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Educação e Filosofia

versión impresa ISSN 0102-6801versión On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.33 no.69 Uberlândia set./dic 2019  Epub 06-Feb-2022

https://doi.org/10.14393/revedfil.v33n69a2019-58697 

Dossiê Perspectivas da Filosofia Intercultural

Apresentação

Antonio Florentino Neto* 
http://orcid.org/0000-0002-0304-8929

Lucas Nascimento Machado** 
http://orcid.org/0000-0002-7578-4183

*Doutor em Filosofia pela Freie Universität Berlin. Pesquisador do GEBC-Unicamp e Professor Colaborador do Programa de Doutorado em Ciências Sociais da Unicamp - área Brasil China. E-mail: aneto@unicamp.br

**Doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo - USP. Email: lucasmachado47@gmail.com


Apresentação

Não há mais como pensar as questões filosóficas fundamentais, e o modo com que elas afetam a nossa compreensão do nosso mundo, de seus problemas e de seus dilemas, sem pensar a filosofia para além de uma visão eurocêntrica e colonialista da mesma. É com essa perspectiva em mente que esse dossiê foi feito, visando mostrar como uma abordagem intercultural na filosofia é fundamental para se refletir sobre questões fundamentais da atualidade, tais como a relação entre tradição e modernidade na China contemporânea (questão discutida pelos artigos de Florentino, Monteiro e Xiaodong); e o papel da transdisciplinariedade na constituição de uma concepção de conhecimento e de um ensino do mesmo que fujam à hiperespecialização e fragmentação modernas (que é discutido pelo artigo de Gibbs). Além disso, o dossiê também conta com artigos que mostram como fazer filosofia interculturalmente não significa negar o papel, a relevância ou a complexidade da filosofia “ocidental” e de suas ramificações; pelo contrário, significa tanto entender bem onde tradições não-ocidentais de filosofia, como as da Escola de Kyoto, têm uma relação central e indispensável com alguns dos principais pilares da filosofia “ocidental” (tal como mostra o artigo de Zavala), como também compreender o quanto a própria filosofía ocidental deve ser estudada e compreendida em toda a sua complexidade e profundidade, a fim de que se possa de fato não apenas pensar contra ela, onde ela se mostra “monológica”, mas também reconhecer o quanto ela é em si mesma plural, complexa e diversa, contendo tensões e dissidências em si mesma que permitem pensar, com ela, para além dela (algo para que o artigo de Müller é de especial importância, ao expor de maneira detalhada e cuidadosa o modo com que Hegel simultáneamente adere e crítica ao mesmo tempo o projeto político moderno de fundar a sociedade na vontade livre humana). Tendo essa visão geral da proposta deste dossiê em mente, torna-se pertinente agora esmiuçar mais detalhadamente a contribuição individual de cada artigo para esta coletânea.

Em seu artigo, “Atomic Individual and Relational Individual: The Bases of the Formation of Subjectivity in the West and China”, Antônio Florentino Neto propõe que, para poder compreender em que medida seria possível à China, hoje, se modernizar, sem perder precisamente aquilo que a caracteriza cultural e historicamente, seria necessário, em primeiro lugar, retornar aos fundamentos lógicos e ontológicos das tradições filosóficas ocidentais e orientais. Para tanto, propõe uma comparação da lógica aristotélica, baseada no conceito de substância, a qual, por isso mesmo, Florentino chama de lógica predicativa, com as lógicas de Nagarjuna e Laozi, as quais, precisamente por negarem o conceito de substância e afirmarem a relacionalidade de todas as coisas, Florentino chama de lógica relacional. Desse modo, o autor espera poder mostrar, por meio de um exercício de filosofia comparada, como há mais de um conceito de indivíduo e de individualidade, e que ignorar como o conceito de indivíduo na China, que é de um indivíduo relacional, se distingue do conceito de indivíduo ocidental, que é de um indivíduo atômico, seria nos cegarmos para o que há de próprio e particular não apenas na filosofia chinesa, mas sim, concretamente, na sua própria cultura e no modo com que os indivíduos existem nela, tornando impossível, portanto, discutir apropriadamente a questão sobre a modernização da China, seus limites e possibilidades.

