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Educação e Filosofia

versión impresa ISSN 0102-6801versión On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.33 no.68 Uberlândia mayo/ago 2019  Epub 30-Ago-2021

https://doi.org/10.14393/revedfil.v33n68a2019-51970 

Dossiê Entre o governo das diferenças e os corpos ingovernáveis: potência da vid

Entre o governo das diferenças e o ingovernável dos corpos: possibilidades de resistências em educação1

Between the government of differences and the ungovernable of bodies: possibilities of resistance in education

Entre el gobierno de las diferencias y lo ingobernable de los cuerpos: posibilidades de resistencias en la educación

*Doutor em Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Professor na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. E-mail: pedropagni@gmail.com


Resumo

Este artigo analisa o governo das diferenças em instituições como a escola e discute as condições de possibilidade de os corpos ingovernáveis resistirem às formas de dominação representadas pela biopolítica neoliberal. Para isso, recorre ao projeto foucaultiano e aos seus interlocutores com a finalidade de provocar no campo filosófico-educacional uma maior abertura para com o outro e as diferenças que encarnam. Vislumbramos com essa atitude ética e política agenciada pela relação com o ingovernável a possibilidade de resistir aos desdobramentos fascistas da atual configuração da biopoder.

Palavras-chave: Biopolítica; Governamentalidade; Diferença; Educação

Abstract

This article examines the government of differences in institutions such as schools and discusses the conditions of possibility for ungovernablebodies to resist the forms of domination represented by neoliberal biopolitics. For this, it uses the Foucaultian project and its interlocutors in order to provoke in the philosophical-educational field a greater openness towards the other and the differences that they incarnate. We glimpse with this ethical and political attitude that the relationship with the ungovernable, the possibility of resisting the fascist developments of the current configuration of biopower.

Keywords: Biopolitics; Governmentality; Difference; Education

Resumen

Este artículo examina el gobierno de las diferencias en instituciones como las escuelas y discute las condiciones de posibilidad para que los cuerpos ingobernables resistan las formas de dominación representadas por la biopolítica neoliberal. Para ello, utiliza el proyecto foucaultiano y sus interlocutores para provocar en el campo filosófico-educativo una mayor apertura hacia el otro y las diferencias que encarnan. Miramos con esta actitud ética y política, producida por la relación con lo ingobernable, la posibilidad de resistir a los desarrollos fascistas de la configuración actual del biopoder.

Palabras clave: Biopolítica; Gubernamentalidad; Diferencia; Educación

O presente artigo aborda as diferenciações éticas para problematizar o governo das diferenças em instituições como a escola e para mapear algumas resistências que aí se expressam em formas de vida outras, frágeis, ingovernáveis. Tal tema é produto do desafio lançado a uma rede de pesquisadores em 2016 e, desde então, resultou no programa de pesquisa intitulado Subjetivação, diferença e educação2, cujos resultados se esboçam parcialmente neste dossiê. No marco do programa, este artigo procura, conjuntamente com outras iniciativas, encontrar uma resposta a uma conjuntura política atual, marcada por um cotidiano de exceção (BRUM, 2017) nos termos assinalados por Pagni (2019b), exigindo uma outra postura dos pesquisadores no aprendizado com as diferenças éticas na escola e vendo nos corpos que a encarnam um potencial de resistência aos estados de dominação que aí imperam.

Tenho defendido que essa outra postura exige uma abertura ao aprendizado com esses outros, implicando um papel de coadjuvante, por assim dizer, e um gesto de conceder a esses outros um certo protagonismo cuja condução incerta, por vezes, demanda certa impostura de risco por parte dos pesquisadores para que se disponham a pensar no inconciliável, no inominável e no ingovernável de si mesmos. Supõe-se para tanto uma arte de si e uma política da diferença que admita aprender com esses outros, eventualmente distintos de nós e com o próprio processo ético de diferenciação do que somos, um espectro de possibilidades para que fujamos do conformismo. Esta me parece ser uma resposta possível a conjuntura atual de exceção em que vivemos.

Nessa direção, conjuntamente com outros pesquisadores do referido programa, temos procurado convidar educadores e investigadores a: por um lado, pensarem numa impostura anarqueológica , para repetir outra ironia de Foucault, isto é, “fazer intervir sistematicamente, não a suspensão de todas as certezas, mas a não-necessidade de todo poder, qualquer que seja” (2014, p. 72), e, por outro, a assumirem uma abertura ao outro, para uma experimentação e autotransformação ética, aprendendo uma convivência com a diferença de outrem, como também aquela que vivencia em si. Com tais propósitos, na primeira parte deste artigo, gostaria de propor uma discussão do que faz com que a biopolítica neoliberal se erija, em suas formas mais acachapantes e fascistas em países periféricos como o nosso, como um governo das diferenças, travestido de um atendimento as demandas de nossa diversidade cultural, recorrendo aos cursos e textos do último Foucault e de alguns intelectuais que seguiram seu projeto. Na segunda parte, pretendo esboçar uma noção de fragilidade das forças que formam os modos de existência desviantes, retratando o modo como essas políticas da diferença incidem sobre o corpo e a multidão, situando-me no campo de desvios deficientes, por assim dizer, demonstrando alguns laços comuns que há entre a diferença do transexual, dos índios e dos afrodescendentes, em vistas a delinear um certo campo de alianças. Na última parte apresento, brevemente, alguns desafios sobre a necessidade de se empreender uma perspectiva de pesquisa e atitude de pensamento capazes de indicarem outros paradigmas de inclusão, como focos de resistência a atual configuração da biopolítica neoliberal.

