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Educação e Filosofia

versión impresa ISSN 0102-6801versión On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.33 no.68 Uberlândia mayo/ago 2019  Epub 30-Ago-2021

https://doi.org/10.14393/revedfil.v33n68a2019-46922 

Artigos

Pensar o pensamento: a leitura e a reconstrução do imaginário social na formação superior

Think the thought: the reading and the reconstruction of the social imaginary in higher education

Pensar el pensamiento: la lectura y la reconstrucción del imaginario social en la educación superior

*Doutorado em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor no Departamento de Humanidades e Educação da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUI). E-mail: jospebou@unijui.edu.br

**Doutor em Educação nas Ciências pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUI). Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, DCJS - Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais. E-mail: berwig@unijui.edu.br


Resumo

O artigo reflete sobre a formação humana em cursos superiores na perspectiva da capacitação crítico-reflexiva que prepare para a vida em sociedade. Trata-se de pesquisa qualitativa com reflexão a partir de estudo teórico que tematiza a condição humana, a noção de imaginário social instituinte e o desafio do desenvolvimento do pensamento mediante o exercício da leitura. Analisa que na época atual, em que o ensino convive com as novas tecnologias da informação e comunicação, há uma relativização do compromisso do próprio sujeito para com o desenvolvimento de suas capacidades de leitura e de reflexão a partir da interpretação da linguagem. Indica que a universidade deve ter a preocupação essencial de formar o sujeito de forma integral, para além formação profissional, exigindo um repensar do ensino e da aprendizagem a partir do desafio da construção de uma sociabilidade solidária e sustentável.

Palavras-chave: Autonomia; Ensino superior; Educação; Formação humana; Imaginário social

Abstract

The article reflects on human training in higher education in the perspective of critical-reflexive training that prepares for life in society. It is a qualitative research with reflection from a theoretical study that thematizes the human condition, the notion of social imaginary instituting and the challenge of the development of the thought through the exercise of reading. It analyzes that in the present time, in which teaching coexists with the new technologies of information and communication, there is a relativization of the commitment of the subject itself with the development of its reading and reflection abilities from the interpretation of the language. It indicates that the university should have the essential concern to train the subject in an integral way, besides professional training, requiring a rethink of teaching and learning from the challenge of building a solidary and sustainable sociability.

Keywords: Autonomy; Higher education; Education; Human formation; Social imaginary

Resumen

El artículo refleja sobre la formación humana en cursos superiores en la perspectiva de la capacitación crítico-reflexiva que prepare para la vida en sociedad. Se trata de una investigación cualitativa con reflexión a partir del estudio teórico que tematiza la condición humana, la noción de imaginario social instituyente y el desafío del desarrollo del pensamiento mediante el ejercicio de la lectura. En la época actual, en la que la enseñanza convive con las nuevas tecnologías de la información y comunicación, hay una relativización del compromiso del propio sujeto para con el desarrollo de sus capacidades de lectura y de reflexión a partir de la interpretación del lenguaje. Indica que la universidad debe tener la preocupación esencial de formar al sujeto de forma integral, además de formación profesional, exigiendo un repensar de la enseñanza y del aprendizaje a partir del desafío de la construcción de una sociabilidad solidaria y sostenible.

Palabras clave: Autonomía; Enseñanza superior; Educación; Formación humana; Imaginario social

Introdução

A época paradoxal em que vivemos parece decorrer de inúmeras incertezas com que nos deparamos todos os dias: por um lado, a sociabilidade humana chega aos limites da intolerância, consequência mais ou menos óbvia de uma percepção de que já não há lugar para todos nesse mundo de vaidades e competições; por outro, temos uma formação em crise, cujos sentidos mais amplos, especialmente no que se refere à formação superior, se diluem diante de horizontes cada vez mais estreitos indicados pelo sistema de produção e de consumo. Em meio a isso, cabe lembrar que a vida em sociedade é organizada a partir de um pacto social imaginário, um arranjo que somente é possível como decorrência da capacidade humana de se comunicar e se entender com seus semelhantes. E é na perspectiva dessa construção coletiva, solidária e simbolicamente articulada, que nos propomos a refletir sobre os possíveis lugares do pensamento, da leitura e do imaginário em processos de formação superior.

O pensamento e o imaginário implicam o reconhecimento da linguagem, a qual pressupõe as formas de sua expressão, escrita ou falada, e suas finalidades de transmitir informações, de permitir a aprendizagem e o entendimento compartilhado. Em processos de formação humana, como os objetivados em cursos superiores, adquire lugar de destaque a leitura como forma de desenvolvimento da capacidade intelectual de cultivo da imaginação. Assim, linguagem, leitura e imaginação revelam o humano e seu mundo, de forma que esta revelação, embora sendo criação humana, deve ser recriada a cada nova geração.

Neste artigo debatemos esses aspectos em quatro momentos: primeiro, relacionando a capacidade simbólica com as conquistas sociais e culturais da humanidade, com a formação e a reconstrução do imaginário social, sempre a partir da disposição de cada nova geração repactuar os sentidos de uma vida compartilhada. Discorremos sobre uma certa ilusão criada diante das mídias digitais, uma espécie de crença de que a aprendizagem baseada na leitura, na compreensão e no pensamento é supérflua. Face a isso, enfocamos a necessidade da leitura e do desenvolvimento de uma capacidade simbólica para a abertura do pensamento como condição para a recriação intergeracional do mundo humano.

No segundo tópico mencionamos o lugar do pensamento para a constituição do mundo humano, buscando explicitar porque o pensamento crítico-reflexivo representa uma abertura indispensável, haja vista que a questão central do ensino superior é a humanidade a ser sempre recriada. Enfatizamos que a universidade deve apostar em um ensino com uma perspectiva formativa mais ampla em que sejam privilegiados a leitura e a linguagem em sua interface com o pensamento e com a consciência humana.

Em terceiro lugar, abordamos o papel da leitura na formação humana e sua relação com a aprendizagem, mas considerando a necessidade de intencionalidade do aluno para que este aprenda. Nesta perspectiva, aparecem a liberdade e a determinação como dimensões internas para que ele compreenda que a iniciativa de aprender é sua.

Finalizamos abordando a perspectiva de uma formação integral do sujeito, mas indicando a necessidade de comprometimento do aprendiz com sua aprendizagem. Ganham relevância, com isso, os aspectos debatidos nos tópicos anteriores para instruir a capacidade imaginária instituinte do sujeito e proporcionar um constante reconstruir a partir de processos humanos de aprendizagem.

Formação humana como reconstrução do imaginário social

Podemos considerar o conjunto dos saberes que compõem os currículos dos diferentes cursos de ensino superior como representativos, grosso modo, das principais conquistas da humanidade. Conquistas estas que podem ser tomadas como realizações do imaginário humano, no que concerne às suas interações com o meio natural e com seus semelhantes, configurando um mundo simbolicamente estruturado. Devemos a nossa humanidade ao desenvolvimento de uma capacidade simbólica, que nos permite a transcendência em relação às condições naturalmente estruturantes de uma situação que se nos apresenta, permitindo-nos modos de ser e de interagir não meramente reflexos e, portanto, já não mais conforme os desígnios de uma natureza dada. É essa capacidade simbólica que nos eleva ao patamar da criatividade, da inventividade e da contínua transformação. As conquistas da humanidade, portanto, podem ser tomadas como sendo resultantes do operar dessa capacidade simbólica.

