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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.33 no.67 Uberlândia jan./abr 2019  Epub 30-Ago-2021

https://doi.org/10.14393/revedfil.v33n67a2019-47388 

Artigos

Mal-estar na filosofia nacional Leitura estrutural: impasse e críticas

Uneasiness in National Philosophy Structural Exegesis: deadlock and criticism

Malestar en la filosofía nacional Lectura estructural: impasses y críticas

Amaro de Oliveira Fleck* 
http://orcid.org/0000-0001-7710-9141

*Doutorado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor de Filosofia na Universidade Federal de Lavras (UFLA). E-mail: amaro.fleck@dch.ufla.br


Resumo

O assim chamado “método estrutural de análise de texto” tem persistido no pensamento filosófico brasileiro, apesar das críticas recebidas e de seus sinais de esgotamento. A presente investigação pretende aventar algumas hipóteses acerca da sobrevida de tal procedimento, assim como analisar a relativa ausência de participação da filosofia no debate público nacional quando comparada tanto com a presença de áreas próximas quanto com a sua participação no debate estrangeiro.

Palavras-chave: Filosofia no Brasil; Método estrutural de análise de texto; Missão francesa; Universidade

Abstract

The so-called "structural method of textual analysis" has persisted in Brazilian philosophical thought, despite the criticisms received and its evidence of exhaustion. The present research intends to highlight some hypotheses about the survival of such procedure, as well as to analyze the relative absence of philosophy’s participation in the national public debate when compared to the presence of nearby areas and with its participation in the foreign debate.

Keywords: Philosophy in Brazil; Structural method of textual analysis; French Mission; University

Resumen

El así llamado "método estructural de análisis de texto" ha persistido en el pensamiento filosófico brasileño, a pesar de las críticas recibidas y de sus sígnales de agotamiento. La presente investigación pretende plantear algunas hipótesis sobre la supervivencia de dicho procedimiento, así como analizar la relativa ausencia de participación de la filosofía en el debate público nacional cuando se compara tanto con la presencia de áreas cercanas cuanto con su participación en el debate extranjero.

Palabras clave: Filosofía en Brasil; Método estructural de análisis de texto; Misión francesa; Universidad

Este artigo é resultado de debates ocorridos ao longo de dois semestres em que ministrei, no curso de Filosofia da Universidade Federal de Lavras, a disciplina Metodologia do Ensino em Filosofia. Agradeço aos estudantes pela valiosa interlocução, assim como aos colegas Léa Silveira, Marcelo Moreira e André Chagas por suas ponderações.

Por que a filosofia não desempenha, entre nós, o mesmo papel que ela tem alhures? Por que ela está praticamente ausente do debate público nacional? Por que sua participação na esfera pública brasileira fica muito aquém daquela das ciências sociais e do restante das humanidades? Enquanto em parte significativa do mundo as pesquisas filosóficas contemporâneas são referências nas discussões sociais relevantes sobre os mais diversos temas: desigualdades sociais, raciais, de gênero; feminismo; ciência; educação; democracia; imigração; bioética, etc.; no Brasil aqueles que lidam com filosofia seguem sendo, não somente, mas sobretudo, comentadores de textos clássicos, ausentando-se de debates nos quais estão presentes especialistas e intelectuais de áreas próximas. Pretendo, neste artigo, aventar e investigar uma hipótese capaz de responder a estas questões: a de que a ausência da filosofia no debate público, contraparte de seu refúgio no ambiente monástico da exegese textual, ao menos em parte é resultado de um vício de origem: a instalação de um modo de filosofar que tem a leitura rigorosa não apenas como meio de formação, mas também como objetivo de pesquisa. O assim chamado “Método estrutural de análise de texto” foi adotado por aqui como meio de sanar as principais deficiências do pensamento filosófico local: o filoneísmo, a ausência da leitura direta dos clássicos e a onipresença dos manuais. Os motivos e o relativo sucesso de tal empreendimento são narrados na primeira parte deste escrito. A persistência do procedimento da leitura estrutural, com sua interminável reconstrução de argumentos alheios, é o mote da segunda parte. Examino, então, o porquê da permanência desta “tradição” quando seu adversário (o assim chamado “filosofismo”, caracterizado justamente pelas deficiências recém-elencadas) já se encontrava abatido. Na terceira parte, conclusiva, traço algumas indagações sobre o estado atual da prática filosófica local, em especial sobre as propostas e as dificuldades de superação de uma tradição que já mostra claros indícios de fadiga.

1. Dificuldades de formação

A tentativa de estabelecer uma formação filosófica de excelência - desvinculada tanto da teologia e dos seminários quanto da formação bacharelesca fornecida pelas escolas de Direito - foi algo que tardou em demasia no Brasil. Demorou mais, por certo, que nos países limítrofes, por conta da ausência de universidades por aqui1. De fato, o ensino laico da filosofia só passa a ocorrer no Brasil depois da criação das primeiras universidades, na década de 1930. E o protagonismo coube ao departamento uspiano, especialmente por conta da Missão Francesa.

