Toda realidade é corpo - faz-se corpo no gesto, na marca ou no sinal, na ação ou no movimento. Assim, ousando parafrasear ainda o filósofo1, ficamos tentadas a dizer que nada se passa que não passe pelo corpo, nada se passa que não se passe com o corpo, já que ninguém passa sem o corpo. Mas, sobre o corpo ainda é preciso dizer mais: é que o corpo, nosso corpo, é multitude: ele é contradição, polissemia, e por isso mesmo, a cada vez, metáfora.
Vítima e algoz, prisão e redenção, grotesco e sublime, mal-estar e pacificação, encontro e separação, dor e prazer, exposição e recolhimento, estranhamento e intimidade, controle e perdição, o corpo é a uma só vez tudo isso, mas ao mesmo tempo nada disso nos dá inteira e definitivamente o corpo, tal como dele fazemos cotidianamente a insondável experiência. Como então escolher uma entre todas estas metáforas o que falar sobre o corpo?
Na dúvida, voltemos ao título: no amplo registro em que se inscreve a reflexão sobre o corpo, trata-se de falar de cartografias e de ingovernabilidade. Seja, pois, para começar pelo mais difícil, a ingovernabilidade: a metáfora que nos chega da Antiguidade arrasta consigo a ideia do corpo-nave a ser pilotada… e assim, quase que de imediato, para o que ela tenta a todo custo prevenir: o corpo à deriva, corpo sem leme e sem rumo, sem remo nem oriente. Do corpo desorientado diz-se que é corpo desatinado. Do corpo desgovernado, diz-se corpo ingovernável. Eis aí, portanto, uma primeira cartografia: o mapa filosófico da dominação da sensibilidade, que as teorias platônicas imprimiram duravelmente na cultura ocidental.
Em suas navegações metafísicas, Platão vislumbrou um Norte, uma pan-topia, somente alcançada por um movimento de abstração que, longe aportar em um sem-lugar, anuncia a existência de um território que, ao contrário, pode ser «qualquer lugar», sem exceção. O nome desse terra incognita é: universal - ali onde, como diz Nadja Kisukidi, «nada do que sofre o corpo, isso é, a história, os estigmatas, as marcas de dominação, afeta a vida do espírito.»2 Eis como, nesse espaço ideal, o humano, feito só pensamento, se veria enfim liberado de tudo que o entrava: o erro, a violência, a discriminação.
Mas eis que uma nova cartografia se traça para definir o controle do corpo feito carne, esse corpo incontrolável em que se manifesta não mais a possibilidade do erro, mas do desejo. Corpo-degradação, animalidade e pecado, assim o mapeamento da conduta humana obriga ao estranhamento de si produzido pela obsessão do controle, introduzindo formas culturais de denegação e cerceamento como resposta à experiência cada vez mais irreprimível das forças subterrâneas da imaginação desejante. Cartografia do desejo latente, cartografia da vontade de morte: pois essa nova terra - na verdade, todo um continente que atende agora pelo nome de «corpo glorioso», é Eldorado que não conhece desbravadores, oásis no deserto, poderosa miragem, promessa irrealizada - já que o preço para pisar essa terra utópica não é outro senão a própria cessação da vida corpórea.
Navegando em busca dessa terra prometida singraram multidões de navegantes que, quase todos abrigados sob a bandeira de uma religião, moveram-se em direção a um horizonte apenas visível aos que ficaram. Mas, dos novos viajantes, esses que vemos hoje reivindicar o antigo mapa de ultramoralidade, esperando atrair para si a graça divina de um próximo desembarque no paraíso, o que dizer? Seria talvez o caso de denunciar o turismo barato, desses sem compromisso com o trajeto, transatlânticos que prometem o mundo e oferecem apenas uma rápida escapada da terra firme…
Mas, voltando atrás para continuar a seguir a linha do tempo que a relação com o corpo descreve, será preciso ainda admirar uma outra cartografia, que no passado se empenhou em corrigir e refazer o mapeamento anterior. Traz consigo uma nova bússola, anuncia um novo instrumento de precisão, capaz de identificar a presença, nesse horizonte antes indevassado, do alvorecer da própria humanidade. Bússola? Que digo eu! - astrolábio, já que um mundo só é pouco demais para os sonhos que a ciência inspirou. A luneta mágica dos antigos oferecia uma imagem esmaecida do que o humano podia esperar, quando ele ainda estava preso às ilusões do sensível. No telescópio da ciência, o corpo humano nada mais é do que uma particularidade a ser convertida, pois é a mente a nova nau que cruza finalmente a fronteira final, dessas capazes de ir «audaciosamente onde nenhum humano jamais esteve». Desafiando o tempo e o espaço, essa cartografia impõe a negação da presença sensível, só para inaugurar o corpo-insignificante dos cientistas, capaz agora de «reduzir as diferenças qualitativas a uma indiferença quantitativa…»3.