O ingovernável no governo atual das diferenças e na biopolítica neoliberal

É bastante conhecida a interpretação acerca de que, em suas últimas obras e cursos ministrados no Collége de France, Michel Foucault se ocupou do eixo da ética do sujeito e, particularmente, da governamentalidade. Não somente diversos comentaristas mencionaram essa interpretação, como também o próprio Foucault no curso de 1983, intitulado Governo de si e dos outros, quando circunscreve o que procurou fazer até então teria sido uma “história do pensamento”, entendendo este último como uma análise dos “focos de experiência, nos quais se articulam uns sobre os outros: primeiro, as formas de um saber possível; segundo, as matrizes normativas de comportamento sobre os indivíduos; e enfim os modos de existência virtuais para sujeitos possíveis” (FOUCAULT, 2010, p. 4).

Nos cursos ministrados entre 1978 e 1984 é interessante notar o modo como se desenvolvem, guiados por aquilo que ironicamente chamou de anarquealogia, nos termos anteriormente assinalados. Contudo, o autor não desenvolve esse termo, ignorando-o em seu projeto arqueológico para evidenciar as relações de poder e, desde o curso intitulado Segurança, território e população de 1978, genealogicamente, privilegia o que denomina de o problema do governo ou da governamentalidade. Este é o problema que ganha centralidade em seu pensamento e que interessa a esta pesquisa.

Para Foucault (2008), esse problema emerge no século XVI ou XVII com a passagem de um governo centralizado pelo soberano para um governo múltiplo produzido pelas suas múltiplas artes e que exigem a mobilização de uma ciência ou de uma reflexão específica para regulá-las, independente parcialmente de um único governante ou de qualquer outra figura que as centralizem. Distribuídas entre as artes de governo de si mesmos que implicam em certa necessidade da consciência moral, de governo sobre a família, recorrendo à ciência econômica, e de governo estritamente estatal, mobilizador de uma ciência política, tais formas de governo podem ter tanto um sentido de continuidade ascendente quanto descendente. O primeiro sentido vetorial da governamentalidade, compreende uma série de condições para quem assume o posto desse governo político do Estado, que parte de um governo de si (moral) e de suas famílias (econômico), constituindo-se em uma espécie de pedagogia do príncipe, nem sempre efetivada na modernidade, mas que serve como um filtro para o governante, excluindo aqueles indivíduos que não atendem essas exigências. O segundo sentido sugere que, uma vez bem governado o Estado, os pais sabem governar bem a família e, consequentemente, bem se conduzem como indivíduos, numa direção descente de exemplaridade, por assim dizer, que modernamente foi conquistada graças a presença da força policial e a tentativa de conter o que escapa do que se pode governar, a saber, a população. Sem esta última, no século XVIII, após o desgaste da família como eixo da economia e com a sua emergência como um corpo social a ser objetivamente governado (com dados estatísticos, demográficos, etc.), nem aquelas múltiplas artes de governo teriam se constituído para formá-la nem toda uma racionalidade estatal teria sido desenvolvida para regulamentar esse governo da população. Por sua vez, esse governo opera filtrando o que provém do povo para que o que se supõe de ingovernável nessa espera não chegue ao governo estatal e exercendo sobre esse último, quando as medidas pedagógicas, médicas, psiquiátricas, são insuficientes, o controle policial para que não destrua nem o Estado nem a população a quem governa. Nesse sentido, se a força policial é necessária para garantir o governo da população, definindo bem suas margens como um objeto bem esquadrinhado, e manter o governamento estatal, por sua vez, as artes de governo são imprescindíveis para atuar moralmente e economicamente para governar os indivíduos provenientes do povo, ampliando o seu alcance para aqueles corpos que dele diferenciam de um eu capturado e que integra como um dado a mais a população. Por isso, Foucault (2008) analisa a genealogia dessa governamentalidade, como um momento em que o governo estatal passa a ser calculado e refletido, no poder pastoral, que se dispõe a governar o povo, como uma espécie de rebanho.

Poder-se-ia dizer que é graças a essas diferenciações de um indivíduo normalizado no governo de si e das anomias de um corpo social identificado como povo que não se deixa governar nem se tornar integralmente parte da população3, economicamente falando, que prefiguram as primeiras formas de governo das diferenças, já no século XVIII. Contudo, antes de seguirmos nessa direção, parece-nos importante assinalar o modo como Foucault (2008b) entende a emergência do Estado moderno quando a governamentalidade passa a governar de modo descendente a população, mantendo traços da soberania nas formas de governo das almas, da infância, da família, etc., produzidos institucionalmente, por meio de estratégias e táticas muito bem refletidas.

