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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.33 no.69 Uberlândia set./dez 2019  Epub 06-Fev-2022

https://doi.org/10.14393/revedfil.v33n69a2019-58696 

Editorial

Dias melhores demorarão, mas continuaremos na faina!

*Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor Associado do Instituto de Filosofia (FIILO) da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). E-mail: mseneda@ufu.br


Ao apresentar ao público mais um novo número, o sexagésimo nono, a Revista Educação e Filosofia completa o volume trinta e três, e celebra, entrincheirada, mais um ano de resistência. A UFU nesse momento acompanha todas as outras universidades federais, em travessia tão difícil como essa pela qual passa a ciência em território brasileiro, desacreditada e desconsiderada em sua tarefa iluminista e em sua função de lançar as bases de um projeto nacional de desenvolvimento tecnológico, acesso à saúde, ampliação da cidadania e cultivo plural das formas de expressão. São desafios ingentes para esta e outras revistas o contingenciamento de verbas por parte do MEC, a desestruturação da Editora da UFU, uma desaceleração total dos financiamentos fornecidos pela FAPEMIG para a pesquisa e para os periódicos. Mesmo assim, comemoramos esse número difícil e suado em ritmo de resistência. Continuamos na faina! Em meio a todas as adversidades e motivos fortes para parar, a Revista continua publicando, os pesquisadores seguem investigando e a ciência reúne forças para procurar dias melhores.

Junto com suas irmãs, a Revista Educação e Filosofia tem conseguido sobreviver nesse cenário de desolação. Mantivemos nossas publicações quadrimestrais, editando, quase sempre, cinquenta peças por ano, todas arbitradas por pareceristas especializados. Implementamos DOI e Orcid, que são recursos utilizados para certificar os artigos e os pesquisadores. Ainda atendemos às exigências de indexadores que operam mundialmente, multiplicando a circulação dos artigos científicos e assegurando a utilização eficaz das pesquisas.

A Revista Educação e Filosofia, é preciso assumir esse ônus, está sendo publicada com atraso, mas, também é preciso frisar, ainda assim está sendo publicada com seus números completos, com os trâmites integrais e com os aspectos formais assegurados, oferecendo ampla divulgação aos artigos que recebe. Para plataformas especializadas, ela tem conseguido oferecer os seus números em XML. O que parece pouco, recobre-se de significado numa época em que as revistas de acesso livre concorrem com as grandes editoras, que sobrevivem principalmente com artigos advindos de instituições públicas, e que ou vendem aquilo que nunca compraram, ou cobram caro de quem produz ciência para poderem disponibilizar pesquisa de ponta de modo supostamente gratuito para o leitor especializado. Na outra ponta, temos os professores isolados, em geral, professores doutores, que têm de cumprir as tarefas da instituição - ensino, pesquisa, extensão -, e além disso funções especializadas para as quais nunca se especializaram, e para as quais as grandes editoras contratam diversos bons funcionários para executá-las bem. São professores que põem a revista dentro de um laptop e a levam para casa, para resolver todos os problemas em horários impensáveis de trabalho. É claro que não podemos tratar isso com nenhuma dose de maniqueísmo, mas é igualmente compreensível que o capitalismo da cientometria não consiga gerar o mínimo do sentimento do respeito, pois retira avidamente seus produtos de um substrato no qual nunca investiu. E causa espécie, por sua vez, a subserviência do sistema de avaliação, que entende a anglicização como sinônimo de internacionalização, condenando à ineficiência aquilo que está muito acima de cada um de nós, a nossa expressão maior, a própria língua portuguesa.

Nesse cenário, é espantoso que as revistas de acesso aberto, entrincheiradas, com movimentos muito dificultados, cada vez com menos insumos e sendo obrigadas a falar outra língua que não a portuguesa, resistam, sobrevivam, contra tudo prosperem. Por mais sem sentido que seja, ainda assim nós temos muito a comemorar!

Vamos então a esse extraordinário e lúcido sobrevivente, o número sessenta e nove, que fecha o volume trinta e três da Revista Educação e Filosofia. Ele apresenta um dossiê muito importante e singular sobre o debate ocidente/oriente, nove artigos e duas resenhas.

