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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.33 no.67 Uberlândia jan./abr 2019  Epub 30-Ago-2021

https://doi.org/10.14393/revedfil.v33n67a2019-38326 

Traduções

Teoria da evolução e fé na criação - interpretações do mundo rivais ou respostas a perguntas diferentes?1

*Doutor em Filosofia, Teologia Católica, Filologia Clássica pela Universidade de Bonn (Rheinische Friedrich-Wilhelms Universität). Atualmente é professor da Universidade de São Paulo. E-mail: cesarcezar@hotmail.com


O par de conceitos “criação” e “evolução” já é explosivo nele mesmo: é possível juntar uma interpretação do mundo como “criação”, tal como presente na fé cristã, com a compreensão do mundo como resultado de um desenvolvimento, surgido exclusivamente de causas imanentes ao mundo? A própria pergunta não é nova. Ela já ocupava o debate em torno da “evolução dos seres vivos” antes mesmo de Darwin; o próprio Darwin se ocupou com ela; às primeiras fases da controvérsia assim iniciada se seguiram em diferentes ondas e em diferentes lugares violentos debates intelectuais, discussões na sociedade até a disputa perante o tribunal e a luta na arena política.

Dos dois lados aparece repetidamente a tendência a se considerar como o único, cuja pretensão explicativa é justificada, e a rejeitar a pretensão explicativa do outro lado. A mais nova variante desta tendência se encontra na controvérsia entre uma interpretação criacionista da fé cristã na criação e uma interpretação evolucionista da teoria da evolução. Tanto nos argumentos quanto nas atitudes que os acompanham - de um lado, recusa pura e simples da modernidade; de outro lado, crítica maciça da religião - a controvérsia recente contém pouco de novo e aparece mais como uma reedição da constelação do debate do século XIX.

Assim, parece ter mais sentido perguntar como este recente debate atrai uma atenção tão intensa e ampla, apesar da antiguidade de seus argumentos e como devem ser compreendidos os dois modos de ver o mundo - denominados “criação” e “evolução” - tanto na compreensão de si mesmos quanto em sua relação mútua, se deixarmos a arena da luta ideológica e subirmos ao nível da consideração “científica”, isto é, ao nível de uma teoria da evolução refletida epistemologicamente e de uma fé na criação concebida e interpretada teologicamente. Os dois modos de ver apresentam somente diferentes acessos ao fenômeno “mundo”, cujos problemas consistem somente em se manter metodologicamente distantes um do outro e sem contaminação? Ou o que os une e o que separa?

1. Esclarecimentos epistemológicos

Seria necessária uma análise de sociologia e de história da ciência para responder com exatidão à pergunta: por que razão o debate no nível social é determinado de modo tão forte pelo criacionismo e pelo evolucionismo e não por uma discussão entre a teoria da evolução entendida como algo da ciência da natureza e a teologia da criação criticamente refletida? Mas do ponto de vista filosófico, também se pode reconhecer, antes de tal análise, como razão do interesse uma problemática que ocupa a filosofia desde seus inícios: se trata do abismo entre a busca do ser humano sobre o todo do mundo e sobre sua origem e a possibilidade de uma resposta justificável epistemologicamente.

Depois da passagem do mito ao logos, esta pergunta não é mais colocada narrativamente como no mito, mas de modo explícito e conceitual. Ora, já era sabido pelos filósofos da natureza jônicos, que a pergunta sobre o todo do mundo não pode ser respondida do modo como é uma pergunta sobre este ou aquele objeto ou sobre esta ou aquela conexão entre acontecimentos. Para a razão filosoficamente questionadora é inevitável a pergunta: “Do que se trata isto tudo?” (WHITEHEAD)2; ora, a tentativa de responder mostra que a pergunta se dirige para este “todo”, mas que ele não é um objeto que permite ser determinado como os outros objetos. O ser humano não tem acesso ao “ponto de vista de Deus”, isto já sabia Platão e mais ainda Aristóteles. A pergunta sobre o todo e suas origens só tem sentido se colocada numa rede de ciências, isto é, numa diversidade e multiplicidade de pontos de vista metodologicamente limitados.