Vivemos na era da "governamentalidade", aquela que foi descoberta no século XVIII. Governamentalização do Estado que é um fenômeno particularmente tortuoso, pois, embora efetivamente os problemas da governamentalidade e as técnicas de governo tenham se tomado de fato o único intuito político e o único espaço real da luta e dos embates políticos, essa governamentalização do Estado foi, apesar de tudo, o fenômeno que permitia ao Estado sobreviver. E é possível que, se o Estado existe tal como ele existe agora, seja precisamente graças a essa governamentalidade que é ao mesmo tempo exterior e interior ao Estado, já que são as táticas de governo que, a cada instante permitem definir o que deve ser do âmbito do Estado e o que e não deve, o que é público e o que é privado, o que é estatal e o que é não-estatal. Portanto, se quiserem, o Estado em sua sobrevivência e o Estado em seus limites só devem ser compreendidos a partir das táticas gerais da governamentalidade (FOUCAULT, 2008b, p. 145).

Se a governamentalidade do Estado moderno assume essa configuração e adota essas formas calculadas e refletidas de governo da população, as suas configurações contemporâneas aprofundam os dispositivos de segurança que requerem e, ao mesmo tempo, colocam no centro dessa racionalidade a economia - não mais restrita ao governo familiar, mas ao governo das coisas. Ao menos essa é discussão proposta por Foucault (2008), no curso de 1979, intitulada Nascimento da Biopolítica. Particularmente, o que lhe interessa, segundo suas palavras é o seguinte.

É portanto toda uma porção ao da atividade governamental que vai passar assim para um novo regime de verdade, e esse regime de verdade tem por efeito fundamental deslocar todas as questões que, precedentemente, a arte de governar podia suscitar. Essas questões, outrora, eram: será que governo efetivamente de acordo com as leis morais, naturais, divinas, etc.? Era portanto a questão da conformidade governamental. Depois, passou a ser, nos séculos XVI e XVII, com a razão de Estado: será que governo bastante bem, com bastante intensidade, com bastante profundidade, com bastantes detalhes para levar o Estado até o ponto estabelecido por seu dever-ser, para levar o Estado ao seu máximo de força? E agora o problema vai ser: será que governo bem no limite desse demais e desse pouco demais, entre esse máximo e esse mínimo que a natureza das coisas fixa para mim, quero dizer, as necessidades intrínsecas as operações de governo? É isso, a emergência desse regime de verdade com o princípio de autolimitação do governo, o objeto que eu gostaria de tratar este ano (2008, p. 27).

E o problema que será abordado no âmbito dessa autolimitação do governo da racionalidade, ou dessa governamentalidade econômica, é o de que, ao extremar o governo sobre a população e, particularmente, sobre a regulação de sua vida, produz uma biopolítica neoliberal que esvazia esta última de sentido e a instaura no neoliberalismo como um modo de existência. No âmbito dessa biopolítica neoliberal, a existência individual não precisa mais ser governada pelo Estado e por artes de governo específicas, na medida em que os regimes de verdades destas foram internalizadas, governando a sua vida particular por técnicas administradas por si mesmos, e aquela forma de governo se tornou desnecessária na medida em que tudo passou a ser gerenciado por uma economia política, por assim dizer.

No âmbito desse movimento histórico e de um austero governo de si, em que o auto empreendimento ganha centralidade, fazendo-se incorporar à vida individual e às formas de vida da população por meio de regimes de verdade e de técnicas de biopoder cada vez mais irrefletidas, o governo de toda diferença que escapa à identidade subjetiva e de toda multiplicidade presente no povo que margeia a população assume o protagonismo dessa governamentalidade e, consequentemente, da biopolítica neoliberal. Se, como visto em outra ocasião (PAGNI, 2019a), o imperativo moral que se prescreve e se coloca em circulação nessa atual configuração é a eficiência e o desempenho no que se refere a uma anátomo-política dos corpos, a biopolítica neoliberal apela à diversidade como princípio de regulação do corpo social e ao multiculturalismo para que o povo ou, para usar uma expressão de Hardt e Negri (2005), a multidão seria forçada a integrar-se aos seus dispositivos jurídico-políticos e aos dispositivos de segurança da população. Essa forma particular de governamento ganha centralidade na biopolítica neoliberal a partir da segunda metade do século XX e assume o seguinte contorno. Por um lado, as políticas econômicas subjugam os indivíduos às tecnologias de biopoder se autogovernando, por vezes, ao fazer uso de seus corpos como núcleos de uma espécie de servidão inadvertida. Por outro, ao procurar governar as diferenças suscitadas por essa relação dos indivíduos com si mesmos, com seus próprios corpos e, sobretudo, expressas em suas manifestações comuns na esfera pública, como povo ou como multidão que resiste à sua integração à população. Isso ocorre por meio de políticas públicas que criam normas difusas, capazes de capturar cada diferença proveniente dessa pressão ascendente, e reduzi-la a uma identidade jurídica ou política para amenizar as lutas desses distintos modos de existência, ajustando-as a uma diversidade ou à multiplicidade cultural, sem que isso rompa com a racionalidade econômica que preside a biopolítica, mas a otimize. Uma otimização que se dá pela relativização dos regimes de verdades instigados pela racionalidade econômica, pela circulação de normas que uma vez determinadas por saberes que esquadrinham e que aglutinam em segmentos aquela parcela popular que margeia a população, em vistas a alinhá-los a esta última e melhor governa-los sob o signo do multiculturalismo e de políticas afirmativas, que supostamente os incluiria na biopolítica neoliberal.

