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Educação e Filosofia

versión impresa ISSN 0102-6801versión On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.33 no.68 Uberlândia mayo/ago 2019  Epub 30-Ago-2021

https://doi.org/10.14393/revedfil.v33v68a2019-51964 

Dossiê Entre o governo das diferenças e os corpos ingovernáveis: potência da vid

Corpos alterados, corpos ingovernáveis: cartografias ético-estéticas para segurar o céu pelas diferenças

Altered bodies, ungovernable bodies: ethical-aesthetic cartographies to hold the sky through diferences

Cuerpos alterados, cuerpos ingobernables: cartografías ético-estéticas para sostener el cielo a través de las diferencias

Alexandre Simão de Freitas* 
http://orcid.org/0000-0003-0982-6581

*Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor Adjunto do Departamento de Administração e Planejamento Educacional (DAEPE) do Centro de Educação da Universidade Federal de Pernambuco e professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE/ UFPE). E-mail: alexshiva@uol.com.br


Resumo

O artigo desdobra algumas implicações decorrentes de uma análise ficcional em torno das artes neoliberais de governo. Nessa direção, articula os pressupostos das teorias biopolíticas da formação humana agenciadas pela entrada no Antropoceno, a fim de pensar a desabilitação do que Elizabeth Povinelli chama de imaginário do carbono e seus processos de marcação, distinção e desqualificação ontológica. Trata-se, portanto, de um ensaio especulativo produzido em torno do diagnóstico de um desmoronamento catastrófico da distinção fundamental da episteme moderna, a distinção entre as ordens cosmológica e antropológica, sugerindo uma cartografia precária dos corpos ingovernáveis ancorada em uma sutil arte política: a arte de segurar o céu pelas diferenças. Essa arte almeja atravessar o abismo que historicamente separou um povo com filosofia em oposição aos povos com mito, construindo pontes que incitem a Filosofia da educação e seus praticantes a se situarem na equivocidade dos mundos e aí habitar.

Palavras-chave: Antropoceno; Geontologia; Cartografias da diferença; Formação humana

Abstract

The article unfolds some implications arising from a fictional analysis around the neoliberal arts of government. In this sense, it articulates the presuppositions of the biopolitical theories of human formation that were introduced by the entry into the Anthropocene, in order to think about the disabling of what Elizabeth Povinelli calls the carbon imaginary and its processes of marking, distinction and ontological disqualification. The argument is a speculative essay produced around the diagnosis of a catastrophic collapse of the fundamental distinction of modern episteme, suggesting a precarious cartography of ungovernable bodies anchored in a subtle political art: art of holding the sky through the differences. This art aims to bridge the chasm that has historically separated a people with philosophy as opposed to people with myth, building bridges that incite the Philosophy of education and its practitioners to lie in the equivocity of worlds and dwell there.

Keywords: Anthropocene; Geontology; Cartographies of the difference; Human formation

Resumen

El artículo desarrolla un análisis sobre las artes neoliberales del gobierno. En este sentido, refleja las presuposiciones de las teorías biopolíticas de la formación humana frente a la entrada al Antropoceno, a fin de pensar la desactivación de lo que Elizabeth Povinelli llama el imaginario del carbono y sus procesos de distinción y descalificación ontológica. Es, por lo tanto, un ensayo especulativo producido en torno al diagnóstico de un colapso catastrófico de la distinción fundamental de la episteme moderna, sugiriendo una cartografía de cuerpos ingobernables anclados en un sutil arte político: la arte de sostener el cielo a través de las diferencias. Esta arte tiene como objetivo cerrar el abismo que ha dividido un pueblo con filosofía y un pubelo con mitos, construyendo puentes que inciten a la Filosofía de la educación y a sus practicantes a pararse en la ambigüedad de los mundos y habitar allí.

Palabras clave: Antropoceno; Geontología; Cartografías de la diferencia; Formación humana

“O território da razão só concede ao outro a sua terra estéril,

suas bordas e seus confins”.

Tony Hara

O Antropoceno como duplo monstruoso da modernidade

Desde 2013 venho buscando desdobrar uma espécie de ficção analítica acerca das chamadas “artes neoliberais de governo”, inspirada e conspirada nas disputas acerca do legado deixado por Michel Foucault em sua genealogia ética do cuidado de si. A intenção consiste em mobilizar uma cartografia das teorias biopolíticas da formação humana agenciada pela entrada no Antropoceno,1 a fim de pensar a desabilitação do que Elizabeth Povinelli chama de “imaginário do carbono” e seus processos de marcação, distinção e desqualificação ontológica que informa a existência e a não existência de múltiplos seres.

