 291).

Enfim, a metáfora é entranhada de um elã vital que faz junção do pensar com o sentir, do “ver como” com o “pensar sobre”, do verbal com o não verbal, do mesmo com o diferente. A metáfora se apresenta como um caminho promissor para pensarmos a criação do texto para o filosofar com as crianças.

Considerações finais

Influenciados pelas diferentes contribuições destacadas durante este trabalho, o Grupo de Pesquisa “Educação filosófica e experiência democrática” buscou elaborar um material que fosse ao mesmo tempo a expressão da proposta de pensar a filosofia para crianças por meio da narrativa e a expressão dos desafios, conflitos e fragilidades do modo de vida democrático. A ideia, em um primeiro momento, foi criar formas de transcender a atividade acadêmica, marcadamente descritiva, visando proporcionar o acesso à discussão sobre democracia às crianças. Em um segundo momento, o trabalho do grupo se voltou para o desafio da criação de uma metáfora para o conceito de democracia, entendendo que a narrativa é uma forma de superar esses limites do tratamento árido dos conceitos na escola.

Deliberamos, portanto, o fato de que a narrativa metafórica adotada na elaboração do material teria como estratégia básica de construção o processo comparativo que resgata elementos das experiências comuns (conhecimentos familiares) transportando imaginativamente a outro contexto mais complexo. Assim, chegamos à conclusão de que uma das experiências mais comuns e mais ricas de que dispomos em sociedade realiza-se no lar e que esta experiência poderia ser traduzida no que chamamos de “vida na casa”. Deste modo, nossa metáfora foi ganhando corpo em torno do tema “Democracia, a casa do povo”.

Na construção do material, a casa passou a ser o ambiente metafórico para a democracia. O ambiente inspirou a criação de oito personagens cujas falas mantêm relações com os campos da reflexão filosófica da democracia e tem um perfil que reflete a função que exercem nesse contexto: Wifala (linguagem, poder da comunicação); Economário (economia e legislação, poder da ordem e da lei); Vassourita (ética, poder de criar vida boa); Lúmina (epistemologia, poder de iluminar e esclarecer); Cristalência (estética, poder da sensibilidade ao belo); Meságora (antropologia e educação); Chaverno (política, governo, mando e controle); Choncratos (ontologia, povo, trabalho).

O acontecimento que conduz a discussão é a realização de uma festa para a inauguração da casa da democracia. Este evento levanta uma série de polêmicas, dentre elas a discussão sobre a necessidade de se pensar em questões mais urgentes para a casa. O clímax da história retrata, portanto, o acontecimento em que Choncratos (o chão, a estrutura, o povo) se encontra em uma situação de penúria, suas rachaduras anunciam que a casa poderá ruir, colocando em risco a segurança e a integridade de todos. Assim, através dessas analogias em diversos episódios são tratados temas como: democracia, liberdade, justiça, poder, valores, lei, direitos, voto, educação, etc. A atividade está em construção e tem caráter experimental. Estamos conscientes de nossas inúmeras limitações quanto à escrita deste gênero, mas convictos de que a metáfora viva poderá produzir transformações cognitivas e afetivas não somente no grupo, mas nos leitores e apreciadores deste trabalho.

Diversos questionamentos e objeções poderiam ser levantados acerca da importância e validade deste trabalho, mas nos concentraremos na análise e avaliação daqueles que nos parecem mais pertinente: que compromisso um texto filosófico, do estilo aqui proposto, pode ter com a emancipação, com a transformação da sociedade, com a vida democrática? Em que medida uma discussão filosófica nos termos propostos não se converte em mero discurso ideológico, abstrato, lacunar?

Muitos educadores se veem em dificuldades quando se colocam essa questão, sobretudo por não perceberem que, para respondê-la, precisam compreender a noção de práxis pedagógica, ou seja, o complexo conjunto de procedimentos que, na união dialética teoria/prática fundem as ações fundamentais do fazer educacional, gerando um paralelismo cujo propósito é minimizar, senão eliminar a relação hierárquica de superioridade de um dos polos sobre o outro. O “saber-fluxo” que resulta desta fecunda união incorpora sem eliminar, reúne sem fragmentar. A compreensão do caráter dinâmico e fecundo da práxis pedagógica, que é um requisito básico para a análise de qualquer atividade educativa, é reivindicado também para a avaliação do nosso próprio texto filosófico.

