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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.33 no.67 Uberlândia jan./abr 2019  Epub 30-Ago-2021

https://doi.org/10.14393/revedfil.v33n67a2019-47305 

Resenhas

Contra o utilitarismo na educação e na ciência

Vinicius Carvalho da Silva* 

*Doutor em Filosofia da Ciência e Teoria do Conhecimento pelo PPGFIL-UERJ (Bolsa FAPERJ). Leciona Epistemologia, Teoria e História da Ciência e Antropologia Filosófica na Universidade Federal do Tocantins. E-mail: viniciusfilo@gmail.com

ORDINE, Nuccio. A utilidade do inútil - um manifesto. Trad. Luiz Carlos Bombassaro, Rio de Janeiro: Zahar, 2016. 223pp.


Em A utilidade do inútil, do filósofo italiano Nuccio Ordine, retoma um tema tradicional, mas inesgotável: o valor da educação e sua relação com a cultura. Ordine identifica que vivemos uma profunda crise cultural, que assola a Escola e a Universidade. Ambas padecem diante do avanço de uma mentalidade utilitarista, praticista e produtivista, motivada pela lógica implacável do lucro. Tais espaços, que deveriam ser de formação intelectual e humanística, se convertem em empresas especializadas em formar não cidadãos críticos e livres pensadores, mas mão de obra especializada para o mercado de trabalho e consumo.

A obra é composta por três partes e um apêndice. Na primeira parte, “A inutilidade da literatura”, Ordine discute o valor da cultura para as sociedades humanas recorrendo a nomes de todas as épocas, como Aristóteles, Dante e Petrarca, Kant, Montaigne e Gabriel Garcia Marquez. Sua intenção é demonstrar como a obra de tais autores, cujo valor é inestimável, não possui nenhuma utilidade prática sensu strictu. É justamente por possuírem tal inutilidade que são transcendentes. Aquilo que torna a cultura valiosa não pode ser submetido à pergunta simplória e apressada dos utilitaristas: ‘para que isso serve?’. Na segunda, “A universidade-empresa e os estudantes clientes”, Ordine ataca o problema da educação. Analisa, da escola à universidade, como o utilitarismo corrompe a formação intelectual e cidadã. Mais uma vez, passeia pela história, tratando de nomes que vão desde Euclides e Arquimedes na antiguidade, ao cientista filósofo do século XIX e XX, Henri Poincaré. Estes são tomados como símbolos de uma concepção de educação e ciência que defende que o valor do conhecimento está muito além de sua utilidade imediata. A educação deve nos preparar para a vida cívica e nos liberar para a criativa ousadia do pensamento. No apêndice, Ordine reproduz um texto 1939 de Abraham Flexner, ex-diretor do Instituto de Estudos Avançados de Princeton. Em A utilidade do conhecimento inútil, Flexner narra o ambiente de total liberdade criativa oferecido aos pesquisadores de Princeton, como Albert Einstein, Kurt Gödel e outros. O autor defende que a missão da educação é formar livres pensadores, críticos, criadores, sem preocupação utilitária.

Para compreendermos Ordine e Flexner, temos que traçar uma diferença entre o que conta como utilidade em uma ética utilitarista e o que conta como utilidade em uma visão consoante com aquela oferecida por tais autores.

Em uma ética não utilitarista, “útil” é aquilo que contribui para nossa evolução espiritual, para o florescimento de uma rica e abrangente cultura de ciências, artes e letras, para o aprofundamento dos valores humanísticos que sustentam uma sociedade que clama por justiça, que cultiva a verdade, o bem e o belo. Já no utilitarismo, “útil” é a commodity. Devemos, então, enfrentar a seguinte questão: Poderá o conhecimento científico ser produzido em um sistema com ethos utilitarista? Podem as ciências ser praticadas, comoditizadas e empregadas como uma etapa estratégica dessa logística corporativa? Se a resposta for sim, talvez isso não ocorra sem que o custo do processo seja a degradação do conhecimento científico e da cultura em geral.