Não foram poucas as dificuldades enfrentadas para o estabelecimento deste ensino superior de filosofia. Os professores da Missão Francesa relatam os vícios de origem dos estudantes locais: o filoneísmo, isto é, a paixão extrema pelas últimas novidades; a verborragia com seus arroubos de erudição superficial, que fazia com que as obras fossem estimadas de acordo com seu número de páginas e quantia de referências; além do recurso ubíquo aos manuais e o pouco trato com os textos originais, com as próprias obras filosóficas clássicas2. Jean Maugüé, o professor de filosofia da referida missão, resumia assim a situação: “causa surpresa, e até indignação, observar como quase em toda parte se ensina a filosofia, sem que se leiam os filósofos” (MAUGÜÉ, 1955, p. 645).

Responsável por redigir o documento que serviu como orientação ao curso recém-criado, “o ensino da filosofia e suas diretrizes”, Maugüé compilou em cinco teses o essencial de seu programa:

  1. O ensino da filosofia deve ser pessoal, tanto da parte do professor como da parte dos estudantes. Pedem-se ao professor reflexões que empenhem a sua responsabilidade intelectual. Seria de desejar que se pedisse aos estudantes um pouco mais de personalidade.

  2. A personalidade do estudante forma-se na atenção dada às lições, sobretudo na reflexão, e mais ainda, pela leitura, lenta, contínua e meditada.

  3. A leitura deve ser uma regra de vida para o estudante. Este não deve ler naturalmente senão os bons autores. É mais seguro ler aqueles que o tempo já consagrou. A filosofia começa com o conhecimento dos clássicos.

  4. A História da filosofia deve ter, no Brasil, um lugar primordial. Ela pode ser ensinada, seguindo métodos rigorosos e perfeitamente modernos. Não há vida presente sem o conhecimento da vida passada.

  5. Enfim, o futuro da filosofia no Brasil depende da cultura que o estudante tiver adquirido anteriormente. A filosofia, segundo uma das concepções da República, de Platão, nada mais é do que o coroamento dialético de um ensino harmônico e completo (MAUGÜÉ, 1955, p. 649).

Maugüé encontrou além-mar a solução para o problema local, embora ela tivesse sido talhada para problema distinto. O “método rigoroso e perfeitamente moderno” estava então sendo criado, lá na França, para combater tanto as interpretações genéticas dos textos filosóficos, uma forma de pesquisa que tem por objetivo a descoberta de sua origem, seja ela histórica, social ou psicológica (e que não seria, por isso, propriamente filosófica), quanto as interpretações dogmáticas, as quais pecariam por não serem científicas na medida em que se posicionavam frente a questão da verdade material da doutrina examinada3. Ainda que estes adversários (a interpretação genética e a dogmática) fossem ausentes por aqui, o método era plenamente adaptável para combater os males locais, uma vez que ele ordenava a escolha de uma obra clássica como objeto de pesquisa (em vez de uma novidade), a delimitação precisa e bem circunscrita de problemas imanentes a esta obra (no lugar de uma visão panorâmica afanada de um manual qualquer e da citação aleatória de textos diversos), e, por fim, a parcimônia de ater-se à reconstrução da argumentação alheia (em vez da defesa ou da crítica das teses ali expostas). Em resumo, o método consistia no mandamento de ir ao próprio texto, de ler repetida e exaustivamente o livro investigado. É este método que passa a ser chamado de análise estrutural de textos. Mas o quê, exatamente, é isto?

Em primeiro lugar, é preciso distinguir o uso do termo em sentido estrito, no qual ele é um método ou procedimento de pesquisa; do uso em sentido amplo, em que designa uma tradição que se forma por certa proximidade a tal método ou procedimento, embora sem partilhar do conjunto de suas teses ou pressupostos. Em sentido estrito, poucos foram os pensadores brasileiros que realmente adotaram e defenderam a análise estrutural. Para tanto, eles precisaram seguir uma série de preceitos, a saber:

  1. A ênfase na história da filosofia, vista ora como meio mais adequado para a formação do filósofo, ora como o próprio objeto investigado pelo pesquisador já iniciado.

  2. A escolha de uma obra clássica e bem-acabada como objeto da pesquisa, em detrimento tanto de comparações entre distintos textos quanto de cartas, esboços, manuscritos, obras secundárias de grandes pensadores e trabalhos, ainda que principais, de filósofos não tão consagrados ou conhecidos.

  3. A recusa pelo procedimento de contextualização biográfica, histórica ou psicológica. A pesquisa filosófica em história da filosofia não deve ter a pretensão de desvelar a gênese ou as causas de uma teoria, e sim de explicitar sua estrutura e princípios. Ela busca antes mostrar o como a argumentação está construída, do que o porquê dela ter sido feita4.

  4. O desinteresse frente à questão da verdade ou falsidade da doutrina filosófica inquirida. Enquanto procedimento científico, não cabe ao comentário buscar refutar uma doutrina, mas apenas mostrar sua plausibilidade (isto é, sua coerência interna), reconstruindo-a conforme a intenção do autor. Por isso o comentário, forma literária usual do relatório de tal pesquisa, não lida com as críticas e as objeções destinadas à obra investigada, de modo que o pesquisador não deve e nem precisa se posicionar frente aos problemas analisados5.

  5. A compreensão da obra filosófica como um sistema doutrinário, geralmente compreendido como visão de mundo (Weltanschauung)6.

