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Educação e Filosofia

versión impresa ISSN 0102-6801versión On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.33 no.68 Uberlândia mayo/ago 2019  Epub 30-Ago-2021

https://doi.org/10.14393/revedfil.v33n68a2019-58349 

Dossiê Entre o governo das diferenças e os corpos ingovernáveis: potência da vid

Apresentação do Dossiê: Entre o governo das diferenças e os corpos ingovernáveis: potência da vida na educação1

*Doutor em Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (FFC/UNESP). Professor na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. E-mail: pedropagni@gmail.com

**Doutor em Educação pela FFC/UNESP/Marília. Professor de Filosofia do Departamento de Educação e Programa de pós-Graduação em Educação da FCT/UNESP/Presidente Prudente, SP. E-mail: divino.silva@unesp.com.br


Em um de seus últimos cursos no Collège de France, Michel Foucault (2012) discute a emergência da parresía, isto é, do falar franco e verdadeiro a partir da vida que se tem e da verdade que a potencializa, situando-a no âmbito da democracia. No caso da democracia ateniense, diz o filósofo francês que somente alguns têm o direito de se pronunciar publicamente, a saber: os cidadãos livres. Independentemente do que consista essa sua liberdade, isso significa que todos podem expor publicamente suas verdades e, portanto, aquilo que são eticamente ou, simplesmente, seu ethos. Dessa forma se produziria, no espaço público, diferenças qualitativas, representando ethos distintos.

A disputa entre esses ethos produziria, quantitativamente, uma verdade comum, em razão de a maioria considerá-la não somente verdadeira, como também melhor para a vida de toda a pólis. Diante de uma verdade preponderante, dada por uma isonomia quantitativa, as diferenças qualitativas, éticas e comuns, não deixavam de existir mesmo assim. Ao contrário, tais diferenças qualitativas eram fomentadas porque delas dependia o aprimoramento da esfera pública e a inclusão de mais vidas nos processos decisórios e políticos da cidade. Para Foucault (2011), genealogicamente, a democracia no Mundo Ocidental, desde seu nascimento, enfrenta esse paradoxo, qual seja, o de se pretender ser o governo isonômico da maioria, porém, tendo que conviver com as diferenças éticas, qualitativas, poderíamos dizer, das minorias, com espaço e vazão para que formas de vida pouco consideradas tenham voz e vez na esfera pública, isto é, possam agir parresiasticamente, dando contornos a sua existência política. Dessa forma é possível dizer que o problema da democracia se configura nem tanto sobre quais as estratégias e táticas para se formar a maioria em termos quantitativos, mas quem terá direito a assumir sua condição de fala na vida pública, de expressar o que pensa e o que vive, como um modo de existência que se expõe no mundo com vistas a tensioná-lo, problematizá-lo, transformá-lo.

Até a modernidade, por assim dizer, o papel da filosofia e da educação foi o de dar contorno a essas formas éticas de vida. Com vistas a governá-las, assim como facultar-lhes um autogoverno, por intermédio da transmissão de verdades e de exercícios que lhes permitissem se ocupar consigo mesmas, essas artes auxiliaram cada cidadão averiguar se essas verdades transmitidas eram condizentes com as da própria vida, revendo-as e readequando-as às leis e à moral da cidade. Em tal processo ético-formativo, esses cidadãos confrontaram essas últimas, quando as verdades não se conformassem às prescrições morais e regulamentações instituídas, arriscando a sua própria vida ao expô-la publicamente e ao apresentá-la como mais uma vida verdadeira. Essa vida, distinta da valorizada, pediria passagem e valoração, para que fosse digna como qualquer outra, vista como parte da esfera pública e, portanto, participante da vida política na polis.