Mas, hoje, a que cartografia corresponderia o intenso movimento humano de ocultamento do corpo? Deixemos falar os delírios dos que anunciam que a salvação nos virá das novas tecnologias de informação e de comunicação, e então teremos de novo a impressão de voltar ao passado: mas ela logo se dissipará, já que a eles se juntam os arautos da revolução neurocientífica. E, então, seremos obrigados a reconhecer, com os ciberentusiastas, que o presente de fato está em vias de realizar o sonho moderno, mas talvez não no sentido exato em que esses últimos o pensaram - não o sonho da emancipação humana e da democracia mundial, mas esse lado «mais escuro da Modernidade» de que nos falou Walter Mignolo 4. Esses contemporâneos de fato retomam as promessas iluministas, mas deve-se temer que, sem serem capazes de realizar o que anunciavam como justiça social e solidariedade, eles o ressuscitem em suas consequências mais inconfessáveis, que é o grande isolamento daqueles que decidiram liberar-se definitivamente do corpo.
E, então, mais do que um lugar fixado no mapa da humanidade, teremos a evolução final, a superação de todo espaço, a completude de todo tempo: o humano enfim sem corpo, pois, como lembrou Judith Butler,
Quem diz corpo diz mortalidade, vulnerabilidade, potência de agir: a pele e a carne nos expõem ao olhar e ao contato com os outros, como à sua violência, e nossos corpos nos fazem correr o risco de nos tornamos também a origem e o instrumento da violência.5
Sem corpo, o humano já não sofre, não espera, de nada depende, nem de ninguém; sem corpo, o humano se vê finalmente livre das pragas e dores que as cartografias jamais puderam evitar. Contudo, sem corpo, o que restará do humano?
De forma que duas constatações se impõem a nós: primeiramente, a de que, em nosso exame, as cartografias nos conduzem para bem longe do humano; mas, em seguida, a de que, de toda forma, tudo o que fizemos até aqui só fez nos afastar de nosso objetivo inicial, posto que tudo o que fizemos foi, ao invés de pensar sobre ingovernabilidade, encontrar cartografias historicamente instituídas para a governabilidade dos corpos - ditadas e mantidas, a cada vez, pela atração que exercem sobre nós, pobres navegantes, a vontade do domínio racional, da pureza espiritual, do controle material.
O que foi que nos desnorteou a esse ponto? Como retomar o guidão, rumar ao encontro a… ingovernabilidade?
A resposta para nosso embaraço é, de fato, bem simples: vimos nos iludindo, se achávamos possível chegar a bom porto: é que não há cartografia possível para a ingovernabilidade! Buscando encontra-la, tudo o que fizemos foi ir em direção ao seu oposto, dar de encontro com os grandes movimentos que visaram domesticar o corpo, dizê-lo como uma única metáfora, dominar a impossibilidade do controle - se é que, nesse mapeamento truncado, ao mirar a governabilidade, não estejamos, também, finalmente admitindo em nossa reflexão, o que desde sempre fica de fora.
O único problema é que o que fica de fora tem endereço incerto: ele é apenas um «aqui não»; é «o que sobra», é «sem domicílio fixo». Em suma, o que não tem cidadania, o que está sempre em movimento, porque em nenhum lugar se pode fixar6. O que fica de fora é de nós o outro, e o outro, como diria Badiou, é aquele que chega. Migrante: para nós, hoje,
…uma escolha de que não podemos nos subtrair. Há uma linha divisória, uma causa ambivalente, um momento em que devo escolher entre a inércia e a ação, e também entre minha identidade estável e a provocação que representa para ela a vinda do outro, sua insistência em estar ali a requerer minha fraternidade.7
Em outras palavras: o ingovernável é aquele que se apresenta a nós sem aviso prévio, aquele que simplesmente se anuncia à nossa porta como a presença incômoda que, estamos certos, modificará para sempre nossa existência, qualquer que seja aliás nossa decisão, de acolhê-los, ignorá-los ou mesmo de caça-los.
