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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.33 no.67 Uberlândia jan./abr 2019  Epub 30-Ago-2021

https://doi.org/10.14393/revedfil.v33n67a2019-39154 

Artigos

O sentido do ato de educar em Edgar Morin

The sense of the act of educating in Edgar Morin

El sentido del acto de educar en Edgar Morin

Celso José Martinazzo* 
http://orcid.org/0000-0001-6376-3409

*Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor do curso de Pedagogia da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ). E-mail: marti.sra@terra.com.br


Resumo

Temos como propósito, neste texto, contribuir com o debate acerca da razão de ser da escola, bem como do sentido e das finalidades da educação. A reflexão tem como fonte de inspiração a obra do pensador francês Edgar Morin com o objetivo de compreender quais deveriam ser as grandes finalidades do processo educacional. O estudo é de cunho bibliográfico tendo como horizonte os princípios da complexidade. A pesquisa permite concluir que, em seus primeiros escritos, Morin aponta para a necessidade de instituir uma política de civilização que contemple o contexto planetário da humanidade. Com o decorrer do tempo e, sobretudo, nos escritos mais recentes, Morin ressignifica o pensamento de Montaigne e de Rousseau: com inspiração em Montaigne indica que cabe à escola formar o aluno com uma cabeça benfeita e com base em Rousseau retoma a ideia de que é função da escola ensinar a viver.

Palavras-chave: Pensamento complexo; Reforma do pensamento; Sentido da educação

Abstract

Our intention, in this text, is to contribute with the debate about the reason of being of the school, as well as the sense and purpose of education. The reflection has French thinker Edgar Morin’s works as source of inspiration, with the objective of understanding which the great purposes of the educational process should be. The study is bibliographic, having as horizon the complexity principles. The research allows to conclude that, in his early writings, Morin points out to the need of instituting a policy of civilization that contemplates the planetary context of the humanity. With the elapse of time and, above all, in the most recent writings, Morin reframes Montaigne’s and Rousseau’s thought: with inspiration in Montaigne indicates that it is up to the school to graduate the student with a well-made head and based in Rousseau resumes the idea that the school has the role of teaching to live.

Keywords: Complex thinking; Thinking reform; Sense of the education

Resumen

Tenemos como propósito, en este texto, contribuir con el debate acerca de la razón de ser de la escuela, así como del sentido y de las finalidades de la educación. La reflexión tiene como fuente de inspiración la obra del pensador francés Edgar Morin con el objetivo de comprender cuáles deberían ser las grandes finalidades del proceso educacional. El estudio es bibliográfico, teniendo como horizonte los principios de la complejidad. La investigación permite concluir que, en sus primeros escritos, Morin señala la necesidad de instituir una política de civilización que contemple el contexto planetario de la humanidad. Con el paso del tiempo y, sobre todo, en los escritos más recientes, Morin resignifica el pensamiento de Montaigne y de Rousseau: con inspiración en Montaigne indica que cabe a la escuela graduar el alumno con una cabeza bien hecha y con base en Rousseau retoma la idea de que es función de la escuela enseñar a vivir.

Palabras clave: Pensamiento complejo; Reforma del pensamiento; Sentido de la educación

Neste texto temos como objetivo fomentar o diálogo e contribuir com o debate acerca da razão de ser da escola, bem como do sentido e das finalidades da educação do ponto de vista de Edgar Morin. Esta temática aparece de forma enfática nos escritos deste autor, cada vez mais, com um novo olhar, mais atual e pertinente. Podemos afirmar que, para Morin, refletir e escrever sobre a importância, o significado e os propósitos do ato de educar é uma pauta indispensável e, sobretudo, inesgotável, e, por este motivo, necessita ser continuamente retomada em novos horizontes de compreensão.

É na trilha e no percurso dos escritos do renomado filósofo francês contemporâneo Edgar Morin, portanto, que fazemos esta investigação, tendo em vista que este pensador vem se destacando, desde as três últimas décadas do século XX, em escrever, de forma inovadora, sobre muitas questões polêmicas e fundamentais, entre elas a educação.

O estudo bibliográfico tem como base os princípios da hermenêutica (HERMANN, 2002) e da complexidade (MORIN, 2006). A reflexão, do ponto de vista da hermenêutica, permite desconstruir as racionalidades operantes na História, ampliar o horizonte de compreensão e as possibilidades de intervenção no mundo. De acordo com Hermann (2002, p. 25), “O uso exclusivo de critérios racionais na interpretação hermenêutica não dá conta da participação adequada da própria razão no processo de compreender. Assim, o problema fundamental da hermenêutica é a busca de sentido e a interpretação”. Por outro lado, a perspectiva teórico-epistemológica da complexidade procura contemplar e realizar uma simbiose entre as dimensões ontológica, epistemológica e operacional da realidade pesquisada tendo como base os operadores cognitivos da complexidade que se constituem em princípios-guia do pensar complexo. O olhar complexo tem presente que toda a compreensão não está imune à diversidade de implicações teóricas, às flutuações, e, principalmente, às incertezas.

O atual estágio crítico em que nos encontramos nos obriga a pensar em iniciativas e caminhos originais e inéditos que possam contribuir com novas perspectivas para o futuro da humanidade e do planeta. Morin destaca e analisa algumas evidências da crise profunda em que a sociedade atual se encontra, tendo sempre o cuidado para não descolar a humanidade do planeta que ela habita. No entendimento do autor, no atual estágio da humanidade o “Desregramento ecológico, exclusão social, exploração sem limites dos recursos naturais, busca frenética e desumanizante do lucro, aumento das desigualdades encontram-se no cerne das problemáticas contemporâneas” (2015a, p. 5). Todo esse panorama, hoje, tem o envolvimento de alguns componentes novos a perpassá-lo, pois “[...] uma revolução selvagem das condições de aquisição dos saberes encontra-se em curso na Internet e se amplia cada vez mais. Essa revolução afeta a economia, as relações humanas e a própria educação” (2015a, p. 178).