O que é curioso na situação filosófica nacional, por conseguinte, não é tanto a primazia da história da filosofia (em detrimento do tratamento direto dos problemas conceituais contemporâneos), mas, sobretudo, o fato de se praticar aqui uma forma muito peculiar de comentário histórico-filosófico, notadamente anti-histórico. A história da filosofia funciona como palavra de ordem que ordena ao pesquisador que ele vá ao próprio texto clássico, mas munido unicamente com as ferramentas filológicas do exegeta, e não com o aparato crítico do historiador. Cabe a ele fazer uma leitura imanente da obra investigada, o que significa que ele deve deixar de lado os conhecimentos externos (sobre a situação política, social e mesmo intelectual existente no momento de gestação das ideias inquiridas). O fundamental do comentário filosófico passa a ser, assim, ressaltar a estrutura de uma argumentação, mostrando como se avança dos princípios às teses de acordo com uma ordem de razões, uma argumentação. Com isso, se exclui a pesquisa pelas fontes e influências de alguma teoria; pela transformação de determinados conceitos durante certa época; pela comparação de teorias com alguma proximidade; pela análise das críticas e objeções que a obra em questão recebeu; pela reconstrução do debate no qual o objeto da pesquisa é uma intervenção (entre outras). A ausência de posicionamento frente ao objeto investigado, característica e deficiência do modo local de fazer pesquisa em filosofia, é antes resultado deste modo peculiar de fazer história da filosofia do que de sua simples primazia.

Ademais, ao compreender a filosofia necessariamente como um sistema doutrinário, como a fundamentação de uma visão de mundo, a análise estrutural é, por princípio, um método pouco adequado para lidar com obras não dogmáticas. É difícil imaginar como seria uma análise estrutural do pensamento de Sócrates ou da obra juvenil de Platão. E também é só por meio de contorcionismos que ela consegue trabalhar com a filosofia contemporânea, pós-crítica. Kant não pretendeu fundamentar uma nova perspectiva, mas perscrutar os limites do que pode ser conhecido. Para Hegel, a filosofia não deveria ser uma visão de mundo, mas todas. Para Marx, o importante não era construir um sistema coerente, e sim destruir um que não funciona bem. Daí que, de acordo com Paulo Arantes, Gérard Lebrun caçoava de seus colegas de departamento, assíduos no seminário Marx, por conta da pretensão de ler Marx como Guéroult lia Descartes7.

Mas estas curiosidades, características e deficiências não se devem tanto àqueles poucos pensadores que se inspiraram nos preceitos metodológicos da análise estrutural, e sim a uma cultura difusa que se consolidou em volta, e por vezes até mesmo contra, tais preceitos. Bem pode ocorrer que alguém decida estudar os manuscritos de um autor, ou mostrar a evolução de uma doutrina ou de um conceito, ou ainda não compreender uma filosofia necessariamente como visão de mundo, não obstante, alguns dos preceitos metodológicos persistem como pressupostos do esforço investigativo, a começar pela própria delimitação dos problemas a serem enfrentados. Por isso, sugiro que a análise estrutural também seja compreendida como uma tradição, como algo mais do que a simples fidelidade a uma forma de proceder.

Até mesmo porque, dentre seus defensores, adeptos e chegados, há quem argumente que a análise estrutural é um meio para se formar bons filósofos ou pesquisadores em filosofia, uma espécie de propedêutica a um filosofar futuro, e quem diga que ele já é o próprio filosofar, a finalidade a ser perseguida pela formação. Dilema que se desdobra em outro, pois se o comentário for o próprio objetivo da formação filosófica, não é exagero concluir que talvez a análise estrutural não seja simples procedimento, mas uma doutrina que trate, ao menos, do papel que cabe à filosofia ao fim de sua crise, o único filosofar possível (ou sensato) no mundo contemporâneo. Não sem ironia, Paulo Arantes comenta que a renúncia a maiores especulações e posicionamentos era assim justificada por Lebrun, em Kant e o fim da metafísica:

Ora, Lebrun estava nos ensinando que essa aparente renúncia vinha de longe e representava de fato uma conversão (que desconhecia ainda suas raízes) à condição moderna, isto é, pós-kantiana, do discurso filosófico, como se viu, incompatível com o ‘projeto delirante de uma Ciência Absoluta’. Sendo genuíno, o espírito filosófico que nossa ‘tecnologia’ parecia abafar só poderia ser ‘crítico’, mas agora em sua acepção kantiana original. Assim, não é que substituíssemos a filosofia pela filologia: a rigor, apenas tomávamos ao pé da letra (histórica) o mote kantiano interpretado por Lebrun, segundo o qual, doravante, a Crítica faria as vezes de Teoria. Quer dizer, a descoberta de um campo transcendental, ou se preferirmos, o fato de a razão pura ocupar-se antes de tudo consigo mesma, permitia à filosofia reencontrar o seu destino ante-científico, o de uma sondagem prévia (mas, no limite, definitiva) que se basta a si mesma e renuncia de vez (mas isto é um avanço) a enunciar qualquer verdade sobre tal ou qual região ontológica. Nisto cifrava-se a modernidade: de nossa parte simplesmente não podíamos deixar de atender a tal imperativo, sob pena de bisonhice imperdoável, entranhado na própria matéria filosófica, e por isso mesmo dilatávamos o espectro da crítica e fazíamos da crítica histórica, isto é, estrutural, não um sucedâneo, mas a encarnação da própria filosofia. Parecíamos filólogos desdentados quando na verdade gritávamos na órbita da revolução copernicana, anunciado a todo recém-converso à tecnologia dos sistemas: aqui, em nosso Departamento, a história da filosofia faz as vezes de filosofia (ARANTES, 1994, p. 135).