O ingovernável é o que insiste em escapar das cartografias traçadas, que obriga ao «pensamento fronteiriço»8 - esse pensamento que ele também não se fixa em territórios estatais nem se reconhece no disciplinamento acadêmico.
Se a fronteira é, de várias maneiras, o lugar do perigo e do medo por excelência, está claro hoje que o mundo contemporâneo pode ser tudo, menos um mundo sem fronteiras - a famosa “fronteira final” de Star Trek é a molecularização universal da fronteira. Para lembrar uma distinção de Crapanzano (2003, p. 14), hoje todo lugar é fronteira (frontier), isto é, uma borda (border) ou limite que não pode ser cruzado. Imagine-se então o medo que é viver hoje no “centro” de um mundo que é só fronteira e termo, horizonte e clausura. O fim do mundo passa a estar em toda parte, e seu verdadeiro centro, em lugar nenhum.9
O ingovernável é o verdadeiro sobrenatural, tal como nos define Viveiros de Castro: aquele que nos força a encarar uma «situação em que o sujeito de uma perspectiva é subitamente transformado em objeto na perspectiva de outrem».10
Aceitemo-lo, de uma vez por todas: não chegamos ao ingovernável, é ele que chega a nós, nos dizendo que a identidade, toda identidade, é um logro, a menos que seja movimento; e tudo que podemos fazer é acolhê-lo, ou não. O preço, é claro, é muito alto: a perda da estabilidade, das certezas, que ameaça aqueles que se pretendem autênticos, imóveis, defensores do que «sempre esteve aí,» tanto quanto aqueles que, nostálgicos de uma certeza de que jamais desfrutaram, se aculturaram e temem hoje, mais do que nunca, ser relembrados de sua condição de migrantes.
Aquele que fica de fora, esteve excluído do que os modernos chamaram de humanidade: eles são os que, resistindo ao projeto descrito por Husserl como a sublime missão de «europeizar o resto do mundo»11, vagam apátridas, mudos, porque destituídos de uma língua própria.
Como, então, reconhecer a ingovernabilidade, e nela a existência do que sobrou no limite de nossa capacidade de visão, de escuta, de afetação? Creio sinceramente que não há como. Digo, não há como estabelecer de uma vez por todas um mapa do mundo que ficou de fora, que nos desobrigue, portanto, de contestar nosso lugar bem fixado em um resto qualquer de identidade que aprendemos a cultivar. Não somos nós, é o migrante que irrompe nas nossas vidas nos oferecendo a chance dessa redenção: voltar a ter corpo, recuperar o corpo e, como ele, a capacidade de se deixar afetar pelo mundo, pelo outro, pelas profundas transformações que pretendemos não ver, só para manter nosso bem-estar momentâneo.