Tendo esse sucinto diagnóstico como pano de fundo, entendemos que é necessário sempre muita vigilância, lucidez e discernimento para repensar os caminhos da racionalidade que possam orientar o destino presente e futuro da humanidade. É importante refletir sobre quais podem ser os modelos possíveis de racionalidade que irão comandar os rumos das diferentes áreas de atuação humana, dentre elas a educacional. A racionalidade diz respeito à forma de conceber, de compreender, de organizar e de operacionalizar as ações humanas. Da racionalidade que orienta o processo educacional decorre sua identidade pedagógica e uma idealidade de ação, ou seja, as razões e o sentido do para que e do por que educamos e, por decorrência e extensão, do poder, das funções, dos limites e das possibilidades dos agentes e das agências educacionais.

Refletir sobre o que se pretende com a ação educacional, portanto, é um desafio e uma exigência inerentes à função do educador e, por extensão, deve ser algo pertinente a toda a comunidade educativa. A par do que se entende por missão histórica da educação há sempre um novo contexto desafiador e atual que deve ser levado em conta quando se pensa em educar as novas gerações. Os propósitos e as metas tradicionais e históricas da educação adquiriram, com o decorrer dos tempos, um consenso mínimo entre os grandes filósofos e pedagogos, porém o aggiornamento dessas metas é uma questão sempre necessária e desafiadora. Assim mesmo, quando refletimos sobre esta temática, sempre permanecemos com a sensação de um texto sem fim, a exemplo do livro sem fim,1 de Rubem Alves (2002).

Seguindo a trilha do pensamento de Edgar Morin, com base em sua significativa obra já publicada, temos como meta, neste texto, identificar e compreender qual a razão de ser da escola e sua função, bem como o sentido do ato de educar e os grandes objetivos do processo educacional.

A interdependência das reformas: do pensamento, do conhecimento, da educação

A compreensão do pensamento de Morin pressupõe uma iniciação mínima à grande parte de tudo aquilo que a humanidade já produziu de mais inovador e inquietante em qualquer área do conhecimento e que contribuiu, de alguma forma, para uma maior compreensão do que a realidade é, pode ser ou poderá vir a ser. Isto porque, além de um pesquisador dos saberes já produzidos até hoje pela humanidade, Morin define-se como um autodidata e arquiteto de um novo conhecimento que o remeteu ao encontro de seus mestres do pensamento, tendo recolhido inspirações em todos os domínios do saber. O autor revela essa inspiração e recorrência constantes a outros pensadores com o seguinte esclarecimento: “Não tenho nenhum mestre exclusivo do pensamento, mas uma constelação de estrelas-guias, de Heráclito e Lao Tsé, até Breton, Bataille e von Foerster...” (2013a, p. 19).

Ao realizar a leitura e a análise das obras de Morin, então, constatamos um manancial muito diverso e fértil de conceitos, ideias e princípios inspiradores que dizem respeito às principais temáticas que buscam entender o homem e o mundo que habita. É tarefa ingente e árdua tentar escrever algo com base na extensão e profundidade do seu pensamento sem cair na armadilha da simplificação. Ao pretender pontuar e enfatizar alguns conceitos corre-se o risco de reduzir e empobrecer a riqueza da sua obra, pois o pensamento moriniano não representa apenas uma simples assimilação e síntese de alguns dos grandes representantes do pensamento humano produzido ao longo da tradição histórica, mas é, sobretudo, uma simbiose criativa e inovadora elaborada por alguém que demonstra uma grande capacidade de diálogo e aproximação com o sentido da realidade. Morin constrói um arcabouço teórico próprio e original, inspirado nas grandes correntes filosóficas, científicas e literárias, tendo recorrido, inclusive, aos ensinamentos da Filosofia chinesa para compreender as contradições, unidualidades e complementaridades, ou seja, a tessitura das complexidades humanas e cósmicas. Ele próprio se encarrega de explicitar isso ao reconhecer que “Na filosofia, assim como em todos os outros domínios, fui como uma abelha que produz mel a partir de todas as flores” (2013a, p. 18). Recolheu pólen de todos os filósofos2 sem, no entanto, se deixar absorver de forma exclusiva por nenhum deles.

Antes de adentrar no foco de discussão da temática proposta, é necessário ter presente que, no entendimento de Morin, para que a sociedade e a escola se transformem e comecem a operar com outros sentidos, precisam primeiro passar por um profundo processo de reforma. A metamorfose de qualquer realidade está na dependência da sua capacidade de regeneração. Tudo aquilo que não tem a capacidade de se regenerar acaba por fenecer. Toda a regeneração pressupõe uma matriz geradora de transformação. Uma metamorfose, portanto, é produto de contínuas regenerações: “Eu afirmaria que o ser humano só pode se autoproduzir e se automanter se ele se autorregenerar” (MORIN, 2015a, p. 113). Esse é um princípio inerente à complexidade do real e, por esta razão, pressuposto para toda e qualquer inovação, e que se aplica tanto para o universo biofísico quanto para o sociocultural. Não existe, portanto, inovação e transformação sem regeneração.3

Assim sendo, pode-se constatar que todo movimento histórico é produto de um ato regenerador e transformador com potencial para gerar novas emergências e caminhos desviantes. As grandes revoluções têm origem em uma ruptura dos estágios e das teses anteriores que produzem novos rumos e diferentes concepções. Como exemplos de grandes movimentos desviantes, Morin destaca o Budismo, o Cristianismo, o Islamismo, o Socialismo e até mesmo a Ciência Moderna,4 de tal forma que “O desvio se difunde e se transforma em tendência, depois, em força histórica” (2015a, 177).

Segundo Morin e Kern (2000, p. 170), a reforma do pensamento “[...] implica uma revolução mental ainda mais considerável que a revolução copernicana” e, por esta razão, “A reforma do pensamento é um problema antropológico e histórico chave”. Ela, portanto, pelo modo como Morin a situa, isto é, com inspiração na teoria da complexidade e no pensamento complexo, não é uma simples revolução programática e operacional, mas uma revolução paradigmática e, em virtude disso, teria um potencial de força regeneradora e desviante.