Há de se observar que essas conquistas, civilizatórias, na verdade, só se mantêm, ou conseguem ser aprimoradas, se forem objeto de aprendizagem e de cultivo por parte das novas gerações. Isso se deve ao fato de que a nossa civilidade é um constructo artificial, isto é, já não mais natural. O que é natural se reproduz dentro de uma lógica intrínseca, genética ou de manutenção da vida. Já os padrões sociais e culturais necessitam de um esforço intencional para serem aprendidos, mantidos ou mesmo reconstruídos, configurando uma dinâmica de transmissão dependente de processos de entendimento linguístico.1

Esse ponto de partida, que decorre de uma compreensão da própria condição humana e do caráter da nossa civilidade, tem se tornado o óbvio sobre o qual parece já não se pensar mais. O ritmo frenético das mudanças que vão ocorrendo nos mais diversos âmbitos da vida, especialmente a partir da ampla disponibilização das mídias digitais, tem produzido a crença de que um certo automatismo se estabeleceu entre nós no que tange à reprodução das conquistas sociais e culturais da humanidade. Trata-se de um entendimento de que, nos próprios meios de acesso e de divulgação de dados relativos à nossa cultura e sociabilidade, há uma lógica intrínseca e garantidora dos ganhos da humanidade, bem como do seu potencial aprimoramento.

Põe-se, assim, a questão que pretendemos tematizar neste artigo, isto é, o desafio da efetiva reconstrução do imaginário social, ou cultural, concernente a cada um dos campos de estudo que compreendem as áreas de formação superior. Trata-se, na verdade, da questão da aprendizagem, que necessita realizar-se em perspectiva própria de todo e qualquer aprendente, o que só é possível mediante o acesso e interpretação dos signos (conceitos, teorias, tradições...) que compõem esses campos de saber, aos quais se vinculam, por sua vez, os campos de atuação profissional. O que preocupa é o fato de que os alunos, em geral, não estão preocupados com uma aprendizagem consistente, já que existe uma espécie de crença de que o mundo hoje é digital e que sua continuidade não depende do desenvolvimento das capacidades humanas de ler, de compreender, de pensar, enfim, de efetivamente aprender.

De outra parte, constata-se, também por parte de muitos dos docentes, a falta de uma efetiva inserção no campo de saber que está a seu cargo no processo formativo de um curso, com o que já não são capazes de assumir o seu lugar de anterioridade no campo de estudo que ministram. Anterioridade no sentido de terem se ocupado com estudos e reflexões sobre os temas relativos às suas aulas. Em isso não havendo, temos um docente que, em termos de saber, se encontra apenas a um passo à frente do aluno. Observa-se isso quando, por exemplo, o docente apenas se preocupa em apresentar midiaticamente slides previamente garimpados em sites da internet, em flagrante desrespeito com o aluno que teria o direito de ter no professor uma autoridade nos assuntos que apresenta, autoridade esta que só poderia advir do seu estudo ou de sua pesquisa prévia acerca desses assuntos.

Temos, portanto, o equívoco do aluno que acredita que as aprendizagens são possíveis já sem esforço ou disciplina de estudo, como, também, o equívoco do professor que acredita ter no suporte tecnológico uma possibilidade de exercício de sua docência que o dispensa de uma dedicação mais aprofundada aos temas que ministra em suas aulas. Essas percepções, que obviamente não conferem com o que efetivamente podemos tomar como aprendizagem, são corroboradas por entendimentos de que as novas gerações estão mudando, que as formas tradicionais de ensino são ultrapassadas e que, portanto, o futuro é a tecnologia na sala de aula ou como sala de aula. Acrescenta-se aí a noção de que a aprendizagem deve ser prazerosa e que, portanto, cabe ao docente utilizar mecanismos avançados para apresentar conteúdos, tais como as tecnologias, tornando a sala de aula um espaço “amigável”, espontâneo, de quase entretenimento, entre outras variações que se põem nessa mesma linha de entendimentos.

A perspectiva que aqui assumimos, é de que toda inserção num domínio sociocultural, que constitui o objetivo de uma formação acadêmica, pressupõe sempre a continuidade e renovação de uma parcela do mundo humano, mediante processos de aprendizagem que necessariamente dependem de pessoas.2 Assim, pode-se dizer que o que temos como humano necessita de atualização por parte de cada nova geração que vem ao mundo e, a rigor, por cada novo ser humano que nasce. Essa atualização, por óbvio, não significa a mera reprodução das conquistas civilizatórias das gerações precedentes, pois pressupõe o seu ajustamento às circunstâncias de cada novo tempo, incluindo aí as novas percepções que os sujeitos vão construindo entre si e em suas interações com o meio em que se encontram.

Toda formação humana se põe, portanto, na perspectiva de uma tarefa intergeracional. Cada nova geração se faz com base na herança recebida da geração anterior, e pela sua capacidade de criar o novo. Novo este que resulta da capacidade de transcender o dado em si mediante interpretação, configurando um mundo estruturado simbolicamente, coincidente com o que chamamos de mundo humano. Assim, o próprio da capacidade aprendente de nós humanos não é a mera repetição ou pactuação de sentidos já produzidos, mas a possibilidade de reconfigurar esses sentidos, atribuindo-lhes percepções novas, inéditas. O desafio intergeracional que a educação põe, convoca educadores e educandos a comparecerem com as suas próprias experiências de se tornarem humanos, algo bem distante das percepções de que um certo automatismo operaria na formação das novas gerações.

Independentemente de qual seja a área específica de uma formação superior, o que está em questão é sempre uma parcela do que construímos como humanidade, com o que, a rigor, toda a formação pode ser tomada como humanística, embora o termo venha sendo empregado para designar as formações que se diferenciam daquelas voltadas especificamente para um domínio científico-prático3.

O que faz com que toda a formação superior possa ser tomada, em sentido amplo, como uma formação humanística, é o fato de qualquer campo formativo se apresentar como estruturação simbólica relativa à algum aspecto ou dimensão do mundo humano. Um campo de saber é, portanto, necessariamente um campo que se expressa em linguagem que necessita ser interpretada como condição de sua aprendizagem. Linguagem, interpretação e aprendizagem só se articulam na perspectiva de um sujeito capaz de pensamento, pois só o pensamento é capaz de colocar o sujeito em perspectiva própria.

Processos de aprendizagem são, por sua vez, processos de reforço ou de recriação do imaginário instituinte4 da vida humana em sociedade. Com o abandono dos ditames da natureza como orientadores da organização de nossas vidas, as formas de sociabilidade tiveram que ser imaginadas, inventadas e pactuadas. Nesse sentido, a organização do coletivo humano exigiu a instituição de um imaginário social capaz de viabilizar formas de vida artificiais (não naturais), que só se mantêm se forem repactuadas com cada nova geração que vem ao mundo. É sob esse horizonte que se devem situar todos os processos de formação humana, especialmente os objetivados em cursos superiores.

Toda formação pressupõe, portanto, a dimensão do pensamento. Um pensamento que seja capaz de perceber cada unidade de ensino na sua vinculação com essa criação humana que é o imaginário social, pelo qual estabelecemos o modo como nos vemos e nos portamos, numa perspectiva sempre contingente, jamais necessária.

É esse o alcance que aqui conferimos à formação superior e que ultrapassa o mero desempenho instrumental no âmbito de um determinado domínio sociocultural. Indica-se aqui, portanto, para uma perspectiva fundacional, de compreensão de mundo e de inserção e convivência num coletivo humano. Nesse sentido, advogamos por uma formação integral que possibilite, para além e antes do exercício de uma profissão, que se compreenda essa complexa organização da vida humana, situando aí as várias atividades instrumentais, razão pela qual essa formação não pode sofrer um reducionismo de seu objeto.