O argumento guarda um tom intencionalmente especulativo, e vem se organizando em diferentes eixos analíticos que se intersecionam. Por exemplo, tenho destacado um conjunto de fragmentos extraídos das aulas ministradas por Michel Foucault, em 1978, no curso Segurança, território, população, para mostrar como certos corpos e ambientes passaram a sofrer uma exposição diferencial a situações de violência e destruição. Nesse contexto, Foucault indica um autor desconhecido, que ninguém lê ou, se leu, não lhe prestou a devida importância, responsável pelo primeiro grande relato acerca dos enigmas da biopolítica. Trata-se do autor de Estudos sobre a população no qual Foucault (2008) encontra ideias tais como: “depende do governo mudar a temperatura do ar e melhorar o clima; um curso dado às águas estagnadas, cuidar das florestas plantadas ou queimadas, montanhas destruídas pelo tempo ou pelo cultivo contínuo de sua superfície” (p. 29, destaques meus).

De fato, o autor conhecido como Moheau,2 defende que uma das tarefas centrais de todo governo consiste em intervir em uma natureza cujo meio (geográfico, climático etc.) está em permanente associação com a espécie humana e seus múltiplos afazeres. Para ele, o governante deve exercer seu poder justamente no ponto de articulação em que a natureza, no sentido dos elementos físicos, vem interferir com a natureza no sentido da natureza de uma espécie humana. Lembremos que esse ponto é também aquele que nos faz tropeçar, diz Foucault (2008), no eixo vital do dispositivo de segurança, uma vez que a população jamais se configura como um dado primeiro, mas depende de uma série de variáveis. A população varia. Varia não apenas com a intensidade do comércio, com as leis a que é submetida, com os hábitos e com os valores morais. Varia também com o clima, com o entorno material.

O problema é que um fenômeno natural nunca se pode mudar por decreto, como aliás desejam alguns de nossos governantes atuais3, o que exige que a população em sua natureza se torne um alvo específico do poder. Em outros termos, tem-se uma população quando se evoca a ideia de uma espécie humana. Só então o homem pode aparecer em sua inserção biológica primeira. Como sabemos, esse tem sido o prisma reflexivo pelo qual os comentadores foucaultianos têm se debruçado sobre sua analítica da governamentalização do Estado e, por extensão, da própria vida humana.

No entanto, até bem pouco tempo, essas mesmas análises deixavam de lado o elemento central que permite singularizar os vários dispositivos de segurança: a problematização política do “meio”. Uma noção que Foucault considera imprescindível na medida em que permite explicar a “ação à distância de um corpo sobre outro”. Essa noção é, de fato, “o suporte e o elemento de circulação de uma ação” voltada ao governamento (FOUCAULT, 2008, p. 27). O meio funciona como um campo privilegiado de intervenção governamental, já que ao invés de agir sobre os indivíduos, apreendidos como um conjunto de sujeitos de direito e capazes de ação voluntária, ou mesmo como uma multiplicidade de corpos capazes de desempenho, o meio permite atuar diretamente sobre uma multiplicidade que só existe quando diretamente conectada à “materialidade dentro da qual existe” (FOUCAULT, 2008, p. 28). Assim, a noção de meio articula um conjunto de “dados naturais” (rios, mangues e florestas, por exemplo) e um conjunto de “dados artificiais” (como as aglomerações de indivíduos).

Essa articulação levanta um problema técnico fundamental: a irrupção do problema da “naturalidade da espécie [humana] dentro da artificialidade política de uma relação de poder” (FREITAS, 2008, p. 29). Pois bem, as ciências humanas e sociais se depararam com esse problema agora recém-nomeado como “Antropoceno” que longe de se esgotar nos clichês sobre desastres ecológicos aponta um processo de degradação intenso das condições que presidem a própria emergência da vida humana e não humana.