A partir do momento em que desvendou e elaborou as primeiras leis da complexidade e os princípios do pensamento complexo, Morin demonstrou uma clara convicção em justificar a necessidade e a importância de uma reforma radical dos modelos de pensamento vigentes. A reforma paradigmática teria como finalidade instaurar uma nova racionalidade no modo de pensar e funcionaria como uma espécie de princípio regenerador, com o potencial de promover profundas mudanças. Segundo Morin, para compreender a realidade, que é ontológica e fenomenologicamente complexa, é necessário um modelo de pensamento complexo compatível com a exigência que dele se faz. Para a compreensão da realidade complexa é preciso, portanto, um pensamento do tipo complexo. Esse é o pressuposto primeiro e fundamental para qualquer reforma, seja das instituições ou das pessoas, tendo em vista que nosso modelo de pensamento é do tipo simplificador e incapaz, portanto, de compreender as complexidades da realidade.

A metamorfose do processo educacional e de outras realidades, por isso, pressupõe uma profunda reforma paradigmática capaz de produzir essa transformação. Paradigma é uma chave de leitura e compreensão da realidade que pode tanto abrir para o sentido de algo como pode bloquear o acesso a ele. Um paradigma abre um canal de compreensão para algo e, ao mesmo tempo, bloqueia a compreensão de outros pontos de vista. Tudo muda ou assume outra dimensão quando trocamos o paradigma que adotamos e acreditamos. Ele se coloca, portanto, na base de qualquer metamorfose. Segundo Morin, é fundamental pensar em uma reforma paradigmática que possibilite uma melhor percepção e entendimento da realidade em termos de conhecimento, para que possamos repensar a concepção, a condução e a organização escolar e educacional.

Na ótica de Morin o paradigma5 da complexidade tem o potencial e pode se constituir em uma plataforma de inspiração e de embasamento teórico para uma reforma do pensamento ou das mentalidades, que é imprescindível para uma reforma do conhecimento e uma reforma da educação. As reformas são interdependentes entre si e, portanto, alimentam e se realimentam umas das outras em um movimento recursivo.6 Assim, pois, “A reforma do conhecimento e do pensamento depende da reforma da educação que depende da reforma do conhecimento e do pensamento” (MORIN, 2015a, p. 182).

Morin dedica toda a segunda parte do livro A via para o futuro da humanidade (2013b) para a abordagem da interdependência das reformas e para destacar que a reforma do pensamento é pressuposto para todas as mudanças. Nessa visão ampliada, fica evidente a criação de um círculo virtuoso para um novo horizonte de compreensão e, portanto, de ação:

“As reformas são interdependentes. A reforma de vida, a reforma moral, a reforma de pensamento, a reforma de educação, a reforma de civilização, a reforma política, todas elas mobilizam umas às outras e, por isso mesmo, seus desenvolvimentos lhes permitirão se dinamizar ente si” (2013b, p. 381).

De acordo com Morin, as reformas, para serem exitosas, devem ter uma base de sustentação teórica com viés na complexidade, isto é, necessitam estar fundamentadas em princípios que contemplem a complexidade. Morin vai buscar inspiração na Filosofia, na Ciência, na Lógica, enfim, no paradigma da complexidade, a base teórica com potencial para produzir as reformas. Essa foi uma das grandes descobertas suas e que ele próprio registra:

Minha obsessão pelo “verdadeiro” conhecimento levou-me a descobrir em 1969-1970, graças a uma temporada na Califórnia, a problemática da complexidade. Na verdade, a noção de complexidade veio esclarecer retrospectivamente meu modo de pensar, que já religava conhecimentos dispersos, já enfrentava as contradições mais do que se desviava delas, já se esforçava em ultrapassar alternativas consideradas impossíveis de superar (2015a, p. 22).

As reformas, ainda que interdependentes e complementares, pressupõem, como ponto de partida, a reforma do pensamento. A reforma do pensamento é uma expressão empregada por Morin (2000a) para mostrar a necessidade de reformulação das formas de operar o pensar, ou seja, dos princípios cognitivos de compreensão do real. A reforma do pensamento, portanto, é o pré-requisito indispensável para uma reforma do ensino e, por força recursiva, exige uma reforma do ensino para reformular o pensamento: “Estamos de novo no circuito das causalidades: a reforma do pensamento requer uma reforma das instituições que, por sua vez, requer uma reforma do pensamento. Trata-se de transformar esse círculo vicioso em circuito produtivo” (2015a, p. 120).

Enfim, para Morin, a base da metamorfose necessária, e que pode imprimir uma maior qualidade e eficácia ao processo educacional, depende de uma “[…] extraordinária reconstrução intelectual […]” (2011b, p. 156). A concepção simplificadora, reducionista e disjuntiva do modelo de ciência clássica torna-nos incapazes de contextualizar os fatos e fenômenos, de religar as partes que constituem um todo, de perceber a intersolidariedade do mundo e, por esta razão, produz uma cegueira de pensamento que nos torna inaptos para compreender os fenômenos globais e planetários. A reconstrução intelectual tem a pretensão de superar o estágio de concepção simplificadora e passar a um horizonte mais amplo de compreensão com base no pensamento complexo. A reforma do pensamento, portanto, está intrinsecamente interligada com todo o processo pedagógico e deve ser compreendida como uma precondição e, de certa forma, como um propósito do ato de educar.

A concidadania terrestre e uma política de civilização

O entendimento da razão de ser da escola, bem como do sentido e dos propósitos da educação na obra de Morin, requer uma análise do percurso de como o pensador vai explicitando essa temática no decorrer da trajetória de suas obras, em que contexto ele se movimenta e como sugere eixos estratégicos, caminhos ou vias para operacionalizar as suas concepções. Esse resgate passa pela leitura e compreensão das obras consideradas nucleares sobre as ideias do autor - como é o caso de O método,7 no qual podem ser encontradas as noções fundamentais sobre sua teoria - e que foram publicadas na França, com tradução e grande repercussão em diferentes países, entre eles o Brasil.

