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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.33 no.67 Uberlândia jan./abr 2019  Epub 30-Ago-2021

https://doi.org/10.14393/revedfil.v33n67a2019-41807 

Resenhas

RUNCIMAN, David. Política: uma pequena introdução a um grande tema. Trad. Paulo Ramos. Lisboa: Objectiva, 2016. 192 p.

José Costa Júnior* 

*Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor de Filosofia e Sociologia do Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG), no Campus Avançado Ponte Nova. E-mail: jose.costajunior@yahoo.com.br

RUNCIMAN, David. Política: uma pequena introdução a um grande tema. Trad. Paulo Ramos, Lisboa: Objectiva, 2016. 192 pp.


Estamos cada vez mais céticos em relação à política e aos políticos nessas primeiras décadas do século XXI. A ausência de respostas aos problemas mais próximos dos cidadãos, a dificuldade de representação, além dos frequentes questionamentos morais sobre as práticas dos políticos são alguns dos motivos que fundamentam esse ceticismo. No entanto, há poucas décadas, mantínhamos expectativas melhores acerca das instituições políticas e dos seus líderes. Após os grandes conflitos, derramamentos de sangue e colapsos sociais do século passado, nutrimos grandes expectativas em relação à democracia, a ponto do cientista político Francis Fukuyama defender que havíamos chegado ao “fim da história”: o modo de organização político oferecido pela democracia seria a forma mais estável e definitiva. Governos estáveis, representativos, com participação popular e diálogo atenderiam as demandas das pessoas, que valorizariam cada vez mais as bases democráticas em que viviam. No caso dos locais onde essa forma de organização política ainda não fosse assim, seria uma questão de tempo até haver tal reconhecimento.

O artigo de Fukuyama foi publicado em 1989, com o título “The end of history?” No entanto, nos 30 anos que nos separam da hipótese premonitória do cientista político americano, muita coisa aconteceu em termos políticos. Diversos conflitos entre e com os sistemas despóticos no Oriente Médio, crises política e social nos Balcãs, ondas separatistas na Europa, problemas com corrupção na América Latina e guerras civis nos países africanos formam uma pequena e resumida lista de que as mudanças e possibilidades de ajustes nas organizações políticas não chegaram a término. Podemos ser caridosos com a hipótese de Fukuyama e destacar sua defesa da democracia liberal como uma meta a seguir, mas é inegável que, em termos políticos, nada é tão simples como poderia apontar a ideia de “fim”.

A insatisfação com a política também envolve o fato de sermos mais críticos. Sabemos mais e nos informamos constantemente, bombardeados por informações a todo momento. Observamos violências, escândalos e ineficácia na administração das coisas públicas a todo momento. Quem vive numa estrutura sociopolítica mais livre, passa então a criticar cada vez mais, e ser mais cético. Quem não vive com tanta liberdade de expressão, aumenta seu ceticismo, criticando os políticos de maneira velada. Nessa situação, uma expectativa forjada no século XVIII também se mostrou pouco eficaz: trata-se da esperança de que cidadãos bem formados e educados poderiam escolher e estruturar melhor sua organização política. Assim, paradoxalmente, vivemos num mundo onde nunca houve tanta informação e conhecimento disponíveis, porém, com sistemas políticos em crise, com o surgimento de reações e revoltas, muitas vezes violentas e que nada mais fazem do que atacar a própria política.

Com o objetivo de oferecer informações para aqueles que se encontram à deriva nesse momento, o cientista político britânico David Runciman (1967) escreveu Política: uma pequena introdução a um grande tema. Publicado na Grã-Bretanha, em 2014, o livro recebeu uma tradução para o português em 2016 e seria muito bem-vindo no Brasil. Trata-se de um livro introdutório, que discute conceitos filosóficos básicos da política, sem deixar de abordar questões de nosso tempo. Por aqui, no sistema de ensino tradicional, os livros didáticos raramente abordam questões políticas para além da descrição histórica e pouco analíticas de tais questões. As publicações ou são sofisticadas para leitores menos especializados ou defendem posicionamentos que pressupõem prévio contato com hipóteses em ciência política e filosofia política. O livro de Runciman aborda questões tradicionais de forma direta (Por que alguns países oferecem uma vida melhor do que outros?), atuais (Qual é o impacto da tecnologia na política?) e que nos incomodam (Por que aceitamos a desigualdade?). Faz isso sem perder a organização e a referência às hipóteses fundamentais da política, além de mostrar a impossibilidade de haver um fim para a história das formas de organização política.