Justamente aqui entram no foco da atenção considerações sobre o método, motivadas pela imensa produção de conhecimento e de pesquisa das modernas ciências da natureza. O fim de seus conhecimentos, segundo a compreensão de si mesmas, é a explicação de um evento ou de uma cadeia de eventos a partir de uma lei geral3. No caso da chamada explicação dedutiva-nomológica (DN), conforme o esquema de Hempel e Oppenheim4, isto ocorre por uma derivação rigorosa do explanandum a partir da lei. No caso de explicações probabilísticas, isto é, indutivo-estatísticas (IS), a lei explicadora tem somente um caráter de verossimilhança. Somente as explicações DN são rigorosamente determinísticas e permitem previsões, não sendo isto possível nas explicações IS, não-determinísticas, para o caso singular. Se forem necessárias diversas regularidades para a explicação, então se fala de produção de modelos causais, os quais são em geral um composto de explicações DN e explicações IS. Ora, deve-se notar que, ao interpretar a ciência da natureza como uma busca da “explicação” na forma de uma derivação do explanandum a partir do explanans, também o objeto é determinado. Pois o objeto a ser explicado através da indicação de uma regularidade, sendo os eventos ou cadeia de eventos o explanandum e as leis hipotéticas e a derivação lógica o explanans, é a ligação causal dos eventos em questão segundo as regularidades correspondentes, sendo os eventos tais como podem ser captados pela perspectiva do observador (causalidade de eventos)5.

A limitação da causalidade dos eventos tem como consequência - e isto é importante para a problemática que nos ocupa - que a tendência imanente ao princípio explicativo das ciências naturais para a unificação e, no caso ideal, para uma explicação abrangente de todos os fenômenos segundo leis naturais (“unificação causal” ou “total determinação nomológica do mundo”) leva a um limite característico. Ela não pode compreender uma causalidade que aparece somente na perspectiva do que age, isto é, na perspectiva da primeira pessoa singular (causalidade de agente).

Partes essenciais de nosso relacionamento vital com o mundo, como intenções, fins, metas, só podem ser compreendidas na perspectiva daquele que age, isto é, na perspectiva do participante, mas não na perspectiva do observador de cadeias de eventos. Pois elas pressupõem uma chamada atitude “proposicional”, na medida em que elas se referem intencionalmente a conteúdos sabidos, ou desejados ou cridos, como no caso de conhecimentos, desejos, crenças, etc. Elas precisam de mediação linguística, supõem a perspectiva do participante e se formam no relacionamento de sujeitos que se compreendem pela língua. Assim, as explicações teleológicas, isto é, as explicações na forma de indicações de fins, supõem o contexto da “causalidade de agente” e, portanto, não são permitidas nas ciências da natureza, limitadas a explicações causais dos eventos. Só se pode falar de intenções, fins, metas, ação e responsabilidade dentro do “espaço das razões” (SELLARS)6, isto é, no espaço dos motivos, que para o Eu que age movem efetivamente não como causas, mas como razões, isto é, devido ao conhecimento da validade delas.

Se estas razões que determinam o ser humano forem reduzidas a cadeias de eventos causais, se torna incompreensível o ser humano como o sujeito agente responsável por seus atos7. Ele não pode explicar, porque ele se experimenta como destinatário de exortações e experimenta suas decisões como resultado de uma ponderação entre razões, nem pode explicar porque para ele tem sentido colocar a questão sobre a validade das razões de uma ação e porque ele pode corrigir sua ação devido ao conhecimento destas razões. Sobretudo, o cientista da natureza supõe e deve supor justamente esta atitude proposicional. Pois se ele testa a verdade de hipóteses e reivindica validade para as explicações causais, ele não está seguindo causas, mas julga na perspectiva de um sujeito que age e julga (portanto, na perspectiva da causalidade de agente), se são convincentes as razões, com base nas quais ele julga como válida cada uma das explicações causais.