Morin, ao escrever com Anne Brigitte Kern o livro Terra-Pátria, em 1993, faz referência às principais características e aos grandes desafios de uma nova formação histórico-social que estava se desenhando e que ele denomina de era planetária. Esta nova era de grandes transformações tem início a partir da segunda metade do século XX. Os autores analisam o começo da era planetária, o desenvolvimento de uma mundialização cultural e de um folclore planetário, a consciência ecológica planetária, a identidade e as finalidades terrestres do homem, bem como as ameaças que pairam sobre o nosso planeta, provocadas pelos conflitos étnicos, religiosos e políticos, a instabilidade econômica, a degradação ecológica, assim como a derrocada das sociedades tradicionais e das grandes utopias da modernidade.

Com base nessa leitura e concepção de mundo é que Morin e Kern (2000, p. 105) escrevem que “A tomada de consciência de nossas raízes terrestres e de nosso destino planetário é uma condição necessária para realizar a humanidade e civilizar a Terra”. Após constatarem que, no planeta Terra, tudo se liga a tudo, consideram fundamental que o homem compreenda seu enraizamento terrestre e cósmico como uma das finalidades de sua existência e organização na Terra-Pátria. Os autores concluem que há a necessidade de uma reforma do pensamento que tenha como objetivo civilizar a humanidade, formar uma comunidade de destino terrestre e que as “[...] ciências e filosofias deveriam se dedicar a pensar o homem, a vida, o mundo, o real, e o pensamento deveria retroagir sobre as consciências e orientar o viver” (MORIN; KERN, 2000, p. 169), para que surja, enfim, uma consciência coletiva e solidária do destino planetário do gênero humano.

É com base nessa concepção de mundo que Morin (2000a, 2000b, 2001) escreve suas primeiras e mais importantes obras sobre a educação escolar,8 preocupado em situar a educação em um contexto de globalização e planetarização. O foco de suas preocupações consiste em educar as novas gerações para aprenderem a viver em um mundo globalizado e interplanetário. No final do século xx, e já no decorrer deste século, Morin começa a formular e a divulgar a ideia de que a tarefa da educação escolar é formar um aluno com uma cabeça benfeita para que ele aprenda a viver nessa nova fase da História que é a era planetária. Mesmo nos escritos mais recentes, Morin não abandona o foco dessa tarefa da educação e argumenta: “O ensino deve contribuir não apenas para uma tomada de consciência de nossa Terra-Pátria, mas também permitir que essa consciência se traduza em uma vontade de realizar a cidadania terrena” (MORIN, 2015a, p. 157).

Segundo Morin e Kern, a Terra é a Pátria de todos e, por essa razão, a educação escolar deve ensinar o aluno a aprender e a viver as finalidades terrestres com o objetivo de se constituir integrante de uma concidadania planetária, pois todos são filhos do mesmo cosmos.

As idéias que pareciam mais certas sobre a natureza do universo, sobre a natureza da Terra, sobre a natureza da Vida e sobre a própria natureza do homem são subvertidas nos anos 1950-1970, a partir dos progressos concomitantes da astrofísica, das ciências da Terra, da biologia, da paleontologia. Esses progressos revolucionantes permitem a emergência de uma nova consciência planetária (MORIN; KERN, 2000, p. 45).

A História tem revelado o surgimento da solidariedade ecológica e cósmica, no entanto está evidenciando, igualmente, a possibilidade de uma agonia planetária pelo desregramento econômico e demográfico mundial, pela crise ecológica, e também por tudo aquilo que chega na esteira da necessidade do progresso e do desenvolvimento descontrolado da tecnociência. Faz sentido, porém, a necessidade de uma educação com um olhar planetário,9 pois, “[...] o progresso não está assegurado automaticamente por nenhuma lei da história. O devir não é necessariamente desenvolvimento. O futuro chama-se doravante incerteza” (MORIN; KERN, 2000, p. 82, grifos dos autores).

Em que pese sua visão positiva em relação ao rumo e ao progresso da humanidade, sobretudo da civilização ocidental, Morin não se deixa enganar pelos efeitos negativos causados pelos avanços da ciência e da tecnologia. Escreve, em Ciência com consciência (2000c), que a ciência pode promover o progresso, o bem-estar e a riqueza, porém, paralelamente, provoca o desregramento geral e a falta de consciência planetária. Há excesso de desordem e de ruídos no planeta e, por esta razão, é urgente estabelecer uma política da civilização.

Na sua trajetória intelectual, Morin vai acrescentar novos elementos nesse entendimento da função da escola, no entanto jamais abandona a ideia de que todos os humanos habitam o mesmo planeta e que, portanto, a diversidade biocultural da humanidade constitui uma riqueza que deve ser cultivada à luz de um espírito de cidadania terrestre. Em escritos mais recentes esta convicção continua muito evidente.

Para mim, a pátria terrestre aparece na consciência de que somos originados de um mesmo tronco, de uma mesma raiz - a Terra - por meio da evolução biológica. É a consciência de que temos a mesma identidade e de que, através de nossas diversidades culturais e a partir da era planetária, todos os seres humanos têm uma comunidade de destino para todos os problemas de vida e de morte (MORIN, 2011b, p. 151-152, grifo do autor).

A expectativa da realização da utopia da concidadania planetária está na dependência das instâncias que são responsáveis pelo processo educacional. Ainda nas palavras de Morin (2000b, p. 115), “a busca da hominização na humanização, pelo acesso à cidadania terrena”, pode-se visualizar a intencionalidade e uma das grandes finalidades não somente da ação pedagógica em si, mas de todas as instituições políticas e sociais. Manifesta integral confiança na função primordial da educação que, segundo ele, “deve contribuir não somente para a tomada de consciência de nossa Terra-Pátria, mas também permitir que esta consciência se traduza em vontade de realizar a cidadania terrena” (2000b, p. 18, grifos do autor).