Para além das distopias de pânico (colapsismo) e de entusiasmo (aceleracionismo), o Antropoceno indica menos uma época e mais um efeito dos dispositivos de poder que vem produzindo um vazamento da cultura sobre a natureza (DIAMOND, 2006). Como resultado, categorias binárias e opositivas típicas do pensamento filosófico da modernidade não permitem mais compreender algumas das mudanças que nos atravessam. Nos termos de Stengers (2015), a transformação dos humanos em força geológica pelo progresso técnico-científico desregulado tem sido paga com a intrusão de uma alteridade violenta, a intrusão de Gaia, o que modifica significativamente as formas clássicas de autocompreensão do humano, seja como sujeito histórico, agente político ou pessoa moral. A comunicação do geopolítico com o geofísico faz desmoronar uma distinção fundamental da episteme moderna - a distinção entre as ordens cosmológica e antropológica. Por isso, os diagnósticos analíticos acerca do Antropoceno, aquém e além das metáforas sobre o fim do mundo e a queda do céu, são também atravessado por uma série de subentendidos filosófico-educacionais importantes. Afinal,

[...] se se considera o discurso filosófico moderno em vista de seu impacto imanente sobre outros povos, humanos e não humanos, que ele desde sempre manteve excluídos e ao mesmo tempo assujeitados à produção do sentido “em geral”, dificilmente se escapa à evidência de que o pensamento transcendental consiste em um dispositivo espiritual de “aniquilação ontológica” de outrem (VALENTIM, 2014, p. 5).

Na análise de Marco A. Valentim (2014, p. 6), o espírito do “povo cosmopolita” expõe uma potência em si mesma catastrófica, que, embora dissimulada em seu próprio discurso, se faz manifesta quando se pensa sob o ponto de vista de Outrem, mas também quando se tenta pensar os sentidos de educar e formar desde os corpos considerados como ingovernáveis. Assim, o Antropoceno pode figurar como um duplo sobrenatural da modernidade, abrigando a falácia simultaneamente especista, colonial e racista contida na ideia do homem como espécie natural ou essência metafísica, o que contribui para uma despolitização das relações cósmicas ao mesmo tempo em que destrava uma desenfreada guerra dos mundos. Uma guerra entre guerras, guerras de Estado, mas também contra o Estado como a guerra xamânica na qual se desdobram conflitos corporais intensivos em que vivos e não vivos, espíritos e máquinas se imaginam e contraimaginam uns aos outros.4 O Antropoceno rompe, portanto, com a regra de decoro, seja filosófico ou científico, segundo a qual todos os objetos da experiência têm necessariamente que se regular pelos conceitos do entendimento humano e com eles concordar.

Desse modo, prossegue Valentim (2014), não é exagero supor que o Ánthropos moderno tentou ignorar ativamente seu duplo monstruoso. Essa ignorância implicou uma espécie anacrônica de exorcismo especulativo, que visa neutralizar a adversidade a fins da natureza para submetê-la. Terá chegado, enfim, o momento de abandonar o barco, de trair a espécie? Esse tipo de questionamento visa confrontar as estruturas naturalizadas que fundam a filosofia política da educação, pois por mais que o tratamento dado aos chamados “direitos das minorias” tenha incorporado aspectos que demonstram algum tipo de reconhecimento e valorização, o sistema normativo que orienta as práticas educacionais vigentes foi muito pouco influenciado pela compreensão dessas mesmas “minorias” sobre os sentidos implicados, por exemplo, no gesto de formar o humano desde a pragmática educativa enredada com outros corpos e outros sujeitos da educação.

Educar os corpos para além do imaginário do carbono

Como consequência, as teorias pedagógicas permanecem subestimando outras cosmologias ou ontologias. Essa situação permite inferir, na esteira das reflexões de Vladimir Safatle (2017), que um dos eixos vitais dos processos de governo neoliberal consiste também em gerir a invisibilidade e o silenciamento, criando zonas cinzentas onde vidas e corpos “desaparecem sem deixar restos” (SAFATLE, 2017, p 62)5. Em outros termos, habitando as cartografias liminares do corpo, dos campos sexuais e dos Estados-nação, os corpos ingovernáveis compõem linhas de fuga que permanecem ainda inassimiladas por nossas teorias e abordagens filosófico-educacionais.

Como resultado, corpos e vidas invivíveis em sua obscuridade, alimentam uma guerra generalizada. Essa guerra, que emerge inseparável da pretensa univocidade de uma ordem física e metafísica das coisas, mantém-nos reféns de uma concepção ontológica ancorada em um tipo específico de ser que extrai sua singularidade da demarcação de uma diferença absoluta entre entes vivos e não vivos. Elizabeth Povinelli (2016) chama de “imaginário do carbono” o conjunto de processos metabólicos que a epistemologia ocidental atribuiu à vida biológica, e que contribui para criar a pressuposição de que há uma separação abissal entre o orgânico e o inorgânico. O imaginário do carbono desconsidera, como simples matéria inerte e desprovida de agência e intencionalidade, todos os modos de existência que não parecem passar por aqueles processos metabólicos.

