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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.33 no.67 Uberlândia jan./abr 2019  Epub 30-Ago-2021

https://doi.org/10.14393/revedfil.v33n67a2019-46682 

Artigos

Um preâmbulo ao curso O poder psiquiátrico: o problema da antipsiquiatria em Foucault (ou a genealogia de uma a-historicidade)

A preamble to the course Psychiatric power: the problem of anti-psychiatry in Foucault (or the genealogy of an a-historicity)

Un Préambule au cours Le pouvoir psychiatrique: le problème de l'antipsychiatrie chez Foucault (ou la généalogie d'une a-historicité)

Carlos Eduardo Ribeiro* 
http://orcid.org/0000-0002-0308-0558

*Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Professor de Filosofia Contemporânea da Universidade Federal do ABC (UFABC). E-mail: c.ribeiro@ufabc.edu.br


Resumo

Como um preâmbulo à leitura de O poder psiquiátrico, o artigo discute como a questão da antipsiquiatria deve ser a chave de leitura do curso dado por Foucault entre 1973-1974 no Collège de France. A antipsiquiatria está associada ao paradoxo que constituiu o saber psiquiátrico segundo o qual, ao procurar determinar a doença mental, o poder psiquiátrico eliminou o sofrimento real do indivíduo adoecido. O poder psiquiátrico teria como sua tese mais básica a proposta de que sobre o campo psiquiátrico é necessário fazer a genealogia desta forma de a-historicidade. Para tanto recorremos a textos, de certo modo, externos ao curso nos quais o tema se apresenta mais especificamente desenvolvido: a conferência História da loucura e antipsiquiatria (proferida em maio de 1973) e o resumo do curso.

Palavras-chave: Poder; Genealogia; Foucault; Antipsiquiatria

Abstract

As a preamble to the reading of Psychiatric Power, the article discusses how the question of anti-psychiatry should be the key to reading the course given by Foucault between 1973-1974 at the Collège de France. Antipsychiatry is associated with the paradox that constituted the psychiatric knowledge according to which, in seeking to determine mental illness, psychiatric power eliminated the actual suffering of the sick person. Psychiatric power would have as its most basic thesis the proposition that on the psychiatric field it is necessary to make the genealogy of this form of a-historicity. In order to do this we have turned to texts, to a certain extent, external to the course in which the theme is more specifically developed: the conference History of madness and anti-psychiatry (pronounced May 1973) and the summary of the course itself.

Keywords: Power; Genealogy; Foucault; Antipsychiatry

Résumé

En préambule à la lecture de Le pouvoir Psychiatrique, cet article explique en quoi la question de l’antipsychiatrie devrait être la clé de lecture du cours donné par Foucault de 1973 à 1974 au Collège de France. L’antipsychiatrie est associée au paradoxe qui a constitué le savoir psychiatrique, selon lequel, en cherchant à déterminer la maladie mentale, le pouvoir psychiatrique éliminait la souffrance réelle du malade. Le pouvoir psychiatrique aurait comme thèse centrale la proposition selon laquelle, dans le domaine psychiatrique, il est nécessaire de faire la généalogie de cette forme de a-historicité. À cette fin, nous avons recours à des textes, dans une certaine mesure, extérieurs au cours dans lequel le thème est plus spécifiquement développé: la conférence Histoire de la folie et de l'antipsychiatrie (prononcée en mai 1973) et le résumé du cours.

Mots-clés: Pouvoir; Généalogie; Foucault; Antipsychiatrie

Introdução

Segundo Foucault, a antipsiquiatria é um fenômeno que atravessa a constituição do campo psiquiátrico, é um traço inerente à constituição deste saber que foi sancionado na cena dos histéricos teatralizada por Charcot na Salpêtrière. Como um preâmbulo à leitura de O poder psiquiátrico, pretendo discutir os principais aspectos de como a questão da antipsiquiatria deve ser a chave de leitura do curso dado por Foucault entre 1973-1974 no Collège de France. O principal aspecto a ser destacado é o fato de Foucault revelar a antipsiquiatria como a genealogia de um poder que, para constituir-se como domínio de saber, precisou elidir paradoxalmente o sofrimento real do indivíduo adoecido. O poder psiquiátrico teria como sua proposta crítica mais básica a tese segundo a qual o campo psiquiátrico procedeu de práticas que organizaram um a-historicidade do patológico. A novidade do curso dado por Foucault no Collège de France entre os anos 1973-1974 merece, portanto, ser destacada porque ele nem é uma história da psiquiatria, nem uma avaliação crítica do saber psiquiátrico em termos de um estudo epistemológico de uma das ciências médicas mais recentes. Na realidade, o curso é a genealogia de uma a-historicidade revelada pela antipsiquiatria tal como Foucault a compreende. Irei retomar de modo não exaustivo o curso O poder psiquiátrico, uma conferência de Foucault de maio de 1973 e o resumo do curo. Por isso, não se trata de desenvolver exaustivamente os temas do curso em referência, ao longo daquelas aulas entre 1973-1974, senão mostrar a perspectiva geral sob a qual nele se desenvolve uma prática particular de história da psiquiatria.

A verdade da doença moderna

Quando estudamos um pensador que se engajou fortemente em lutas políticas de sua própria época, como foi o caso de Foucault, é tentador ver-se abrir um paralelismo entre a militância e a produção intelectual, o que seria uma flagrante contradição em Foucault, se considerarmos que ele próprio mostrou como a função-sujeito tem na função-autor um caso exemplar da monarquia enfadonha do sujeito (FOUCAULT, 2005, p. 61; 2001a. p. 817-848). Nada producente, pois, procurar gradear o militante no seu pensamento ou entornar este no cadinho das lutas nas quais Foucault-militante se instalou. Conforme um tipo de militância política de causas específicas plausíveis com a opção do intelectual específico, talvez os mais exemplares e conhecidos casos de engajamentos de Foucault tenham sido o movimento pela informação de prisioneiros na década de 1970 na França (o famoso GIP - groupe d’information sur les prisons), a relação com os movimentos de liberação pós 1968, sobretudo a partir de 1979 no diálogo e na intervenção em grupos específicos e, finalmente, bem menos evidente, como veremos, o engajamento teórico-político de Foucault nos movimentos de antipsiquiatria/despsiquiatrização, sobretudo, tendo em vista as experiências dos anglo-saxônicos e dos italianos.1

A contemporaneidade deste curso não está apenas em lidar com o evidente dado de contexto sobre o qual Foucault nutre interesse direto a saber, os movimentos de antipsiquiatrização que vemos pulular no século XX. Antes de tudo, a contemporaneidade que se realiza como experiência nestas aulas de Foucault está no fato de que este curso, autêntico embate contra a psiquiatria e contra a despsiquiatrização, figura-se como resposta histórica original.2