Tanto nos seus escritos individuais quanto nas publicações em coautoria, Morin é enfático em apontar as finalidades terrestres e cósmicas como uma diretriz para o processo de educação, de hominização e de salvaguarda da humanidade: “A missão da educação para a era planetária é fortalecer as condições de possibilidade da emergência de uma sociedade-mundo composta por cidadãos protagonistas, consciente e criticamente comprometidos com a construção de uma civilização planetária” (MORIN; CIURANA; MOTTA, 2003, p. 98).

Nesta nova era que assume definitivamente as características de planetarização e globalização e que torna o homem um cidadão do mundo, o despertar para uma sociedade-mundo deve ser o principal objetivo da educação.

Ensinar a pensar e a viver: uma inspiração em Montaigne e Rousseau

Para ampliar o entendimento sobre qual a razão de ser da escola, e quais devem ser os sentidos e as principais finalidades da educação nos escritos de Morin, é necessário ter presente, além de outros,10 dois importantes pensadores do período moderno, considerados fonte de inspiração e sustentação de suas ideias. A primeira referência é à obra de Montaigne,11 de onde Morin retira a célebre expressão cabeça benfeita.

Morin considera a expressão cabeça benfeita muito rica e significativa e, por isso, a emprega até mesmo como título de um livro, tendo, no entanto, o cuidado de ressignificá-la e atualizá-la. Essa inspiração proporciona ao autor o argumento de que uma cabeça benfeita, nos tempos atuais, não pode ter o mesmo significado que Montaigne atribuiu à expressão no início do período moderno. Vale a expressão, mas com outro sentido. No princípio da modernidade, Montaigne menciona que cabe à escola formar um aluno com uma cabeça benfeita expressando que ela tem o mesmo significado que uma mente enciclopédica, repleta de informações, com grande aptidão para assimilar e memorizar todos os saberes importantes produzidos até aquela época. Já para Morin (2000a, p. 21), “‘uma cabeça bem-feita’ significa que, em vez de acumular o saber, é mais importante dispor ao mesmo tempo de: - uma aptidão geral para colocar e tratar os problemas; - princípios organizadores que permitam ligar os saberes e lhes dar sentido”.

De acordo com a tradição do processo de ensino-aprendizagem, o aluno aprende informações desconexas e pouco significativas; aprende-se muito bem a separar, analisar e fragmentar o conhecimento, mas o imperativo agora é contextualizar e religar. Um dos grandes desafios de Morin é demonstrar a necessidade, a importância e o caminho da religação e contextualização dos saberes, pois “O pensamento complexo se esforça para religar” (MORIN, 2011b, p. 150). De acordo com o autor, “É preciso substituir um pensamento que isola e separa por um pensamento que distingue e une. É preciso substituir um pensamento disjuntivo e redutor por um pensamento do complexo, no sentido originário do termo complexus: o que é tecido junto” (2000a, p. 89, grifo do autor).

No entendimento de Morin, o conhecimento pertinente é resultante de “[…] um pensamento capaz de religar as noções disjuntas e os saberes compartimentados” (2011b, p. 57). O conhecimento pertinente pressupõe, por isso, a transdisciplinaridade para religar os saberes. Nas palavras do autor (2001, p. 566),

Se quisermos um conhecimento segmentário, encerrado a um único objeto, com a finalidade única de manipulá-lo, podemos então eliminar a preocupação de reunir, contextualizar, globalizar. Mas, se quisermos um conhecimento pertinente, precisamos reunir, contextualizar, globalizar nossas informações e nossos saberes, buscar, portanto, um conhecimento complexo.

O outro grande filósofo e pedagogo, de quem Morin vai buscar inspiração, é Jean-Jacques Rousseau.12 No ápice da modernidade, Rousseau reafirma a importância da figura do pai na tarefa de ensinar o filho a viver. Se nos seus escritos iniciais sobre educação Morin apoiava-se na expressão cabeça benfeita de Montaigne, nos escritos posteriores e mais recentes, no entanto, percebe-se a grande inspiração que o pensamento de Rousseau exerce sobre ele. É o próprio autor quem revela essa influência no seu livro Meus filósofos (2013a, p. 68): “Para mim, desde muito cedo, Rousseau revelou uma grande inspiração para além da dúvida e da razão”. Nesse livro, Morin dedica um capítulo inteiro, com cerca de dez páginas, ao pensamento de Rousseau, e confessa que tem uma dívida múltipla com os espíritos que o formaram e o alimentaram, dentre os quais o pensamento rousseauniano. Na abertura do capítulo escreve:

Amo esse genebrês totalmente autodidata, de uma sensibilidade surpreendente, que após todo tipo de aventuras desembarcou em Paris e, entre os filósofos da época, demonstrou imediatamente a profundidade de sua inspiração, inspiração essa que era simultaneamente literária, política e filosófica (2013a, p. 67).

Morin, ao fazer referência à importância das ideias desses dois pensadores nos quais buscou inspiração, pondera: “[...] em minha perspectiva, Rousseau é um pedagogo indissociável de Montaigne: ‘uma cabeça bem-feita’ e ‘ensinar a viver’ são dois objetivos indissociáveis e complementares” (2013a, p. 73). Assim, enquanto Montaigne está preocupado com uma Pedagogia que capacite a escola a formar um aluno com uma cabeça benfeita, Rousseau destaca a tarefa de ensinar o filho/o aluno a viver. Morin, em suas teses sobre a função da educação e os fins do ato de educar, associa a contribuição desses dois pensadores e enriquece os propósitos do processo educacional ao indicar que é tarefa da escola formar um aluno com uma cabeça benfeita para que, desta forma, ele aprenda a viver. À escola cabe, como tarefa principal e ampla, ensinar o aluno a viver.