Considera-se, por tudo isso, que o ensino superior não pode se reduzir à aprendizagem limitada à memorização e repetição de conteúdos, à instrumentalização e à especialização. É adequado, por isso também, olhar o ensino superior como um sistema aberto no qual seja possível sempre adicionar novas interrogações para a configuração criacionista da sociedade. Os conteúdos programáticos são o seu elemento balizador, mas exigem abertura e capacidade de pensamento e reflexão, aspectos que indicam a necessidade de olhar para a especificidade de cada área dentro da universidade, como também para o sentido mais amplo da formação.

Essa perspectiva implica o desafio de constituir a autonomia do sujeito para que a formação profissional não seja apenas um instrumento de aplicação, mas compreendida como instituição imaginária e de construção das relações humanas e da sociabilidade. A formação deve ser de abertura para sempre novos questionamentos. Esses aspectos são importantes e devem ser amplamente debatidos para que se tenha tal compreensão em um curso superior, especialmente para que não fique limitado à formação de especialistas instrumentalizados.

Por essas razões, uma das questões a explorar é a autonomia individual e social através da abertura do pensamento como uma aventura que conduz à crítica-reflexiva. Assim, segue-se a reflexão sobre o simbólico e o pensamento como uma abertura para o viés humanístico de toda e qualquer formação acadêmica.

Pensar o pensamento: a formação pela leitura

O homem é porque pensa. Ser humano é pensar5. Pensamento é cultura e cultura é uma criação imaginária do homem, é abertura6. O simbólico e a capacidade de raciocínio o distinguem das outras espécies animais, com o que lhe é possível dominar a natureza e ampliar seu campo de interações.

O simbólico possibilita a capacidade de abstração, a criação do mundo humano e a virtualidade, talvez infinita, de uma nova dimensão não vivida, uma espécie de mundo das essências, que somente existe na imaginação humana, em princípio individual, agora coletiva. O homem é o que pensa ser. O imaginário coletivo cria a realidade imaginada. Essa realidade imaginada pode ser a criação consciente, programada pela normatividade, mas pode, diferentemente deste primeiro desejo, ser uma consciência criada através da propagação de um imaginário inconsciente, como mecanismo utilizado pelos meios de comunicação de massa e sinalizados como uma extensão do homem (MCLUHAN, 2007).

Desenvolver a capacidade de pensar o pensamento implica trabalhar a diversidade de concepções para conduzir o aluno ao pensamento crítico-reflexivo. É necessário considerar que essa concepção de formação humanista depende da leitura e da compreensão, as quais são possíveis a partir do simbólico, pela capacidade de pensar e de se comunicar.

A humanização é decorrência do que se aprende: a escola fundamental proporciona a experiência de ler e compreender. Essa leitura, entretanto, é uma aprendizagem para ler as palavras, os signos, a qual é isenta, muitas vezes, da preocupação com a intelecção dos significados possíveis, os quais decorrem do estudo e conhecimento da hermenêutica. Essa é a preocupação que aqui nos orienta, já que constatamos que imensas turmas de estudantes universitários se preocupam unicamente com a reprodução uniforme de conceitos que não serão necessários para a vida futura.

Por essa razão, se propõe pensar o pensamento a partir da ideia de que a leitura crítico-reflexiva é necessária para que se tenha um pensamento aberto e alargado, num contínuo a partir do indicativo de que a questão central da formação superior seja a humanidade.

A linguagem, portanto, agregada aos outros fatores mencionados, concretiza o mundo humano. Ela é essencial na formação do humano, mas normalmente parece não ser a preocupação na formação elementar da criança, de modo que essa despreocupação, no período fundamental, termina gerando situações que, no ensino superior, implicam a difícil, senão impossível, concretização da autonomia pelo livre pensar, já que, em muitos casos, se está diante de estudantes que não leem e, portanto, não compreendem por não conseguirem interpretar os textos escritos. Tais estudantes, entretanto, podem ter a capacidade de memorizar e, com isso, de apenas reproduzir conceitos prontos, aspecto que compromete a atuação na sociedade pelo fato de não terem conseguido desenvolver sua autonomia de pensamento7.

No contexto de organização dos referenciais sobre a leitura e a compreensão, a obra Como ler livros, de Mortimer Adler e Charles Van Doren (2010), chama a atenção para a questão dos vínculos entre leitura e formação. Logo no início, os autores mencionam que o livro quer alcançar não apenas leitores, mas todos aqueles que desejam tornar-se leitores, não apenas para satisfazer o desejo da leitura, mas para satisfazer o desejo de crescimento intelectual através da leitura. Os autores mencionam outros meios de obtenção de informações (a redação original da obra é de 1940), como rádio e televisão, alertando que a mídia, de forma hábil, empacota ideias e opiniões intelectuais, tornando o pensamento desnecessário e formando a opinião com esforços e dificuldades mínimos. Dessa forma, ocorre um empacotamento eficiente da opinião pelos meios de comunicação, que leva o sujeito a reproduzir a opinião introjetada em sua mente, mesmo sem ter pensado a respeito.

Tais aspectos são hoje parte da realidade e consistem em um obstáculo a ser enfrentado na formação humana, já que nestes 80 anos, que separam a escrita original do livro de Adler e Van Doren e a atualidade, os meios virtuais de comunicação avançaram de tal forma que existe uma concorrência desleal entre a atrativa mídia, que facilmente envolve as mentes, e a leitura de livros, sempre mais exigente, afetando também a sala de aula que se tornou um desafio ao docente. A tecnologia, dessa forma, até pode contribuir para a acessibilidade do saber, mas a questão aqui é outra. A questão que se coloca é a percepção do entendimento, a necessidade de um estudo aprofundado para o desenvolvimento do pensamento e não apenas para a aquisição de informações e a condução do sujeito à expressão de opiniões, muitas vezes não refletidas.

É necessário, portanto, analisar a questão da leitura e da linguagem em sua interface com o pensamento e com a consciência humana para compreender como pode a universidade apostar, no século XXI, em um ensino com uma perspectiva formativa mais ampla. Temos em mente aqui, uma formação que permita ao aluno compreender em que mundo se encontra pelo entendimento dos processos históricos pelos quais a humanidade passou; que lhe permita o desenvolvimento de uma capacidade crítica e reflexiva sobre os temas que são apresentados, haja vista o pressuposto de que o percurso que trilhamos como humanidade não é necessário, mas contingente, o que significa que tudo poderia, a princípio, ser diferente; que permita, enfim, uma capacitação teórica e prática para a inserção no campo profissional para o qual a formação se orienta. Enfim, visualizamos aqui uma formação que se realize como processo indissociável entre as dimensões hermenêutica, crítico-reflexiva e operatório-instrumental (MARQUES, 2006).

Explicitando um pouco mais esse sentido amplo da formação, entendemos por dimensão hermenêutica a que possibilita compreender os padrões estabelecidos em sua gênese histórica, admitindo que sua compreensão seja sempre revista, já que a interpretação linguística sofre transformações no tempo, uma vez que os saberes não estão presos a significados estabelecidos no momento em que surgem, mas são recriados ou concriados no momento da sua aprendizagem.