O corpo ingovernável? Não o conheço, dele nada sei, mas creio que posso reconhece-lo: eu o reconheço, e faço disso minha tarefa! - na voz do militante negro, que ousou dizer para quem quiser ouvir, como o fez Souleymane Bachir Diagne, que não há negro, mas «…um devir negro, uma «linha de fuga» que se inventa aquele que soube encontrar a saída para fora da clausura no velho continente»12
E daquele que, ciente de que, ao contrário do que pretendeu a arrogância ocidental, há «diversas maneiras possíveis de ser do mundo, de ser mundo, de fazer mundo» diz que nossa tarefa é justamente - não inventá-las, não projetá-las, nem orientá-las, mas simplesmente de expô-las.13
Eu o reconheço na voz do habitante dessas fronteiras que nenhuma science fiction jamais explorou, e que hoje descobre, entre a natureza bruta e a cultura mais sofisticada, a brecha, a terra-de-ninguém, propriamente inabitável, este resistente que, ao invés de pedir abrigo ao dogma e do conformismo, ousa enfim dizer seu nome:
Com que voz poderemos falar? [diz Paul Preciado] O jaguar e o ciborgue poderiam nos emprestar suas vozes? Falar, é inventar uma língua de travessia, projetar a voz em uma viagem interestelar; traduzir nossa diferença na linguagem da norma; mas nós continuamos, em segredo, a praticar um blá-blá-blá estranho, que nenhuma lei compreende.14
Eu o reconheço na travessia daqueles que, sem voz e sem língua, sem cultura e sem lugar na geopolítica da dominação, empreenderam tomar das mãos do colonizador o relato de sua história, na defesa de seu território, de sua língua e cultura15, como foi o caso da Davi Kopenawa:
O pessoal da FUNAI me deu uma rede muito grande de algodão, e todo tipo de roupas. Tudo isso me deixava muito feliz. Eu me dizia: «Por que não imitar os brancos e tornar-me um deles?» Eu já não desejava senão uma coisa: parecer-me com eles! (…) Muito mais tarde, eu cresci e tornei-me adulto… Voltando para a floresta, eu me disse: «Eu ainda sou jovem, no entanto conheço um pouco de português. Nos primeiros tempos, Omama nos deu essa terra… Não devo protege-la? (…) Eu não sei falar com os brancos. Quando eu tento imitá-los, minhas palavras fogem ou se embaraçam, mesmo se meu pensamento permanece de pé! Minha língua não estaria tão confusa se eu falasse aos meus! Mas, que importa!, como vocês não me escutam, eu vou tentar! Assim minhas palavras ficarão mais fortes e talvez um dia cheguem a inquietar os grandes homens dos brancos!16
E para quem pensou opor corporeidade e fala, imaginando que uma língua comum converteria as diferenças que o corpo instala na tranquila in-diferença da palavra universal, sobra o desafio dos que ousam vagar a esmo: «…eu não carrego comigo nenhuma notícia das margens, eu trago para vocês um pedaço de horizonte.»17
Porque, para esses, o corpo é, sempre, materialidade:
Meu corpo trans se volta contra língua daqueles que a nomeiam para negá-la. Meu corpo trans existe como realidade material, como conjunto de desejos e de práticas, e sua inexistente inexistência coloca tudo em questão: a nação, o juiz, o arquivo, a carta, o documento, a família, a lei, o centro de internação, a psiquiatria, a fronteira, a ciência, Deus. Meu corpo trans existe.18
Mas nossa exploração seria falseada, se apenas registrasse a voz dos que tomam a voz. É que, por vezes, não basta apenas ouvir os sons que mesmo que distantemente nos chegam, e se deixar afetar, se abrir ao acolhimento do outro. No caminho daquilo que em mim mais resiste, que mais me arrasta para fora de mim, de minhas fronteiras, de minhas certezas, das cartografias que incessantemente recomponho, está a abertura ao caos dos que não soam, dos que não mandam mensagens, dos que parecem inexistentes no mundo na fictícia normalidade em que vivemos.
O mais difícil é a aquisição de uma atitude de disponibilidade aos «mundos múltiplos e divergentes» que, por sua total estranheza, promovem o curto-circuito de nossas referências mais básicas e essenciais.19 Mas é exatamente nisso, e nisso que consiste a autoformação necessária para nossos tempos: pois, nesses tempos de globalização acelerada, «viver com os migrantes e outras multitudes que, à primeira vista, não são nem um pouco do nossos passa a ser o destino de todos nós.20
E eu, que agora ouso me nomear, Lílian do Valle, professora de Filosofia da Educação que, desgarrada, vim aportar nas terras desconhecidas da arte, devo dizer o que descobri, não do caminho, nem da topografia, mas de mim: se, como queria Foucault, toda relação de poder se exerce «sobre, através e por meio do corpo»21, é ainda pelo corpo que poderemos opor resistência à vontade de morte. Mas, como recuperar o corpo?
Ora, a arte e só ela ensina a ver, a escutar, a tocar, a cheirar. Então, se há algo que a gente possa chamar de cartografia da ingovernabilidade, então ela é a prática de uma autoformação que nos extrai dos percursos já traçados, que nos leva a redescobrir nossa vocação de navegantes sem rumo, sem leme, sem lenço, nós que, finalmente, nada somos senão corpo.