Uma leitura atenta do livro de Morin Os sete saberes necessários à educação do futuro, escrito em 1999, a pedido da Unesco, já revela a forte influência de Rousseau. Um dos sete saberes necessários à educação do futuro, apontados por Morin, é Ensinar a condição humana (2000b). Os estudos sobre a natureza e a condição humana, em sua visão, constituem-se em um buraco negro e em uma verdadeira lacuna escolar e, por isso, já eram indicados como uma das temáticas imprescindíveis para a educação no livro Emílio, ou, Da Educação de Rousseau (2004, p. 15): “O nosso verdadeiro estado é o da condição humana”. Deste modo, inspirado em Rousseau, ao destacar os sete saberes necessários para a educação, Morin (2000b) reforça a necessidade de introduzir estudos e noções sobre a condição e natureza humanas, em todos os níveis escolares. Proporcionar estudos, em forma de projeto ou mesmo de disciplina que visem à compreensão da natureza e dignidade humanas deveria ser uma das preocupações do ensino escolar.

Morin alerta que o ensinar a viver, no entanto, não pode se apoiar em ações pedagógicas que tenham como base apenas princípios epistemológicos, embora a partir do momento em que elabora os princípios da complexidade, não esconde a insatisfação epistemológica referente aos limites do conhecimento disciplinar. O processo cognitivo é fundamental para captar e resolver os problemas que se apresentam no cotidiano de cada um, mas a educação possui também outras grandes finalidades a atingir, que são de cunho ético e político. Escreve o autor: “[…] esboçam-se as duas grandes finalidades ético-políticas do novo milênio: estabelecer uma relação de controle mútuo entre a sociedade e os indivíduos por meio da democracia, fazer da humanidade uma comunidade planetária” (2015a, p. 157).

A expressão ensinar a viver, portanto, empregada por Morin de forma mais enfática em seus últimos escritos, foi inspirada na célebre frase de Rousseau na educação do Emílio: “Viver é o ofício que eu lhe quero ensinar” (2004, p. 15). Em Rousseau, esse propósito da educação é analisado e contextualizado levando em conta as características de seu tempo. Morin, porém, quer trazer a preocupação de Rousseau de ensinar a viver para os tempos atuais, atribuindo-lhe, no entanto, outros significados. Ele próprio faz este esclarecimento no Prefácio do seu livro A cabeça bem-feita, quando, ao refletir sobre uma linha de ideias que pudessem orientar seu posicionamento sobre os propósitos da educação, escreve com esse intuito: “algumas anotações para um Emílio contemporâneo” (2000a, p. 9).

Tal qual Rousseau, Morin procura respostas para perguntas como: O que é a vida? Qual o significado do viver? O que significa o bem-viver e o viver bem? É possível lidar com as incertezas e as ilusões? O que é viver com liberdade e autonomia? Na expressão ensinar a viver, portanto, na ótica de Morin, cabem desde os objetivos específicos de cada componente disciplinar, de forma menos explícita, até os grandes fins de cada área ou mesmo de cada grau de ensino. Em última análise, tudo o que a escola planeja, organiza e operacionaliza tem como propósito último ensinar o aluno a aprender a viver.

Em um desses novos significados, Morin revela seu lado filosófico, resgatando a importância da reflexão no currículo escolar, tantas vezes sacrificada em nome da eficiência e eficácia do pensamento, do cálculo, das decisões e dos resultados. Esse distanciamento que permite ao sujeito enxergar-se a si mesmo como objeto, mesmo sabendo que se é sujeito, é oportunizado pela reflexão filosófica. O autor (2015a, p. 39) enfatiza: “O que é necessário ensinar e aprender é exatamente isso: saber se distanciar, saber se objetivar, saber se aceitar, saber meditar, refletir”. Compreender a si mesmo para compreender os outros, isso é a Pedagogia, a Antropologia e a Filosofia da Filosofia.

Em uma espécie de diagnóstico, Morin expressa a sua preocupação de que a escola atual não está sabendo preparar as novas gerações para viver a aventura da vida com a seriedade que esta merece. A escola “Não fornece as defesas para se enfrentar as incertezas da existência, não fornece as defesas contra o erro, a ilusão, a cegueira” (2015a, p. 54).

Enfim, ao retomar os sete saberes necessários para uma educação do futuro, ratifica que a escola “[...] não fornece os meios que permitem conhecer a si mesmo e compreender o próximo. Não fornece a preocupação, o questionamento, a reflexão sobre a boa vida ou o bem-viver. Ela não ensina a viver senão lacunarmente, falhando naquela que deveria ser sua missão essencial” (2015a, p. 54). O fracasso evidente da escola, no que se refere a sua missão de ensinar a viver, é analisado por Morin no seu último livro Ensinar a viver: manifesto para mudar a educação (2015a), sobretudo nos capítulos II, Uma crise multidimensional, e III, Compreender, com uma crítica exacerbada ao ensino atual, que promove a inadequação entre os saberes fragmentados, em forma de disciplinas, com a realidade e os problemas que são cada vez mais de ordem polidisciplinar, transversal, multidimensional e planetária.

O conhecimento disciplinar e fechado, instituído historicamente, ainda que proporcione avanços científicos, por si só, impossibilita a real compreensão dos problemas do mundo. É necessário um conhecimento pertinente e transdisciplinar que contemple os diferentes saberes sem isolá-los, que situe e religue as informações e o conhecimento em si, no seu contexto, possibilitando uma visão mais complexa de mundo. É necessário, no entendimento de Morin, resolver o problema “da não-pertinência […] de nosso modo de conhecimento e de ensino, que nos leva a separar (os objetos de seu meio, as disciplinas umas das outras) e não reunir aquilo que, entretanto, faz parte de um ‘mesmo tecido’” (2001, p. 14, grifos do autor). A complexidade do real tem como pressuposto de compreensão um conhecimento pertinente; e esse não é um problema apenas do Ensino Médio, mas de todo o ensino, em qualquer nível, sobretudo no Ensino Superior. Com relação ao modelo de ciência clássica e à insuficiência da lógica tradicional que modela o pensamento ocidental desde Aristóteles e orienta, de forma predominante, o paradigma moderno, Morin ousa afirmar que “[…] precisamos de uma lógica maleável ou fraca em uma concepção metalógica (racionalidade aberta) e supralógica (paradigma de complexidade)” (2011a, p. 239). É necessária, portanto, uma lógica aberta à complexidade que permita ao pensamento dialogar com o universo.