Desprovida de objetos externos, caberia à filosofia dobrar-se sobre si mesma, investigar sua própria história e desenvolvimento, tornando-se autossuficiente. Mas tal posição não é isenta de paradoxos e contradições. A história da filosofia elaborada de acordo com o cânone estrutural é em parte hegeliana, pois é na história que se revela o espírito, e em parte antihegeliana, pois não se trata de criticar de forma imanente os momentos anteriores para possibilitar o surgimento de um novo. Ao mesmo tempo, ela é em parte cartesiana, por almejar o comentário científico, resultado da análise dos elementos que compõem cada obra, e em parte anticartesiana, por considerar a história como campo primordial da pesquisa. Carlos Alberto Ribeiro de Moura denomina tal situação de esquizofrênica:

Mas, então, o que é ser ‘estruturalista’? É exigir que a história da filosofia seja relevante para a filosofia, é considerar o passado como presente e manter o interesse pela verdade. É situar-se em um horizonte filosófico pró-hegeliano e anticartesiano. Mas é também, ao mesmo tempo, exigir que a história da filosofia seja científica, é considerar o passado apenas como passado e neutralizar o verdadeiro e o falso. É situar-se em um horizonte filosófico anti-hegeliano e pró-cartesiano. Ser estruturalista é, antes de tudo, conviver com esta situação esquizofrênica (MOURA, 1988, p. 164).

2. A persistência da leitura estrutural

A tradição formada pelo método estrutural de análise de texto foi, ao menos aparentemente e por enquanto, bem-sucedida em sua batalha contra o filosofismo. As principais deficiências padecidas hoje pelo pensar acadêmico-filosófico nacional não são a de pouco contato com os textos clássicos, de excesso de abrangência, de proximidade com os manuais ou de modismo. Indício disso é o predomínio, nos melhores cursos de graduação do País, das disciplinas monográficas em detrimento das panorâmicas. Não obstante, a opinião geral parece ser a de que:

Formam-se especialistas em um autor ou na obra de um autor. E, pior, tem-se a ilusão de que estão sendo feitos trabalhos eruditos, apenas porque se aprendem algumas línguas e se pensa fazer grande filologia, quando o resultado é, na verdade, a formação de especialistas limitados com produção irrelevante (TERRA, 2010, p. 24).8

Parece claro, por conseguinte, que o sucesso frente ao primeiro adversário não resultou em uma boa formação, mas apenas na substituição dos motivos causadores da semiformação. Mas por que o método estrutural não foi abandonado quando ele deixou de ser um recurso necessário para cumprir a finalidade para a qual foi adotado?

Uma das hipóteses, que torna o problema bem mais recente, é que este modelo de pesquisa e de ensino se mostrou um recurso útil e necessário em uma nova situação, nada favorável ao florescimento de um pensamento polêmico e original, a saber: o ambiente de repressão e de censura propiciado pela instauração de um regime ditatorial no país, em 1964, e pelo seu endurecimento, depois de 1968. Nesta situação, a história da filosofia, ainda mais quando feita de acordo com o modelo francês, serve como refúgio ideal, pois até mesmo obras tidas como subversivas poderiam ser analisadas em sala de aula, uma vez que questões sobre sua verdade ou atualidade estavam, por princípio metodológico, suspensas9. Como nota Marcos Nobre10:

Desde que corretamente entendida, porém, a compilação consciente, na década de 70, dos processos de formação intelectual estabilizados desde a década de 60 foi expediente extremamente bem-sucedido na resistência aos ataques desorganizadores da ditadura militar. Desse modo, a Filosofia da USP foi capaz de manter constante o padrão de ensino e de formação de seus quadros, o que não se pode dizer dos cursos de ciências humanas em geral, excetuando-se talvez a Economia (NOBRE, 1999, p. 147).

Na investigação sobre a persistência da análise estrutural não há como subestimar sua versatilidade. Talhado para combater as interpretações genéticas e dogmáticas em ambiente francês, o procedimento mostrou-se adequado não apenas para a batalha contra o filosofismo no começo da instauração de uma filosofia acadêmica com alguma consistência, em meados do século passado, como também para a batalha contra a censura no ambiente hostil da repressão militarizada. Sua longevidade é o prêmio pela capacidade de sair-se bem em situações hostis.

Com efeito, é apenas na redemocratização que as críticas ao modo como eram conduzidos o ensino e a pesquisa em filosofia no Brasil se avolumam11. Com o fim da repressão havia novamente um ambiente propício à experimentação e ao livre debate de ideias. E, de fato, passa a existir uma variedade maior de pesquisas e metodologias adotadas a partir de então, em parte devido à consolidação de outros núcleos de pesquisas, em parte pelo fato de pesquisadores realizarem estágios em ambientes acadêmicos internacionais que não o francês. Não obstante, segue em vigência o diagnóstico da falta de originalidade, ousadia e criatividade. Ainda que o procedimento estrutural tenha recuado, o ambiente filosófico nacional segue moldado por ele.