Certamente permanece o esforço de encontrar uma explicação que abranja tudo, que satisfaça o postulado da “unificação causal”, da “total determinação nomológica”. Mas se ela é buscada renunciando à dualidade das duas perspectivas, então lidamos com aquela posição que é chamada no debate mais recente de “naturalismo”. Ela afirma, numa fórmula abreviada, “Tudo, inclusive nossa consciência, pode ser explicada através de leis científicas naturais, ou seja, ser colocado num modelo segundo o padrão de explicação científico”8.

Mas esta posição deve ser defendida de modo coerente, se defendo um materialismo eliminatório, que rejeita a existência do mental e interpreta os conteúdos de nossas representações como epifenômenos sem significados. Isto significa que o mental deve ser totalmente reduzido ao físico, o que até agora não se conseguiu e, segundo as premissas epistemológicas mencionadas, nunca se conseguirá9. Com certeza, deve-se acrescentar que não é capaz de convencer aquela alternativa que busca preservar a independência do mental, explicando o mental como uma região da existência especial, ao lado daquela do material, portanto, substituindo o monismo ontológico do naturalismo por um forte dualismo ontológico. Assim, surge a dificuldade de explicar a experiência de uma conexão entre as esferas corporal e mental do ser humano uno10.

2. O alcance das explicações científicas naturais nas ciências biológicas

Este é o pano de fundo, no qual se coloca a pergunta sobre o alcance e, ao mesmo tempo, sobre os limites das explicações científicas naturais nas ciências biológicas. Pois, a esboçada limitação metodológica das ciências naturais à explicação dedutivo-nomológica dos eventos e a consequente produção de modelos causais excluem expressamente explicações que indiquem uma causa final ou meta (explicação teleológica). Causalidade final, em sentido próprio, só é possível lá onde se pode imputar uma “causação retroativa”, como se acha na região de uma ação, na qual a meta é causa, pois o sujeito agente a intende, mas não na conexão de eventos, cujas causas estão nas leis naturais.

Ora, algo especialmente importante em vista da teoria da evolução é que, ao descrever os seres vivos e seu desenvolvimento, também a biologia moderna não pode deixar de falar que em certos processos há direcionamento para um fim ou em certas disposições há adequação a um fim, sendo considerado este modo de falar justificado enquanto recurso à determinação de “funções” dos seres vivos e de suas partes. Entretanto, a interpretação do discurso das ciências naturais sobre funções apresenta dificuldades11. Se o conceito de função é explicado como “disposição” e se uma função é entendida como o papel causal de uma característica na atuação normal de um organismo, obtém-se uma definição que se aplica a outras situações, portanto, uma definição ampla demais. Se, ao contrário, se tenta interpretar o discurso sobre funções etiologicamente e se entende por função - como acontece na biologia evolucionária - uma característica, que pertence a um organismo ou a um órgão devido a história de seu aparecimento, então se pode sim falar de direcionamento para um fim, sem imputar uma causação retroativa. Se pensa então numa adequação a um fim (teleonomia), observada no passado, na medida em que uma determinada variação de uma característica fornece uma vantagem seletiva para o ser vivo em questão e por isso é herdada.

Mas continua a haver questões abertas nesta explicação: para admitir uma adequação passada a um fim é preciso supor a função, em cuja realização reconhecemos a adequação ao fim e que gostaríamos de ver explicada. Além disso, o direcionamento ao fim é ligado à procriação, o que se mostra como estreito demais, tendo em vista os fenômenos observados. Se diante disso se tenta uma explicação “sistemática” da função, então o direcionamento a um fim é relacionado a uma autogeração, a uma auto-organização, no sentido de um autodesenvolvimento, que diferencia o ser vivo do artefato e o distingue como “vivo”. Mas deste modo encontramos sem dúvida uma suposição normativa, que vai além das proposições da ciência natural em sentido estrito. Assim, G. Toepfer, em sua pesquisa sobre “o conceito de fim e o organismo” chega à dura conclusão “que uma reconstrução do conceito de função, tal como é de fato usado pelas ciências naturais não fornece nenhum conceito consistente”12. J.R. Searle pondera “Funções não são nunca imanentes à física de um fenômeno qualquer, mas lhe são atribuídos de fora por um observador ou utilizador consciente”13.