Já em “Temas aristotélicos en La determinación autoperceptiva de la Nada (1932), de Nishida Kitarô, Agustin Jacinto Zavala explora um tema pouco discutido entre os estudiosos do filosófo japonês fundador da Escola de Kyoto, Nishida Kitarô: sua relação com a filosofía aristotélica, em particular na relação que ela teria com conceitos centrais de Nishida como a expressão, a autoexpressão, a base do conhecimento e o aspético noético da intuição. Tal trabalho se mostra de grande relevância, pois a ênfase costumariamente dada ao pano de fundo e às influências zen budistas da filosofía de Nishida podem levar-nos a esquecer que Nishida não é simplesmente um “filósofo japonês”, muito menos um “filósofo budista”, mas sim e sobretudo um filósofo intercultural par excellence. Assim, para poder bem compreender o seu pensamento, não basta conhecermos os seus referenciais budistas ou asiáticos, mas é preciso considerar o papel que não apenas Aristóteles, mas também outros filósofos gregos e ocidentais como Platão, Kant, Hegel, todos discutidos por Zavala em seu texto, desempenham na constituição de conceitos centrais da filosofía de Nishida e no modo com que ele concebe a “determinação noemática do si-mesmo que, não sendo nada, vê”. No que Zavala ainda nos lembra - no que poderia servir de uma interessante porta de entrada para um diálogo com o texto anterior ao seu - que para Nishida, Aristóteles confunde o “si-mesmo” com o “individuo” - e, por isso, não chega a uma apreensão correta do que seja o si-mesmo e do que seja a “determinação noemática do si-mesmo que, não sendo nada, vê”.

Em seguida, em seu artigo “Ética e subjetividade no Budismo chinês contemporâneo”, Joaquim Monteiro defende que, para que se possa pensar a questão da subjetividade e o papel que ela desempenharia ou poderia desempenha na China contemporânea e no debate acerca da relação entre tradição e modernidade nesta, seria necessário recuperar as influências do budismo chinês, em particular em sua vertente Yogacara, nas correntes do Neo e do Novo Confucionismo. No espírito dessa proposta, Monteiro faz uma exposição de como, já no Dao de Jing, haveria o germe de uma concepção de subjetividade na filosofia chinesa, germe, porém, que só se desenvolveria plenamente com a entrada do budismo na China e que teria uma de suas formas mais bem acabadas e sistemáticas no Budismo Yogacara, o qual, por mais que se tenha afirmado ter sumido da China precisamente por não se “conformar bem ao modo de pensar chinês”, seria, justamente a forma de budismo que estaria tendo mais influência na modernidade chinesa e nos debates que lhe são pertinentes. Nesse sentido, é digno de nota que Monteiro aponta que a escola Yogacara, apesar de ser uma das escolas de budismo que, com as suas teorias sobre a consciência, mais se aproxima de uma teoria e de um conceito de subjetividade ocidentais - talvez por isso, justamente, sendo tão influente atualmente na questão da relação entre tradição e modernidade na China -, ainda assim, sua concepção de subjetividade se afastaria da concepção ocidental em elementos fundamentais. De fato, a escola Yogacara defenderia, diferentemente da concepção de subjetividade cartesiana expressa pelo cogito ergo sum, não uma concepção unitária, mas sim plural de subjetividade, ao mesmo tempo em que colocaria radicalmente em questão a suposta autoevidência que tal mente ou consciência unitária teria e o valor de verdade dessa autoevidência. Desse modo, o artigo de Monteiro não apenas se mostra como um exercício em filosofia intercultural digno de nota, uma vez que não apenas se compara tradições ocidentais e asiáticas, mas também tradições asiáticas entre si, no que diz respeito à questão da subjetividade, mas também continua o diálogo, começado com o artigo de Florentino, sobre o quanto as tradições culturais e filosóficas chinesas se aproximariam ou se afastariam das tradições culturais e filosóficas ocidentais, e o quanto essa relação de distância e proximidade é fundamental para se pensar a China hoje.