Com efeito, o curso que Foucault dá entre os anos de 1973-1974 não tem como tema principal a psiquiatria como campo de conhecimento, nem enfatiza as instituições psiquiátricas, sequer a loucura se apresenta como o tema definidor das aulas deste ano no Collège de France. O leitor destas aulas deve estar atento ao fato de Foucault problematizar a loucura, no decurso da psiquiatria entre os séculos XVIII-XIX, como um saber que nasce inteiramente como práticas de poderes estabelecidas entre o médico e doente metal, ou aquilo que definira tais relações. Talvez tenha sido o caso mais explícito em Foucault no qual o saber, domínio arqueológico enquanto dimensão local do discurso e regime de verdade, procede de relações de embate muito estritas entre o corpo do médico e o corpo do doente mental. O tema, assim, é propriamente o da medicina mental, ou melhor, é o presente desta experiência que está em foco para Foucault à medida que, como se verá, as formas de antipsiquiatria proliferando nos anos 1970, propiciou a ocasião para Foucault oferecer sua genealogia do poder psiquiátrico. Dispenso-me da tarefa de detalhar, no percurso do próprio pensador, o lugar deste curso que, entre outras demandas, tem resumidamente uma dupla situação.3

Em primeiro lugar, o curso é um grande acerto de contas com História da loucura no sentido de dar continuidade à análise do percurso da medicina mental no século XIX adentro. Podemos dizer que, se não há uma continuidade temático global com História da loucura, Foucault fará todo um trabalho de desdobramento analítico do poder sobre o mesmo arquivo já estudado, a loucura e que, doravante, avançará cronologicamente para o século XIX, para o nascimento do asilo psiquiátrico. São as minúcias das relações disciplinares constituintes do poder psiquiátrico que interessa ao professor Foucault. Daí em segunda lugar, a trama conceitual nova do curso: Foucault propõe uma revisão de certas noções utilizadas anteriormente e que naquele momento, em pleno desenvolvimento de todo arsenal ligado ao poder disciplinar (posto explicitamente desde a Vontade de Saber), foi preciso situá-las como novo plano de trabalho.4 Trata-se em Foucault da típica forma de estruturar a analítica do poder que, nos anos 1970, aparece no intuito de estudar a concretude do poder. Esta proposta nasce incialmente ligada ao interesse do pensador pelas formas jurídicas (especialmente, na punição moderna, a forma da periculosidade) e, no campo da medicina mental, pelo campo psi (e aqui poderíamos destacar a ideia de função-sujeito original de O poder psiquiátrico) (CHAVES, 2017).

De todo modo, embora seja certo que Foucault promove, nos anos 1970, o que alguns comentadores chamaram de a guinada para a genealogia do poder sobre a qual muita tinta correu (guinada explícita e inegável no curso de 1973-1974, expressa no termo microfísica do poder que se tornaria adagial para a posteridade), é preciso explorar um nível de problematização outro no qual Foucault está a lidar como uma questão levantada pelo presente. Um modo bastante direto de delimitar esta questão levantada pelo presente é retomarmos o resumo do curso e uma conferência correlata ao curso de maio de 1973.5

Tomo, então, o resumo de O poder psiquiátrico. Foucault começa referindo-se à crise histórico-política pela qual passam “a medicina, a psiquiatria, a justiça penal, a criminologia (FOUCAULT, 2009, p. 439). Algo de novo ocorre com estes campos que ele identifica como sendo a crise destas “disciplinas” (e as aspas são de Foucault, certamente para indicar que não são propriamente disciplinas, mas campos discursivos de poderes que operam nesta divisão sujeito-objeto). Crise que não é tomada, entrementes, como crise epistemológica enquanto um conflito interno destes conhecimentos pelo qual estariam passando no esforço de assegurarem normas e provas do conhecimento. Diferentemente, a crise está ligada ao modo pelo qual se determina a norma sujeito-objeto. Afirma o pensador, “ela interroga as relações entre as estruturas econômicas e políticas de nossa sociedade e o conhecimento (não em seus conteúdos verdadeiros e falsos, mas em suas funções de poder-saber)” (FOUCAULT, 2006, p. 439).

O leitor especializado de Foucault não verá novidade na afirmação que, se relacionado ao que se vem construindo nos cursos anteriores, de fato, nada deve surpreender. Porém, este início do resumo pode ser visto com mais novidade se o colocarmos em diálogo com outro texto. Um pouco antes do início das aulas do ano de 1973-1974, precisamente em 9 de maio de 1973, Foucault pronuncia a conferência História da loucura e antipsiquiatria dentro do colóquio intitulado É preciso internar os psiquiatras? promovido por Henri F. Ellenberger em Québec.6 É perceptível que esta conferência guarda grande similaridade com o resumo do curso que Foucault faria então ao fim daquele curso no Collège de France. Nesta conferência, o ponto de vista assumido por Foucault é curiosamente próximo de uma história do Mesmo de As palavras e as coisas conforme a qual, como etnólogo da nossa própria cultura, ele desconfia dos procedimentos que a verdade fora produzida no ocidente europeu. Ponto de vista etnológico, diz ele, em que a verdade se produz como uma geografia cultural no ocidente, a depender, portanto, dos ritos, dos modos e das técnicas que constituíram um regime verdade. Etnologia que também recorre, continua o filósofo, a uma cronologia da verdade como se, então, ela estivesse na dependência de um momento de aparição no tempo.

O que vemos ressoar nestas palavras iniciais é a divisão sujeito-objeto em medicina de que fala Foucault no início do resumo do curso. Percepção que, como sabemos, já é tema de O nascimento da clínica (SINDING, 1992). Foucault está procurando analisar, no fundo, a questão da verdade na formação da doença desde a noção de crise. A divisão sujeito-objeto é a divisão que conceitua a verdade da doença. A crise é o termo mesmo que define a verdade da doença. É como se Foucault se perguntasse: o que define hoje a verdade de uma doença, neste caso, a doença mental já que a noção de crise sempre a definiu de algum modo, colocando um objeto e definindo um sujeito? Tanto é assim que, exemplificando de que modo a crise na medicina hipocrática definia a verdade da doença, Foucault assinala como o tempo transcorrido da doença, para os gregos, é o momento em que vida e morte se encaram. O momento formador da verdade da doença é krisis, isto é, o momento oportuno no qual a doença se mostra em sua verdade inegável e sob a qual é preciso que se decida algo a respeito. A crise, ápice do transcurso do patológico e momento de escolha, corresponde ao instante mesmo de sua verdade no qual o médico deve agir como organizador da doença:

(…) o papel do médico em relação à crise não era de ser o que, de algum modo, intervinha e a desatava, senão ele era antes o organizador, aquele que, ao lado da crise, paralelamente a ela a espreitava, a apoiava, a sustentava, a favorecia por certo número de artifícios, por certo número de técnicas, quase de encantações, ele permitia que crise fosse o momento em que a verdade ia produzir-se (FOUCAULT, 2011, p. 95-96).

Ao que tudo indica, quando Foucault denomina, nas linhas iniciais do resumo do curso, que a crise da forma sujeito-objeto é uma crise de saber-poder, é porque tinha em mente que, a partir de Pasteur, surge um novo modo de entender a verdade da doença na medicina. Modo bastante diverso, digamos, daquela verdade hipocrática da doença em que o sujeito da doença e quem a determina não estão propriamente cindidos. O modelo pasteuriano, como se sabe, vem substituir a hospitalização. Esta que, ainda em parentesco com uma percepção da doença que se desenvolve aos olhos do médico, requisita o par médico-paciente como relação essencial (divisória) dentro do hospital.