Isto não diz absolutamente nada contra a tentativa da biologia no modelo da teoria da evolução de pesquisar e explicar as condições de surgimento das formas de vida através do uso da paleontologia e da biologia molecular. É legítimo seguir um naturalismo metódico, isto é, permitir no espaço da explicação científica somente aquelas teorias que se servem de métodos da ciência da natureza.

Mas justamente os critérios metodológicos - como esboçados - mandam ter uma consciência crítica sobre o que é daquele modo explicado e o que não é. Eles mandam sobretudo ter cuidado diante das tentativas que, convocando a teoria da evolução, reivindicam uma explicação causal da realidade inteira, inclusive da região do espírito, tal como ele se manifesta nas realizações mentais do ser humano. Em relação a tal “elevação exagerada e neo-mítica da evolução como interpretação total da realidade”14 se fala corretamente de “evolucionismo” e não de teoria da evolução. Pois, o quer que sejam tais explicações universais, o naturalismo metafísico (na forma de um monismo) pressuposto nelas e a oculta normatividade dos fins implícitos mostram claramente que não se trata de interpretações que possuem o caráter de explicações de ciência natural.

3. Evolução e criação: como ordená-las?

Com certeza, isto não significa de modo algum que sejam justas hipóteses contrárias, tal como o criacionismo, que atribui o surgimento das espécies vivas à ação imediata de um criador divino. Pois as duas razões levantadas em favor dele são pouco convincentes: a interpretação literal do relato da criação no “Gênesis” não acerta a intenção literária original do texto, sendo uma interpretação que deixa de lado o intervalo de tempo e o gênero literário, ao considerar o relato da criação uma explicação de ciência natural15. Também, atribuir imediatamente a um designer divino a ligação verificada na história da evolução entre “transbordante biodiversidade e onipresente convergência”16 corre o risco de não levar em conta suficientemente a diferença entre o caráter metódico da explicação da ciência natural e o sentido da fé na criação.

Enquanto no evolucionismo é nivelada a diferença metodológica entre a explicação da ciência natural e a explicação metafísica total da realidade, no criacionismo é nivelada a diferença hermenêutica entre explicação da ciência natural e explicação do sentido baseada na fé. Mas se, considerando tanto a “evolução” quanto a “criação”, for levada em consideração a diferença epistemológica - sob a qual estão firmadas suas explicações, conforme a compreensão que tem delas mesmas - parece ser possível ordená-las sem rejeição mútua.

No lugar da relação de concorrência não entra uma relação de concordância ou de consonância, mas uma de incomensurabilidade. Teoria da evolução e teologia da criação aparecem como contextos de explicação diferentes, que atuam em níveis metodológicos diferentes e, portanto, devem ser considerados como incomensuráveis17. Sem dúvida, assim se evita uma falsa rivalidade e se alcança um dos modelos bem fundado de compatibilidade.

Assim, é possível ordenar criação e evolução de um modo que praticamente se tornou padrão na teoria da ciência. Isto é expresso, por exemplo, na declaração papal de 199618, “novos conhecimentos são motivo para ver na teoria da evolução mais do que uma hipótese”. Indica-se expressamente que “descobertas em diferentes áreas do conhecimento” das ciências da natureza levaram uma “concordância não intencional e não dirigida dos resultados de pesquisa”, o que “já em si representam um argumento significativo em favor desta teoria de evolução”. Entende-se por teoria uma “elaboração”, na qual “um complexo de informações e fatos, independentes uns dos outros, são conectados e interpretados”. Uma teoria da ciência natural entendida deste modo - assim a declaração - não contradiz a fé na criação, diferentemente das explicações “materialistas-reducionistas” assim como “espiritualistas” deste resultado da ciência natural, que ultrapassam - isto é acentuado - o âmbito das proposições da ciência da natureza e são, portanto, da “competência da filosofia e, acima dela, da teologia”.