Ainda que no cristianismo essas artes tenham assumido uma função e exercício de poder pastoral, alinhadas ao direito do soberano sobre a vida alheia e a morte de seus súditos quando confrontados, a variedade de asceses e de subjetivações que produziu - e que não vamos explorar aqui - sugerem certa pluralidade, porém, já com uma tendência centralizadora e condutora em torno da figura do sagrado, do divino e de suas escrituras. Na modernidade, essa tendência se acentua, grosso modo, repartindo-se com políticas estatais que, no que ficou conhecido como liberalismo, facultou a liberdade e a concorrência para manter a pluralidade no âmbito da economia política. Por outro lado, buscou-se garantir a homogeneização dos costumes, via a moralização da população, utilizando-se de uma série de dispositivos disciplinares e, depois, de segurança para sustentar o seu governo por meio de artes de governos como a pedagógica, a religiosa, a médica, a psiquiátrica, etc.

Os corpos desviantes - individual e socialmente -, sob o signo do(s) povo(s) que escapavam a essa forma de governo estatal e de sua regulação, ficariam a mercê do que se denominou de biopolítica, compreendida como a forma moderna de governo da vida da população. Esta nova modalidade de governo tem como objetivo aprimorar e intensificar a vida da população, protegendo-a da morte mediante uso de diferentes artes de governar e de tecnologias de biopoder. Esse(s) povo(s) seria(m) constituído(s) de homens infames, estranhos, os monstros ou, mais precisamente, os anormais, dentre tantas outras denominações que se colocam ao lado da vida ingovernável e sobre a qual se dirigem as tecnologias de biopoder. Assim, essas existências foram e ainda são distribuídas nos hospitais psiquiátricos, nas escolas, nas prisões e instituições que se ocupam em isolá-las e investem na correção de seus corpos incorrigíveis para enquadrá-las às regulações do Estado e devolvê-los à normalidade da população governável.

Esse estranhamento ético ao julgamento moral vigente no liberalismo é resultado do efeito dessa forma de governamentalidade. Inicialmente, esse efeito decorre de uma diferenciação ética que induz uma reorganização do governo desses corpos e subjetividades, imputando-lhes uma norma externa, por vezes científica, prenhe de um saber que, em nome de amenizar a violência que pode colocar fim a essas vidas, as violentam simbolicamente para fazê-las una, enquadrada a padrões que, em última instância, propiciam a governamentalidade da população. A questão é que essas vidas, não obstante os intentos da governamentalidade, se configuram em forças centrífugas, se engajando em lutas transversais que interrompem, perturbam, afrontam as formas de governamentalidade estatal, seja em suas configurações ascendentes quanto descendente, obrigando a biopolítica e os seus dispositivos de biopoder a se reconfigurarem, minando-as para incluí-las.

Dessa perspectiva, há duas alternativas pelo menos. A primeira refere-se às políticas públicas elaboradas pelo Estado para propiciar a inclusão dos corpos ingovernáveis aos dispositivos de segurança, conformando-os a uma certa ataraxia identitária, visando integrá-los ao mercado aplacando, assim, os desejos desses segmentos populares no consumo, como foi realizado na reformulação do neoliberalismo à brasileira da última década, seguindo uma tendência global. A segunda alternativa tem consistido em expor essas vidas diretamente ao jogo do mercado e à racionalidade econômica, aproveitando suas forças para empurrá-las de vez para fora do sistema, deixando-as à própria sorte, para morrer, ou, mobilizando as demais forças contra elas para o mesmo propósito, mas deixando intacto a configuração biopolítica, sob o crivo da omissão estatal e da tanatopolítica, como tem ocorrido nos últimos três anos no Brasil e que parece ser uma tendência mundial em curso.

No que se refere à primeira tendência, a rebeldia popular e as múltiplas impulsividades da multidão ingovernável são tratadas como objetos de governo em que os sujeitos que representam podem ser induzidos a se subordinarem a normas e regimes de verdade pela sedução da readequação geral destes para a inclusão daqueles, tal como ocorre no neoliberalismo, dando-lhes uma sensação de potência e de maior justiça social. Enquanto essa sensação se espraia, por sua vez, se sujeitam de maneira consentida a essa outra forma de governamento, mais tênue, capaz de supostamente compreender a sua dispersão e diversidade.