O livro é estruturado em uma parte introdutória, três capítulos e um epílogo. Logo na Introdução, Runciman faz uma pergunta bastante pertinente: o que distingue a Dinamarca da Síria, em termos do tipo de vida oferecido aos seus habitantes? E mostra que boa parte dessa diferença está pautada nos modos de organização das diferentes políticas desses países. Sem alterar a natureza humana, a política amplia ou mitiga alguns dos nossos traços, oferecendo ou não as estabilidades necessárias para uma vida segura. Dessa forma, a negação ou o desconhecimento da política sempre é um risco para nossas sociedades, uma vez que é a própria política que nos dá sustentação para organizar a vida. No entanto, nada é simples em política: importar o governo dinamarquês para os sírios não seria uma solução inteligente, pois causaria mais problemas, uma vez que tais países têm histórias, ambientes e circunstâncias completamente diferentes.

No Capítulo 1, Runciman continua a defesa da dificuldade de negarmos a política. Primeiramente porque é a organização política que faz o controle da violência, entre o consenso e a coerção. Não teríamos segurança para ir à padaria sem política. Nem para ter planos ou empreender. Tais ações são permitidas por uma rede de acordos coletivos que buscam estabilizar os agrupamentos humanos e que são politicamente estruturadas. Onde a política falha e não há essa organização, há riscos de que não exista realização humana: “Um mundo sem política é um mundo em que a violência não tem limites nem controle: uma série interminável de ataques” (p. 25).

O surgimento do estado é um processo fundamental para o desenvolvimento da organização política. Runciman realiza uma interpretação da filosofia política de Thomas Hobbes, não para ressaltar a necessidade de força de uma política dura e limitadora de liberdades, mas para mostrar como um estado contribui para a estabilidade política. No entanto, o caráter estável da organização política não garante que tudo é “pão e rosas”. Passamos então de uma discussão sobre os modos de governo, pautados agora pela tensão entre liberdade e organização. O que um governante pode fazer? Até que ponto pode agir. Aqui Runciman retoma e analisa algumas propostas de Nicolau Maquiavel, alguém que também tratou com propriedade do “dilema das mãos sujas”, conforme o autor descreve os possíveis conflitos de quem governa. Recupera a noção de Max Weber do estado como portador do monopólio da violência, onde aceitamos ser governados de algum modo, de preferência democrático, para que possamos nos realizar enquanto humanos.

No final do primeiro capítulo, temos uma interessante discussão sobre os motivos para participação política. Por que as pessoas cada vez mais se afastam da política? Runciman retoma o que chama de paradoxo de Benjamim Constant para abordar essa questão: a política passa a ficar cada vez mais imperceptível, na medida em que oferece condições para que possamos cuidar de nossas vidas. Assim, não temos motivos para nos preocupar. Essa situação pode ser observada nas nossas sociedades modernas, onde temos muitas coisas para fazer e nos preocupar, mas temos pouco espaço para as preocupações e informações adequadas sobre os processos políticos. Quando algo não vai bem, rapidamente nos rebelamos e reagíamos, sem, no entanto, saber o que está em jogo e como chegamos até essa situação. A saída: mais envolvimento político.

O Capítulo 2 começa com uma análise sobre a revolução da tecnologia em nossas vidas e na política. No caso dessa última, as novas possibilidades de interação digital social levaram a possibilidades pouco imaginadas pelos cientistas políticos. Os modos de manifestação e motivação política foram radicalmente alterados por tais possibilidades e ainda não sabemos bem o produto que a relação entre tecnologia e política irá produzir, como podemos ver no caso do uso de dados dos usuários por parte do Facebook para direcionamento de mensagens, que tanto influiu nos resultados das eleições americanas de 2016. Estados e políticos também podem usar dados como esses para diversas finalidades, impactando a liberdade de seus cidadãos. Runciman também aborda o papel das empresas de tecnologia nos governos, principalmente em relação às questões ambientais, um dos nossos maiores desafios políticos.

O autor também trata da relação entre tecnocracia e democracia, mostrando as principais características de cada forma de governo. Os “especialistas tecnocráticos” têm dificuldades com a política democrática, mas respondem melhor ao imediatismo popular. Nas democracias temos mais participação e envolvimento, mas os estados acabam por tornarem-se grandes e poucos eficazes em relação às demandas mais urgentes das pessoas. Também aborda uma questão relevante para nossos tempos, que diz respeito ao surgimento de novas aristocracias que nos governam, mesmo nas democracias. Runciman se assume como membro desse grupo, como alguém que conviveu com futuros primeiros-ministros britânicos no elitista Eton College (fundado em 1440). No entanto, não esconde que essa diferenciação social pode colocar a democracia em risco.