4. Interfaces

Embora este modo de ordenar, enquanto fórmula de compatibilidade, na forma de uma diferença metódica, seja adequada aos padrões da teoria da ciência, ela não pode ser a última palavra sobre a realidade tratada. Pois uma construção teórica da ciência natural como a teoria da evolução implica perguntas sobre realidades, que objetivamente estão incluídas dentro do âmbito da teologia da criação e, por causa disso, segundo a tese de Seckler, atraem uma “interferência estrutural”19 das duas perspectivas tendo em vista a orientação no mundo e a compreensão da existência, independente da diferença metodológica. Pois, tendo em vista as implicações e consequências de cada uma, a teoria da evolução se torna relevante para a perspectiva da teologia da criação e vice-versa.

Assim, a teoria da evolução implica em perguntas, que ela obrigatoriamente tem que deixar sem respostas devido à autolimitação metodológica das ciências naturais, mas que não podem ser evitadas quando ela toma consciência de si mesma intelectualmente. Seckler mostra isto na pessoa de J. Kepler, que admira os resultados de suas pesquisas de tal modo que “os conteúdos de sua ciência ... se tornam também conteúdos de sua experiência de fé”20, sem que assim a autonomia de pesquisa da ciência natural seja colocada em questão. Na perspectiva da teologia da criação o resultado adquirido no nível da ciência natural é interpretado num segundo nível, sem que seja eliminada a pretensão de justificação do primeiro nível.

De modo semelhante, isto aparece como relevante, quando a admirável sintonia fina das constantes cósmicas, que determina a situação inicial da evolução e leva as linhas da evolução, que correm separadas umas das outras, a uma espantosa convergência da evolução, leva não poucos pesquisadores a perguntas, obrigatórias intelectualmente, mas que não podem ser respondidas pela ciência natural. É o “sucesso do jogo conjunto de muitas condições” e não a hipótese de intervenção divina no processo da evolução que abre o “espaço para construir uma ponte entre a teologia e a ciência da natureza”21, constata o cientista natural P. Schuster.

Como o caso de Galileu torna claro, a autolimitação epistemológica das ciências naturais não somente não elimina as irritações produzidas no mundo da vida por seus resultados, mas também faz necessário construir uma ponte, que não toque na autonomia metódica da via do conhecimento das ciências naturais, mas que leve em consideração a relevância condicionada pelos resultados.

A urgência de uma mútua referência não surge só das ciências naturais e de seus resultados relevantes para o mundo da vida, mas também da fé na criação e de sua interpretação teológica, justamente quando se toma as necessárias cautelas hermenêuticas. Pois a fé na criação tem sua origem epistemológica na originalidade da experiência religiosa - compreender o todo de nossa experiência cotidiana do mundo da vida - incluindo a percepção do mundo em volta, a vinculação a uma história real, a experiência da própria subjetividade - em suas condições. Por isso, a fé na criação não se encontra somente no âmbito das religiões abraâmicas22.

Nos dois textos da criação na Bíblia é claro o caráter primariamente religioso da fé na criação23. Ela fornece, dentro da experiência da finitude, da transitoriedade, da contingência do “de onde” e “para onde”, mas também da experiência da beleza e da harmonia da natureza em nossa volta, orientação e sentido da existência, ao reconhecer o Deus da aliança, experimentado na história, como origem universal do todo. Através da unidade deste Deus universal, a realidade do mundo é percebida como unidade, com o qual este Deus se relaciona tanto no modo da transcendência quanto da imanência. Ele aparece como o permanente “fundamento de tudo” (KANT)24, que a partir de uma perfeita liberdade produz o criado naquilo que lhe é próprio e ao mesmo tempo, ao permanecer, o mantém. O mundo perde sua divindade e ao mesmo tempo é compreendido como parte de uma história da salvação aberta para a sua consumação.