Michel Foucault não se ocupou propriamente dessa temática, tampouco se deteve na crítica desses empreendimentos atuais no âmbito da política pública e, principalmente, da economia política, embora muitos o alinhem a elas denominando-o de neoconservador, apoiador do neoliberalismo, etc. Ao contrário disso, pensamos que o seu projeto diagnostica essa configuração da biopolítica neoliberal, compreendendo , de uma forma ou de outra, todos estamos sujeitos a ela por tecnologias de biopoder que, não obstante a sua positividade, também encontram linhas de fuga e modos de existência que lhe resistem. Tanto a sua retomada da ética do cuidado nos antigos quanto os ensaios sobre os homens infames caminham nessa direção, indicando, por uma via, uma desnaturalização dos processos de subjetivação atuais aos quais estamos presos de algum modo e, por outra, como que a errância de determinadas vidas, a sua fragilidade e a sua diferenciação ética demarcam linhas de fuga, outras formas de existência que raramente são vistas e, quando isso ocorre, passam a ser perseguidas para integrarem e serem incluídas às subjetivações usuais. Contudo, quando essas formas de existência são vistas, elas são colocadas à margem da biopolítica e jogadas a uma tanatopolítica, já que fogem da norma, da média e do desvio padrão das características gerais que objetificam e circunscrevem quem faz parte da população, como vidas que não merecessem ser vividas. O problema é que essas vidas se configuram em formas de resistência e resistem a essa força centrífuga, se engajando em lutas transversais que interrompem, perturbam, afrontam as formas de governamentalidade estatal, seja em suas configurações ascendentes quanto descendente, obrigando a biopolítica e os seus dispositivos de biopoder a se reconfigurarem, incluindo-as. Essa inclusão se opera com uma lógica própria, com os vetores da governamentalidade e se adequa aos fins da produtividade, da eficiência individual e do desempenho social, enfim, da racionalidade econômica em voga na biopolítica neoliberal, incluindo como segmento da população essas vidas e dessas formas de existência que se diferenciam do padrão e que lhe escapam se manifestando em sua rebeldia popular e em suas múltiplas impulsividades de uma multidão ingovernável.

É sobre essa ingovernabilidade a que são chamadas objetivamente a se governar, caso desejem estar e ser sujeitos. Sob o desígnio de que aí se encontra o incivilizado do civil, o animalesco do humano e o indócil do docilizável, é sobre esse núcleo inumano da subjetividade e essa dimensão ontológica da existência, por assim dizer, que os discursos em circulação e os inúmeros dispositivos do biopoder atuam no sentido de induzir ao sujeito dele se ocupar dessa dimensão subjetiva para se governar em conformidade com as normas e os regimes de verdade readequados para que seja incluído. A sua demanda ascendente por inclusão nos regulamentos jurídico-políticos estatais é, assim, corroborada por sua adequação a uma das identidades inteligíveis pela racionalidade econômica, aos quais tanto os dispositivos de reconhecimento social quanto o multiculturalismo procuram traduzir sob o signo da diversidade.

A adequação mencionada consiste, graças a esse multiculturalismo e ao esquadrinhamento dessa diversidade, em governar a população na biopolítica neoliberal, não em sua forma descendente e única, como na gênese do Estado Moderno, mas em sua forma múltipla. Por isso, essa governamentalidade produz um exercício de poder por dispersão na medida em que admite essa multiplicidade correspondente a uma classificação prévia, desenvolvida pelos saberes especializados (biológico, genético, sociológico, antropológico, etc.) e empreendida por tecnologias de biopoder. São esses saberes e tecnologias que segmentam a população, ampliando as suas margens para tentar capturar o povo e a multidão que delas escapam, para ser eficiente na distribuição de regimes de verdade, assim como na sujeição e servidão voluntária dos sujeitos que dela fazem parte. Com a promessa de que com o governo de si por tecnologias bastante específicas e com o obscurecimento do ingovernável de suas existências, dessa forma, esses sujeitos seriam capazes de empreender-se, formando o capital humano e incluindo-se a racionalidade econômica que lhes tornariam aptos para participar funcionalmente da biopolítica neoliberal.

Esse é um diagnóstico que se pode dizer global e, com maior recrudescimento, que se expressa com algumas particularidades em países periféricos como o Brasil e outros da América Latina. Nesses casos particulares, uma série de medidas acompanharam as políticas afirmativas e de ampliação das margens da população para abarcar o que se denominou de inclusão social e estabelecer formas particulares de governo das diferenças. No Brasil, essas ações na esfera pública por parte do Estado se acentuaram nas duas últimas décadas, graças a política públicas empreendidas em nível federal e estadual, particularmente, relacionadas ao estabelecimento de cotas para o ingresso no ensino superior, a adesão aos princípios internacionais de inclusão das pessoas com deficiência e a criação de políticas educacionais voltadas à inclusão de afrodescendentes, populações quilombolas e indígenas, assim como o estabelecimento de alguns parâmetros curriculares nacionais para discutir os direitos humanos, a sexualidade e a diversidade de gênero.