A prioridade dada ao metabolismo do carbono fez com que, tanto nas ciências naturais quanto nas ciências sociais, e mesmo na filosofia, a noção de vida atuasse como uma divisão fundacional binária e hierarquizante. A crítica do imaginário do carbono emerge inseparável da ruptura com as formas heteronormativas e racializadas binárias, comumente mobilizadas para oprimir pessoas ou grupos, a fim de revelar cartografias até bem pouco tempo inimagináveis, posto que abertas para um uso do corpo sem as assinaturas teológicas que lhe são historicamente impostas6.

A ontologia ocidental configura-se, então, como uma biontologia, cujo principal poder político consiste em transformar um plano de existência regional, isto é, a compreensão ocidental de vida, em um arranjo global com pretensões englobantes. Em oposição a essa biontologia e à biopolítica que a sustenta, Povinelli (2016) propõe o conceito de geontologia, uma abertura a outras concepções de mundo que não sejam marcadas pela dualidade entre vida e não vida, e suas distinções notáveis entre humanos e animais ou entre animais e plantas, ou ainda, entre plantas e rochas, concedendo dignidade ontológica a múltiplos seres. A biontologia, longe de constituir uma universalidade organizativa das várias espécies existentes, apresenta apenas um mundo, ainda que um mundo muito poderoso. Daí o interesse de Povinelli por desdobrar uma espécie de antropologia do diferinte [otherwise]. O diferinte sendo concebido como uma condição de possibilidade da alteração dos arranjos determinados de existência, a fim de tornar visíveis as diversas geontologias que têm sido subjugadas pelo imaginário do carbono. Vários questionamentos surgem desse posicionamento excêntrico para as matrizes de nossa filosofia política: como a não vida vai entrar no demos? Como fazemos ou deixamos falar e/ou silenciar os vários povos (humanos e não humanos) que habitam a polis?

As respostas, contudo, exigem uma mudança radical de ponto de vista a fim de que se possa “desdramatizar o humano” (COSTA, 2016, p. 147), isto é, deixar de tratar o humano como uma espécie de “eventização” fixada enquanto um acontecimento excepcional na história do mundo. Isso é importante na justa medida em que esse tipo de postura acaba por legitimar a economia do abandono a que estão assujeitados os corpos ingovernáveis. Nessa direção, pensar o tipo de ação política, ou mesmo pedagógica, que está à altura do nosso tempo passou a constituir uma tarefa desafiadora.

O risco é sempre o de recair, mesmo que com a melhor das chamadas boas intenções, em práticas renovadas de colonialismo. Pois, ao destituir de valor outros modos de existência, podemos acabar por replicar, pragmaticamente, as próprias exclusões que denunciamos. Toda política de resistência às artes de governo neoliberais precisa, doravante, ser capaz também de suspender os hábitos (maus hábitos, de fato) que nos fazem acreditar que sabemos, em um sentido absoluto, quem somos e que possuímos o sentido definitivo daquilo que nos faz existir.

Esse tipo de crença, raramente problematizada, começa por reduzir a agência e os modos de existência de múltiplos seres e mundos (LATOUR, 2013), valorizando formas de conhecimento que contribuíram para o controle dos devires dos povos menores e suas contraciências pensadas, quase sempre, como mito, folclore e literatura. Em uma direção oposta, é urgente reaprender a pensar em termos de outras agências coletivas de enunciação que não separam natureza e cultura.7 Isso exige acossar o sujeito da educação que, apesar das críticas pós-estruturalistas, permanece sendo pensado como uma forma excepcional de autoconsciência individual ancorada em alguma forma de identidade.

É vital lembrar que a subjetividade não cobra, forçosamente, uma forma reconhecida como humana. Um sujeito é constituído, antes de tudo, pela “capacidade de tomar posição, multiplamente” (ROMANDINI, 2013, p. 46). Logo, educar para além do imaginário do carbono, isto é, para além da distinção ontológica entre vida e não vida, expõe-nos ao desafio de reconhecer, simultaneamente, os marcadores sociais e os marcadores cosmológicos da diferença, em que o “movimento cosmológico de uma diferença intensiva” faz de cada ser uma perspectiva “não sobre o mundo, mas uma perspectiva do mundo” (SILVA, 2017, p. 02).