Já a dimensão crítico-reflexiva do ensino consiste em construir, na relação de ensino, o esclarecimento da razão. Constitui uma mediação de ensino que aceita a divergência salutar de entendimentos e constitui a possibilidade de construir a diversidade de pensamento. Pressupõe compreendê-lo em seu aspecto emancipatório que conduz o sujeito à autonomia para que ele tenha domínio de seu próprio pensamento e possa construir a compreensão através da interpretação segundo a sua capacidade de pensar, mas que, acima de tudo, tenha a capacidade de tomar as decisões e empregar o saber. Pressupõe, ainda, o desenvolvimento da capacidade crítico-reflexiva como competência necessária a seu posicionamento na compreensão do estatuto epistemológico da área de estudo e aprendizagem.

A dimensão operatório-instrumental, por fim, revela e possibilita o desenvolvimento do interesse tecnológico-estratégico para a intervenção manipulatória no mundo, de modo que sua força constitutiva vise a organização da experiência técnica do sujeito para o exercício profissional.

Nesta perspectiva de uma formação multidimensional, abrangente e não reducionista, cumpre papel fundamental a leitura. Esta exige empenho intelectual para que o sujeito construa sua compreensão acerca da exposição linguística. A compreensão do leitor não será necessariamente a mesma que pretendia o autor com sua exposição escrita, mas demonstra a possibilidade de seu crescimento intelectual, a exigência de uma capacidade de pensamento e a possibilidade de exercício hermenêutico.

O desafio da formação como desafio da leitura

Diante dos desafios postos, é adequado indicar que a leitura tem dois sentidos: ler para se informar e ler para aprender (ADLER; VAN DOREN, 2010). A leitura para a aprendizagem é a leitura para entender mais, não o processo para reproduzir informações do mesmo grau de inteligibilidade das informações que o leitor já possui. Em outras palavras, o leitor deve enriquecer seu patrimônio cultural com a leitura, não apenas memorizar informações sem desenvolver a capacidade e o esforço de pensar a respeito delas e construir novas percepções.

Uma das preocupações nesta abordagem é que a universidade, hoje, e os meios avaliativos da formação, se preocupam muito mais com a leitura informativa do que propriamente com a leitura para a aprendizagem. E isso pode ser verificado quando se faz a avaliação, sob a ótica dos aspectos cobrados, exigindo-se apenas a repetição de informações, como que dispensando o sujeito de exercer sua capacidade de pensar e manifestar o conteúdo de seu pensamento.

Na esteira da distinção entre informação e aprendizagem é importante verificar como se coloca a perspectiva do desejável esclarecimento a ser produzido pela leitura.

Informar-se é simplesmente saber que algo é um fato. Esclarecer-se é saber, além de que algo é um fato, do que se trata esse fato: por que ele é assim, quais as conexões que possui com outros fatos, em quais aspectos são iguais, em quais aspectos são diferentes etc (ADLER; VAN DOREN, 2010, p. 32).

Esclarecer implica o desvelamento pela compreensão consciente da linguagem e dos fatos, o compreender o olhar. “[...] O esclarecimento só ocorre quando, além de saber o que o autor escreveu, você também sabe o que ele quis dizer com o que escreveu e por que escreveu o que escreveu” (ADLER; VAN DOREN, 2010, p. 32-33).

Na história da educação encontramos frequentemente a distinção entre ensinar e descobrir. O ensino ocorre quando uma pessoa instrui outra oralmente ou por escrito. No entanto, é possível adquirirmos conhecimento sem sermos ensinados. Se não fosse assim - se todo professor tivesse de ser previamente ensinado em tudo o que posteriormente ensina - não haveria aquisição de conhecimento. Por conseguinte, tem de haver a descoberta, ou seja, tem de haver um processo no qual se aprenda por pesquisas, investigações, reflexões - sem ajuda de ninguém (ADLER; VAN DOREN, 2010, p. 33).

É importante considerar que o conhecimento depende da atividade do aluno, já que não há construção de conhecimento na inércia; a aprendizagem não é uma transmissão, de modo que “[...] o professor consegue fazer muita coisa por seus alunos, mas quem tem de aprender são eles. O conhecimento só frutifica na mente deles caso o aprendizado ocorra” (ADLER; VAN DOREN, 2010, p. 34).

A leitura deve ser provocada na universidade para se verificar em quais dos níveis está a capacidade do aluno: ao elementar, ao inspecional, ao analítico ou ao sintópico8 (ADLER; VAN DOREN, 2010). Relacionando a capacidade de leitura ao ensino superior, retorna-se à ideia de realidade imaginada como criação de conceitos abstratos no mundo simbólico. No ensino superior se trabalha, basicamente, com o simbólico à medida que, olhando apenas os conteúdos programáticos, verifica-se que são um conjunto de abstrações conceituais e, como tal, dependem de interpretação. Isso pressupõe que a simples análise dos conteúdos já implica que a capacidade do leitor seja, ao menos, a de uma leitura analítica, já que não basta apenas decodificar os símbolos impressos no papel ou expressos em outro meio, o virtual, por exemplo. É necessário que exista um nível mínimo de capacidade de leitura e compreensão do próprio pensamento.

Para ilustrar, mencionamos o destaque de Fritjof Capra ao pensamento de Leonardo da Vinci, um gênio da pintura, da arquitetura e da engenharia, entre outras áreas com que ele se ocupou na Renascença. “Saber como algo funcionava não era o suficiente para Leonardo; ele também precisava saber por quê. Assim, teve início um processo inevitável que o conduziu da tecnologia e da engenharia rumo à ciência pura” (CAPRA, 2008, p. 75, grifos do autor). Esse é um exemplo de pensar necessário, tão raro atualmente, mas que contribui para o desenvolvimento da competência crítico-reflexiva e da intelectualidade. Um discurso mental possível como decorrência da capacidade imaginária.

Como superar, portanto, algo que se pode denominar pobreza intelectual na formação superior? Não parece que a simples dinamização das aulas, mediante utilização de novas mídias, ensino a partir de problemas, estudos de casos, projeção de slides e inúmeras outras formas de atrair os alunos possam substituir a penosa tarefa de aprendizagem a partir da inclinação sobre os livros. Em todos esses casos tem-se como aspecto principal a motivação dos estudantes, o que não resulta necessariamente em formação. Isso porque, conforme Tagliavini,

[...] não se pode perder de vista a dimensão de totalidade que só será adquirida com a leitura, meditação e discussão de textos densos, fundamentais. Não se pode baratear o conhecimento. A tarefa intelectual exige dedicação e sacrifícios. Os estudantes precisam ser conquistados para a grandeza da aventura do conhecimento humano. Um conhecimento que precisa ser rigoroso, radical e de totalidade (2013, p. 150).

A aprendizagem não ocorre com a superficialização de conteúdos ou através do uso de metodologias de espetacularização. A alternativa é a imersão nos estudos e o aprofundamento da leitura, já que sem a compreensão de textos não há intelectualização. É preciso dizer não à lógica de um ensino de mera reprodução. É preciso conduzir à interpretação e à argumentação.