Em sua obra Ordine critica a cultura que só visa o lucro e a utilidade prática. Ao comentar seu livro, o filósofo disse que a cultura humanística da Europa perdeu seus valores, que as artes e ciências sofrem com falta de fomento em um mundo que valoriza o ganho imediato por meio do consumismo superficial, e que uma Europa assim, está destinada ao naufrágio. A civilização utilitarista que visa somente ao lucro e despreza a utilidade do inútil está caminhando a passos largos em uma rota autodestrutiva.

Uma leitura apressada do seu livro pode sugerir aos incautos que Ordine endossa a dicotomia entre ciências humanas e naturais e levanta um manifesto a favor dos clássicos e das humanidades. Todavia, seria um engodo pensar isso. Em uma visão ampla de cultura, o filósofo não separa as ciências em caixas estanques, dividindo o saber em especialidades isoladas. Para Ordine, todo o campo do conhecimento sofre com o avanço do utilitarismo.

Ordine ressalta que humanistas e cientistas devem lutar no mesmo front contra o utilitarismo. Um de seus sintomas mais evidentes, para o autor, são os investimentos pífios que a pesquisa básica recebe em relação à pesquisa aplicada, cujo objetivo é desenvolver um “produto” capaz de ser explorado pelo mercado. O filósofo argumenta que sem a pesquisa fundamental, comercialmente desinteressada, não teríamos as maiores revoluções teóricas da história da ciência, revoluções essas que permitiram aplicações em algum momento posterior. O rádio inventado por Marconi não seria possível sem as pesquisas básicas de Maxwell e Hertz, e se ambos fossem perguntados para o que serve o rádio, eles diriam, àquela altura, que para nada além da expansão dos limites do conhecimento natural.

Conforme Ordine, o utilitarismo é insustentável, auto implosivo, pois ao limitar tanto a pesquisa fundamental e desinteressada para favorecer a pesquisa aplicada, acabará por inviabilizar a pesquisa aplicada futura, pois esta sempre necessita de uma base teórica fecunda para se erguer. O perigo do utilitarismo ameaça a cultura, e, portanto, recaí tanto sobre os humanistas quanto sobre os homens de ciência. Não se trata, portanto, de reivindicar mais investimentos em literatura, poesia clássica, filologia ou filosofia. A discussão é mais sutil e sofisticada. É um problema que toca o cerne do ethos da civilização contemporânea e que pode ser expresso por meio de uma questão fundamental: “Qual é o valor da cultura?”. É o espírito do nosso tempo que merece nossa reflexão profunda. Qual nosso ideal de civilização, que tipo de sociedade nós queremos, quais coisas valorizaremos como aquelas que dão sentido à vida e em nome das quais lutaríamos, em sua preservação, contra a barbárie, a banalização do mal e o avanço de uma distopia niilista? Evidentemente há problemas de ordem local, de dimensões microssociais, para os quais somente o olhar atento, meticuloso, etnográfico, atento à realidade concreta do espaço reduzido poderá nos revelar algo. Isto não anula o fato de que há problemas macrossociais que extrapolam as fissuras regionais, (que são como pequenas rachaduras estruturais que podem ser vistas não em uma parede de um apartamento qualquer). Problemas globais nas colunas que sustentam toda a estrutura do edifício. As duas dimensões coexistem, e exercem influência recíproca.

Em A utilidade do inútil, Ordine constrói essa narrativa de crítica cultural ampla, abordando a questão como um desafio macrossocial global. Seu tom é pesado e enérgico. Fala em barbárie da utilidade e ditadura do lucro, que tornam a gratuidade e o desinteresse em valores retrógrados e pontua que o utilitarismo está corroendo igualmente as disciplinas humanísticas e científicas.

Recebido: 12 de Março de 2019; Aceito: 28 de Agosto de 2019

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