Em “The Chinese Model and Chinese Wisdom of Modernization”, Li Xiaodong defende que o modelo de modernização e revolução chinesas não podem ser pensados nem pura e simplesmente pelo modelo capitalista americano e nem pelo modelo comunista soviético, mas sim, segundo o autor, tem de ser pensado como uma espécie de síntese entre ambos, seguindo o princípio confuciano da “doutrina do meio”. Assim, defende que o Confucionismo, com o seu princípio da doutrina do meio, seria compatível não apenas com o socialismo científico, mas também com a preservação de elementos fundamentais da cultura e do pensamento chineses, inclusive de tradições distintas da do Confucionismo, como o Taoísmo e o Legalismo. É isso que, a seu ver, faria da China contemporânea um modelo de socialismo bem sucedido, uma vez que, tal como ele defende, tal socialismo seria capaz de incorporar elementos do capitalismo em sua economia e sociedade sem perder a essência a direção do socialismo científico e do marxismo.

O artigo de Marcos Müller, por sua vez, “Liberdade e eticidade: o diagnóstico crítico da modernidade política em Hegel”, ocupa um lugar particular nessa coletânea. Isso porque, à primeira vista, não se trata, propriamente, de um trabalho em filosofia intercultural. No entanto, ao discutir a perspectiva de Hegel sobre a modernidade e a crítica imanente que ele realiza da mesma, Müller fornece uma compreensão rigorosa do que constitui a modernidade política e filosófica que é discutida, criticada e problematizada nos trabalhos anteriores desta coletânea. Mais do que isso: seu trabalho também aponta para o fato fundamental de que, mesmo dentro daquilo que se considera como o “pensamento ocidental”, e, mais ainda, do que se toma tipicamente como sendo o pensamento ocidental hegemônico ou como a expressão mais consumada do mesmo - ou seja, a filosofia hegeliana -, ainda há algo que nos permite pensar os limites da modernidade - ou de certa concepção dela - e para além dela. Assim, Müller mostra como já na sua distinção e separação de sociedade civil e Estado Hegel opera uma crítica central da modernidade política em seus moldes contratualistas, ao modo de Locke, Hobbes, Rousseau e mesmo de Kant e Fichte. Mais do que isso, Müller nos mostra também como, por trás dessa crítica, se encontra uma concepção de liberdade e de vontade que, embora ainda coloque a vontade e a liberdade individual como princípios da sociedade moderna, critica duramente a concepção atomista desse indivíduo (que estaria por trás das concepções contratualistas de sociedade). Assim, para Hegel, o próprio indivíduo, com suas liberdades e direitos individuais, só pode existir no interior de uma estrutura que tenha como seu fundamento último (e primeiro) a eticidade, o Estado, unicamente no qual a vontade verdadeiramente livre pode realmente se realizar. Vontade verdadeiramente livre que não é nem uma vontade puramente negativa desprovida de objeto, a liberdade meramente negativa, nem a vontade do arbítrio individual que visa, portanto, apenas à sua própria particularidade e aos seus interesses particulares, mas sim a vontade que quer a si mesma e à liberdade e que, portanto, só é verdadeiramente livre quando quer a liberdade de todos os indivíduos. Liberdade que não pode se concretizar, portanto, em uma sociedade de indivíduos atomizados, onde o direito privado seja o fundamento último a que tudo tem de ser remetido, mas sim em uma sociedade de indivíduos éticos, onde, embora o direito privado seja uma condição necessária e tenha de existir, não é ele que tem a palavra última, mas sim a eticidade, de modo que a demanda para que todos os indivíduos sejam livres tenha sempre a última palavra. Assim, se a filosofia de Hegel certamente é uma filosofia da modernidade, e se ela, por diversos motivos, pode ainda não escapar inteiramente a todas as críticas que são feitas a seu projeto de modernidade e à sua concepção de indivíduo, o artigo de Müller nos lembra que o próprio Hegel e a própria modernidade tem muito mais matizes e tensões do que se pode inicialmente imaginar, de modo que se torna possível - e mesmo necessário - pensar com ela para pensar para além dela.