Foucault fala, assim, em termos de uma ferida narcísica causada sobre a função do médico para definir a doença depois de Pasteur. Segundo Foucault, este imprimiu uma ferida narcísica sobre a medicina do patológico porque se verificou que a doença não só é um fenômeno que pode dispensar a hospitalização para ser apreendida, como o médico poderia ser, na verdade, o agente causador da doença ao visitar os leitos. Até o século XVIII, a realidade possível da doença era a hospitalização, fenômeno no qual se conjugavam dois outros implicados. Por um lado, dar livre curso à doença para que ela se desenvolvesse em sua verdade e se produzisse efetivamente como doença e, por outro, configuração de um lugar botânico e alquímico para o conhecimento do patológico. Em outros termos, hospitalizar era tanto acolher a doença para que seguisse, enfim, seu curso racional, como também era a formação de um espaço com valor de conhecimento e prova sobre o fenômeno patológico. Logo, ferida narcísica porque o patológico pode agora prescindir da autoridade médica: ele não mais administra, não decifra o patológico em sua consciência, tampouco pode controlar a relação de conhecimento que daí se deriva.

Seria possível explorar este dado em relação a outro escrito de. Quem lê O Nascimento da clínica (2004) percebe que, neste ponto, Foucault dá continuidade não só à História da Loucura, mas a história da doença em geral na clínica moderna. Embora não tenhamos desenvolvida esta outra história no curso de 1973-1974, podemos aventar: a crise instaurada por Pasteur é também a inversão do regime de visibilidade própria da anatomoclínica. Nela um ver-saber, segundo a consciência médica, definia a cena do patológico. Ora, esta cena com Pasteur se interioriza para o laboratório, se dissipa aos olhos do clínico como consciência que opera sintomas e vai se alojar na técnica que, desde então, passa a definir o agente bacteriano como nova objetividade clínica. No século XX uma clínica definida como patologia clínica é aquela que surgirá diagnosticando doenças laboratorialmente, redefinindo a vida normal, segundo novos padrões até hoje ligados aos métodos e processos químicos, bacteriológicos, imunológicos. Foucault alude a esta possibilidade quando afirma na conferência de 1973 que, diferentemente dos psiquiatras, os médicos puderam curar sua ferida narcísica, causada por Pasteur, contando-a “ao nível da tecnoestrutura, da proveta e do laboratório” (FOUCAULT, 2011, p. 99). Ora, que não menosprezemos como este recente domínio montará toda uma nova medicina do espaço social ligada ao controle técnico-estatístico da doença, especialmente pós identificação do vírus do HIV e da formulação do que chamamos de epidemia de AIDS.

A psiquiatria, uma questão de poder

A novidade que, de todo modo, quero acentuar e que está presente nos textos em interlocução seria a seguinte. A esta crise da medicina geral na qual o médico “perde” seu poder corresponde um processo inverso na medicina psiquiátrica. No fundo, Foucault está organizando um grande argumento histórico (que nem sempre é tão perceptível como pressuposto de leitura das aulas de O poder psiquiátrico7) conforme o qual coloca em paralelo, no que tange à produção da verdade da doença, o decréscimo da hospitalização na medicina geral, desde o século XIX, e a majoração da doença mental como relação própria do (e no) hospital psiquiátrico. Se a função médica outrora destacada de objetivação do saber patológico decai no século XIX em diante, é o exato contrário que ocorre com este novo personagem da medicina do psi, o psiquiatra. Ele será o realizador da doença que está diante da figura desse outro personagem correlato que dele dependerá, o doente mental. O paciente vai assumindo um estranho papel de cúmplice que deixa se conduzir pelo hipnotizador, mas que, como garante Foucault em diversas análises das aulas do curso, resiste já que possui um sobre poder em relação ao sobre poder do psiquiatra (FOUCAULT, 2006, p. 350). Foucault qualifica tal situação como sendo os “efeitos paradoxais do sobre poder psiquiátrico” cujo esquema é o médico tendo o poder de pedir sintomas e o paciente, de dá-los sob um regime de contra controle do que decide oferecer (FOUCAULT, 2006, p. 450).

Foucault enfatiza em seu resumo e na conferência de 1973, em suma, que a medicina psiquiátrica é como o negativo da medicina geral no que diz respeito à função de realidade que caberá ao médico e, por consequência, teremos uma profunda alteração do que viria a verdade da doença. Nas práticas psiquiátricas antes do século XVIII, a loucura estava localizada como forma do erro ou da ilusão. Foucault faz perceber que a internação propriamente dita não era um recurso amplamente disponível, utilizada apenas nas formas perigosas ou extremadas da loucura. Discorrerá Foucault, a esse propósito, sobre as terapêuticas de espaço aberto de retorno à natureza ou aquelas ligadas à necessidade de desfazer a ilusão recriando, para tanto, uma ilusão maior. Pela teatralização, por exemplo, a verdade da doença para o enfermo se restabelecia: “O hospital era o jardim botânico do mal; e era, se quiserem, o herbário vivo dos doentes (FOUCAULT, 2011, p. 97-98). O psiquiatra, mestre da realidade da doença mental, vai desempenhar esta função cara ao internamento moderno na qual a loucura é vista sob o horizonte, não mais do erro, mas da conduta regular ou normal: no “hospital de Esquirol ou de Charcot, a função “produção de verdade” se hipertrofia, se exalta em torno do personagem do médico. E isso num jogo em que o que está na berlinda é o superpoder do médico” (FOUCAULT, 2006, p. 446).

Curar-se da doença mental não será mais, portanto, um retorno do erro à verdade, mas um retorno da conduta anormal ao padrão regular, da perturbação do comportamento à sanidade comportamental. Todo esforço de Foucault em O poder psiquiátrico é o de mostrar, que desde de certas práticas psiquiátricas do século fim do XVIII, o médico é quem conduz este retorno feliz à normalidade (comporta)mental ao enfrentar esta alteridade subjetiva em formação, o doente mental. Daí que a hospitalização propriamente psiquiátrica passa a ser compreendida por Foucault como a cena de enfrentamento originária destas práticas.

Que se destaque, sobre isso, como o pensador é extremamente sagaz ao tomar a cena de cura do rei Jorge III, ao mesmo tempo, como emergência e procedência do discurso psiquiátrico, praticando uma genealogia com ênfases que escolheu dar. Cena tomada de um relato de Pinel no seu Tratado médico-filosófico, ela é tema da segunda aula de O poder psiquiátrico (14 de novembro de 1973). Esta lição funciona, ao lado da conferência de maio de 1973 e do resumo do curso, como chave de leitura de todo o curso: a cena de cura do rei Jorge III como a primeira prática que rompe com as práticas protopsiquiátrica desde a qual se seguirão tantas outras cenas de cura disciplinares. Na verdade, uma cena de enfrentamento em que o rei, em descoroação, é enquadrado, em seu corpo furioso, nas práticas disciplinares do corpo médico; corpo contido, forte e capaz de reintegrar a ordem. A psiquiatria não é, em seu nascimento, um quadro explicativo da doença mental. A psiquiatria faz parte de um arranjo de enfrentamentos na qual impera “um esquema prescritivo de regularidades” para que se torne possível a objetividade do olhar médico, sua observação precisa e também para que seja viável a própria “operação terapêutica” (FOUCAULT, 2006, p. 4-5).