O dossiê, coordenado e apresentado por Antônio Florentino Neto e Lucas Nascimento Machado, traz uma importante contribuição para se pensar o diálogo entre oriente e ocidente. Acolhendo temas muito atuais, ele discute a singularidade de nossa modernidade, as definições teóricas e usos práticos contextualizados da razão, a correlação entre desenvolvimento econômico e a base material de nossa modernidade, as estruturas de subjetivação no ocidente e no oriente, a clivagem imposta pela especialização crescente da ciência. Todos esses temas são tratados no interior dessa oposição/interação entre ocidente e oriente, e são cultivados do ponto de vista cultural, antropológico, teológico e filosófico. Reunindo pesquisadores de diversas formações e procedências, como teria de ocorrer em um tema multidisciplinar, o dossiê dá expressão aos seguintes temas e respectivos autores: Atomic individual and relational individual: The bases of the formation of subjectivity in the West and China, de Antônio Florentino Neto; Temas aristotélicos en La determinación autoperceptiva de la Nada (1932), de Nishida Kitarô, de Agustin Jacinto Zavala; Ética e subjetividade no Budismo chinês contemporâneo, de Joaquim Monteiro; The chinese model and chinese wisdom of modernization, de Li Xiaodong; Liberdade e eticidade: o diagnóstico crítico da modernidade política em Hegel, de Marcos Lutz Müller; The paths and the ways: an insight into transdisciplinarity, de Paul Gibbs; Razão (jñāna) e devoção (bhakti) no Advaita Vedānta: Madhusūdana Sarasvatī (séc. XVI) e o Bhagavad Gītā, de Dilip Loundo. Uma descrição mais detalhada de cada artigo pode ser encontrada na apresentação do próprio dossiê, que deve colaborar muito para divulgar esse debate no país. Sobretudo, ele se oferece como bibliografia privilegiada para todos aqueles que entendem que é fundamental tratar de forma dialógica as diferenças teóricas e os desenvolvimentos plurais de socialização.

Por fim, gostaríamos de ressaltar que o dossiê traz ainda um artigo que pode ser predicado com tudo aquilo que o trabalho do ourives encerra, um escrito bem dilapidado, cuidado em cada detalhe e de valor inestimável para a Revista Educação e Filosofia. Trata-se da mencionada contribuição Liberdade e eticidade: o diagnóstico crítico da modernidade política em Hegel, de Marcos Lutz Müller. Por se tratar, possivelmente, da publicação de um dos últimos textos desse reconhecido professor e pesquisador, cabe aqui uma breve nota do seu passamento. Faleceu na tarde do dia 15 de setembro de 2020, o Professor Marcos Lutz Müller. Sendo muito conhecido de todos nós, Marcos Lutz Müller foi figura de destaque durante décadas do desenvolvimento do pensamento filosófico no Brasil. Tendo feito toda a sua trajetória como professor na Unicamp, participou da abertura e consolidação do Curso de Graduação em Filosofia da Unicamp e foi um dos fundadores da Sociedade Hegel Brasileira. Intensamente e conceitualmente, muito fez pela divulgação do pensamento de Hegel no Brasil, principalmente por sua leitura crítica e com crivos rigorosos de interpretação. Em sala de aula era um professor sereno, amigo, mas sempre pautado por um alto nível de critérios exegéticos e padrões metodológicos. Era exímio para explicitar e desdobrar conceitos, demorando-se longamente num encadeamento que considerasse importante. Sempre passou para os alunos o gosto pelo rigor, o respeito com o tempo e o ritmo na produção universitária, e o zelo pela referência elucidativa ao original. Por tudo isso e pelo mais que nessas linhas não pode ser expresso, a Revista Educação e Filosofia registra aqui o seu reconhecimento e a sua homenagem.