Já Agostinho conhecia este sentido religioso da criação, quando ele constata: “Na Bíblia não se lê: o Senhor disse: Vos envio o Espírito Santo, para que vos ensine o curso do sol e da lua. Ele quis formar cristãos, não astrônomos”25. Em semelhante direção vai o dito atribuído a Galileu: a ciência da natureza não quer pesquisar como se chega ao céu, mas como funciona o céu26.

O caráter genuinamente religioso desta fé na criação implica uma afirmação totalmente ontológica, que certamente quer ser bem compreendida. Isto fica claro através da expressa ausência no primeiro artigo da fé “Creio em Deus, criador do céu e da terra” da menção presente no texto do Gênesis “no princípio” - “No princípio Deus criou o céu e a terra”. Pois o artigo de fé se refere a um predicado de Deus, a saber, à propriedade de Deus de ser a origem permanente de tudo e não é uma afirmação temporal como seria a afirmação que Deus teria causado num determinado ponto do tempo27. Através do artigo da fé Deus não é definido como a primeira causa numa cadeia de causas, mas como fundamento da cadeia inteira28. Consequentemente, também a fé na criação não se refere a um impulso inicial dado a uma sequência de eventos imanentes ao mundo, mas a uma “relação de fundamento além do temporal”, isto é, à suposição que toda a realidade tem seu fundamento permanente em Deus29.

É nesse sentido que já Tomás - seguindo a distinção de Alberto Magno entre generatio e creatio30 - entende “criação” como uma afirmação sobre a constituição fundamental do mundo, isto é, sobre a sua dependência de uma origem transcendental, que - constata ele de modo significativo - conserva seu sentido mesmo supondo um mundo temporalmente eterno31.

Se é correta esta interpretação da fé na criação através da teologia, não são contraditórios o “acaso”, segundo o qual ocorrem as mutações, cuja variação causa a evolução sob a pressão da seleção, e a suposição de uma finalização, tal como supõe a fé na criação. Mas assim não são resolvidas todas as questões. Pois, se é a mesma a realidade, à qual se referem a teoria da evolução e a fé na criação enquanto realidade objetiva, então deve ser possível no horizonte de experiência tanto de uma quanto de outra indicar um lugar para o outro. Justamente isto faz a fé na criação, quando ele responde à pergunta sobre a origem da realidade captada pela ciência da natureza com a indicação do criador divino.

Deste modo, aparecem razões que vão além de um modelo de incomensurabilidade na determinação da relação entre teoria da evolução e teologia da criação, e colocam um modelo de diálogo ou interação das perspectivas32. Pois, se a teoria da evolução e a teologia da criação são modos de experiência genuínos, nos quais o ser humano se relaciona com o todo do mundo conhecendo e buscando o sentido, e se os subsistemas, metodologicamente autônomos, de esclarecimento do mundo e explicação da existência se referem a uma mesma realidade, então deve haver um diálogo, além da incomensurabilidade das perspectivas metodológicas, que tematize a mútua relevância nas questões objetivas.

1Texto retirado de: Honnefelder, Ludger. Im Spannungsfeld von Ethik und Religion. Berlin. 2014. Kap.11.

2A.N. Whitehead. ‘Remarks’. In: Philosophical Revue 46 (1937) 178-186, 178.

3V.B. Falkenburg. ‘Was heisst es, determiniert zu sein? Grenzen der Naturwissenschaftlichen Erklärungen’. In: D. Sturma (ed.) Philosophie und Neurowissenschaften, Frankfurt a.M. 2006, 43-73. L.Honnefelder. ‘Ist das Genom die ‘Seele’ des Menschen?’. In: G.M. Hoff (ed.), Weltordnungen, Innsbruck -Wien, 2009, 144-164.

4V.C.G. Hempel/P. Oppenheim. ‘Studies in the logic of explanation’. In: Phil. of science 15 (1948) 135-175.