Antipsiquiatrias e despsiquiatrização: a disputa pela realidade

Caracterizando um processo invertido em relação à medicina geral, Foucault vai situando o germe do que entende por antipsiquiatrias, no plural (FOUCAULT, 2011, p. 95). Perspicaz, na conferência de 1973 em Quebéc, Foucault se apresenta dizendo que não é psiquiatra, nem antipsiquiatra, mas sim um historiador. Ora, todos sabiam quem era Foucault àquela altura e sua reserva, vai além de uma tentativa de simpatia. Explicar que não desempenhava nem um papel, nem outro serviu para enfeixar sua história da psiquiatria e o presente original que se lhe manifestava, quero dizer, como experiência de contemporaneidade.

De qual contemporaneidade?

A hipótese que eu desejaria seguir em frente é esta: parece-me que a crise foi aberta e, por conseguinte, a idade da antipsiquiatria começou quando se teve a suspeita, e logo a certeza, de que o grande mestre da loucura, aquele que fazia aparecer e desaparecer a loucura, Charcot, era aquele que não produzia a verdade da doença, mas que fabricava em seu artifício. O dia em que se descobriu que Charcot fabricava conforme estas famosas grandes crises de histeria, percebeu-se que La Salpêtrière não era o lugar onde se realizava a justa da razão e da loucura, mas onde se fabricava, por obscuras relações de poder, algo que devia seduzir de tal modo o médico e que era a crise da mulher histérica. Pois bem! Nesse dia, eu penso, começou uma crise que devia levar à antipsiquiatria (FOUCAULT, 2011, p. 99, grifos meus).

A contemporaneidade da análise de Foucault está em perceber que a grande cena de embate a qual pertence a psiquiatria é uma cena que se reatualiza como procedimento de permanente invenção da doença mental. O teatro de Charcot é o cume de um embate, a se repetir indefinidamente, travado entre a vontade do psiquiatra e a do louco numa cena de choque na qual dois resultados se produzem. Primeiro resultado: o aparecimento da vontade do doente mental na forma da insubmissão frente à retidão da vontade do psiquiatra. Como podemos depreender da descrição das cenas de curas psiquiátricas em O poder psiquiátrico, o surgimento da histeria como forma maciça da cura dependeu da formulação prévia de uma vontade perturbada, insubmissa que coloca o comportamento como certa vontade a solicitar um retorno à normalidade. É como se Foucault tivesse em mente o seguinte: o psiquiatra está, de antemão, diante de uma força insubmissa que impele o controle médico, que desperta sua vontade de controle. Segundo resultado: esta luta se organiza de tal modo que deverá ser bem travada, isto é, deverá haver algum grau de cura, deverá se produzir algum como prática reguladora. A luta em que a vontade reta vence é sinônimo da cura da insubmissão cura como submissão da vontade desregrada: “Charcot, taumaturgo da histeria, é certamente o personagem mais altamente simbólico deste tipo de funcionamento” (FOUCAULT, 2006, p. 446).

Sobre o inesgotável arquivo da loucura ocidental, poderíamos chamar este funcionamento de o momento psiquiatrizado da loucura, ritualizado na Salpêtrière. Psiquiatrizado porque finalmente há a descoberta de um acesso direto ao corpo do doente mental. Os resultados destes laços entre ele e o psiquiatra amarram, como nenhuma outra medicina antes pode amarrar, o médico, a sua vontade com a vontade do paciente cujo ponto de apreensão, a um só tempo de controle e cura, é o comportamento. Na impossibilidade de detalhar as provas de arquivo que Foucault dá ao longo do curso a esse respeito (que se destaquem as aulas dos dias 12 e 19 de dezembro de 1973 e 09 e 23 de janeiro de 1974), o fenômeno da histeria e seu fenômeno correlato, o da simulação, constituem o ponto alto desta história de uma prática divisora do sujeito doente mental.

Em face deste posicionamento, segundo o qual a psiquiatria é atravessada pela antipsiquiatria como um dado de sua própria história (na denominação do filósofo, atravessada pelo “traumatismo Charcot”), como Foucault encara os movimentos antipisquiátricos associados a nomes como os de Berheim, Laing, Basaglia entre outros? Entende que “o que sempre esteve em questão foi a maneira como o poder do médico estava implicado na verdade do que ele dizia e, inversamente, a maneira como esta podia ser forjada e comprometida por seu poder”. As antipsiquiatrias nascem como fenômeno interno à psiquiatria, como a desconfiança, sob diferentes versões, posta contra este saber determinado pela prática de divisão do doente mental. Desconfiança segundo a qual o médico psiquiatra é o equivalente do antigo médico no hospital da medicina geral, isto é, aquele que, em vez de curar, produzia a doença. Assim sendo, Foucault só pode concluir que as reformas psiquiátricas são tentativas de desmascarar, eliminar, anular este poder do psiquiatra de realizar a doença no hospital (FOUCAULT, 2006, p. 448; 2011, p. 100).

No intuito de fazer um balanço entre o que aparece no resumo do curso de 1973-1974 e a conferência de 1973, irei nomear e brevemente conceituar os dois processos distintos que Foucault reconhece como sendo dois fenômenos diferentes dentro da genealogia da psiquiatria: os movimentos de despsiquiatrização e os movimentos de antipsiquiatrias. Em geral, despsiquiatrizar é, para Foucault, refundar o dispositivo psiquiátrico porque nesta tentativa se conservaria alguma relação de poder entre médico e doente; as antipsiquiatrias, contrariamente, pretenderam suspender tais relações. Mas, na conferência de 1973, antes do início do curso, as formas de despsiquiatrização estão inseridas todas como quatro formas de antipsiquiatrias. Assim, a diferença entre os dois movimentos (despsiquiatrização e antipsiquiatria) não existia na conferência, pertencendo, como resultado, ao curso de 1973-1974.

Na conferência História da loucura e antipsiquiatria, o leitor perceberá que Foucault faz uma “breve tipologia” (2011, p. 100) de quatro formas de antipsiquiatria, enquanto que no resumo, o termo antipsiquiatria será reservado para as diferentes estratégias de resistências em relação aos jogos de poder institucional, de negação da forma institucional psiquiátrica. Sucintamente, o pensador apresenta as diferentes versões de antipsiquiatrias como um programa possível de estudos: são elas as estratégias presentes em T. Szasz, na Kingley Hall, em D. Cooper, no hospital de Gorizia de Basaglia (FOUCAULT, 2006, p. 451-452).8

Por outro lado, se formos ao resumo, temos mais dados sobre os dois movimentos. Foucault diz que, logo depois de Charcot, já aparece um movimento de despsiquiatrização que são “conservadoras do poder”. Trata-se do movimento que procura ser uma correção do ponto de aplicação da psiquiatria em sua “justa eficácia” a fim de não incorrer mais na “imprudência” ou ignorância em produzir falsas doenças, como teria feito Charcot. Foucault a chama de “forma “asséptica” ou “assintomática” de despsiquiatrização que, relacionada a Babinsk, aluno de Charcot, empenhou-se em reduzir a doença ao mínimo de sua própria realidade e ao mínimo das técnicas que, por fim, deveriam extinguir a doença. Trata-se de um efeito de simplificação que seria um correlato àquele efetuado por Pasteur ao descobrir o agente bacteriano. Esta forma de despsiquiatrização tenta confiscar a verdade da doença segundo um estreitamento à sua própria realidade. Na conferência, a esta forma assintomática de despsiquiatrização como grau zero da verdade da loucura corresponde (enquanto dado não colocado no resumo do curso) a psicocirurgia e a psicofarmacologia como formas antipsiquiátricas.9