Esse gesto extemporâneo retroage sobre a cartografia dominante de nossos filosofemas, externalizando, ou instaurando, distintas configurações cosmopolíticas. A lição é dura. A promoção de alteridades epistêmicas, a multiplicação de outros sujeitos, não implica, necessariamente, uma ruptura com os pressupostos de ordem ontológica que assumem a razão como condição excepcional e exclusiva no/do humano. É preciso ver uma colonialidade mais profunda, que encontra seu limite nas tentativas de tornar inoperante a máquina antropológica, assumindo apenas a partilha entre o animal e o humano. A questão dramática aqui, não é como sair ou escapar da antropolítica ocidental, mas questionar os modos como cada coletivo agencia suas próprias relações entre natureza e cultura, humano e não humano (animal, planta, espírito, coisa, etc.), subvertendo em profundidade a cosmopolítica da identidade e suas cartografias.

Em outros termos, a “universalização do aberto se declina a cada vez segundo uma multiplicidade de casos expressivos de uma humanidade molecular e virtual” (SILVA, 2017, p. 14), tecendo, destecendo e retecendo uma cartografia antropomórfica, mas não necessariamente antropocêntrica. Com isso, ao não partilhar de uma ontologia mononaturalista, a ideia mesma de corpo sofre uma metamorfose radical, locus de uma diferença-a-si, o corpo torna-se o palco vital para aprendizagens trans-específicas, dispondo-nos a uma pedagogia perigosa e a uma sutil arte política8. Pode a educação estar à altura desse desafio de pensamento? Talvez.

A arte de ferver ao toque do outro... bruxas, iogues, xamãs

No curso Segurança, território, população, Michel Foucault (2008) fez um contraste contundente sobre como a ideia do povo, como fundação da democracia moderna, teve de ceder lugar a uma análise da população. O povo figurou durante bom tempo, como o fundamento da diferença liberal democrática, mas a gestão biopolítica da população tornou-se a fonte constitutiva de sua legitimidade.

Com esse argumento, Foucault não apenas retirou o foco de seus ouvintes do imaginário dos direitos soberanos dos reis, mas também da soberania popular ao contrastar o controle da população às revoltas do povo. Quem é o povo? - ele pergunta. O povo é aquilo que, em um dado meio, em um dado modo de governamento, encarna o lugar de todos aqueles que são os não soberanos. O povo encarna o lugar daqueles que se comportam em relação à gestão da população, no nível da população, como se não fossem parte dela, como se se colocasse fora dela, recusando ser a população e perturbando a racionalidade estatal. Enfim, o povo é simplesmente quem não obedece, quem se revolta, um signo da ingovernabilidade.

Em Geontologies: a requiem to late liberalism, Elizabeth Povinelli conduziu essa análise foucaultiana ao limite. Para ela, é urgente não apenas solapar o entendimento do povo, como base ideológica da diferença democrática, no contexto das artes de governo neoliberais, mas questionar sua aplicação ao longo de tempos e espaços distintos. Na esteira de autores como Mbembe (2016) e Federici (2017), ela distendeu as análises de Foucault sobre sexualidade, raça e poder para compreender como, nas chamadas colônias de povoamento, o biopoder disseminou técnicas de extermínio e de reconhecimento.

O alvo é a crítica de um aparato estatal mórbido e mortífero, que produz formas de terror corporal sob o influxo de desregulações neoconservadoras, baseadas em afetos biopolíticos como o ódio e o medo, militarizando a vida cotidiana através da construção de um opositor sexualizado, generificado e racializado exposto à violência do Estado e suas políticas de segregação, expulsão, silenciamento e destruição. No contexto atual da realidade política brasileira, é difícil exagerar a magnitude dessa situação.

Para nós, navegantes erráticos desse território que chamamos Filosofia da Educação, o ponto a lembrar é que nem toda pragmática discursiva voltada à formação do humano pode ser absorvível nas dinâmicas metabólicas do imaginário enraizadas em nossas estruturas analíticas. Como sabemos, a ideia de um corpo natural, formado por uma ordem distinta dos processos culturais, é extremamente poderosa, e nos faz apreender o corpo como “uma fronteira mediadora que divide interno e externo para gerar a experiência de um sujeito estável e coerente” (SPARGO, 2017, p. 43).