A conquista de direitos jurídicos nesses campos, e o atendimento de uma demanda importante de vários movimentos minoritários de acesso ao campo educacional e o seu reconhecimento à participação na esfera pública, foram de extrema importância. Contudo, em grande medida, não somente foram insuficientes para que esses movimentos se concretizassem de maneira efetiva como, também, os dispositivos de segurança e, podemos dizer, de inclusão produziram uma contrapartida ética complexa e, contraditoriamente, muitas vezes, uma concepção política identitária, inscrevendo-os num jogo em que as regras não escapam da flexível rearticulação do capital no neoliberalismo. Essa contradição, por assim dizer, entre o que propagam as políticas estatais de inclusão e os dispositivos que implementam, tendo como objeto os documentos oficiais e um conjunto de práticas discursivas, de epistêmes e de mecanismos de subjugação, consiste no problema central deste programa de pesquisa, com vistas a propor outros paradigmas de inclusão e de possíveis alianças transversas entre as várias diferenças que, eventualmente, podem potencializar a emergência de um comum, aglutinando as forças de multidões pouco visíveis, e de outros atores sociais na esfera pública, que exprimem sua resistência às atuais formas de biopoder.

Afinal, essa inclusão, como um desdobramento do governo da população na biopolítica neoliberal, tem um preço. Esse preço é cobrado dessas vidas e formas de existência, como as de quaisquer outras já integradas à biopolítica que elege o neoliberalismo não mais como uma política estatal, mas como um modo de vida regulada, excluindo e submetendo a uma tanatopolítica tudo aquilo que escapa a essas regulações. As vidas que, por sua precariedade ou por sua vitalidade, não se assujeitem às normas múltiplas instituídas e as formas de existência, que deixem de servir ao maquinismo pressuposto pelo neoliberalismo dessa forma instituído por esse governo das diferenças, passam a orbitar a sua margem, a viver uma vida sem regras e a existir num Estado de exceção. Por mais flexibilidade a adaptações a essas regulações que o neoliberalismo tenha na atualidade - em razão de sua ânsia por inovação e por dar vida ao mercado às custas de um viver sem vida ou de um sobreviver -, o medo da desregulação, do viver sem a segurança, dada por dispositivos e por essa forma de governamentalidade, funcionam como uma espécie de imperativo moral, porém, exercido como um sentimento de obrigação e, segundo Maurizio Lazzarato (2013), como uma espécie de dívida ao qual são subjugados como segmentos do povo e da multidão que, então, passam a fazer parte da população. Dessa forma, o preço pago pela inclusão desses segmentos que compreendem vidas que nessas condições podem ser distribuídas e reguladas se assim desejarem, e voluntariamente servir e servir-se da segurança propiciada pelo biopoder, é o de abrir mão de sua biopotência produzida pela diferença provocada pela sua relação com o ingovernável do uso que os sujeitos fazem de seus próprios corpos nos processos de subjetivação, pela inoperosidade emergente do encontro com os outros corpos e da diferença suscitada na relação com o substrato ético de um devir tanto singular quanto comum.

Em outras palavras, para admitir essa forma de inclusão, esses sujeitos - e todos nós - teriam que abrir mão do que são como seres, do ethos que os constitui e das diferenças que exprimem, justamente por não serem passíveis de regulação, de domínio ou de pleno governo seja por si, seja pelos outros. Já que estão sujeitos a conviver com o contingente, com os efeitos dos acidentes em seus corpos e com o ingovernável dos acontecimentos que os desapossam de uma identidade, obrigando-os a viver na diferença, ontologicamente falando, e a conviver com um devir que lhes exige improvisar existencialmente, tais modos de existência traduzem essas vidas singulares e exprimem suas formas de viver com o outro. Assim, elas sugerem outra forma de governamentalidade: vetorialmente transversal, antes que ascendente ou descendente; ontologicamente radical, já que dessubjetivante pois produzida pela diferença suscitadas pelo acidental, o que torna a sua vida eticamente frágil e a sua expressividade necessitante de tradução; enfim, politicamente ingovernável na medida em que, nesse seu núcleo subjetivo, encontra a biopotência da criação de modos outros de existência e, com isso, formas distintas (inoperosas) de vida comum, impondo a democracia ver o dissenso como seu móvel, a visibilidade de sua diferença como dispositivo de inclusão e o convívio com o diferente como o seu fim.

A fragilidade dos corpos e as multidões como força: alianças políticas da resistência

A hipótese esboçada na primeira parte deste artigo, parece abrir a possibilidade de pensar de outro modo a questão das políticas estatais e dos dispositivos de inclusão na educação, ao reconhecer a transversalidade das formas de luta, deslocando a discussão atual em torno do atendimento das demandas da ascendência de certa governamentalidade das multidões desviantes para inclui-las ou, mesmo, de certa descendência produzida pela legitimação de reivindicações destes para ampliar o governo da população empreendido pelo Estado, legitimadas em princípios jurídicos universais. Tal deslocamento colocaria no centro das discussões sobre a inclusão as lutas locais e transversas, assim como as demandas advindas de muitas vidas precárias, antes do que somente de um ideal de dignidade que nunca tiveram acesso, expressa em sua diferenciação ética do comum e em sensos estéticos que poderiam configurar às comunidades daí emergentes como uma tendência transformadora do atual governo identitário das diferenças, ampliando suas margens. Eis aí a originalidade desta proposta para o campo educacional, assim como a relevância de vermos naquelas comunidades e multidão um porvir outro, em busca de uma atopia capaz de nos tirar do lugar e do conformismo de quem fala sobre elas, mas raramente as ouve, próprio de certos estudos acadêmicos.