O ensino superior pode, nessa perspectiva, ser compreendido como uma necessidade humana que pressupõe a condução para a realidade imaginada, abstração e simbolismo.9 Trata-se de formação humana que ocorre no campo do racional e depende, como organização imaginária, da reflexão. Pensar o pensamento pressupõe a leitura para a constituição simultânea de novos significados e novos pensamentos, os quais podem gerar certezas e incertezas. E a incerteza sempre está presente. É ela que alimenta a escrita, a qual também se alimenta da leitura de obras diversas, em regra expostas ao final do texto. O ensino deve gerar a inquietação citada na obra A maravilhosa incerteza10, em que Délcio Salomon (2006) elabora um ensaio de metodologia dialética sobre a problematização no processo do pensar, pesquisar e criar. A curiosidade é a inquietação diante do desconhecido, a chave da busca diante da incerteza, é o alento que alimenta a busca de respostas às inquietações. Essa perspectiva retroalimenta a leitura da obra de Mortimer Adler e Charles Van Doren (2010), já que ambas conduzem a uma necessidade comum: a curiosidade atrelada à boa leitura. Essa curiosidade, por exemplo, pode ser exemplificada como o móvel de Leonardo da Vinci, documentado por Capra (2008), que o leva às intermináveis pesquisas buscando a razão da vida. Deve ser o móvel de todo o aprendiz que busca uma formação na universidade. É o sentido de buscar uma formação.

O pensamento, necessário à compreensão das coisas, materiais ou abstratas, decorre da consciência humana que, para Gregory Bateson é um “processo mental” e para Humberto Maturana é um “processo cognitivo” (apud CAPRA; LUISI, 2014, p. 314). Aceita-se, portanto, a ideia de que o mundo apenas é possível porque existe um processo mental que, possibilitando o pensamento, produz a manutenção do simbólico e gera uma complexidade de relações humanas a partir da consciência coletiva. É necessário, entretanto, que ocorra a continuidade do mundo, possibilitada pela educação e pela formação e, através delas, a continuidade das tradições. É justamente essa possibilidade humana de aprendizagem que implica uma tarefa intelectual que exige dedicação e sacrifícios por parte do indivíduo. Se a capacidade humana é traço da filogenia, só a dedicação para a aprendizagem conduz à ontogenia11. Isso indica que a aprendizagem depende da vontade interna do ser e não da disponibilização de meios confortáveis para que tal aconteça. Em outras palavras, a aprendizagem depende da consciência e da vontade de aprender, já que não é algo considerado prazeroso, não ocorrendo pela mera submissão humana a meios e instrumentos de ensino. Dito isso, é aceitável que a aprendizagem seja um produto da própria consciência ou da vontade de aprender.

Ao analisar a aprendizagem humana é possível recuperar a noção apresentada por Maturana (apud CAPRA; LUISI, 2014, p. 177) de que o homem tem seu comportamento livre e determinado. Liberdade e determinação são decorrentes da consciência humana; talvez esta tenha sido a tônica utilizada para se falar em conscientização12. Tanto a liberdade como a determinação são decisões internas que podem levar ao conhecimento, mas dependem da vontade de aprender. É por isso que, considerando a atividade de aprendizagem penosa, se pode afirmar que não serão aparatos tecnológicos que a garantirão.

A consciência, a espiritualidade, a criatividade artística, o pensamento abstrato e a racionalidade se entrelaçam mutuamente em um intricado labirinto. Na maioria das manifestações de nossas ações, e nos produtos de nossa civilização, pode ser difícil discriminar alguns diante dos outros. Isso reafirma a complexidade da espécie H. sapiens - a espécie capaz de criar os esplendores da Basílica de São Pedro e também capaz de deixar cair a bomba atômica e dizimar em segundos milhares e milhares de vidas (CAPRA; LUISI, 2014, p. 313, grifos dos autores).

É necessário considerar que

A atividade organizadora dos seres vivos, em todos os níveis da vida, é atividade mental. As interações de um organismo vivo - planta, animal ou ser humano - com seu ambiente são interações cognitivas. Desse modo, a vida e a cognição são inseparavelmente conectadas. A mente - ou, mais precisamente, a atividade mental - é imanente na matéria em todos os níveis da vida (CAPRA; LUISI, 2014, p. 316).

Não resta dúvida de que é a atividade mental o diferencial daquela espécie animal que alcançou a produção técnica e estabeleceu o que chamamos de sociabilidade. É a mente que possibilita que o homem questione as coisas e possa refletir a respeito dos acontecimentos do mundo. E a mente funciona em razão de que o simbólico e a linguagem possibilitam que o pensamento atribua sentido às coisas. O pensamento é, portanto, juntamente com a linguagem, o cerne da sabedoria e do conhecimento humanos, os quais podem ser utilizados para o bem ou para o mal.13

Considera-se que o homem é o único ser dotado de capacidade para criar, mas cuja criação tem o poder de destruir. É capaz de produzir a técnica e, com ela, almejar a vida boa, mas também para excluir a maioria do poder e das benesses da produção decorrente do desenvolvimento científico moderno. Por outro lado, através do simbólico, tem a capacidade de conduzir à criação de uma realidade imaginada em que o resultado possa prever a integração da humanidade ou, perversamente, em que apenas uma pequena parcela da população mundial tenha espaço.

Isso indica que a formação superior deve ser debatida para que não seja apenas um meio de manutenção do status quo ou para a colocação do sujeito no mercado de trabalho, mas que seja o desdobramento da eleição de algumas questões que devem ser priorizadas. É por esta razão que se afirma a necessidade de pensar o pensamento. É necessário que a formação superior conduza à reflexão sobre a sociedade que se quer e sobre a capacidade de instituir novas relações sociais a partir da área de formação. É conduzir a reflexão dos alunos para que eles não se preocupem apenas com a formação restrita à dimensão técnica de sua área, mas tenham a autonomia para verificar a história e o fundamento das coisas, tendo a capacidade de se posicionar criticamente a partir da reflexão.

Pensar o pensamento significa que a universidade não pode se resumir a uma espécie de certificadora profissional, mas proporcionar a formação humana como condição para a constituição de uma sociedade mais razoável. Assim, qualificar o sujeito para que tenha a capacidade de optar e dizer quais são as questões importantes que devem ser priorizadas na vida em sociedade é também uma das implicações da formação universitária.

A leitura e as dimensões do ensino e da aprendizagem

A aprendizagem, na universidade, coloca em posições distintas o docente e o aprendiz, mas cujo objetivo deve ser a maioridade intelectual do aprendiz. Posições distintas, na medida em que se pressupõe que a docência é exercida por alguém que compreende o processo pedagógico como o caminho para o pensar autônomo, o qual será mediado pelo simbólico, já que a linguagem, seja ela escrita ou falada, torna-se o meio de compreensão e de continuidade do mundo, bem como sua possibilidade.

Quando se pensa a formação humana, e se compreende o mundo como uma possibilidade construída a partir da constituição abstrata de um simbólico, que toma forma a partir da linguagem, importa refletir sobre as condições para seu constante reconstruir mediante processos humanos de aprendizagem. Nesses processos de reconstrução e de aprendizagem, se faz mister que o aprendente venha a elaborar uma espécie de imagem mental acerca de alguma dimensão do mundo humano, o que obviamente não pode ser feito ao modo de uma simples transferência. Posta, assim, no âmbito da necessária reconstrução do simbólico, toda aprendizagem humana recompõe alguma dimensão do mundo, mas num processo que não é pura repetição, pois compreende novas nuances, novas percepções e que sempre é, na perspectiva do aprendente, a construção de um conhecimento novo. É esse entendimento da aprendizagem humana que coloca o mundo em perspectiva aberta, de sempre nova possível configuração, o que depõe contra toda e qualquer percepção de que haja algo como um sentido para o mundo que se impusesse de forma inexorável.