Daí as teorias biopolíticas da formação humana precisarem incorporar novos enigmas e novos caminhos de pensamento, desdobrando topografias reprimidas de crueldade, mas, ao mesmo tempo abrindo outros circuitos afetivos. Pois, se é verdade como nos diz Lílian do Valle (2019, p. 04), que “não há cartografia para a ingovernabilidade” visto que o ingovernável é o que, ao se apresentar, sempre escapando das cartografias traçadas, “modificará para sempre nossa existência, qualquer que seja aliás nossa decisão de acolhê-lo, ignorá-lo ou mesmo caçá-lo” (VALLE, 2019, p. 04), a tarefa que se coloca é a de gestos filosóficos extremos: philia, hospitalidade e disponibilidade.

Navegando na contracorrente é preciso recuperar canções esquecidas acerca da formação humana, canções que evidenciem outras formas de “corporificar a resistência”, reanimando e reativando toda uma arte de viver que “inflamando certos pontos do corpo” (SPARGO, 2017, p. 47) permita restaurar a posição dos corpos abjetos à condição de corpos que importam, deixando penetrar na teoria e na prática educativa um “eu mais impessoal” (SPARGO, 2017, p. 48), quer dizer, um “eu” capaz de desestabilizar as matrizes cognitivistas da educação. Esse “eu”, próprio aos corpos ingovernáveis, pensa e age na posição de uma “identidade fraturada ou extática que está em baixo, por trás e diante da ilusão de completude” (SPARGO, 2017, p. 49).

Os corpos ingovernáveis ocupam, em nossas cartografias, um lugar desloucado, incitando-nos a lidar diferentemente com a diferença de todo Outro. O que exige defletir os conceitos foucaultianos de poder e resistência, em uma reflexão inusitada, que passa pela interdependência de suas genealogias da sexualidade e da espiritualidade, mas recupera antigas técnicas de si encobertas pelo cuidado filosófico.

Talvez para surpresa dos filósofos da educação, esse gesto ressoe como escandaloso. Mas como já fizera o próprio Foucault (2019), ao analisar a revolta dos iranianos nos anos 1970, há que se considerar que determinadas expressões advindas do campo fenomênico da espiritualidade não estão completamente recobertas pelo consumismo neoliberal de crenças analgésicas, resultantes da crise das metanarrativas formadoras dos valores-guia de nossas existências. Foucault admitiu que um interesse na espiritualidade como um conjunto de práticas atreladas a uma orientação ético-estética voltada para os outros, permite, não apenas uma confrontação crítica com o discurso religioso enquanto uma fonte histórica de desprezo e abjeção endereçadas aos corpos dissidentes, mas proporciona, também, uma abertura expressiva da nossa própria autocompreensão como sujeitos em um mundo plural.9

Assim, ao recorrer ao vocabulário herdado da espiritualidade, pensadoras como Spargo (2017) e Butler (2017) pretendem extrair da noção de êxtase uma “força especulativa e infundada” para estabelecer as bases de uma ética que não precise “recorrer ao estabelecimento e ao controle das normas e do normal” (SPARGO, 2017, p. 75). Nesse âmbito, a noção de êxtase é retomada enquanto expressa uma experiência “de se posicionar fora, seja das normas sociais ou de nosso próprio si-mesmo” (SPARGO, 2017, p. 74), a fim de desafiar e desestabilizar o que é aceito e esperado inclusive de uma análise filosófico-educacional.

A experiência do êxtase corporal emerge, portanto, como uma vivência relacionada à “limitação da autocompreensão do sujeito” (SPARGO, 2017, p.77), pressupondo um si-mesmo poroso, aberto para o outro. Pois, o que define a vida do corpo é justo:

[...] ser sensível ao toque, estar aberta, lançada para fora, exposta ao outro, à solicitação, sedução, paixão, injúria; exposta em modos que nos sustentam, mas que também nos destroem. Dito de outra maneira, o que define a vida é sua incapacidade de assumir definições rígidas, sua plasticidade, abertura a um outro que me é impossível prever ou controlar (BUTLER, 2017, p. 09-10).