A atopia que, anarquicamente, busca esses viventes pode ser mobilizada pelas lutas em torno da produção de novas identidades socialmente aceitas ou para se tornar uma nova figura do reconhecimento e da justiça social, como sugerem Nussbaum (2007; 2010) e alguns intérpretes de Axel Honneth (2004), respectivamente. Não obstante a conquista por direitos civis e por reconhecimento por essas lutas, sobretudo, em seu sentido tático, estrategicamente os indivíduos das diferenças parecem ir além disso, interpelando toda lógica identitária, norma e regime formal ou jurídico de verdade que as compreendem. Ademais, toda uma série de agenciamentos produzidos pelo mercado tenta capturar as demandas dos movimentos LGBTs, feministas, dos povos indígenas, quilombolas, afro-descentes, comunidades de pessoas com deficiências, dentre outros, para se transformarem em produtos capazes de codificá-los para os outros e identificá-los entre si, como uma espécie de política de reconhecimento por parte do Estado, por um lado, e por uma ênfase de que a cultura é múltipla e se apresenta como um ramo do mercado, destinando-se a esses nichos distintos, por outro. Agenciamentos, nesses casos, que se apropriam de demandas manifestas nessas lutas em que se expressam eticamente as diferenças e, na esfera pública, se apresentam como uma demanda política efetiva, porém, dirigidos para minimizá-las como uma multiplicidade cultural esvaziada de eticidade, para desviá-las de seus fins e das consequências que traria em termos de efeitos de poder para a biopolítica neoliberal.

Diagnosticando essas formas de capturas, tanto nos documentos oficiais quanto nos dispositivos que implementam e fazem circular certa política de inclusão, este programa de pesquisa espera alertar e estabelecer uma ponte entre vários desses movimentos e comunidades para que assumam seu lugar de enunciação discursiva e, se possível, de expressividade pública, sendo este o principal vetor para a construção de outros paradigmas de inclusão na escola. Afinal, estes últimos são os principais atingidos, não apenas pelos limites da atuais políticas de inclusão, anteriormente mencionadas, como também, e principalmente, pelos reveses e refluxos que vêm sofrendo nos dois últimos anos, com o encerramento de alguns programas estatais e um ostensivo combate público contra as poucas conquistas de direitos jurídicos efetuadas na cena pública, sobretudo, em relação às questões de gênero, de demarcação de terras indígenas, de direitos dos quilombolas, pelos grupos alinhados a determinados fundamentalismos religiosos, interesses oligárquicos e de grandes oligopólios.

Um sinal contemporâneo de combate a esses direitos é o programa da Escola Sem Partido, implementado em algumas cidades brasileiras e, no caso do Estado de São Paulo, em algumas localidades, como Campinas, com forte tendência a influenciar outras cidades dessa região do país. Mais do que um programa, essa tendência geral de refluxo em relação às conquistas e de ampliação do governo sobre as diferenças, gradativamente, vieram ganhando mais espaço e visibilidade, como comentado em outra ocasião (PAGNI; CARVALHO; GALLO, 2016), sendo necessário uma ação e um programa mais sistemático para conter esse refluxo, e municiar, teoricamente, as lutas em prol dos direitos dos grupos denominados minoritários e propiciar uma reflexividade ética a partir da relação com os processos de diferenciação subjetiva que produzem em instituições como a escola.

Para isso, é necessário situá-las em relação às formas como as políticas estatais sobre inclusão e os dispositivos inclusivos na escola incidem sobre as diversidades culturais, às diferenças de gênero e às questões de sexualidade, ao movimento afrodescendente e de quilombolas, às comunidades de deficientes, dentre outros atores de uma ingovernável multidão, para usar uma expressão de Hardt e Negri (2005) na apropriação feita por Preciado (2011), ao se referir às multidões queer. Interessaria, também, discutir quais dispositivos de inclusão social em instituições como a escola atuam como uma forma de captura desses atores, fazendo de seus corpos parte integrante de um corpo social e de uma população apta ao governo do Estado ou do mercado, no âmbito da biopolítica neoliberal. Em vista desse desafio, as discussões deveriam se centrar teoricamente nos corpos desviantes e na multidão que escapa as atuais formas de governo nesse registro político, recorrendo à literatura sobre as formas de sua subjugação e servidão na biopolítica neoliberal, assim como as linhas de fuga que apresentam, à luz das filosofias da diferença.

A questão que nos desafia, com esse propósito e perspectiva, é a mesma circunscrita por Peter Pelbart, ao analisar a biopolítica atual: “como ter a força de estar à altura de sua própria fraqueza, ao invés de permanecer na fraqueza de cultivar apenas a força? “(2007, p. 69). E, ao analisar esse corpo desviante, a hipótese que vislumbro é a de que a própria fragilidade se constitui em uma força e, por sua vez, esta pode ser considerada um dos principais vetores da biopotência, expressos nas formas de vidas precárias e nos devires que, na relação com outrem, instigam a criação de outros processos de subjetivação em instituições como a escola ou apesar dela. Essa resposta se aproxima também daquela que Paul Beatriz Preciado (2011) elabora acerca de algumas minorias feministas, dos movimentos LGBTs e, principalmente, das questões que mais lhe interessam sobre a contrassexualidade e os corpos transgêneros, encontrando, aqui, um ponto comum a ser explicitado e que pode alinhavar algumas alianças nesses campos de luta pela afirmação das diferenças na cena pública atual, desde que evitemos algumas armadilhas.