Por que três décadas não foram suficientes para o florescimento de um ambiente marcado por pesquisas criativas e relevantes? Por que a filosofia segue ausente dos debates públicos? Minha hipótese remonta, novamente, a versatilidade do método estrutural. Outra vez ele se mostrou como uma ferramenta útil para a adaptação a um novo ambiente: uma universidade profissionalizada, marcada pelo rápido implemento de um sistema nacional de pós-graduação, por uma maior compartimentação dos saberes e por exigências de produtividade. O analista estrutural torna-se assim, se já não o era, um scholar.

3. Impasse e críticas

Cabe precisar o diagnóstico: a filosofia pouco participa dos debates públicos nacionais. Isto não quer dizer que filósofos ou professores de filosofia não apareçam com certa frequência na imprensa, ou que não façam intervenções pontuais quando a situação política exige. Há uma demanda social (sabe-se lá se causada por vontade de saber ou se por um status social diferenciado obtido pela citação de pensadores renomados) pela presença daqueles que lidam com filosofia em telejornais, cafés televisionados, colunas de diários ou revistas, seja para divulgar ideias e teorias, seja para opinar sobre assuntos pontuais. Há, portanto, alguma participação, mas em uma situação estranha. O professor de filosofia veste o traje de comentador de textos especialista na labuta e, depois do expediente, flerta com um diletantismo descompromissado e, por vezes, espetacular. O trabalhado alienado é assim simbolicamente compensado pelo engajamento esclarecido no tempo supostamente livre.

Deste modo, a participação do profissional em filosofia no debate nacional é regressiva quando comparada tanto à participação de colegas de ofício alhures quanto à contribuição local de pesquisadores de áreas próximas. A diferença está no fato de que a pesquisa, em ambos os casos, já é o engajamento esclarecido. Michel Foucault pesquisou os hospícios e fez intervenções em debates sobre a loucura; a obra de John Rawls foi fundamental para a emergência da discussão contemporânea sobre desigualdades sociais, assim como a de Judith Butler para as de gênero e diferença, e a de Jürgen Habermas para as de democracia; Angela Davis foi concomitantemente uma das grandes ativistas pelos direitos civis e uma das grandes teóricas do assunto. Não se trata de intervenções pontuais, mas de projetos de pesquisa que consumiram anos de dedicação e energia. Em todas estas situações se abandonou a figura do intelectual geral pela do específico12. Algo semelhante se passa por aqui com colegas de áreas próximas. Suas intervenções ocorrem em grande medida em debates sobre os assuntos que pesquisam. Marcelo Medeiros fala sobre desigualdade, Luiz Eduardo Soares sobre violência, André Singer sobre comportamento eleitoral, Manuela Carneiro da Cunha sobre direitos indígenas. Mas sobre o que pesquisam os filósofos? Grosso modo, até mesmo quando tratam de temas atuais e polêmicos, eles o fazem por meio do comentário de texto alheio. Por isso temos muitos especialistas em Foucault, Rawls e Habermas (infelizmente menos em Butler e Davis), ainda que quase ninguém, na filosofia, investigue diretamente a loucura, a desigualdade ou a democracia13.

A ausência de objeto externo, da pesquisa diretamente temática, não é novidade. Meu argumento aqui, precisamente, é que uma de suas causas foi a instauração de um procedimento para a pesquisa em filosofia, o método estrutural de leitura de texto, que criou uma compreensão restritiva do que é a filosofia e de qual a função daqueles que se ocupam dela nas sociedades contemporâneas. Uma função que pode ser compreendida como a de um guardião do conhecimento passado, em vez, como poderia ser o caso, da de um analista de argumentos do debate hodierno14. Esta ausência explica outra. Filósofo algum teve papel relevante no que é chamado “estudos de formação”, as obras agora já clássicas que oferecem interpretações de nossa história, literatura, economia15. Tampouco tiveram nas críticas a estas interpretações e em suas reformulações (com a exceção de Paulo Arantes, que dedicou alguma tinta a isto)16.

Se o diagnóstico acima traçado tiver alguma pertinência, é de se supor que a autoimagem do filósofo local, com seu autoproclamado rigor conceitual e minúcia de análise, seja composta pela indulgência daquele que se exime da responsabilidade sobre sua própria irrelevância. Se cabe à filosofia uma participação no debate nacional que vá além de iluminar os textos passados para usos de terceiros, é preciso alterar a compreensão que a área tem de si mesma. Ademais, a ausência no debate nacional é indício de outras mazelas: pouca originalidade nas teses e argumentações; exíguo debate com interlocutores locais nos assuntos tratados; inexistência de polêmicas e, por conseguinte, escassas tomadas de posição. Infelizmente é demasiado comum ver ainda hoje apresentações que se limitam a expor pensamentos alheios, sem acrescentar nem analisar críticas e objeções.