A seção de artigos é aberta com o trabalho O campo de saber artístico nos currículos de formação de pedagogos e seu eco nas escolas, de autoria de Ana Cristina Moraes e Luis Távora Furtado Ribeiro. Os autores discutem o papel das artes na formação dos estudantes da área de pedagogia. A noção de campo de Bourdieu dá embasamento a essa reflexão, defendendo que há um contexto de diálogo entre o cultivo das artes e a inserção dos educadores que a assumem por ofício. Desse modo, torna-se fundamental pensar o papel da universidade na formação dos educadores com vistas a desdobrar essa possibilidade de cultivar artisticamente a realidade vivenciada nas escolas. O artigo Diderot e a educação como projeto de Estado, escrito por Fabiana Tamizari, trata de tema histórico que grandes consequências atuais, a saber, o papel do Estado na promoção da educação pública. Valendo-se de sua amizade com Catarina, Diderot aceita o convite da imperatriz para elaborar uma proposta para a universidade russa. De importância capital são os temas que destacam a emancipação humana, o papel da racionalidade na constituição da sociedade administrada pelo Estado, e a universalização do acesso à educação. Em Educação e Filosofia: uma leitura a partir de Freud e Benjamin, Anita Helena Schlesener trabalha com dois pensadores que são emblemáticos da nossa modernidade, Freud e Benjamin. Agenciando as suas reflexões, a autora ressalta a importância do inconsciente na formação da subjetividade, e procura mostrar como o tema dos sonhos é importante para a educação, reunindo forças que podem abrir novas possibilidades de um futuro libertador. Com o texto A educação do negro na imprensa paulista do fim do século XIX (1880 - 1900), Kadine Teixeira Lucas e Daniel Ferraz Chiozzini apresentam uma importante reflexão, com base historiográfica e documental, procurando retratar os diferentes modos pelos quais se refletiam, no que denominam “imprensa branca”, “imprensa negra” e “imprensa abolicionista”, as maneiras de pensar a educação dos filhos das escravas. Trata-se de uma importante contribuição para recuperar a memória de um problema e mesmo de um conflito educacional de muita relevância para a vida nacional. Em Educação estética em “rua de mão única” (Walter Benjamim) e em “a idade da terra” (Glauber Rocha), Carlos Betlinski, Dalva de Souza Lobo e Vanderlei Barbosa procuram interconexões entre “Rua de mão única” de Walter Benjamin e o filme “A idade da terra” de Glauber Rocha, ressaltando as alegorias utilizadas por ambos os autores e o respectivo potencial dessas imagens para, com suas remissões inesperadas e fragmentadas, despertar a consciência do leitor e do espectador para dimensões encobertas de seu presente histórico. Robson Loureiro, em Educar, elaborar o passado, desnazificar: memória histórica e neonazifascismo no início do século XXI, numa reflexão dotada de grande interesse atual, procura examinar o Programa de Desnazificação da Alemanha (PDA), refletindo sobre a política de educação, a forma como isso preparou a juventude para um destino tão terrível, tornando-se uma grande arma nas mãos do poder dirigente. Por outro lado, Adorno oferece ao autor subsídio para refletir sobre esse caso e sobre como sua força ideológica ainda é capaz de alcançar, com políticas de extrema direita, a sociedade atual. Alexandre Vanzuíta e Marynelma Camargo Garanhani, ao refletirem sobre A formação inicial na construção de identidade(s) profissional(is) em educação física, em uma pesquisa qualitativa, examinam dois grupos de alunos, para avaliar como diversas práticas formativas no decorrer da graduação têm impacto nas atividades e responsabilidades a serem assumidas pelos futuros formandos, interagindo para construir as respectivas identidades profissionais. O escrito Interdisciplinaridade, totalidade e a construção do conhecimento em artigos das áreas de Educação e Ensino, de autoria de Gabriele de Sousa Lins Mutti, propõe uma reflexão sobre as categorias de totalidade e interdisciplinaridade, a partir de um estudo de 27 artigos coletados na internet, indicando a crítica subjacente nesses artigos à fragmentação do conhecimento. Essa questão também se desdobra no interior do discurso pedagógico, que passa a refletir sobre a totalidade e sobre a relação dialógica desta com as particularidades que em si encerra. Em A proposta pedagógica de António Ribeiro Sanches: a educação pública da Mocidade Portuguesa, Cláudia Elias Duarte procura recuperar as contribuições desse autor português, que tem um modo bem peculiar de pensar a interrelação entre educação pública e doméstica, oferecendo assim um quadro datado da questão pedagógica no âmbito do pensamento português. A proposta de Sanches não propugna pela universalidade da formação, mas defende a educação pública obrigatória para a nobreza, submetendo ideologicamente a educação, de modo singular, descontínuo e graduado, às questões da pátria portuguesa.

Encerram esse número duas resenhas. Uma intitulada Como Nasce o Novo, de autoria de Hélio Ázara de Oliveira, que faz uma apreciação crítica do livro de mesmo título de Marcos Severino Nobre, que se dedica a uma detalhada exegese de Hegel e que foi publicado pela Editora Todavia, em 2018. A outra, O desencanto das utopias: rupturas entre política e poder, escrita por Aloirmar José da Silva, traz uma apreciação crítica sobre a obra de Zygmunt Bauman, Retrotopia, uma abrangente reflexão sobre a condição humana no mundo atual, publicada pela Editora Zahar, em 2017.

Quanta ciência encerra esse número, caríssimo leitor, mas nossos esforços serão inúteis, se não contarmos com a sua leitura!

Marcos César Seneda
Conselho Editorial da Revista Educação e Filosofia

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