A segunda forma de despsiquiatrização é a forma psicanalítica que procura subtrair o espaço propriamente médico. Na tentativa de evitar a hospitalização como uma armadilha bem-posta, bem armada para produzir a doença, como artificiosamente teria feito Charcot, a despsiquiatrização psicanalítica, se retira ou suspende os efeitos do sobre poder psiquiátrico, reconstitui, sob a organização transferencial, uma forma adequada ao poder. Segundo Foucault, é a tentativa de dar uma justa medida à produção da doença investindo-se de modo adequado, como forma de conhecimento, desde a relação médico - paciente: tratava-se de eliminar os efeitos do espaço asilar pela “regra do sofá que só concede realidade aos efeitos produzidos nesse lugar privilegiado e durante essa hora singular em que se exerce o poder do médico - poder que não pode ser pego em nenhum efeito de contragolpe, já que ele está inteiramente retirado no silêncio e na invisibilidade” (FOUCAULT, 2006, p. 450).

Resultado de adequação entre efeito de verdade e poder médico, a forma psicanalítica de despsiquiatrização é igualmente conservadora do poder. Esta segunda forma de despsiquiatrização, na conferência anterior ao resumo, aparece como uma segunda forma de antipsiquiatria nomeada de psicanálise ou “as psicoterapias de inspiração psicanalítica” (FOUCAULT, 2001, p. 101). Dispensável dizer que se trata de um importante capítulo da relação de Foucault com a psicanálise que, desde de A vontade de saber, surgira como um discurso atrelado a certos dispositivos disciplinares, nomeadamente, ao mesmo tempo, ao dispositivo de sexualidade e ao dispositivo psiquiátrico.

A terceira e quarta formas de antipsiquiatria na conferência correspondem, de modo genérico, à discussão sobre as diferentes antipsiquiatrias tematizadas no final do resumo do curso. A terceira forma, ligada a Laing e Cooper, postula a “ilusão do personagem médico” (p. 101) por um mergulho da verdade da doença. É a proposta de experimentar da realidade da doença mental pelo paciente até o fim, A quarta forma, para a qual Foucault tem em mente a experiência de Basaglia e Guatarri (este não figurará mais no resumo), é uma antipsiquiatria como recusa de todas as relações de poder, não como colocação em parênteses do poder como no caso de Laing e Cooper, mas de como ele mesmo é produtor global da loucura. Antipsiquiatria segundo a qual “(…) as relações de poder tramaram toda a existência do doente e tramaram sua loucura e que, por conseguinte, é a clara exibição e, ao mesmo tempo, a destruição, e a destruição política de todas essas relações de poder, de que foram elas que tornaram possível a loucura ou que foram elas que se exerceram contra a loucura” (FOUCAULT, 2011, p. 102). 10

Quando Foucault propõe, assim, a diferença entre despsiquiatrização e antipsiquiatria está revendo sua conferência anterior ao curso e, consequentemente, apropriando-se, ao termino daquelas lições, do que seria seu modo singular de abordar a história da psiquiatria. Uma genealogia do discurso psiquiátrico é uma genealogia das relações de poder que se formaram desde as cenas de curas do século XVIII para o XIX e teatralizadas pela taumaturgia de Charcot. Nesta trajetória, e está aí a novidade trazida pelo curso, o traumatismo Charcot é um curioso binômio de invenção e inversão para a formação da psiquiatria: é a condição de existência da psiquiatria moderna (como seu modo de operar a verdade da doença momento em que a neurose é integrada ao domínio propriamente patológico, que conta inclusive com a invenção central do corpo da histérica como domínio orgânico da doença)11 e a oportunidade da antipsiquiatrização, ou mais exatamente, de uma crítica que inverte as relações de psiquiatrização da loucura desde a recusa frontal e estratégica, que se verificará, no complexo fenômeno da simulação histérica.

Para as duas formas de despsiquiatrização tomadas por Foucault está em jogo uma conservação do poder; conservação estabelecida sob o imperativo de algum valor de verdade da doença mental, seja ele a “eficácia terapêutica” ou a “exatidão diagnóstica”. Em outros termos, parece-me que tais formas de despsiquiatrização ainda lidam com seu termo, por assim dizer impensado. Trata-se, no limite, de fazer aparecer a doença no bojo da hospitalização desde a qual um conhecimento de verdade sempre fora produzido. Mesmo Babinsk, procurando recusar a produção da verdade, a psicocirurgia e a farmacologia são respostas, por assim dizer, epistêmicas ao problema da verdade da doença. A psicanálise, por seu turno, poderia ser vista como uma despsiquiatrização que manteria uma relação adequada com a verdade cujo expediente transferencial repõe a verdade conforme uma pseudo-relação de autoverdade clínica.

As antipsiquiatrias, de modo muito diferente, terão como luta não o valor de verdade da doença, mas a luta contra a própria instituição asilar (FOUCAULT, 2006, p. 450-451). Foucault define que equivale a diferentes antipsiquiatrias, diferentes estratégias de escape do poder institucional (FOCAULT, 2006, p.451; 2011, p. 100). A inversão que elas realizam são relativas a relações de poder que, na expressão de Foucault “constituíam o a prori da prática psiquiátrica” (p.451-452). Se o que reúne as despsiquiatrizações é algum regime da verdade da doença e, consequentemente, a conservação das relações de poder que o constitui, deve-se perguntar: que propõem de comum as experiências antipsiquiátricas?

Mais na conferência e menos no resumo, encontramos pistas bem claras para responder esta pergunta. Mal me expressando, toda uma tentativa de reparo político ao doente mental é colocada em marcha. Ao louco deverá ser restituído, como ganho antipsiquiátrico, o direito à sua condição: “Ele deve fazer sua experiência até seus últimos limites e deve finalmente sair dela, na medida em que ele terá ido até o fim (FOUCAULT, 2011, p. 101). Na proposta de Laing e Cooper, por exemplo, Foucault nos garante a existência de um movimento básico no qual o médico é criado como uma forma ilusória e a questão da verdade não seria mais a verdade da psiquiatria e da doença mental, mas a verdade que o doente produz da sua loucura (FOUCAULT, 2011, p. 101).

Tudo se passa como se o desejo antipsiquiátrico de confiscar a verdade patologizante do discurso psiquiátrico oferecesse, agora ao louco, o direito de produzir sua verdade-louca. É o que depois diz Foucault no resumo. A recusa da instituição em suas relações tem como consequência o oferecimento “para o próprio doente o poder de produzir a loucura e a verdade de sua loucura” (FOUCAULT, 2006, p. 450). A antipsiquiatria recusa, pois, “o direito absoluto da não-loucura sobre a loucura” (FOUCAULT, 2006, p. 452) porque se é o empenho em desarmar o próprio modo de funcionamento da instituição asilar. De que modo?