Concluo o raciocínio com breves considerações sobre algumas das propostas que estão sendo aventadas na literatura recente. Em discurso bastante conhecido, Oswaldo Porchat Pereira afirma que houve um “exagero historiográfico” na formação de gerações de estudantes, de modo que caberia agora compensar com uma ênfase na “investigação criativa”, entendida, sobretudo, como o debate contemporâneo sobre “às tendências principais do pensamento filosófico de nossos dias”, de modo que “a História da Filosofia, entre nós, comece a dar lugar finalmente à Filosofia” (PEREIRA, 2010, p. 24-25). Porchat sugere que os docentes de ensino superior passem a ministrar disciplinas e seminários, assim como a orientar trabalhos, sobre problemas filosóficos, em vez de apenas “sobre doutrinas filosóficas deste ou daquele autor” (PEREIRA, 2010, p. 26). Além disso, ele argumenta que os estudantes devem ser incentivados a exprimirem os “seus próprios pontos de vista sobre os assuntos tratados” (PEREIRA, 2010, p. 27). Um bom tempo depois o próprio Porchat voltou ao assunto para corrigir aqueles que interpretaram o seu manifesto como uma tentativa de deixar de lado a história da filosofia, afirmando que defendeu também “a necessidade de um estudo sério dos grandes autores” (PORCHAT, 2016, p. 8). Suas duas propostas parecem sensatas: mais estudos sobre problemas filosóficos (ainda que em detrimento de trabalhos historiográficos) e um maior cuidado com a construção de argumentos (em vez da ênfase unilateral sobre a reconstrução deles) traria ganhos à área. Porém é preciso notar que em toda conversão súbita permanece muito daquilo que é agora negado. Porchat segue compreendendo a filosofia como um corpo doutrinário ou como um ponto de vista, tal como a tradição estruturalista. Ao contrário dela, porém, ele passa a delimitar como não filosófica não apenas os comentários genéticos (que perguntam pelas causas de uma teoria), mas agora toda e qualquer história da filosofia. Assim, é como se houvesse que se decidir entre esta história da filosofia, de feição estruturalista, e a lide direta com os problemas, sem existir outras possibilidades de fazer comentários, nos quais haveria mais espaço para criatividade, polêmica e intervenção.

Desidério Murcho partilha da opinião de Porchat de que a história da filosofia não é filosofia, dando ainda menos valor a ela. Em sua opinião, os pesquisadores de filosofia buscam refúgio na história da disciplina para não terem que lidar com o caráter aberto da área (ou seja, por uma espécie de falha psicológica ou moral, por falta de coragem, em última instância), em que não há metodologias prévias reconhecidas como válidas, e, portanto, um procedimento padrão que sirva como guia, a saber: “interpretar documentos, cotejar fontes, confrontar comentadores” (MURCHO, 2008, p. 86). Sua sugestão é exigir do estudante posicionamento frente aos textos estudados, e, por conseguinte, a elaboração de respostas aos problemas tratados neles. A compreensão da filosofia que emerge do texto de Murcho difere da de Porchat, mas é igualmente restritiva: é filosófico todo o problema que não possui uma metodologia evidente para se chegar a uma resposta, ou seja, toda questão que não é nem empírica nem formal. Assim, boa parte daquilo que de melhor se produziu no século XX seria excluída da área, ainda que possam filiar-se a tradições reconhecidas como a ela pertencentes (pense-se em obras como História da Loucura, de Michel Foucault; A Personalidade Autoritária, projeto coletivo que contou com a colaboração de Theodor Adorno; ou mesmo Teoria da ação comunicativa, de Jürgen Habermas, as quais seriam consideradas como “especulação de caráter mais ou menos vagamente sociológico ou psicológico” [p. 83], ainda mais, como nos dois primeiros casos, quando utilizam o recurso a pesquisas empíricas). Mas como tal definição é antes pressuposta no artigo do que propriamente defendida, é preciso conhecer melhor os motivos que a sustentam antes de colocá-la em escrutínio.

Paulo Margutti acrescenta, às sugestões de Porchat, a necessidade de um maior conhecimento do pensamento filosófico brasileiro, pois, segundo ele, a “existência de uma autoimagem negativa a respeito da capacidade brasileira de fazer Filosofia … contribuiu não só para a adoção da pedagogia estruturalista, mas também para a permanência da mesma entre nós” (MARGUTTI, 2014, p. 407). Curiosamente, Margutti é o único a defender uma valorização explícita da produção filosófica nacional anterior à missão francesa, isto é, justamente o “filosofismo” que coube à análise estrutural combater. Tal juízo negativo seria mais um caso de pensamento colonizado, o qual deveria ser revertido quando deixássemos de apenas comentar autores estrangeiros para vermos o que de melhor produzimos. Ele afirma, inclusive, que o estudo da produção importante e independente (o que significa, aparentemente, não acadêmica) nacional diminuiria o tédio e desinteresse gerado pelos cursos em seus formatos atuais, ainda que não explique como a leitura de autores como Mário Vieira de Mello e Tobias Barreto possa gerar mais ânimo em nossos alunos do que o contato com os clássicos. Não creio, tampouco, que deixar de comentar obras estrangeiras para fazer exegese do pensamento nacional tornaria mais pertinente, criativa e original nossa produção. Pelo contrário, parece-me uma espécie de reação descabida ao processo de globalização a partir de uma revalorização conservadora do local, do autóctone.