A aprendizagem implica, portanto, comprometimento do aprendiz. Além disso, é necessário considerar que

[...] as novas gerações não aprendem por mera repetição, pelo simples fato de serem informados dos modos de ser e de interagir instaurados. [..] Necessitam das justificações daquilo que lhes é apresentado como saber, como conhecimento. E isso torna a escola [e também a universidade] um lugar que opera sob condições específicas. Não no formato de informar, de transmitir, de guardar, de simplesmente reter o que foi dito. Nada “gruda” no aluno a não ser aquilo que ele é capaz de tomar como uma percepção razoável da vida e do mundo (BOUFLEUER, 2013, p. 405-406).

Seguindo nesta linha, pode-se dizer que compreendida a linguagem como a condição do simbólico, é necessário enfrentar a questão da leitura frente à aprendizagem. A falta de leitura é um obstáculo à construção de mundo na medida em que sua carência dificulta a compreensão sobre o simbólico, a linguagem e o próprio pensamento. Nesse sentido, a leitura é o alicerce para toda e qualquer pretensão de aprendizagem fundamentada. É, portanto, necessário pensá-la no ensino universitário, analisando sua importância para a formação humana. A leitura que se faz necessária não pode se restringir à repetição de símbolos escritos e de forma alheia à atribuição de sentido à mensagem expressa pelas palavras. É necessário ir além para compreender que os símbolos podem externar bem mais, inclusive, que aquilo que o escritor pretendeu transmitir. E aí reside a interface hermenêutica da aprendizagem.

Quando se analisa a conduta de grande parte dos alunos na universidade percebe-se que há, de certa forma, um grande descaso com a necessidade de compreensão da leitura como uma forma de aprendizagem e de aquisição de conteúdo linguístico para embasar e fortalecer a própria capacidade de escrita. Quando se verifica que ocorre a propagação de um ideário que minimiza a necessidade de leitura e torna superficial o ensino e a aprendizagem, principalmente porque a educação passa a ser tratada como mera mercadoria num comércio de certificação sujeito às regras de consumo, é preciso repensar em que bases se dará a formação das novas gerações, se há como simplesmente delegar a tarefa às tecnologias da informação e da comunicação (TIC) ou se é necessário olhar para o passado e retomar as bases para uma educação de qualidade14.

Essa questão que aqui se aborda, a da leitura, já foi compreendida como necessária à formação humana no passado. A obra Didascalicon: a arte de ler, escrita por Hugo de São Vitor (2015, p. 19) no início do século XII, mencionava que são dois os instrumentos para alguém adquirir o conhecimento: a leitura e a meditação, razão pela qual se menciona algumas de suas passagens que tratam dos preceitos e regras para a boa leitura. Considera-se importante resgatar este entendimento para demostrar que a reclamação a respeito da leitura dos educandos não é algo da atualidade. Não se trata de uma crise atual, como dizem muitos, é uma preocupação com a própria formação humana desde sempre. No período medieval já se defendia a necessidade de leitura para a compreensão. Depois, no século passado, Mortimer Adler e Charles Van Doren (2010), na obra Como ler livros, resgatam a mesma preocupação de Hugo de São Vitor para afirmar que a formação universitária deve preocupar-se com este aspecto na formação humana.

A leitura, considerada arte, depende da qualidade, não da quantidade, já dizia Hugo de São Vitor, lição que foi repetida por Adler e Van Doren. Considerando que o primeiro autor demonstrava uma preocupação com a arte da leitura, é adequado mencionar suas palavras:

De pronto, afirmo o seguinte: são três os preceitos mais necessários para a arte de ler: o primeiro preceito: “que saibamos previamente o que devemos ler”. O segundo: “a ordem a seguir durante a leitura, isto é, qual o primeiro texto a ser destrinchado, qual o segundo e assim por diante”. E o terceiro preceito: “como devemos ler” (SÃO VITOR, 2015, p. 19).

Tais aspectos sobre a leitura, embora em um contexto muito distinto do de agora presenciado nas universidades, demonstram a preocupação que ainda hoje deve-se ter com a educação. Preocupação esta que, em decorrência das tecnologias que impactam a vida das novas gerações, indica que não se pode pensar em uma educação ainda presa ao paradigma metafísico (MARQUES, 1992).15 Tal perspectiva indica que a relação estabelecida no ensino não pode ser um jogo de memorização, mas que a aprendizagem deve ser decorrente de uma ação impactante que demonstre aos educandos que a leitura é a via pela qual se estabelecem os fundamentos sobre os quais se constrói o conhecimento.

E neste sentido é importante considerar que muitos aprendizes vêm à universidade para apenas buscarem a certificação, considerando, inúmeras vezes, que têm conhecimento ou experiência suficiente para contestar a forma e o método empregado para o ensino. O contexto das tecnologias e o apelo midiático das TIC na educação, nesse aspecto, parecem reduzir a compreensão de que a aprendizagem depende de persistência, pois não é um momento de prazer, senão de sofrimento. Neste contexto, a formação universitária termina sendo considerada como uma formação que deve ser pragmático-profissional, um conjunto de cursos superiores que certifiquem os futuros ocupantes dos escalões burocráticos do Estado16, como outrora já ocorreu.

Esta compreensão, todavia, deve ser questionada e enfrentada para que, efetivamente, se tenha uma universidade na qual seus cursos estejam a serviço da humanidade, não sejam compreendidos unicamente como espaços de instrução que apenas certifiquem para o exercício de profissões, mas que se comprometam numa condução humanitária da formação humana.

Tal pretensão demanda que alternativas sejam propostas em relação à formação universitária e até mesmo à pré-universitária, neste caso, para que o ingressante ao ensino superior compreenda o que dele se espera, para que, ao nele ingressar, já o faça com um posicionamento crítico-reflexivo. Essa compreensão, portanto, depende de uma mudança do discente para que ele compreenda o que se espera de uma formação que se diga superior. Uma formação que coloque o humano no centro do debate e propicie condições para que cada pessoa contribua com a vida em sociedade.

É possível, portanto, referenciar que a leitura e, por consequência, a linguagem têm importância fundamental na formação. É o próprio Hugo de São Vitor (2015, p. 121) que menciona os três elementos necessários ao estudo: a natureza, o exercício e a disciplina. O estudo pressupõe a leitura, sendo que esses três elementos ainda hoje devem ser considerados. A natureza seria a capacidade de ouvir e memorizar o percebido; no caso da leitura, compreender e memorizar o conteúdo. O exercício, a leitura contínua e constante. A disciplina, a acomodação do corpo e da mente, ou seja, a percepção da necessidade da leitura para a compreensão dos conceitos necessários à formação, mas sempre recordando que “[...] o princípio da doutrina está na leitura, e sua consumação, na meditação. E quanto mais alguém aprender a amar a leitura com familiaridade, desejando-se esvaziar-se para com ela se preencher, mais construirá uma vida agradável” (SÃO VITOR, 2015, p. 125). Concordando com o posicionamento de São Vitor, apenas se proporia uma reflexão hermenêutica para compreendê-lo da seguinte forma: o princípio da aprendizagem está na leitura, e sua consumação, na meditação crítico-reflexiva, de forma que se torne possível que as ideias conhecidas, internalizadas pelo sujeito, possam servir para o debate numa ação comunicativa e, portanto, que o saber se construa a partir da transcendência possível entre os sujeitos.