Desse posicionamento decorre o diagnóstico da condição ontológica de precariedade de todo e qualquer vivente que se forma a partir da exposição ao outro, sendo obrigado a padecer com a alteridade constitutiva de seu próprio processo de formação. A arte de fazer a pele ferver, uma arte herdada de bruxas, feiticeiras, faquires e xamãs, visa expor-nos à diferença e à pluralidade, desdobrando um uso dos corpos distinto daquele hegemônico na biontologia e na biopolítica ocidental, ocupada em valorizações diferenciais da vida.

Essa curiosa arte de viver, desdobrada como uma política extática, luta para atenuar a precariedade de todos os corpos, pois sabe do estremecimento de tudo o que vive e padece “como brasa” (BUTLER, 2017, p. 09). A pele que ferve é uma condição ontológica e epistêmica necessária para subverter as exclusões vigentes nas cartografias que presentificam o sentido do gesto de educar.

Vale reiterar: para muitos coletivos, os corpos não têm as fronteiras e os limites fantasmagóricos que o nascimento e a morte emprestam ao que delimitamos como sendo uma vida. Tanto o corpo morto quanto o corpo em transe desconhecem os limites metabólicos traçados pelo imaginário do carbono. Como consequência, pensar desde as cartografias da ingovernabilidade, implica articular perspectivas nas quais os corpos em fluxo nas teias da vida, da não vida e da entrevida passem a contar como figuras efetivas da educação.

Algumas dessas figuras já começaram a se fazer presentes em nossos sistemas de pensamento: as multidões queer de Preciado (2011), a razão negra de Mbembe (2014), as subjetivações cyborgues e transfeministas (BUTLER, 2003; KOYAMA, 2003; SERANO, 2007). Outras ainda nos são apresentadas como estrangeiras: o animista, o deserto e o vírus10. Contudo, entre nós, ainda precisamos de uma analítica filosófico-educacional disposta a acolher as figuras de nossa própria sobrenatureza como: os terreiros e seus orixás; a ayahuasca e suas florestas de cristais; os catimbós e a jurema sagrada com seus mestres.

Para concluir, lembro de que, tendo viajado a Atenas para participar de um congresso, Davi Kopenewa e Ailton Krenak foram convidados a visitar a Acrópole e o Templo de Zeus. Mas o que teria realmente chamado a atenção desses dois filósofos ameríndios foi o Monte Olimpo, local outrora considerado sagrado e onde caminhavam os deuses entre os mortais, hoje transformado em um parque natural. No final da visita, Kopenawa afirmou ter gostado muito de estar naquele local, pois, disse ele, “agora sei de onde saíram os garimpeiros que vão destruir minha floresta... o pensamento deles está aqui” (KRENAK, 2017, p. 23). A observação recebida com espanto por seus interlocutores e anfitriões, que não enxergavam uma relação direta entre as ruínas de velhas paisagens do mundo grego e a atividade colonial-extrativista-predadora praticada na floresta amazônica, precisou de um esclarecimento simétrico.

A compreensão seria ensaiada por Ailton Krenak (2019, p. 57) que explicou a observação arguta de Davi Kopenawa: “quando despersonalizamos o rio, a montanha... nós liberamos esses lugares para que se tornem resíduos”, pois a desespiritualização do mundo é “muito similar ao processo mental que conduz à desumanização de outra pessoa”. Uma resposta extremamente lúcida para quem, além de conceitos e maquinário filosófico, carrega também os olhos cheios de terra.

Ora, cultivar os olhos cheios de terra não é a tarefa mesma da arte, sobretudo da arte disposta a transitar nas cartografias abertas pelos corpos ingovernáveis? A arte atravessa o abismo que separa “um povo com filosofia e história em oposição aos povos com mito” (IMBASSAHY, 2019, p. 12) , construindo pontes que ensinam como nos situarmos na equivocidade dos mundos e aí habitar. Talvez com seus gestos inauditos, a “arte de segurar o céu pelas diferenças” (IMBASSAHY, 2019, p. 12) possa incitar a Filosofia da educação a pensar e a viver alianças que tornem possível evidenciar os motivos pelos quais o campo pedagógico vem inflacionando a questão da educação como um empresariamento-de-si e deflacionando a preocupação com o cuidado-de-si, com os outros e com o mundo.

O nosso presente está a exigir, com crescente vigor, uma perspectiva filosófico-educacional que tenha a coragem de se valer de um exercício de desinstrução ou destituição do eu para aumentar a voltagem de nossos conceitos e de nossas práticas.