Ainda que apresente propostas pertinentes, esta discussão pressupõe uma identidade entre história da filosofia e o método estrutural de análise de texto. Tal identidade mantém afastadas outras possibilidades, mais criativas, para lidar de modo historiográfico com os textos clássicos. Trabalhar com comparações, contraposições e desenvolvimentos históricos exigiria do pesquisador um maior posicionamento. Lidar com problemas, discutindo diferentes possibilidades de solucioná-los, faria com que houvesse mais polêmica e debate. Tentativas de atualização e aplicação de teorias passadas em debates correntes mostrariam a validade e os limites das apropriações possíveis. Não obstante, sem deixar de ter a sua história como objeto único de pesquisa, a filosofia pouco terá a contribuir para elevar a qualidade das discussões sociais.

Referências

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1Enquanto a política colonial espanhola disseminou universidades nas colônias desde o século XVI (cabe mencionar que a Universidad Nacional de San Marcos, em Lima, Perú, foi criada em 1551, assim como a Universidad Nacional Autônoma, na Cidade do México, México), o Brasil só criou uma universidade quase um século depois de sua independência, a Universidade do Rio de Janeiro (depois transformada em Universidade do Brasil e, por fim, em Universidade Federal do Rio de Janeiro), em 1920.

2“Nossos estudantes queriam saber tudo; mas, em qualquer campo que fosse, só a teoria mais recente parecia merecer-lhes a atenção. Fartos de todos os festins intelectuais do passado, que aliás só conheciam por ouvir dizer, já que não liam as obras originais, conservavam um entusiasmo sempre disponível pelos pratos novos. No caso deles, conviria falar mais de moda que de gastronomia: ideias e doutrinas não ofereciam, em seu entender, um interesse intrínseco, consideravam-nas como instrumentos de prestígio cujas primícias deviam conseguir. Partilhar uma teoria conhecida com outros equivalia a usar um vestido já visto; expunham-se a um vexame. Em compensação, praticavam uma concorrência ferrenha às custas de muitas revistas de vulgarização, periódicos sensacionalistas e compêndios, para conseguir a exclusividade do modelo mais recente no campo das ideias. Produtos selecionados dos viveiros acadêmicos, meus colegas e eu mesmo muitas vezes nos sentíamos encabulados: criados para respeitar apenas as ideias maduras, ficávamos expostos às investidas de estudantes de uma ignorância completa quanto ao passado mas cuja informação tinha sempre alguns meses de avanço em relação à nossa. No entanto, a erudição, da qual não tinham o gosto nem o método, parecia-lhes, mesmo assim, um dever; de modo que suas dissertações consistiam, qualquer que fosse o tema, numa evocação da história geral da humanidade desde os macacos antropoides, para terminar, por meio de algumas citações de Platão, Aristóteles e Comte, na paráfrase de um polígrafo enfadonho cuja obra tinha tanto mais valor na medida em que, por sua própria obscuridade, era bem possível que nenhum outro tivesse a ideia de pilhá-la” (LEVI-STRAUSS, 1996, p. 99).

3A origem do método estrutural de leitura de textos remonta aos debates ocorridos entre os neokantianos franceses (Boutroux, Brunschvicg e Bréhier) sobre a função da história da filosofia nas primeiras décadas do século XX. Salvo engano, o método recebe esta alcunha por causa de uma frase de Bréhier: “o que é essencial em um pensamento filosófico é uma certa estrutura, isto é, um certo modo de digestão espiritual, independente dos alimentos que seu tempo lhe oferece. Esta estrutura mental que pertence, por acidente, ao passado é assim, no fundo, atemporal, e é por isso que ela tem um futuro e porque nós vemos sua influência se repercutir sem um fim apreciável” (1938, p. 23). O método se consolida em escritos programáticos de Goldschmidt e Guéroult das décadas seguintes (MOURA, 1988, p. 153). É importante evitar uma aproximação descuidada do método estrutural de leitura de textos do estruturalismo, corrente de pensamento de imensa influência no pensamento francês de meados do século XX, não obstante existam pontos de contato (CROCCO, 2005.).

4“As técnicas da análise estrutural de texto, não obstante o rigor, o academicismo e as ‘finezas’ que se costumam atribuir-lhe, obedecem a normas bastante simples. Toma-se um segmento do autor, seccionado de seu contexto em pontos que indiquem uma articulação aparentemente natural (parágrafo, capítulo, passo da argumentação), e procura-se explicá-lo internamente, isto é, com os próprios recursos que ele oferece. Unicamente este segmento é colocado em tela. O contexto - assim como o restante da obra - ficam reduzidos, provisoriamente, à simples condição de gramática ou dicionário, a que se pode recorrer quando alguma exigência do texto o solicitar. O texto, nessa sua materialidade, será interrogado conceitualmente, e não tematicamente: não se procurará saber o que ele diz - muito menos o que o autor quis dizer - mas como ele funciona; não os conhecimentos ou informações de que ele seria ‘veículo’ - eventualmente, a respeito do ‘pensamento do autor’ - mas o que acontece nele. Uma etapa posterior, e bem distinta, que pressupõe o término dessa primeira abordagem aparentemente formal - é o comentário, em que então se discutirão as ideias construídas pelo texto que foi analisado e suas implicações mais gerais” (TORRES FILHO, 2004, p. 138-139).