Considerando esses elementos requeridos para a leitura, deduz-se que ensino e aprendizagem se constituem numa relação tensional em que o docente impõe situações que podem ser compreendidas como não prazerosas, de não satisfação imediata, de esforço, de privações e de limitações, mas que, por outro lado, implicam uma conduta ilibada na qual ocorra absoluto respeito humano com o aluno.17 Esse respeito induz o docente a não apenas exigir disciplina, mas que ele próprio tenha disciplina com respeito às obrigações de seu papel docente.

Considerações finais

Diversas questões podem ser debatidas quando se fala em ensino e aprendizagem no ensino superior. Uma delas, mencionadas no texto, é justamente a necessidade de que o sujeito saiba que pensa e que é seu pensamento que lhe permite constituir o mundo humano.

A formação humana deve se dar no contexto da preparação do sujeito para que possa pensar autonomamente, e que tenha conhecimento dessa sua capacidade. Para isso, não pode a universidade reduzir os seus cursos superiores a um conjunto de conhecimentos da área específica a serem transmitidos aos alunos, mas deve prever uma formação integral que leve o sujeito a pensar sobre as questões da humanidade e que, nesse contexto, lhe proporcionem condições para que seja um sujeito comprometido com a sociabilidade humana.

Proporcionar uma experiência de abertura e capacidade de pensamento e reflexão, é uma alternativa à formação unicamente operatório-instrumental. Ela indica que, mais que uma adequação às tecnologias da informação, é necessário enfrentar a questão da leitura frente aos déficits de aprendizagem. A falta de leitura é um obstáculo à construção de mundo na medida em que sua carência dificulta a compreensão sobre o simbólico, a linguagem e o próprio pensamento.

Para despertar o interesse pela leitura e conduzir ao amadurecimento intelectual, todavia, deve-se conhecer bem o aluno do século XXI e compreender porque existe uma certa paixão pelas tecnologias da informação e da comunicação. A aprendizagem do ser humano mudou ou nos acomodamos diante das tecnologias? É certo que as tecnologias facilitam em muito a vida de quem quer aprender, as informações estão disponíveis a todos, a um custo irrisório. Mas o que se faz com elas?

Essa é a perspectiva que temos debatido neste texto. Informações estão disponíveis em todos os lugares, mas existe um obstáculo justamente em relação a sua compreensão. É nesse sentido que acima mencionamos que se exige a memorização, mas não a autonomia de pensamento. Isso ocorrendo, minimiza o papel do ensino e reduz a aprendizagem à mera reprodução de conceitos memorizados. E o aspecto mais preocupante é que no âmbito da sociedade normalmente se compreende a aprendizagem sob este aspecto, deixando de lado a capacidade reflexiva do sujeito.

A prática do ensino universitário, entretanto, tem demonstrado que há um desinteresse pela leitura, o que gera consequências na escrita e na interpretação. Se um dos princípios da aprendizagem está na leitura, mas os aprendizes desconhecem sua importância para o pensamento crítico-reflexivo e autônomo, como transformar o ensino para construir novos pensamentos mediante reflexão? Essa é uma dificuldade presente nestes dias de novas tecnologias que impactam a formação humana.

Se o humano não está dado e depende da aprendizagem autotransformadora, é evidente que o aprendiz deve estar comprometido com essa fórmula antiga de aprendizagem que não mudou com as tecnologias e que sempre depende da autodisciplina. Essa concepção leva a compreender que a educação universitária é uma aposta na construção do futuro, a possibilidade de emancipação humana para o exercício autônomo da razão.

Referências

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1De acordo com Tugendhat, “A evolução biológica é superada pela linguagem e a cultura por um novo mecanismo de transmissão, muito mais dinâmico que a transmissão genética, a qual, naturalmente, segue funcionando na base. [...]. Essa capacidade [de linguagem] significa uma flexibilidade de uma nova ordem na adaptação ao meio ambiente e, além disso, a linguagem humana permitiu, em comparação com o genético, um novo mecanismo de transmissão e, assim, de acumulação da aprendizagem de uma geração a outra, a transmissão cultural e histórica” (2007, p, 190-1, grifo dos autores).

2Para Habermas, “Conteúdos transmitidos culturalmente configuram sempre e potencialmente um saber de pessoas; sem a apropriação hermenêutica e sem o aprimoramento do saber cultural através de pessoas, não se formam nem se mantêm tradições” (1990, p. 100). Disso resulta que “[...] processos de formação e de socialização são processos de aprendizagem que dependem de pessoas” (1990, p. 102).

3Formação humanística como humanidades designa “[...] as disciplinas que contribuem para a formação (Bildung) do homem, independentemente de qualquer finalidade utilitária imediata, isto é, que não tenham necessariamente como objetivo transmitir um saber científico ou uma competência prática, mas estruturar uma personalidade segundo uma certa paideia, vale dizer, um ideal civilizatório e uma normatividade inscrita na tradição, ou simplesmente proporcionar um prazer lúdico” (ROUANET apud JAPIASSÚ; MARCONDES, 2006, p. 136).

4 Esse imaginário, não sendo considerado o oposto do real, é uma criação ex nihilo, o próprio fundamento de realidade. É uma criação a partir do nada, o pensamento como a possibilidade de sentido. Assim, ao considerarmos a vida humana em sociedade, esta sociedade é considerada um produto do imaginário: por isso imaginário instituinte. O imaginário não se fecha em um determinismo, está sempre aberto, é um “por-Ser” (CASTORIADIS, 2002, p. 233). Nesta abertura instituinte percebe-se a emergência do novo, a mente liberta para o exercício da criação sócio-histórica localizada no tempo. “O imaginário de que falo não é imagem de. É criação incessante e essencialmente indeterminada (social-histórica e psíquica) de figuras/formas/imagens, a partir das quais somente é possível falar-se de ‘alguma coisa’. Aquilo que denominamos ‘realidade’ e ‘racionalidade’ são seus produtos” (CASTORIADIS, 1982, p.13). Decorrência disso, o mundo é criação humana pois somente é possível dizê-lo a partir do suporte simbólico expressado por palavras e pelo pensamento. O mundo é, portanto, resultado desse imaginário instituinte e ganha status universal com a palavra. “A instituição da sociedade é toda vez instituição de um magma de significações imaginárias sociais, que podemos e devemos denominar um mundo de significações” (CASTORIADIS, 1982, p. 404, grifo cf. original).

5“O pensar consuma a relação do ser com a essência do homem. O pensar não produz nem efetua esta relação. Ele apenas a oferece ao ser, como aquilo que a ele próprio foi confiado pelo ser. Esta oferta consiste no fato de, no pensar, o ser ter acesso à linguagem. A linguagem é a casa do ser. Nesta habitação do ser mora o homem. Os pensadores e os poetas são os guardas desta habitação. A guarda que exercem é o ato de consumar a manifestação do ser, na medida que a levam à linguagem e nela a conservam. Não é por ele irradiar um efeito, ou por ser aplicado, que o pensar se transforma em ação. O pensar age enquanto exerce como pensar. Este agir é provavelmente o mais singelo e, ao mesmo tempo, o mais elevado, porque interessa à relação do ser com o homem. Toda a eficácia, porém, funda-se no ser e espraia-se sobre o ente. O pensar, pelo contrário, deixa-se requisitar pelo ser para dizer a verdade do ser” (HEIDEGGER, 2005, p. 7-8).