Para Preciado (2011) esse corpo seria o da multidão queer que desterritorializaria todo um emblema ligado a sexopolítica, que ancora o gênero à uma formulação binária (masculino e feminino) e esta a uma heteronormatividade. Mas, salienta que seria preciso evitar duas armadilhas às quais essa interpretação estaria sujeita. A primeira seria a da segregação dessa multidão do espaço público, vendo nela um tipo de reservatório de transgressão e sendo necessário, já que isso implicaria em analisa-las numa ótica do progresso, o que parece não ser o caso. A segunda seria a de que não se poderia pensá-las em oposição às estratégias identitárias, mas no meio mesmo das tecnologias de biopoder que as produzem, sendo atravessadas por elas e, concomitantemente, resistindo a elas. Nesse sentido, diz Preciado: ‘“Desidentificação’ (para retomar a formulação de De Lauretis), identificações estratégicas, desvios das tecnologias do corpo e desontologização do sujeito da política sexual são algumas das estratégias políticas das multidões queer”(2011, p. 15-16).

É interessante notar que, o que denomina de desvios das tecnologias do corpo e da desontologização do sujeito, não implicam, nem num abandono da perspectivação sobre o corpo como inscrição dos acontecimentos dessas vidas frágeis, nem de um ponto de vista de uma virada ontológica, em que a ontologia não se resume a uma essencialização de categorias ligadas ao gênero, nem a uma corporeidade restrita a sua sexualidade binária. Por isso, parece ser possível vislumbrar na sua noção de multidão queer uma proximidade do que autores como Wanderson Flor do Nascimento (2016) vem fazendo da relação entre a diáspora africana em interface com as cosmologias do candomblé ou que o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (2015) faz do perspectivismo ameríndio e das cosmologias dos povos da Amazônia. Independente das eventuais divergências teóricas e, principalmente, relativa às características particulares da relação com esse outro, seja como transgênero, seja como os afrodescendente, seja como ameríndio, alguns autores perspectivando-os mais à luz do que compreendem como multidões ou a partir de seus corpos singulares, da ruptura e de cada diferenciação das diferenças que representam, há uma discussão ontológica comum que a seu modo implicam o ingovernável desse outro, o a-significante e inominável de sua subjetividade e o necessário convívio com da força da fragilidade de suas forças.

O desafio de outra atitude de pesquisa e de outros paradigmas de inclusão: à guisa de uma convocação final

Em razão dos limites deste artigo e, sobretudo, do mapeamento das particularidades ontológicas e éticas dos múltiplos processos de diferenciação subjetiva que compreendem essas multidões a que se propõe, a discussão apresentada permitiria estender as discussões filosóficas sobre a radicalidade ontológica da deficiência (PAGNI, 2019a) para outros campos da pesquisa em Educação e das práticas inclusivas em instituições como a escola. Nesse sentido, essas discussões sobre a ontologia dessas diferenças e o mapeamento de seus modos particulares de existência vislumbram encontrar, nas singularidades dos corpos as encarnam e nas formas de viver que produzem uma comunhão, focos de resistência e algumas possíveis alianças políticas no sentido da ampliação por direitos civis e de lutas não identitárias.

Para tanto, mais do que uma discussão teórica, seria necessário aos pesquisadores desse campo que outros paradigmas de inclusão emergissem dessas lutas e se reportassem a algumas de suas experiências e alguns testemunhos de deficientes, comunidades quilombolas, povos indígenas, dentre outros. Mas isso só seria possível a partir de certa imersão nas lutas transversas empreendidas por essas vidas supostamente frágeis, marginalizadas, infames, diferentes, por assim dizer, por parte daquele/as que trabalham nesse campo tanto de pesquisa como o da Educação quanto o da práticas compreendidas nas instituições escolares. Por essas razões, se vislumbra aqui uma articulação das pesquisas desse campo com a militância que, além de seu viés acadêmico, propõe que os pesquisadores se encontrem ao lado ou, mesmo, imersos nessas lutas, nessas práticas, com vistas a construir outras formas de governamentalidade e de testemunhar as formas de existências aí emergentes, assim como, desde de seu interior-comum, compreender o que lhes atravessam de outras diferenças, como se aliam e agem politicamente, em torno de ética e de suas particularidades ontológicas. Dessa forma, propõe-se uma perspectiva filosófica em que a pesquisa transitaria dessas lutas para os saberes disciplinares universitários, problematizando-os sobre seus limites para dar conta dessas formas de vida singulares e comuns, ao mesmo tempo em que colabora para que estas sejam visibilizadas e adquiram uma elaboração conceitual um pouco mais sofisticada, para que possam circular entre aqueles saberes, inter e trans-disciplinarmente.