Nesse sentido, é urgente desloucar nossas teorias filosóficas e pedagógicas para cartografias mais acolhedoras de heterotopias e heterocorpos, inspirando, transpirando e conspirando modos de formação do humano orientados por uma postura diferinte que nos faça lembrar, como bem diz Silviano Santiago (2017, p. 111) que somos todos parentes por intoxicação, amantes, ainda que muitas vezes desalmados, dos exus, dos xapiris e das onças. Reconhecer isso é também uma tarefa ético-estético-política da filosofia e da educação. Reconheçamos então... antes que o último xamã pare de cantar.

Referências

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1O termo “Antropoceno” foi proposto por Paul Crutzen e Eugene Stoermer em 2000, durante um encontro do International Geosphere-Biosphere Programme. A expressão diz respeito ao que seria uma nova época geológica que se seguiu ao Holoceno, iniciada com a Revolução Industrial e intensificada após a Segunda Guerra Mundial (DANOWSKI & VIVEIROS de CASTRO, 2014; VIVEIROS de CASTRO, 2012).

2Sobre a identidade desse autor, considerado enigmático ou mesmo mítico, ver a nota 39 dos editores do curso Segurança, território, população (FOUCAULT, 2008, p. 37-38).

3Durante sua campanha, o presidente Jair Bolsonaro não poupou críticas às leis de proteção ao meio ambiente no Brasil. Ao ascender ao posto de comando máximo da República, vem subvertendo a lógica entre poder fiscalizador e ente fiscalizado ao subjugar a pasta ambiental aos interesses do agronegócio. Dentre outras metas, o seu governo tem procurado afrouxar as leis de licenciamento ambiental, inclusive colocando em suspeição os órgãos científicos responsáveis de produzir e divulgar dados específicos sobre o desmatamento na Amazônia legal.

4Para o xamã yanomami, David Kopenawa, o atual presidente do nosso país, por exemplo, não é gente, ele se configuraria antes como xaura, isto é, uma forma adoecida e enlouquecida de pensamento (http://www.ihu.unisinos.br/591420 consulta em 06/08/2019).

5Um efeito claro desse modo de governo emerge quando cruzamos os estudos de migrações e os estudos queer. Os estudos de migrações, por um lado, presumem que os migrantes são uma massa de sujeitos heterossexuais que migram apenas por questões econômicas, equiparando migrantes a trabalhadores (TEIXEIRA, 2015). Por outro lado, os estudos queer raramente tematizam o que se passa quando se cruzam as fronteiras territoriais do Estado-nação. Essa situação exige forçar a mobilidade e o cruzamento de fronteiras epistêmicas e ontológicas a fim de apreendermos as situações de “sexílio” das quais mal temos notícias (PRECIADO, 2008).

6Para a ideia de que o corpo é um exemplo primordial de resistência às assinaturas teológicas que são inscritas nos sujeitos ver a palestra do professor Colby Dickinson em http://www.ihu.unisinos.br/186-notícias-2017. Consulta em 06/08/2019.

7Para Viveiros de Castro (2015), a metafísica ocidental tem sido pródiga em cultivar, legitimar e replicar múltiplas formas de colonialismo ao não questionar os grandes divisores da nossa antropologia, distorcendo e restringindo outras narrativas que carregam consigo outros saberes e conhecimentos.

8A cosmopolítica relacional aqui brevemente esboçada partilha de um certo misticismo maquínico encontrado em Deleuze e Guattari (1995), bem como na reativação de feitiçaria em Stengers (2018) e Starhawk (2018).

9Essas análises aproximam a Teoria queer e os Estudos pós-seculares incorporando uma visão paródica da religião, fortemente influenciada por Georges Bataille (SPARGO, 2017, p. 62-3).

10Essas figuras formam posições contrastantes em relação ao imaginário do carbono. O animista recusa não apenas a divisão hierárquica entre humanos e outros animais e a vida das plantas, mas as distinções entre formas de existência enquanto tais. O deserto configura a existência como existente, mas não vivida ainda, um ser que não é animado pelo Dasein. O vírus, por sua vez, configura o conhecimento de que o ser humano, e a própria vida, é apenas uma pequena volta de uma força muito mais ampla do surgir e desaparecer (POVINELLI, 2016).

Recebido: 11 de Dezembro de 2019; Aceito: 20 de Junho de 2020

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