Segundo Marx, é a vida que determina a consciência. Entendemos que a afirmação continua válida na medida em que vida é trabalho, não apenas enquanto labor físico, mas também labor intelectual, estético, moral e espiritual. Se é verdade que temos fome de pão, não é menos verdadeira a afirmação de que temos fome de conhecimento, de beleza e transcendência. Imaginar que a ação transformadora possa prescindir de qualquer destas dimensões é desconsiderar o homem em sua integridade. Somente por questões didáticas podemos (e devemos) separar para delimitar. É por esta razão que aqui discutimos apenas um dos modos de realização da educação para a liberdade. Neste texto, apresentamos uma das facetas desse processo, ou seja, a criação da narrativa filosófica sobre a democracia. A proposta deve ser vista apenas como uma das muitas atitudes a compor a tarefa da humanização através da educação, ressaltando a importância da pesquisa em grupo para realizar esse processo.

Tal produção é fruto do saber-fluxo da experiência, dinâmico e por que não contraditório que resulta da pesquisa filosófica em educação. Pesquisa é, sim, um processo metódico e racional, mas ninguém negaria que é também um conjunto de ações, atitudes, expectativas, sentimentos e paixões. É óbvio que não se faz pesquisa em filosofia da educação sem conceitos filosóficos, sem a reflexão, a radicalidade e o rigor tão característicos desta forma de conhecimento. Mas pesquisa é também um momento descontraído para o café e a conversa livre com aqueles(as) que há pouco discutíamos as angústias da prática docente. A pesquisa é também o financiamento, é a burocracia, os números, a produção; é o tempo que se perde/ganha em um sábado de manhã. Pesquisa são livros, mesas e cadeiras, a literatura, a poesia, a seriedade, mas também a descontração. Se entendemos a riqueza e a fecundidade do processo de pesquisa e produção filosófica e se entendemos que ela é feita assim mesmo, de alegrias e constrangimentos, qual a justificativa para ensinar de outro modo, privando crianças e adolescentes dessa experiência de saber/fazer/fruir/querer/valorar que a constitui?

A prática democrática como modo de vida em comunidade de investigação é sensível aos problemas comuns da vida social na medida em que não idealiza. Idealizar, nesse contexto é, como afirma Gadotti (2000, p. 5), eliminar “[…] o cotidiano, o vivido, o pessoal, a singularidade, o entorno, o acaso e outras categorias como decisão, projeto, ruído, ambiguidade, finitude, escolha, síntese, vínculo e totalidade”. Assim, consideramos em nossa narrativa, que casa (lar) não é apenas conforto, abrigo, proteção. Casa é ainda conflito, luta de interesses diversos, mesmo entre os iguais. Casa é um microcosmos porque é réplica da sociedade. É nela que vivenciamos, avaliamos e antecipamos experiências, atitudes e comportamentos.

A casa tem suas regras e hierarquias. A casa é poder e segurança, tem chave, porta, janela e portão. Na casa temos direitos e deveres, por isso às vezes também tem confusão. Na casa o conflito é inevitável, por isso nela também tem uma mesa que mais do que lugar de refeição é espaço para o diálogo, para reunião. Então na casa tem ética, tem afetividade, justiça, cuidado, limpeza, organização (a casa precisa de uma vassoura). Na casa nada funciona sem conhecimento e ponderação. As coisas precisam ficar claras, por isso a luz cumpre essa função. Se todos dialogam a informação circula. Na casa tem transparência, tem fala, linguagem, comunicação (Wifala). É muito bom saber que a casa não guarda apenas objetos, utensílios e alimentos (armário)! A casa guarda também lembranças, histórias, memórias, decoração (cristaleira). Não somente mesa, cadeira, armário e cristaleira, mas também o próprio conflito e a descontração se fazem sobre uma estrutura. Por isso, quase nos esquecemos que a casa é também tapete e parede, quase nos esquecemos que casa é também chão (povo).

O salto que a metáfora nos proporciona é pensar a democracia a partir deste contexto. Em tempos de crise da democracia como o que estamos vivendo, a metáfora nos leva a pensar que o que está em jogo é a própria casa do povo. Podemos perder a casa. E não se trata de uma tragédia ocasionada por algum fator sobre o qual não temos controle, mas resultado de escolhas. Como fazemos a casa, fazemos a democracia. Estamos passando por uma situação tão grave que não é mais apenas uma questão figurativa, como sugere a metáfora, mas é uma ameaça literal de perdermos a própria casa. Em muitos casos já é uma experiência real, que atinge a dignidade humana e nega a possibilidade de outras experiências humanizadoras.

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Recebido: 30 de Março de 2019; Aceito: 23 de Outubro de 2019

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