O que está em disputa na antipsiquiatria é, seja claramente dito, quem corrige a ilusão da doença mental: o médico ou o próprio paciente? Foucault deixa claro que poder ser louco é uma luta contra um espaço de legitimidade que o poder psiquiátrico delimitou como seu gesto mais fundamental. Espaço nada desprezível, pois o médico se fez o sujeito estatutário da doença mental e desde este mesmo espaço foi assegurada a ignorância fundamental do louco sobre sua condição patológica. O termo da disputa, como algumas vezes Foucault falará em O poder psiquiátrico, é o médico razoável que normaliza impondo-se à realidade desordenada produzida pela doença mental; portanto, questão de âmbito de realidade, de competência para dizer a verdade do real:

Eu entendo por antipsiquiatria, para dar uma definição sobre a qual eu não digo que seja verdadeira nem restrita, mas digo, pelo menos, que ela é cômoda, eu chamo antipsiquiatria tudo o que recoloca em questão o papel de um psiquiatra encarregado outrora de produzir a verdade da doença no espaço hospitalar (FOUCAULT, 2001, p. 100).

Em resumo, a antipsiquiatria seria o movimento de desmedicalização política sobre a realidade e a despsiquiatrização “que parece caracterizar tanto a psicanalise como a psicofarmacologia: ambas dependem muito mais de uma sobre medicalização da loucura” (FOUCAULT, 2006, p. 453). Todas as formas de despsiquiatrização atuam sobre esta coincidência ambígua, ainda tão presente nas nossas práticas psiquiátricas, pelo qual a doença mental se configura como objeto de conhecimento para uma ciência que é, ao mesmo tempo, o sujeito-paciente em xeque aos olhos do psiquiatra. Despsiquiatrizar é, assim, uma maneira sub-reptícia da verdade médica, mas antipsiquiatrizar é a disputa pela consciência do patológico.

Poderia certamente a fabulação dialética aqui explicar os antagonismos da relação médico e paciente elaborando uma resolução outra. O genealogista, menos ambicioso, talvez prefira determinar que espécie de saber se forma nas articulações de poderes instituintes sobre o doente mental. As antipsiquiatrias são tais formas de insurgências sobre o jogo, mais circular que dialético, no qual um conhecimento passa a existir à medida que funda seu direito de atuar como poder sobre o real. Justapor estes dois fenômenos (despsiquiatrização e antipsiquiatrização) que se pertencem, mas que são bastante distintos em seus propósitos, tem por finalidade em Foucault refletir sobre o “problema da eventual emancipação da verdade da loucura em relação a essa forma singular de poder-saber que é o conhecimento” (FOUCAULT, 2006, p. 453), ou seja, problema de uma verdade da loucura que não se esquadrinhe pela relação de conhecimento.

Mas o que esta vontade de escape pelas antipsiquiatrias puderam efetivamente conquistar? Seria necessário fazer a história, não factual, mas genealógica, dos resultados em termos de formas de subjetivação, advindo das diferentes propostas de desinternação antimanicomial. Mas para Foucault, o que teríamos vislumbrando nestes anos em que ainda a crítica ao poder psiquiátrico se estruturava? Retornaríamos aqui àquela paisagem social na qual a loucura, como desmedida e destino humanos, situaria a doença mental no horizonte de uma nova consciência trágica da loucura? Será que depois de desembarcar da nau dos loucos rumo para o hospital, a loucura, desinternada, sobretudo, a partir das antipsiquiatrias do século XX, reencontrariam seu ponto de júbilo, sua verdade intrínseca, sua emancipação para decidir-se sobre o real?

Em grande parte, estas respostas devem ser buscadas na diferença de Foucault com a psicanálise, sobretudo, a propósito de seu diálogo com os trabalhos de Deleuze e Guattari que, por razões óbvias, ficará aqui em suspenso. A mesa redonda que se segue às conferências As verdades e as formas jurídicas, por exemplo, (FOUCAULT, 2001a, p. 1491-1514) testemunha que, no fundo, a despsiquiatrização psicanalítica é o ponto sensível desde o qual Foucault problematiza a emancipação da loucura: “E Édipo é precisamente este grande Outro que é o médico, o psicanalista” (FOUCAULT, 2001a, p. 1493).

Para finalizar, cabe-me explicitar que a genealogia do dispositivo psiquiátrico, tendo como grande chave de leitura a antipsiquiatria como desmedicalização política da loucura, tem seu modo próprio de apresentar-se como discurso. É a denúncia feita por um pensador que, não sendo nem psiquiatra, nem antipsiquiatra, reconhece bem que tipo de invariante antropológica se ofertou à história da doença mental; invariante que é também a demonstração primordial de que o dispositivo psiquiátrico dependeu, para se estabelecer, de uma profunda a-historicidade para impor-se como saber.

O homo psychiatris como invariante antropológica: a-historicidade do patológico

A ferida narcísica que a biologia pasteuriana causou sobre a medicina geral parece não ter correlato na medicina psiquiátrica já que, enfim, até nossos dias, o saber psiquiátrico tem atuado na hipertrofia da verdade da loucura mediante a palavra farmacológica cujo suporte, como se sabe, é a fauna técnico-patológica do DSM V. Se o médico psiquiatra aparece por detrás, como mero operador dos quadros homogeneizadores do DSM, é porque este procedimento faz as vezes da produção da realidade da doença.

A falta, porém, de uma derrocada eficaz da figura desta clínica e do psiquiatra como senhor do patológico não isentou a psiquiatria de ser questionada. Bem o contrário. Como vimos, a originalidade da interpretação foucaultiana sobre a despsiquiatrização, como vimos, está em fazer ver que ela não se configurou como uma ruptura com o poder psiquiátrico, senão como evento que funciona de modo a reinserir efetivamente as práticas disciplinares por uma espécie de portas dos fundos da própria psiquiatria: a farmacologia e a psicanálise seriam estas reentradas maiores.

Já a antipsiquiatria pretendeu implodir, sobretudo, por seu ímpeto anti-institucional, o funcionamento do termo dual, definidor da doença mental: “deem-me sintomas” demanda o psiquiatra, “que eu lhes trarei de volta, do fundo de ignorância da sua doença, para a realidade mesma”. Neste caso, seria fundamental rever o que poderia hoje ser uma oposição crítica, à maneira das antipsiquiatrias, à clínica psiquiátrica. Atualmente, essa clínica dar a ver a doença mental de modo muito peculiar. Seja atenuando o dado institucional (com o estreitamento da relação paciente e quadro patológico-estatístico) seja medicalizando “psiquiatricamente” o conjunto da população, a saliente prática farmacológica desta clínica, sobre a qual estamos longe de lograr o conhecimento dos reais resultados, é seu regime de visibilidade. Mais e mais, ele aparece como a naturalização da doença mental na existência individual, popularizando-a conforme a última novidade medicamentosa numa autêntica farmacodependência social.

Deixemos ao filósofo exegeta profissional voltar aos textos de Foucault e, a partir deles, relacionar com esmero o problema da antipsiquiatria ao tema da ontologia do presente e sua correlativa ideia de liberdade como resistência estratégica dentro de uma relação poder. Optei neste artigo por tirar uma consequência não tematizada explicitamente por Foucault, mas que decorre do problema da antipsiquiatria como experiência de contemporaneidade.