No Terceiro capítulo de Política, temos uma discussão mais variada sobre alguns temas politicamente relevantes, como o sucesso e o fracasso da política nos países, o futuro da organização política, a desigualdade e a possibilidade de um governo mundial. Retoma a justificativa oferecida pelo Barão de Montesquieu para dividir os poderes em um estado e discute como essa divisão pode ser benéfica para a estabilidade política (e também como ela pode causar problemas). Também retoma o argumento oferecido pelos especialistas em economia política Daron Acemoglu e James Robinson no livro Por que as nações fracassam? Segundo tais autores, políticas inclusivas, que buscam abarcar pessoas e desenvolver o conjunto em redes cooperativas mais sólidas, propiciam estruturas mais estáveis do que políticas extrativas, que não tem outra finalidade senão obter recursos para uma minoria, com fortes custos para as sociedades. Mesmo sendo uma boa chave para a compreensão do sucesso dos estados, Runciman alerta para a falsa simplicidade desse modelo, onde estados estruturados a partir de políticas inclusivas (como a Inglaterra e a Bélgica), podem oferecer políticas extrativas em outros momentos (o intenso caráter exploratório do imperialismo produzido por tais estados).

O autor também contrapõe as dificuldades políticas relativas à desigualdade. Aborda a hipótese de John Rawls, quem defende a estruturação de uma justiça democrática em termos impessoais, e a proposta da não-dominação, próxima das hipóteses de Amartya Sen e Martha Nussbaum (para quem as pessoas devem possuir as condições mínimas para organizarem suas existências em democracias). Também discute outros meios de enfrentamento das desigualdades, como propostas pelos filósofos Peter Singer e Toby Ord, evidenciando as fortes diferenças materiais existentes no mundo contemporâneo. Por fim, Runciman trata da possibilidade de “um governo para o mundo”, uma organização política proposta por Immanuel Kant no período iluminista, que encontrou desafios constantes ao longo da história. Mesmo assim, instituições, empresas e iniciativas globais contribuem para a organização política mundial e sua estabilidade, ao propor e resguardar acordos que beneficiam a muitos.

No epílogo do livro, Runciman nos alerta para a sempre presente possibilidade de “catástrofe”, isto é, o desmoronamento das instituições e da organização política. Mesmo que contemos com instituições sólidas e seguras na maior parte dos países e nações, nada garante que isso irá se manter assim. Além dessa possibilidade, novos desafios surgem sempre para nossos modos de vida, como a crise climática ambiental. Mesmo com todos os dispositivos políticos e meios de resolução de problemas disponíveis, ainda não conseguimos encontrar respostas para este desafio que nos assombra (e que pode produzir conflitos). Nossas sociedades não correm riscos, mas é sempre necessário ficarmos atentos e, mais uma vez, lembrar que a política sempre irá importar para formas de vida como a nossa.

O livro de Runciman é informativo e estimula reflexões. É recente, mas não acompanhou a ascensão de políticas conservadoras e populista no Ocidente. Muitas vezes o autor demonstra uma confiança demasiado grande na política e na democracia, sem atentar-se para os riscos que as mesmas correm com esse novo viés da política mundial. Um bom contraponto à leitura de Runciman é Sobre a tirania: vinte lições do século XX para o presente, escrito pelo historiador Timothy Snyder, que nos chama a atenção para os riscos iminentes das atuais circunstâncias que em muito lembram momentos de crise do século passado. Conforme apontamos, Política: uma pequena introdução a um grande tema cumpre um bom papel introdutório e informativo, principalmente para os mais jovens que se encontram perdidos nas atuais polarizações políticas e que se encontram envolvidos por discursos fáceis e manipuladores. O texto de Runciman serve também para não nos esquecermos que virar as costas para a política é perigoso. Ela sempre importa, já que nossas vidas dependem dela.

Referências

FUKUYAMA, Francis. O fim da história e o último homem. Tradução de Aulyde Rodrigues. Rio de Janeiro: Rocco, 1992. [ Links ]

SNYDER, Timothy. Sobre a tirania: vinte lições do século XX para o presente. Tradução de Donaldson Garschagen. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. [ Links ]

Recebido: 19 de Abril de 2017; Aceito: 24 de Abril de 2019

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