6Deve-se ter o cuidado de não reduzir o caráter e a importância do pensamento e incorrer no equívoco de uma concepção determinista. Horkheimer demonstra uma preocupação que vai justamente neste sentido: “Quanto mais as ideias tornam-se automáticas, instrumentalizadas, menos se vê nelas pensamentos com um sentido próprio. Elas são consideradas coisas, máquinas. A linguagem foi reduzida a apenas outra ferramenta no gigantesco aparato de produção na sociedade moderna. Qualquer sentença que não seja equivalente a uma operação nesse aparato aparece ao leigo tão carente de sentido quanto o é para os semanticistas contemporâneos, os quais sugerem que a sentença puramente sem sentido, faz sentido” (HORKHEIMER, 2015, p. 30).

7Para a análise mais profunda dos argumentos expostos recomendamos consulta à pesquisa realizada pelo grupo de pesquisa Educação e Direito na Sociedade Brasileira Contemporânea. Em sua análise do Exame de Ordem, da OAB, verifica que as questões cobradas muitas decorrem da reprodução de artigos de leis e cuja resolução depende unicamente da mera memorização. Com isso a pesquisa conclui que mesmo que os candidatos consigam ser aprovados em exames de admissão, os egressos dos cursos jurídicos são avaliados por questões inúteis para o exercício da advocacia. Para aprofundamento sugere-se a obra Exame de Ordem - uma visão crítica (TAGLIAVINI, 2010).

8Na leitura elementar a pessoa tornou-se alfabetizada, aprendeu os rudimentos da arte de ler; está capacitada a decodificar as palavras impressas no papel, mas não está preocupada ou não consegue decifrar o sentido da frase. Na leitura inspecional, também chamada de pré-leitura, o sujeito deve ter a capacidade de revelar a ideia do texto a partir do exame superficial do texto, sem aprofundamento. Busca a melhor leitura em um tempo limitado. A leitura analítica é mais complexa e sistemática: é a melhor leitura possível, mas em tempo ilimitado. É uma leitura intensamente ativa, destina-se exclusivamente a entender o livro (ou texto) decifrando seu conteúdo. A leitura sintópica é comparativa: implica a leitura de muitos livros para ordená-los em relação a um assunto sobre o qual todos versem. Mais sofisticada que as demais, a leitura sintópica possibilita o desenvolvimento de uma análise que talvez não esteja em nenhum dos livros analisados (ADLER; VAN DOREN, 2010, p. 37-40).

9E nesse contexto não se pode ter a falsa impressão de que o simbolismo seja neutro e totalmente adequado ao funcionamento dos processos reais. Ele não pode ser nem neutro, nem totalmente adequado, pois “[...] não pode tomar seus signos em qualquer lugar, nem pode tomar quaisquer signos. Isso é evidente para que o indivíduo que encontra sempre diante de si uma linguagem já constituída, e que se atribui um sentido ‘privado’ e especial a tal palavra, tal expressão, não o faz dentro de uma liberdade ilimitada mas deve apoiar-se em alguma coisa que ‘aí se encontra’. Mas isso é igualmente verdadeiro para a sociedade, embora de uma maneira diferente. A sociedade constitui sempre sua ordem simbólica num sentido diferente do que o indivíduo pode fazer. Mas essa constituição não é ‘livre’. Ela também deve tomar sua matéria no ‘que já existe’. Isso é primeiro a natureza - e como a natureza não é um caos, como os objetos naturais são ligados uns aos outros, isso acarreta consequências” (CASTORIADIS, 1982, p. 146-147).

10Poderia se dizer que a universidade necessita refletir sobre a sua própria existência e o destino de suas ações, se ela deve formar unicamente para o desenvolvimento de uma profissão ou se essa formação deve resultar em algo mais, a concretização do compromisso social da universidade. “A Universidade há de aceitar os problemas contemporâneos como legítimos problemas de consideração científica para elucidá-los, analisá-los e tentar resolvê-los numa perspectiva realmente universitária. Mas, se professores e pesquisadores não formarem realmente uma instituição atenta ao aparecimento dos problemas, como poderão abordá-los? Se não tiverem liberdade e incentivo a trazer os problemas para serem dissecados dentro da própria universidade, como poderão por eles interessar-se? Em termos diletantes? Sem a responsabilidade, a motivação e a elevação que a instituição da inteligência estaria a exigir? A Universidade não pode reduzir-se a uma casa de cristal ou monumento ao estático saber acadêmico” (SALOMON, 2006, p. XVI, grifo cf. original).

11Filogenia compreendida como a história da espécie humana. Ontogenia compreendida como o percurso do indivíduo em seu próprio ciclo de vida, do nascimento à morte, em termos de desenvolvimento.

12Para que ocorra a conscientização é necessária a existência da mente, segundo Damásio: “[...] consciência é um estado mental no qual existe o conhecimento da própria existência e da existência do mundo circundante” ( 2011, p. 197, grifo cf. original).

13É o conhecimento que possibilita a criação e aceitação de uma sociedade com desigualdade social, como ocorreu na Grécia, na Antiguidade; ou no Estado absoluto, quando o monarca detém o direito sobre a vida dos súditos; ou no caso do nazismo, quando foram exterminados milhões de judeus.

14É perigoso falar em qualidade na educação em razão de que a palavra pode ser mal compreendida. Isso porque o termo qualidade é indeterminado, embora muito se fale em qualidade na educação, há um descompasso no entendimento que as pessoas fazem acerca dele, podendo significar qualidade como uma educação que proporciona autonomia do sujeito, ou como aquela que se adequa às ofertas de mercado transformando o aluno em cliente. Evidentemente que neste texto se trabalha com a ideia de autonomia do sujeito proporcionada pela educação.

15“O ensino, nesta concepção metafísica, consiste em transmitir fielmente verdades aprendidas como imutáveis; e a aprendizagem é assimilação passiva das verdades ensinadas. Ensinar é repetir; aprender é memorizar. É decisivo o papel do professor, insubstituível em sua qualidade de portador individual dos conhecimentos depositados na tradição cultural. Os alunos são todos iguais, desde sua ignorância radical dos conhecimentos de que necessitam para se adaptarem ao cumprimento de suas futuras obrigações” (MARQUES, 1992, p. 551).

16No período imperial não houve interesse pela Coroa Portuguesa na instalação da universidade no Brasil. As primeiras universidades latino-americanas são criadas na América espanhola: Universidade de São Domingos (1538), historicamente a primeira universidade das Américas. Depois San Marcos, no Peru (1551), México (1553), Bogotá (1662), Cuzco (1692), Havana (1728) e Santiago (1738). Na América do Norte as primeiras universidades são Harvard (1636), Yale (1701) e Filadélfia (1755). Tais fatos demonstram o descaso e o interesse apenas exploratório de riquezas pela Coroa Portuguesa no Brasil. Nos primeiros anos do Império, os filhos das elites brasileiras tinham sua formação em Portugal, somente criando cursos superiores isolados no Brasil no século XIX e universidades no século XX, os quais estavam voltados à formação para o atendimento de interesses privados e como forma de ascensão social e controle das estruturas do Estado.

17Boufleuer e Fensterseifer nos indicam nessa direção ao se referirem à disciplina intelectual como condição necessária aos processos de formação humana. Essa disciplina, afirmam os autores, “[...] pode ser entendida como capacidade de fazer algo que mesmo sendo cansativo ou não nos dando prazer em si ou de modo imediato, o fazemos pela capacidade de visualizar o benefício futuro que dessa atitude ou esforço teremos” (2011, p. 391).

Recebido: 06 de Fevereiro de 2019; Aceito: 24 de Abril de 2020

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