Nisso consistiria um trabalho de tradutibilidade entre dois mundos, nos termos e, que inspira o trabalho de Judith Butler (2011). Dessa perspectiva, o que interessa é a relação que aí estabelece com o Outro, até onde podemos compreendê-la, não é propriamente conhece-lo objetivamente ou definir o que ele é, nem à luz dessa relação se conhecer nesse processo de conhecimento e de autorreflexão, mas também pensar a partir dos agenciamentos que ocorrem entre um e outro em desprender-se de si para melhor acolher o Outro. O que pode ser interpretado sobre esse Outro e sobre aquele que o conhece a partir desses agenciamentos, é algumas reflexões sobre o que mobilizou no sujeito para conhece-lo como objeto e, por sua vez, o que este último deu a pensar nessa relação, que ultrapassam a sua objetificação, ao mesmo tempo que interpelam a subjetivação projetada sobre ele, assinalando sua fragilidade para apreendê-lo. Nesse jogo, esse um poderá falar sobre esse Outro, quando busca se colocar em seu lugar, assume seu ponto de vista e se subjetiva, muito mais a partir dos efeitos que produz materialmente ou na superfície do corpo, ou seja, que aí é possível ver, material ou expressivamente, do que do que eventualmente pensa ou é como ser, o que percebe e como é sua existência.

Por isso, somente é possível falar apenas da experiência de uma relação com essa face desconhecida do Outro e, ainda assim, de forma aproximativa pelo que aquele corpo desviante, nos casos aqui em apreço, agencia no sujeito, mobilizando-o a aproximar-se dele pelos usos, cuidados e experimentos que faz de si mesmos, mas sem jamais apreendê-lo, significa-lo ou conhece-lo completamente. Ao tornar incompleta a alteridade propagada, e suspender essa ambição de apreender completamente o Outro para se colocar em seu lugar, esse mesmo sujeito se sente atraído por essa sua face incompleta e obscura, justamente pelos afetos e pelos signos do acontecimento que experimenta e os agenciamentos que o colocam em devir, dessubjetivando-o para que acolha esse outrem e melhor conviva com a sua diferença, que também é a de um outro de si mesmo.

Desse ponto de vista, ao alinhar-se a essa experimentação, os pesquisadores poderiam mapear teoricamente as particularidades ontológicas e éticas dos múltiplos processos de diferenciação subjetiva, assim como as possibilidades de na constituição de certas comunidades por vir. A elas se procurará dar visibilidade, analisando criticamente as tecnologias de biopoder e os dispositivos de inclusão que as obscurecem em instituições como a escola e, sobretudo, que interditam suas formas de expressividade na esfera pública, denunciando os estados de dominação que podem compreendê-los e a sua transfiguração micro fascista nessa instituição. Assim sendo, os que ingressarem desse programa estariam mais próximos de uma pesquisa que exigiria de si uma atitude filosófica ou, por assim dizer, ética alinhada a um viés crítico, almejado por parte significativo de filósofos contemporâneos (como Adorno, Arendt, dentre outros) e, particularmente, de filósofos como Michel Foucault, para quem, a tarefa que teria restado à filosofia seria a de combater o fascismo, seja onde for, incluindo as esferas da micropolítica.

Trata-se, pois, mais do que de um programa de pesquisa, de um programa de ação, guardada as devidas proporções e peso intelectual, inspirado naquele esboçado por Michel Foucault (2004), ao prefácio do Anti-Édipo, intitulado “Por uma vida não fascista”. E, se há uma forma de fascismo atual no âmbito da biopolítica neoliberal, ela se expressa como demonstramos aqui em políticas estatais que almejam governar as diferenças sob o pretexto de atender as demandas do que se chama de diversidade e conclamar os dispositivos econômicos capitalistas a captura-las por meio do que se denomina de multiculturalismo. Por essa razão, o convite para integrar esse programa, dirigido aos leitores, não se faz formalmente, nem por imposição, nem tampouco por adesão irreflexiva, mas por um apelo a quem ou a o que se sentir efetivamente esgotado por essa forma mecânica de servidão ao qual nos submetemos, dada a força do capital, e a quem ou a o que se dispor a uma atitude de não conformismo em relação a essa forma atual de governo da vida.

Referências

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1Artigo resultante da pesquisa O ingovernável da deficiência na escola: entre a resistência ao governo das diferenças e outro paradigma de inclusão, financiada pelo CNPq, com bolsa PQ.

2Esse projeto foi submetido a um edital da CAPES e como projeto temático à FAPESP, sendo bem avaliado em ambos, mas sem ter o apoio dessas agências em razão de suas prioridades. No entanto, foi bancado pela iniciativa dos próprios pesquisadores, de suas instituições ou de projetos particulares de pesquisa, dentre os quais destaco o projeto Diversidade, Movimentos sociais e inclusão, financiado pelo PRINT-UNESP (processo CAPES: 88887.310516/2018-0).

3Diz Foucault (2008b, p. 57 ): “O povo é aquele que se comporta em relação a essa gestão da população no próprio nível da população, como se não fizesse parte desse sujeito-objeto coletivo que é população, como se se pusesse fora dela, e, por conseguinte, é ele que, como povo que se recusa a ser população, vai desajustar o sistema”.

Recebido: 11 de Dezembro de 2019; Aceito: 20 de Maio de 2020

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