Isso ocorre em razão de sua demanda ascendente por inclusão ser corroborada nos regulamentos jurídico-políticos estatais. Graças ao seu enquadramento a uma das identidades inteligíveis pela racionalidade econômica, as quais tanto os dispositivos de reconhecimento social quanto o multiculturalismo procuram traduzir sob o signo da diversidade. A conquista de direitos jurídicos nesses campos e o atendimento de uma demanda importante de vários movimentos minoritários de acesso ao campo educacional, e o seu reconhecimento e participação na esfera pública foram de extrema importância. Contudo, em grande medida, não somente foram insuficientes para que esses movimentos se concretizassem de maneira efetiva, como também, os dispositivos de segurança e, podemos dizer de inclusão, produziram uma contrapartida ética complexa e, contraditoriamente, muitas vezes, uma concepção política identitária, inscrevendo-os num jogo em que as regras não escapam da flexível rearticulação do capital no neoliberalismo. Essa contradição entre o que propagam as políticas estatais de inclusão e os dispositivos que implementam, tendo como objeto os documentos oficiais e um conjunto de práticas discursivas, de epistêmes e de mecanismos de subjugação, juntamente com as resistências que aí se esboçam, consistem no ponto central da discussão deste dossiê.

De um ponto de vista mais amplo se propõe a abranger com essa discussão o problema da democracia e do governo das diferenças na biopolítica neoliberal, colocando em questão o suposto perigo do ingovernável como um dos desafios filosófico-educacionais do tempo presente. Especificamente, ao discutir as formas de resistências ou as linhas de fuga às tendências autoritárias em curso, num plano filosófico e político, os três primeiros artigos abordam o problema da democracia, da governamentalidade das diferenças e do papel ocupado aí pela economia dos afetos.

No artigo Democracia em crise: biopolítica, governamento neoliberal de populações e estratégias de resistência, André de Macedo Duarte (DFilo-UFPR) pensa a resistência face à crise da democracia no presente à luz das contribuições de Judith Butler, defendendo a potência ético-política da precariedade como critério normativo para o estabelecimento de coalizões entre agentes políticos distintos, porém submetidos a condições socialmente induzidas de precariedade. Esse artigo procura politizar a precariedade como o princípio de uma repolitização da democracia, diante de seu esvaziamento atual, enquanto os dois artigos subsequentes se referem propriamente às implicações do governo das diferenças e ao papel da economia dos afetos que compreendem os movimentos de resistência e as linhas de fuga, respectivamente, às tendências totalitárias em circulação, sobretudo, no âmbito educacional.

O artigo Entre o governo das diferenças e o ingovernável dos corpos: possibilidades de resistências em educação de Pedro Angelo Pagni (UNESP), ao enunciar o paradoxo dessa relação entre o governo das diferenças e o ingovernárvel dos corpos, dá um contorno particular ao modo como a fratura biopolítica se estabelece em nossa realidade sócio-educativa e, precisamente, por meio de políticas de inclusão. Para admitir essa forma de inclusão, o autor argumenta que todos nós teríamos que abrir mão do que somos como seres, do ethos que nos constitui e das diferenças que exprimimos, justamente por não sermos integralmente passíveis de regulação, de domínio ou de pleno governo, seja por nós mesmos, seja pelos outros. Já que estamos sujeitos a conviver com o contingente, com os efeitos dos acidentes em seus corpos e com o ingovernável dos acontecimentos que os desapossam de uma identidade, obrigando-nos a viver na diferença, ontologicamente falando, e a conviver com um devir que lhes exige improvisar existencialmente, tais modos de existência traduzem essas vidas singulares e exprimem suas formas de viver com o outro. Sugere com isso outra forma de governamentalidade: vetorialmente transversal, ontologicamente radical, politicamente ingovernável na medida em que encontra a biopotência da criação de modos outros de existência e, com isso, formas distintas (inoperosas) de vida comum, forçando a democracia a ver o dissenso como seu móvel, a visibilidade de sua diferença como dispositivo de inclusão e o convívio com o diferente como o seu fim.