Como expressa Foucault a respeito do objetivo das experiências antipsiquiátricas, trata-se nelas de levar a loucura a cabo, ser uma experiência limite. Poderíamos pensar que Foucault, tentado em ver na luta antimanicomial formas que escampem ao poder, empreendeu um engajamento transgressor à Bataille. Teria deixado se seduzir pela ficção ou utopia de uma emancipação real da loucura? Mas não. Foucault, como aquele pensador que exerce a crítica pela história, isto é, o ensaio como mutação subjetiva estratégica, oferece a sua posteridade o ponto de desarme da cilada do dispositivo psiquiátrico.

Os argumentos levantados por Lagrange na Situação do curso, publicado em conjunto de O poder psiquiátrico,12 deixam muito claro que a questão da antipsiquiatria é um especial motivador do curso e que confere especificidade a esta história do dispositivo psiquiátrico em Foucault. Sem deixar de lado a “dinâmica conceitual das pesquisas de Foucault” é explicito, para Lagrange, que a originalidade deste curso está “em empreender, a partir do presente, análises retrospectivas da formação histórica desse dispositivo de poder” (LAGRANGE, 2006, p. 456-457). O que estou propondo, a partir desta constatação, é que a genealogia do poder psiquiátrico comportar a denúncia fundamental sobre o fato de o saber psiquiátrico ter de ser praticado e concebido sob altas doses de a-historicidade.

Em nome da eficácia da atribuição realizadora da doença mental, as práticas psiquiátricas precisam volatizar ou abstrair o sujeito real que adoece. É um curioso caso dentre as formas disciplinares que se deve realçar: o dispositivo psiquiátrico, para ter o sujeito à mão, precisa destitui-lo de sua biografia real para ficar como uma anamnese de quadros psiquiátricos que, no século XX, tem o poder estatístico disponível; o que é o mesmo que dizer: para constituir-se como saber, põe sua condição de existência na a-historicidade do seu discurso. Deve-se aqui perguntar: será que a verdade da loucura se produziria sem o poder das relações de conhecimento que inventou? Falsa questão já que, pelas aulas de Foucault no curso de 1973-1974, não há psiquiatria sem alguma tentativa de despsiquiatrizar, ou melhor, sem que a consciência médica sempre se decida pela realidade da loucura.

Assim, quando Foucault se esforça para concluir, sobretudo, no resumo de O poder psiquiátrico, que este dispositivo é atravessado pelo problema da antipsiquiatria é porque visa, com sua genealogia do poder psiquiátrico, expor o nascimento da doença mental em sua autorreferência normalizadora. Há um conjugado de norma e a-historicidade que se ofereceu como ponto de procedência e emergência do discurso psiquiátrico.

Para os que querem desculpar a psiquiatria e ver nela certa debilidade epistemológica de uma ciência que seria ainda recente, que se deem conta da explosão das categorias clínicas descritas nas diferentes versões do DSM. Diante do incremento bastante considerável das 128 categorias da versão de 1952 para as 541 categorias do DSM V em 2013, devemos notar que se trata menos de descrever o sofrimento psíquico que definir, no fundo, modos politicamente autenticados de sofrer. A definição clínica da doença mental nas edições do DSM, se um dia serviu para tentar relacionar o meio social e o sofrimento psíquico das pessoas, podemos concluir, numa perspectiva foucaultiana, que o sofrimento psíquico se tornara mero subterfugio ou a ocasião alegada para, no fundo, esquadrinhar algo mais além e aquém do indivíduo que sofre.

Basta para tanto ter em conta que é uma constante profusão de diagnósticos clínicos que, nos últimos 60 anos, a história do DSM vem compilando como um percurso de decomposição e recomposição de categorias clínicas. Esta obsessão nosológica, nunca verificada em tal proporção em outro campo médico, não conserva um fundo original desde o qual um dia foi possível apreender o sofrimento singular do indivíduo. A respeito deste percurso das categorias clínicas, Safatle assevera: “Elas perderam sua história, ou seja, a forma com que elas traziam em seu bojo a história das dificuldades de socialização e individuação dos sujeitos concernidos” (2018, s/p). Tais categorias talvez nunca tenham logrado tratar do sofrimento real dos indivíduos, como operação efetiva da própria clínica, afinal, esta se apresentou, desde o seu início, como uma decisão prévia sobre a realidade, sobre um padrão de normalidade, no que serão inclusos os parâmetros do que socialmente acatamos como uma vida saudável e bem-sucedida.

Por isso, a antipsiquiatria é, na via oposta, um importante clamor pela historicidade da doença mental. A genealogia do poder psiquiátrico, esta história das práticas disciplinares que puseram face a face o corpo do médico e o corpo do doente a se enfrentarem sob um jogo de submissão e resistência, se reconhece na atualização foucaultiana do problema da antipsiquiatria. Uma atitude antipsiquiátrica corresponde a duas dimensões e consequências que integram a formação mesma do poder psiquiátrico.

A primeira, é explicitar, como parte essencial deste poder, a produção do doente desde uma superprodução da doença na consciência médica, porquanto ela é a realizadora da doença que pede sintomas a um corpo que lhe responde. À diferença do corpo na clínica geral, a clínica psiquiátrica nos oferecerá, de antemão, um corpo virtualizado pelos quadros sintomáticos que cercam a subjetividade que, no nosso caso, são os tantos quadros postos a cada página de um índice estatístico. Quase que como um mero repetidor do quadro patológico virtual do DSM, o psiquiatra em nossos dias está como que desculpado por ter de fazer o seu serviço, ter de colher sintomas e enquadrá-los sob a forma de um saber estatístico. Ora, este padrão ótimo da doença, este desempenho-padrão substitui qualquer análise da singularidade em nome da bela consistência de uma racionalidade numérico-psicofarmacológica. Esta racionalidade, ao nível dos corpos virtuais do DSM (o corpo da transexualidade como corpo disfórico poderia ser um exemplo a ser pensado), ela assujeita, na verdade, tantos corpos quantos sintomas forem dados segundo uma farmacodinâmica política que, ao cabo, é o apagamento da singularidade somática do indivíduo.

A segunda dimensão é a da resistência destes corpos que se “deixaram” psiquiatrizar. A resposta do corpo psiquiatrizado, genealogicamente falando, é o corpo que se mostra aparentemente dócil em fornecer sintomas. A mais autêntica forma de antipsiquiatria não está naquelas tentativas anglo-saxônicas e italiana com suas sucedâneas reverberações mundo afora na luta antimanicomial. Está na dinâmica interna do corpo do doente mental, no caso modelar do histérico, com o qual se montou a cena da simulação. O que seria, então, a antipsiquiatria senão certa maneira de desconfiar, mais ou menos colocada, insinuada desde o interior das práticas psiquiátricas sobre o fato de que existe entre o médico e o louco um acordo furtivo de poderes e resistências mudos, de relações de submissão e insubmissão veladas que só se temos a notícia porque um corpo responde ativamente a injunção verbal (hoje farmacológica) de uma consciência médica astuta, encenação de uma batalha.