Em síntese, a função de ensinar a pensar - formar uma cabeça benfeita - precisa ser colocada como um pressuposto para ensinar/aprender a viver. Formar um aluno com uma cabeça benfeita, ou seja, que tenha aptidão para operar com os princípios cognitivos da complexidade e, por decorrência, ensinar o aluno a viver na era planetária, seriam os grandes propósitos que estariam no centro da razão de ser da escola e do sentido do ato de educar. Desta forma, ao ensinar o aluno a pensar com base em uma cabeça benfeita, a escola estará fornecendo as condições para que ele aprenda a viver. Cabe ao aluno, sob a orientação da escola, aprender a pensar para aprender a viver.

O ensinar a pensar e o ensinar a viver são, pois, dois propósitos abrangentes, complementares e interligados do processo educacional e são fundamentais para educar o jovem no contexto em que vive, e possuem muitas outras implicações e desdobramentos na educação para a cidadania, na profissionalização, na autonomia, na incerteza, na multi/interculturalidade e na diversidade cultural.

Seguindo em frente em meio a oceanos de incerteza

Com base nessas considerações sobre a razão de ser e a função da escola no processo de formação das novas gerações, é possível acreditar que existem algumas ilhas, ou mesmo arquipélagos, de certeza; no entanto, em um mundo de mudanças e transformações aceleradas, as incertezas são oceânicas. Temos de investigar caminhos possíveis e, ainda que de forma provisória, apostar em novos princípios organizadores do conhecimento com potencial para enfrentar os desafios da complexidade contemporânea e promover as metamorfoses necessárias no processo educacional. Por isso, sabemos o quanto tudo o que escrevemos tem caráter polêmico e polissêmico e que ainda requer maiores aprofundamentos.

Quando Morin escreve sobre os sete saberes necessários à educação do futuro, quando organiza jornadas temáticas com o objetivo de pensar a escola em relação aos desafios contemporâneos, ou mesmo quando elabora um tipo de manifesto para mudar a educação, expressa certo otimismo com os rumos da educação, mas, ao mesmo tempo, tem consciência das limitações e dificuldades presentes nesse percurso.

É fundamental, de qualquer forma, ter consciência sobre qual é o referencial teórico que vai inspirar o paradigma que irá comandar e orientar o processo educacional. O paradigma da complexidade, segundo a ótica de Morin, tem a pretensão de promover uma revolução intelectual e fornecer novas formas de compreensão sobre a complexidade da realidade contemporânea que possam sustentar outras políticas de civilização, em um mundo planetário e globalizado.

Morin aposta na reforma do pensamento para reformar a escola bem como outras instituições. Ele entende que “Não haverá transformação sem reforma do pensamento, ou seja, revolução nas estruturas do próprio pensamento. O pensamento deve tornar-se complexo” (2000d, p. 10); reconhece, assim, que a transformação das estruturas de pensamento passa por uma mudança nas mentalidades e isso é, sem dúvida, um problema difícil e que requer um longo tempo. A revolução da reconstrução do pensamento é um desafio que deve conduzir à complexidade:

Assim, uma das vocações essenciais da educação do futuro será o exame e o estudo da complexidade humana. Conduziria à tomada de conhecimento, por conseguinte, de consciência, da condição comum a todos os humanos e da muito rica e necessária diversidade dos indivíduos, dos povos, das culturas, sobre nosso enraizamento como cidadãos da Terra… (2000b, p. 61).

Cabe perguntar com Morin: Qual o limite e o potencial ainda não explorado da complexidade? As possibilidades ainda não exploradas pelo paradigma da complexidade serão suficientes para promover novos rumos e significados para o ato de educar? O propósito do pensamento complexo consiste em tentar dialogar com as diferentes lógicas que constituem a complexidade da realidade, e isso implica uma revolução epistemológica e do conhecimento, tendo presente que a complexidade não é receita, nem fundamento, tampouco resposta, mas “é o princípio regulador que não perde de vista a realidade do tecido fenomênico no qual estamos e que constitui o mundo” (MORIN, 2006, p. 105).

Na ótica otimista e realista de Morin há indícios de metamorfose: “Processos metamórficos estão em curso […]. Não se pode, entretanto, prever com segurança uma metamorfose na história da humanidade” (2011b, p. 29). Revelando preocupação com a possibilidade de a humanidade rumar para um abismo, Morin sugere como uma via possível e meta prioritária para as nossas práticas sociais e pedagógicas a realização de uma metamorfose profunda que vise a civilizar e restaurar a nossa forma de operar o pensamento com base em princípios organizadores do conhecimento.

Embora já existam algumas tentativas por parte de escolas, de grupos de estudo ou de programas de pesquisa que estão buscando se organizar tendo como base o modelo de pensamento complexo, pode-se afirmar que estamos longe de atingir o nível desejado. Ainda há um longo caminho a ser percorrido para que tal meta se traduza em prática pedagógica e institucional. A aventura do conhecimento não consiste em dissipar, separar, dispersar, “[…] mas reconhecer o profundo mistério inerente à condição humana, à vida, ao universo e àquilo que denominamos realidade” (2013a, p. 17). Nas palavras de Morin (2015b, p. 3): “Falta, de maneira geral, uma base pedagógica institucional para desenvolver o que tenho defendido em meus livros sobre a complexidade”.