5V.E. Runggaldier. ‘Personen und diachrone Identität’. In: Conceptus. Zeitschr. Philos. 26 ( 1992/3) 107-123.

6W. Sellars. Empirismus und die Philosophie des Geistes. Paderborn, 1999. J. McDowell. Geist und Welt. Frankfurt am Main 2001, 91-111.

7V.J. Habermas. ‘Freiheit und Determinismus’. In: Idem, Zwischen Naturalismus und Religion, Philosophische Aufsätze, Frankfurt am Main 2005, 155-186.

8V.B. Falkenburg. ‘Was heisst es, determiniert zu sein?’. 52. Idem. Mythos Determinismus: Wieviel erklärt uns die Hirnforschung?. Berlim-Heidelberg. 2012. L. Honnefelder, M.C. Schmidt (ed.). Naturalismus als Paradigma. Wie weit reicht die naturwissenschaftliche Erklärung des Menschen?. Berlin 2007.

9V.B. Falkenburg. ‘Was heisst es, determiniert zu sein?’. 52 s.

10V.J. MacDowell. Geist und Welt. Frankfurt am Main 2001, 181s. M. Quante. ‘Zurück zur verzauberten Natur - ohne konstruktive Philosophie?’. In: Deutsche Zeitschrift für Philosophie 48 (2000), 953-965.

11V.S. Hornbergs-Schwetzel. Der Funktionsbegriff in den Lebenswissenschafen, Wissenschaftstheoretischer Status und normative Implikationen. Phil. Diss. Bonn, 2012.

12G. Toepfer. Zweckbegriff und Organismus. Über die teleologische Beurteilung biologischer Systeme. Würzburg. 2004. 421.

13J.R. Searle. Die Konstruktion der gesellschaftlichen Wirklichkeit. Zur Ontologie sozialer Tatsachen. Reinbeck. 1997. 24.

14H. Kessler. Evolution und Schöpfung in der neuer Sicht. Kevelaer. 2009. 45-48.

15Idem, ibidem 49-72.

16S.C. Morris. Jenseits des Zufalls. Wir Menschen im einsamen Universum. Berlin. 2008. 262.

17V.M. Seckler. ‘Was heisst eigentlich “Schöpfung”? Zugleich ein Beitrag zum Dialog zwischen Theologie und Naturwissenschaft’. In: J. Dorschner (ed.). Der Kosmos als Schöpfung. Zum Stand des Gespräches zwischen Naturwissenschaft und Theologie. Regensburg. 1998. 209 ss.

18V. Papa João Paulo II. Imagem do homem e modernas teorias da evolução. Mensagem à Pontifícia Academia de Ciências de 22.10.1996.

19M. Seckler, ‘Was heisst eigentlich ‘Schöpfung’?’. 208.

20Idem, ibidem 205.

21P. Schuster. ‘Evolution und Design’. In: S.O. Horn - S. Wiedenhofer (ed.). Schöpfung und Evolution. Eine Tagung mit dem Papst Benedikt XVI in Castel Gandolfo. Augsburg. 2007. 25-26, 56. Morris. Jenseits des Zufalls. 245 - 263.

22V. Seckler. ‘Was heisst eigentlich ‘Schöpfung’?’. 191 ss. Kessler. Evolution und Schöpfung in neuer Sicht. 58ss.

23V. Seckler. 183-204. Kessler, 117-143. Horn und Wiedenhofer, 165-189.

24I. Kant. Kritik der reinen Vernunft. Akad. Ausgabe III. 425.

25Augustinus. Contra Felicem Manicheum 1, 10 (PL 42, 525).

26V. Seckler, 210.

27V. Seckler, 200 ss.

28V. Kessler, 100.

29V. Seckler, 201.

30Albertus Magnus. Physica VIII tr. 1 c. 13. (ed. Coloniensis 4/2) 574-577.

31Thomas Aquinas. Summa contra gentiles II, 15-19; idem. De aetermitate mundi.

32V. Seckler, 204-213.

Recebido: 05 de Março de 2019; Aceito: 24 de Abril de 2019

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