Esse talvez seja o perigo vislumbrado pelo artigo de Alexandre Filordi de Carvalho (UNIFESP), intitulado A emersão do Homo friabilis: subjetivação em tempo de cleptoafetividade. Esse terceiro artigo desloca a questão da governamentalidade para o plano econômico dos afetos, enfocando os processos de subjetivação que objetivam desintegrar a vida e o modo como estão presentes no campo educativo. A partir do pensamento de Deleuze e de Guattari em Mil Platôs, especificamente acerca da micropolítica e da segmentaridade, aporta-se teoricamente nesse outro artigo a perspectiva teorizada em torno do homo friabilis no neoliberalismo contemporâneo, ponderando sobre a urgente produção de subjetividade capaz de encontrar linhas de fuga que rompam com essa lógica da cleptoafetividade e seus impactos sobre a educação.

Com esses diagnósticos não há como ignorar que uma democracia em que as diferenças qualitativas são anuladas pela isonomia quantitativa, perde sua potência e se encontra ameaçada por toda uma sorte de modos de vida fascistas.Contudo, diferentemente do que postulava Foucault (2004) em seu prefácio ao Anti-Édipo, tais modos de vida tendencialmente ascendeu ao Estado (Liberal) e passou a gerenciar a face obscura da biopolítica: a tanatopolítica (AGAMBEN, 2005) ou a necropolítica (MBEMBE, 2018; PRECIADO, 2018). E esta é só a ponta de um iceberg a ser desvendado no presente, pois a democracia - entendida exclusivamente como o governo da maioria -, ao invés de respeitar as diferenças qualitativas, as alianças e as lutas das minorias taticamente pelos seus direitos e estrategicamente pela afirmação de suas vidas, tende a interditá-las. Ao mesmo tempo em que as políticas estatais preferem, explicitamente, se aliar aos blocos economicamente neoliberais, porém, paradoxalmente, propagandeando políticas de costumes ultraconservadores. Com essa contradição, antes de capturarem qualquer forma de rebelião ou regularem os acontecimentos das alianças entre as diferenças, por políticas voltadas à diversidade ou que fomentam o relativismo do multiculturalismo, no caso brasileiro, o Estado parece optar por retroceder a uma política de costumes ultraconservadora, estrategicamente centrada no combate às diferenças ou na sua subordinação a um governo identitário.

Parece que assim chegamos a uma política estatal que atende tanto aos grandes oligopólios econômicos quanto uma maioria conservadora, que durante anos viu a outra tendência neoliberal da biopolítica - a que chama de comunista, sem qualquer rigor - como uma afronta. Isso porque ela de algum modo teria favorecido ao outro, a esse povo caótico, rebelde, anárquico, a esse monstro cuja diferença não foi domesticada foi beneficiado sem que sua vida se qualificasse para tal, enquanto que aos integrantes da população governável, obediente, dócil, mesmo qualificado, foram impelidos a amargar uma crise, perder alguns de seus privilégios, etc. Esta é a lamentação que se viu proliferar e circular, num murmurinho sem fim que passou das palavras ao vento à ação contra os supostos privilegiados - lamento este que consiste num ato reflexo, irrefletido, como muitas frases que circularam e circulam sem mais argumentos, numa lógica que não é racional, mas movida pelo ressentimento e pelos afetos.