5Guéroult é ainda mais radical: enquanto a ciência adquire verdades, de modo que só a teoria mais recente importa; a filosofia não as adquire, de modo que qualquer sistema filosófico é igualmente plausível. Nesta tese fica clara a compreensão de que cada sistema filosófico é compreendido como uma mônada, de modo que não apenas não há progresso, mas sequer um desenvolvimento nos problemas, um vínculo entre as teorias (por exemplo, o fato de a crítica kantiana lidar com o racionalismo e o empirismo; e que teorias racionalistas e empiristas posteriores a ela tornam-se mais complexas justamente pela necessidade de responder às objeções postas).

6Este conjunto de preceitos aparece, de forma dispersa, em Goldschmidt (1963) e Guéroult (1968).

7“Começaram a ler O Capital como Gueroult ou Goldschmidt explicavam Platão ou Descartes - neste despropósito consistiu justamente a revelação -, um método talhado para o andamento linear da teoria tradicional mostrava-se capaz de fazer falar o seu contrário, uma técnica suspensiva a serviço de um pensamento que proíbe a separação de conhecimento e interesse, discurso e contexto prático” (ARANTES, 1994, p. 241).

8Ou, nas palavras de Margutti, “continuamos a fazer pesquisas concentradas em um único tema num único autor e nossas teses de doutorado pecam pela pouca originalidade” (2014, p. 399).

9Não obstante considero imprecisa e inadequada a afirmação de Margutti de que “não foi sem razão que o golpe de 1964 deixou os professores do Departamento de Filosofia da USP em paz, uma vez que não havia nada em seus trabalhos que pudesse despertar as suspeitas dos censores da época” (MARGUTTI, 2014, p. 402). Nunca é demais lembrar que dos quatro principais personagens que se tornavam protagonistas em tal Departamento na época (Giannotti, Prado Junior, Fausto e Porchat) apenas Porchat (justamente o maior defensor, dentre eles, da abordagem estrutural) seguiu ensinando depois do endurecimento do regime militar.

10Cabe notar que tanto Nobre (1999) quanto Terra (2010) discordam, ao menos em parte, do diagnóstico feito aqui. Ambos os autores parecem não ver maiores problemas na linha seguida pelo departamento de Filosofia da USP antes do golpe militar, ressaltando a fecundidade dos consórcios estabelecidos com outras áreas do conhecimento. Assim, Nobre, por exemplo, afirma que “a Filosofia da USP sempre compensou sua relativa indigência com matéria que lhe era fornecida pelos desenvolvimentos das ciências e das artes. Com isso, ganhava corpo e ao mesmo tempo podia fornecer a sociólogos, economistas, teóricos e críticos de arte, antropólogos, historiadores e politicólogos uma perspectiva conceitual que, no mínimo, abria novos horizontes” (1999, p. 138). Seria bom, no entanto, que este reconhecimento da contribuição da filosofia para estas outras áreas partisse de seus teóricos, a fim de evitar o autoengano em forma de autoelogio.

11O livro de Paulo Arantes (publicado em 1994, mas reunindo artigos escritos ao longo dos anos 1980) é, talvez, o marco decisivo.

12A diferenciação dos tipos é analisada por Francis Wolff em “Dilema dos intelectuais” (2006, p. 61-63). O intelectual geral seria aquele que, como Sartre, abandonaria seus objetos de pesquisa particulares e falaria acerca de qualquer assunto em nome de valores coletivos. Já o intelectual específico se caracteriza, como Foucault, por tratar de pontos precisos e situados a partir de sua condição de perito no assunto. Cabe notar que o próprio Wolff não defende uma posição em detrimento da outra, mas as apresenta como uma espécie de antinomia insolúvel intrínseca à posição do intelectual contemporâneo.

13Gisleine Aver mostra este predomínio, em sua dissertação Das ruas à academia: por onde anda o filósofo? (2013), por meio de um exame detalhado dos resumos das apresentações ocorridas nos encontros da ANPOF.

14Um dos indícios do descolamento da filosofia da realidade nacional é o fato de o maior encontro da filosofia, a ANPOF, ocorrer bianualmente sempre durante o período eleitoral (ou imediatamente antes, ou imediatamente depois). Como o que é debatido lá é, sobretudo, minúcias exegéticas, ainda que muito interessantes e pertinentes, fica clara a ausência de pretensão da comunidade filosófica em debater o destino das políticas públicas no momento em que tal discussão ocorre em sua máxima intensidade.

15“O ponto é o seguinte: restringindo a comparação tão só às obras produzidas e publicadas de 1930 até 1960, à luz de sua relevância e originalidade, a conclusão é que disciplinas como a História, a Economia e a Sociologia brasileiras já tinham suas glórias e a Filosofia nacional não contava com uma só, de sorte que a situação não poderia ser mais desfavorável àquela que seria a mãe das ciências, inclusive das ciências humanas e sociais” (DOMINGUES, 2017, p. 394). A extensão do período para as décadas seguintes (1960-2018) aumenta o contraste das glórias das áreas próximas frente aos feitos da filosofia.

16Marcos Nobre encontra, escavando nas entrelinhas de Trabalho e reflexão, de Giannotti, uma contribuição sofisticada para o debate entre as categorias de arcaico e moderno que pautaram as discussões do paradigma da formação e de suas reformulações (GIANNOTTI, 2012, p. 27). Infelizmente os interlocutores daquela discussão não tiveram o mesmo empenho.

Recebido: 16 de Março de 2019; Aceito: 19 de Junho de 2019

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