Eis aí um modo de Foucault exibir a impressionante contingência das práticas psiquiátricas que se mostraram originalmente, no sentido genealógico, práticas disciplinares: não foi o saber psiquiátrico que se fez e refez como domínio epistemológico mais ou menos indefinível; nem foi uma prática que, insciente de sua tarefa de cura, humanizou-se desde o instante de libertação dos encarcerados de Bicêtre por Pinel; foi isto que chamaremos século XX adentro de psiquiatria que se forjou, desde o enfrentamento de corpos a qual pertence, um saber que dispusesse e mantivesse como seu modo de operar a divisão disciplinar entre sujeito e objeto. Diante de tal arraigado político do poder no saber, não devemos nos espantar um assujeitamento de corpos segundo os padrões de uma medicalização que é, mais e mais, do espaço social como um todo. É na nova experiência fármaco-clínica da patologia mental que as práticas psiquiátricas deveriam ser estudadas, especialmente do ponto de vista da sua especificidade tentacular que alcança a vida cotidiana desde velhos critérios morais.

A maior lição de O poder psiquiátrico foi, enfim, mostrar que o campo psiquiátrico forjou o enigma moderno da vida feliz. Enigma, no entanto, não como a palavra profética que se decifra em favor de um destino heroico, portanto, em nome de algo que justamente não se sabe para saber; felicidade não como a condução ética de uma realização de si a de si, o que sempre requisita um tipo de normatividade não binária. Pelo contrário, enigma enquanto a circularidade divisora do sujeito que já expressa um saber o que fazer com o indivíduo em sofrimento: coloca-o ou bem estabelecido dentro daquilo que aparece a todos como norma vital, ou então, fora dela, portanto, inadaptado e doente. Felicidade como tentativa, sempre em reposição, de submeter o sofrimento “a padrões de normalidade e de medida, mesmo que muitas delas tenham marcadores biológicos obscuros. Padrões esses que expressarão um desejo de performance que acabará por se naturalizar como a figura mesma de uma vida bem realizada” (SAFATLE, 2018, s/p).

Espécie de inversão do mito político de Édipo que pode exercer-se como poder numa insciência autoindulgente, o campo psiquiátrico forjou o enigma da felicidade moderna porque, sabendo demais sobre seu próprio saber a respeito do sofrimento, eliminou o sofrimento psíquico real. O poder psiquiátrico é, pois, a genealogia que Foucault faz desta sedimentação insistente na qual a recusa sistemática de singularidades somáticas desvela o homo psychiatricis como não sendo uma invariante antropológica, mas produto de práticas que se firmaram no curso de um assujeitamento muito particular ao dispositivo psiquiátrico. Se como quis Foucault, seu Vigiar e Punir se destinava a fazer uma história da alma em julgamento “uma história correlativa da alma moderna e de um novo poder de julgar” (FOUCAULT, 1987, p. 23) digo que O poder psiquiátrico é uma história correlativa da alma moderna e de um novo poder de curar que, se bem compreendi, é a genealogia de uma a-historicidade que essencialmente deve alhear-se da historicidade do sujeito doente mental.

Referências

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1Para uma visão mais completa destes engajamentos no percurso de Foucault (ARTIÈRE, 2011; DEFERT, 2003; ALVAREZ, 2006).

2Indico, ainda que intempestivamente e sem poder desenvolver, que faz parte da imensa incompreensão a esse respeito a polêmica do tipo que levantou, a que outros dariam continuidade, o professor de psiquiatria Henry Ey. Mal compreendendo a antipsiquiatria de Foucault, acusa o autor de História da loucura de psiquiatricida. Uma exposição a este respeito encontra-se bem argumentada em Quelle psychiatrie après Foucault? (COLUCCI, 2011, p. 298-303).

3Na situação do curso, a cargo de Jacques Lagrange, publicado no mesmo volume, o leitor pode inteirar-se sobre o lugar do curso no pensamento de Foucault.

4Cf. no curso O poder psiquiátrico, logo na primeira aula (FOUCAULT, 2006, p. 3-34, aula de 7 de novembro de 1973-1974), Foucault conceitua os deslocamentos em relação à História da Loucura em favor de seu novo modo de conceber a concretude do poder sob a forma de uma analítica, microfísica e disposição do poder.

5Estas escolhas se justificam porque: 1. os resumos dos cursos, em geral, não são resumos temáticos ou mesmo de conceitos específicos desenvolvidos nas aulas, mas resumos de estruturas argumentativas ou de grandes problemas abordados no curso que fora dado naquele ano. Este aspecto confere aos resumos um estatuto particular enquanto escrita das aulas dadas já que funcionam como um grande mapa dos operadores das principais questões colocadas pelo curso. É uma oportunidade na qual Foucault claramente se permite a uma atividade de síntese discursiva de seu próprio discurso. A antipsiquiatria é particularmente destacada no curso em estudo. 2. A conferência que antecedeu o curso tem o mesmo caráter, mas em sentido inverso: como antevisão de problemas a serem desenvolvidos. Também a antipsiquiatria é nela destacada.

6Publicado em: Michel Foucault Cahiers de L’Herne. Artières, Ph., Bert, J.-F., Gros, F., & Revel, J. (Editores) Paris, L'Herne, 2011.

7Foucault descreve este processo de qualificação médica da psiquiatria no final da aula de 7 de janeiro de 1973 e está se referindo ao período de 1800-1830 no qual se pensa comumente que “a psiquiatria aparece nesse momento, pela primeira vez, como uma especialidade dentro do domínio médico” (FOUCAULT, 2006, p. 15). Na verdade, o argumento de Foucault é para relativizar esta posição: as práticas de cura, na fundação da psiquiatria, têm o selo da “heterogeneidade que vai marcar a história da psiquiatria no momento mesmo em que ela se funda no interior de um sistema de instituições que a vincula, entretanto, à medicina” (FOUCAULT, 2006, p. 16).

8Para inteira-se das reformas psiquiátricas a que Foucault faz referência e dá um encaminhamento de pesquisa, há farto material disponível. Sugiro: PASSOS, I. C. F. Reforma psiquiátrica: as experiências francesa e italiana. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2009.

9“É esse tipo de relação que se encontra, eu creio, na psicocirurgia ou na psicofarmacologia, que não temos o hábito, eu bem sei, de colocar sob a rubrica antipsiquiátrica, mas acredito que essas técnicas, elas também, na medida em que tentam manipular e contornar o grande problema dessas relações de poder, de simplificá-las por supressão de um dos termos, parece-me que a psicocirurgia, a psicofarmacologia devem ser integradas a essa grande crise da antipsiquiatria aberta desde a época de Charcot” (FOUCAULT, 2011 p. 100).

10Importante assinalar que, na conferência, Foucault atribui às formas assintomática e psicanalítica da antipsiquiatria um sentido político de ruptura etnológica com o poder psiquiátrico, característica que depois abandona no resumo, o que indica que tais formas são admitidas como conservadoras do poder psiquiátrico. A ideia de combate político, que no resumo se estenderá às demais antipsiquiatrias lá nomeadas, seria própria da antipsiquiatria de Basaglia e Guatarri que visava “desatar todas as relações de poder que tramam, que tecem nossa existência” (FOUCAULT, 2011, p. 102).

11Para compreender este tema, aula concluinte de 06 de fevereiro do curso de 1973-1974. Desenvolvo o tema mais à frente.

12FOUCAULT, M. Dits et écrits I - 1954-1975. Paris: Gallimard, 2001a (no. 143).

Recebido: 17 de Janeiro de 2019; Aceito: 28 de Agosto de 2019

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