Nessa esfera que não sabemos atuar como intelectuais, como utilizar a filosofia e a reflexão filosófica na educação como forma de resistência? Como isso seria possível se fomos colocados ou nos colocamos de escanteio, justamente por essa maioria, ao mesmo tempo em que também, salvo casualmente, não estivemos ao lado daquelas lutas transversas, produzidas pelas minorias para expressar suas diferenciações éticas e ocupar um lugar de expressão na esfera pública? Pois bem, mais do que perguntas a mais, este parece ser nosso desafio atual como educadores e filósofos. Seria importante avaliarmos no quê erramos, mas também considerar em como essas diferenças éticas produzidas nas relações interpessoais provocam esse trabalho reflexivo sobre si e, ao mesmo tempo, que tipos de aliança, menos espontâneas, dariam expressividade às formas de vida singular e comum que diferem do instituído.

Seriam então tais diferenças éticas e o que agenciam de reflexividade em cada um de nós uma esperança de nossa saída do estados de letargia, de conformismo, de morbidez para nos colocarmos em prontidão e resistir? Não, não se trata de postular neste dossiê que as “diferenças nos une” como defendido por Andrew Salomon (2011) em seu livro Muito longe da árvore, acreditando haver uma aliança política entre homossexuais, anões, autistas, trissômicos, pobres, dentre outras qualidades de existência que incidem algum tipo de diferenciação ética. Mas de vislumbrar haver, como sugere Judith Butler (2017), possíveis alianças políticas transversas entre essas várias diferenças que, eventualmente, podem potencializar a emergência de uma vida comum, apoiada em uma ética de coabitação, capaz de aglutinar as forças de multidões pouco visíveis e de outros atores sociais na esfera pública, mapeando os sentidos dessas vidas que exprimem sua resistência às atuais formas dominantes de biopoder.

Em relação à esse segundo conjunto de questões, dois artigos se concentram sobre a teorização das relações da singularidade dos corpos, explorando-as em suas interfaces com a filosofia, a arte e a educação. Tratam-se dos artigos Corpos alterados, corpos ingovernáveis: cartografias ético-estéticas para segurar o céu pelas diferenças de Alexandre Simão de Freitas (UFPE) e Corpos e cartografias da ingovernabilidade na arte e na educação de Lílian do Valle (UERJ). Com esse olhar, o artigo de Alexandre Freitas busca articular os pressupostos das teorias biopolíticas da formação humana agenciadas pela entrada no Antropoceno, a fim de pensar a desabilitação do que Elizabeth Povinelli chama de imaginário do carbono e seus processos de marcação, distinção e desqualificação ontológica, que repercute em vários campos, incluindo o da Filosofia da Educação. É essa repercussão dos corpos ingovernáveis no campo filosófico-educativo que se concentra o artigo, oferecendo contribuições significativas para repensá-lo. Por sua vez, o artigo de Lílian do Valle analisa a relação do deslocamento, do movimento e do devir com o corpo, afirmando que não é possível se deslocar, tampouco resistir sem corpo, aproximando-se da arte para abordar o múltiplo que o compreende e os sentidos da formação humana que produz. Dessa perspectiva, analogamente às contribuições do artigo anterior, provoca o campo filosófico-educacional a pensar num tema que lhe é caro - o da formação humana - a partir e com o corpo, a nosso juízo indicando um ponto de vista materialista de suma importância, na esteira de Castoriadis, para abordar questões educacionais. Assim como propõe uma aliança com a arte, da qual o campo filosófico-educacional tem menosprezado a nosso juízo, sobretudo, para enfrentar o problema e as questões em torno das quais se reúnem os artigos deste dossiê.

Os dois últimos artigos do presente dossiê assinalam para um eventual uso da filosofia em interface com outras artes da existência para decifrá-las, com vistas a promover outras formas de educação filosófica. Nessa direção se articulam os artigos de Andrea Díaz Genis (Universidad de la República del Uruguay), intitulado Los aportes de la Educación y Filosofía. Los aprendizajes con la diferencia y a partir de la total precariedad, e de Tiago Brentam Pereccini (UNESP/Marília), com o título Educação Filosófica e Magia: A experimentação de outros processos de subjetivação.