O artigo de Paul Gibbs, “The paths and the ways: an insight into transdisciplinarity”, fecha a coletânea com uma importante observação: a de que a filosofia não apenas deve ser pensada inter ou transculturalmente, mas também deve contribuir para a constituição de um pensamento transcultural. Nesse sentido, a sua reflexão sobre a relação entre Heidegger, Lao Tsé e o confuciano Zisi, mostrando como cada um destes concebe a relação do ser humano com o Ser ou com o Caminho (o Tao) e como suas concepções distintas de existência autêntica se aproximam e se afastam entre si, aponta para como a reflexão intercultural em filosofia ou a reflexão sobre a interculturalidade da filosofia deve levar necessariamente a uma discussão sobre a transdisciplinariedade dos saberes e, por conseguinte, a uma reforma e a uma reformulação da maneira com que concebemos o ensino e o aprendizado em nossas instituições de ensino. Assim, Gibbs propõe que, no espírito de Heidegger, Lao Tsé e Zisi, o conhecimento não seja concebido como um conhecimento meramente técnico e especializado, que justificaria, assim, a disciplinariedade de seu ensino, e que o professor não seja concebido como um mero técnico do saber, cuja função seria simplesmente a de transmitir aquilo que ele sabe; antes, é preciso recuperar o papel transformativo que a filosofia tem na filosofia chinesa e tinha igualmente na filosofia grega, e pensar o ensino como uma atividade que abre aquele que aprende ao mundo, à totalidade de sua existência e a outras possibilidades de ser e de se compreender no mundo.

Por fim, Dilip Loundo, em seu artigo, “Razão (jñāna) e Devoção (bhakti) no Advaita Vedānta: Madhusūdana Sarasvatī (séc. XVI) e o Bhagavad Gītā”, faz uma exposição, riquíssima em detalhes e extremamente sistemática e rigorosa, da interpretação proposta por Madhusūdana Sarasvatī, filósofo do séc. XVI, representante da escola Advaita Vedānta, “[Escola da] Não-Dualidade”, da Bhagavad Gītā, um dos maiores clássicos literários, religiosos e filosóficos da tradição hindu. Em sua exposição, Loundo visa a nos mostrar como Sarasvatī pretende conciliar as práticas devocionais da bhakti - termo que, segundo Loundo, seria melhor traduzido como “participação”, e não como “devoção” - com o “exercício radical de reflexão racional (jñāna)”, cerne dos ensinamentos do filósofo fundador da escola Advaita Vedānta, Śaṅkarācārya. Nesse esforço de conciliação de duas metodologias aparentemente em oposição radical uma à outra, Madhusūdana proporá uma interpretação da Bhagavad Gītā na qual não há oposição entre as diferentes metodologias empregadas para a realização da realidade última e não-dual, a saber, entre karma yoga (o caminho “ético”), bhakti (o caminho “devocional”) e jñāna (o caminho “gnóstico”), estando cada uma delas integrada às outras e mesmo abrindo o caminho para que as outras possam ser efetivamente praticadas. Para além disso, Madhusūdana proporá ainda, de maneira mais instigante, dada a sua pertença à escola Advaita Vedānta, que a bhakti não seria apenas uma prática que poderia abrir caminho para a realização “gnóstica” da realidade última, mas que teria de ser abandonada uma vez atingida essa meta (por seu caráter supostamente “dual”), no entanto, permaneceria sempre um elemento constitutivo da própria realização gnóstica do Absoluto, sem perder o seu caráter próprio como bhakti. Assim, ao expor a instigante interpretação da Bhagavad Gītā proposta por esse astuto representante da escola Advaita Vedānta, Loundo deixa clara a importância de superar velhos dogmas e preconceitos sobre as supostas rígidas e dicotômicas distinções que se haveria admitido entre a jñāna, por um lado, como um conhecimento não-dual da realidade, e a bhakti, por outro, como uma prática necessariamente dual. Muito pelo contrário, a exposição de Loundo mostra como uma bhakti não-dual - entendida, precisamente, como participação, e não como devoção - não apenas seria inteiramente concebível, mas poderia mesmo ser compreendida como um elemento indispensável do conhecimento pleno da realidade não-dual e absoluta que estaria na base do ensinamento de Śaṅkarācārya.

Com isso, a presente coletânea mostra, de maneira exemplar, a relevância da filosofia intercultural não apenas para pensar e repensar questões filosóficas fundamentais, mas também para se pensar, em sua articulação com tais questões filosóficas, questões extremamente atuais e relevantes para o mundo atual e para os seus dilemas. Isso, como os próprios artigos sugerem, só poderia ser feito de maneira manca e deficiente, se não questionássemos os pressupostos eurocêntricos, coloniais e imperialistas que se encontram por trás de toda reflexão filosófica que se recuse a reconhecer a relevância do pensamento do outro, e, assim, permitir que ele transforme ao nosso próprio pensamento, a nós mesmos, à nossa relação com o mundo e à própria relação com o outro.

Antonio Florentino Neto
Lucas Nascimento Machado

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