Em síntese, encontramos, em diferentes lugares e momentos da obra de Morin, posicionamentos e convicções sobre a razão de ser, o sentido e os grandes propósitos da educação escolar. Morin conclui: “A missão desse ensino é transmitir não o mero saber, mas uma cultura que permita compreender nossa condição e nos ajude a viver, e que favoreça, ao mesmo tempo, um modo de pensar aberto e livre” (2000a, p. 11). Aí estão implícitos os grandes fins da educação e do ato de educar: primeiro, é fundamental que a escola se empenhe para formar um aluno com uma cabeça benfeita, isto é, com capacidade de organizar e processar o conhecimento e, segundo, que ela ensine os alunos a viverem, oportunizando-lhes estudos sobre a natureza e a condição humana como pré-requisito para conviverem como concidadãos de uma Pátria-Comum, a Terra-Pátria.

Referências

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1Na sinopse do seu Livro sem fim (2002) Rubem Alves de forma muito sincera faz um esclarecimento sobre o porquê desse título. Conforme o autor, a obra teria o propósito de tratar sobre a arte de educar, mas como essa tarefa é algo sempre em movimento e gestação e, portanto, inesgotável, assim como é a própria vida, nunca foi possível concluí-la. Escrever, pois, uma obra sobre o sentido e os propósitos da educação e que possa ser considerada exaustiva e conclusiva sobre essa temática é uma tarefa sem fim.

2 Martinazzo (2014), ao escrever uma resenha sobre a Gênese das leis e dos princípios da teoria da complexidade em Edgar Morin, destaca que, dentre os pensadores, Morin inclui não apenas aqueles que são considerados filósofos no sentido corrente do termo, mas cientistas, músicos, historiadores, romancistas, escritores e poetas, enfim, todos aqueles que de uma forma ou de outra contribuíram e/ou contribuem para a compreensão da realidade.

3A ideia de regeneração, incorporada por Morin como um princípio da complexidade, pode ser encontrada em fragmentos dos primeiros filósofos, como Heráclito, que constatou que vivemos de morrer e morremos de viver.

4A ciência moderna, apesar de representar um avanço enorme em relação às formas tradicionais de conhecimento, também é responsável por produzir as bases epistemológicas de um novo modelo de conhecer o qual Morin denomina de paradigma da simplificação.

5A noção de paradigma é concernente a muitas das obras de Morin, sobretudo nos seis volumes de O método. No final dos volumes cinco e seis, há um léxico com a definição deste termo quando, entre outras concepções, podemos entender que um paradigma funciona como um princípio organizador do conhecimento, ou seja, uma matriz prévia de pensamento que possibilita perceber a realidade de uma ou de outra forma e que, muitas vezes, é oculto e inconsciente (MORIN, 2012).

6O movimento recursivo é um princípio cognitivo da complexidade que revela o elo de interligação e interdependência entre causa e efeito, produtor e produto. Um exemplo muito explícito deste princípio está nesta frase de Morin: “Os indivíduos produzem a sociedade que produz os indivíduos” (2015a, p. 112).

7Morin escreveu seis volumes com o título geral de O método e cada um com um subtítulo, no período que vai de 1973 a 2005, publicados no Brasil pela Editora Sulina. Nesses seis volumes ele explicita as leis e os princípios que constituem a teoria da complexidade, bem como analisa como essa teoria pode ser uma chave de leitura e compreensão do real e, por decorrência, de construção de conhecimentos pertinentes. Morin, em diferentes momentos, utiliza a palavra complexidade de forma associada e como predicado de Ciência, Filosofia, teoria, paradigma, método, lógica e fenômeno.

8Morin demonstra certo cuidado no emprego de termos como “educação”, “ensino”, “formação”, “instrução” e, por esta razão, ele tem preferência pelo uso da expressão ensino educativo (2000a) para caracterizar o processo de ensino-aprendizagem da escola.

9No seu mais recente livro Ensinar a viver: manifesto para mudar a educação (2015a), como de resto é também uma prática característica em todas as suas outras obras, Morin recapitula, ratifica e amplia, com novos matizes, alguns dos seus principais conceitos. Nesta obra, por exemplo, ele utiliza, pela primeira vez, o termo antropocena para caracterizar a efervescência da história atual. Segundo ele, estamos vivendo em uma “[...] era simultaneamente antropocena, do ponto de vista da história da Terra, e planetária, do ponto de vista da história das sociedades humanas” (2015a, p. 10). O termo antropocena foi criado por Paul Crutzen, ganhador do Prêmio Nobel de Química e recebeu grande força a partir de 2008 para indicar a era mais recente da História do planeta Terra.

10Quem tiver interesse em conhecer com maior profundidade a gênese e o desenvolvimento das principais ideias de Edgar Morin, poderá ler as obras autobiográficas do autor, dentre elas: Meus demônios (2000d) e O meu caminho (2008).

11Michel de Montaigne (1533-1592) foi um importante escritor, filósofo e pedagogo francês do século 17. As suas principais obras refletem a experiência do escritor e tratam essencialmente dos costumes, da política e da moral do homem. Formado em direito, foi um defensor da liberdade religiosa e combateu todo o tipo de violência. A sua principal obra foi reunida em três volumes com o título de Ensaios, publicada pela primeira vez em 1580, na qual aborda temáticas que ajudam a compreender a complexidade humana. Defensor do humanismo renascentista, sua contribuição foi fundamental na constituição do pensamento moderno. Suas teses sobre a educação sustentam o respeito à personalidade da criança com o propósito de formar um homem honesto com capacidade de refletir por si mesmo.

12Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), filósofo e pedagogo suíço, é considerado um dos principais pensadores do Iluminismo, e suas ideias exerceram forte influência na Revolução Francesa. A sua grande obra pedagógica e antropológica, na qual Morin busca inspiração, é Emílio, ou, Da Educação (2004), publicada pela primeira vez em 1762.

Recebido: 03 de Setembro de 2018; Aceito: 24 de Abril de 2019

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