O artigo de Díaz Genis aborda a partir da pergunta butleriana de que se é possível viver uma vida boa em uma vida ruim, essa forma de educação filosófica. Se reporta para tal a um personagem marginal, de alguém que vive na periferia de Montevideo, atravessado pelos signos da pobreza e do encarceramento juvenil, resistindo aos dispositivos de sua exclusão com a sua (auto)educação filosófica. Articula dessa forma relatos desse personagem infame com um processo autoformativo e de aprendizado filosófico que extrapola o modo como a Filosofia vem sendo ensinada nas instituições educacionais. Por sua vez, ao invés de se centrar num personagem, o artigo de Tiago Pereccini chega o limiar dessas práticas se reportando à relação entre filosofia e magia, discutindo os processos de subjetivação para experimentarmos outro tipo de educação filosófica, capaz de resistir à biopolítica e ao neoliberalismo na contemporaneidade. Aborda portanto a filosofia como um conjunto de práticas e exercícios, cuja téchné flerta, sob vários aspectos, com algumas técnicas mágicas e da ancestralidade, aos quais a sua configuração como exercício espiritual estiveram associadas, nos interpelando sobre até que ponto ainda o estão de certo modo. Nesse sentido, esses dois últimos artigos oferecem elementos para que (re)pensemos na forma como ensinamos Filosofia, levando as suas práticas aos limiares, por um lado, dos atores a quem se destinam e como estão sujeitas a variações, dependendo dos signos sociais que as atravessam e, por outro, de suas técnicas que trazem em sua genealogia alianças mágicas, não apagadas nem mesmo com a sua crescente cientifização.

Esperamos que este dossiê possibilite aos leitores uma reflexão sobre a problemática geral do governo das diferenças e dos corpos ingovernáveis, particularmente, que encontrem nesse conjunto de artigos algumas respostas para o enfrentamento da face obscura do biopoder no presente. Nossa expectativa também é a de que os eventuais impactos que esses corpos e suas alianças com a arte produzem na formação humana e em sua educação filosófica, tragam tanto à filosofia da educação quanto ao ensino de filosofia alguma oxigenação, quem sabe, entusiasmando-nos a extrapolar os pensamentos, práticas de pesquisa e de ensino, que também são nossas.

Pedro Angelo Pagni
FFC/UNESP
Divino J. da Silva
FCT/UNESP
Organizadores

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. [ Links ]

BUTLER, Judith. Cuerpos aliados y lucha política: Hacia una teoria performativa de la asamblea. Barcelona: Paidós, 2017. [ Links ]

FOUCAULT, Michel. Introdução à vida não fascista. In: FOUCAULT, Michel. Por uma vida não fascista. São Paulo: Sabotagem, 2004, p. 04-08. https://doi.org/10.18294/pm.2005.550Links ]

FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008. [ Links ]

FOUCAULT, Michel. A coragem de verdade. São Paulo: Martins Fontes, 2011. [ Links ]

MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 edições, 2018. [ Links ]

PRECIADO, Paul B. Texto Jumkie: Sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. São Paulo: N-1 edições, 2018. [ Links ]

SOLOMON, Andrew Longe da arvore: pais, filhos, e a busca da identidade. São Paulo/Brasil: Companhia das letras, 2014. [ Links ]

1Os artigos reunidos em torno deste título, retratam a primeira parte das discussões ocorridas nas mesas redondas do VIII Simpósio Internacional em Educação e Filosofia, ocorrido de 27 a 29 de agosto de 2019, na UNESP, Campus de Marília/SP. Agradecemos a FAPESP (2019/07882-5), CAPES (PRINT-UNESP 88887.310516/2018-01; PAEP 88881.358867/2019-0) pelo apoio financeiro que nos possibilitou a apresentação dos resultados da proposta.

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