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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.33 no.69 Uberlândia set./dez 2019  Epub 06-Fev-2022

https://doi.org/10.14393/revedfil.v33n69a2019-56386 

Dossiê Perspectivas da Filosofia Intercultural

Ética e subjetividade no Budismo chinês contemporâneo

Ethics and subjectivity in contemporary Chinese Buddhism

Ética y subjetividad en el budismo chino contemporáneo

*Doutor em Filosofia Budista pela Universidade de Komazawa. Vínculo institucional atual: E-mail: yasudarijin55@gmail.com


Resumo

O presente artigo procura pensar as questões da ética e da subjetividade no contexto do pensamento budista na China contemporânea. Ele parte de uma genealogia do conceito de subjetividade conforme desenvolvido através do debate entre a escola Yogacãra do Budismo indiano e o Novo Confucionismo. Ao mesmo tempo, aponta para as possíveis implicações deste conceito de subjetividade em sua relação com as questões éticas presentes na China contemporânea.

Palavras-chave: Ética; Subjetividade; Escola Yogacãra do Budismo indiano; Novo Confucionismo

Abstract

This article tries to think the matters of ethics and subjectivity in the context of Buddhist thought in contemporary China. It has its starting point in an analysis of the concept of subjectivity as developed in the debate between the Yogacãra school of indian Buddhism and the New Confucianism. At the same time, it points to the possible implications of this concept of subjectivity for the ethical matters in contemporary chinese society.

Keywords: Ethics; Subjectivity; Yogacãra school of indian Buddhism; New Confucianism

Resumen

Este artículo busca reflexionar sobre cuestiones de ética y subjetividad en el contexto del pensamiento budista en la China contemporánea. Comienza con una genealogía del concepto de subjetividad desarrollado a través del debate entre la escuela Yogacara del budismo indio y el nuevo confucianismo. Al mismo tiempo, señala las posibles implicaciones de este concepto de subjetividad en su relación con los problemas éticos presentes en la China contemporánea.

Palabras clave: Ética; Subjetividad; Escuela de yogacara del budismo indio; Nuevo confucianismo

O presente trabalho tem por sua pretensão situar as temáticas da ética e da subjetividade no Budismo chinês contemporâneo. Neste sentido, ele tem por sua premissa a necessidade de situar o pensamento budista em sua relação com o contexto histórico da China atual e com o papel por ele desempenhado no contexto da história da filosofia chinesa. Assim sendo, torna-se importante elucidar as seguintes questões.

Uma questão inicial de caráter decisivo consiste em pensar as mudanças que a China atravessa no presente momento, assim como os fatores que determinam e influenciam estas mudanças. A este respeito, é importante assinalar que ainda não existe em nosso país uma vertente de estudos e de pesquisas que se mostre capaz de corresponder de forma satisfatória a esta indagação. É possível dizer que ainda existem duas visões dominantes a respeito dessas transformações atravessadas pela China no momento, sendo que nenhuma delas parece possuir a capacidade de produzir um conhecimento rigoroso sobre seu objeto. A primeira delas é a visão neoliberal que avalia de forma positiva a aceitação por parte da China da economia de mercado, mas que critica ao mesmo tempo uma suposta indisposição do estado chinês em aceitar as instituições democráticas. Não nos parece que esta vertente de compreensão tenha produzido algum conhecimento de rigor capaz de explicar a atual situação da sociedade chinesa, mas ela parte de uma premissa duvidosa e jamais demonstrada: a existência de uma relação necessária entre a economia de mercado e a democracia. Caso esta premissa seja analisada com um mínimo de rigor é possível dizer claramente que a economia de mercado já prosperou nas mais sanguinárias ditaduras militares da América Latina. É possível mesmo dizer que no presente momento histórico existe um antagonismo essencial entre a economia de mercado e a democracia. Neste sentido, não nos parece que a análise neoliberal seja capaz de elucidar as tendências presentes nas atuais mudanças da sociedade chinesa. A segunda consiste em uma visão que pensa a atual sociedade chinesa em termos de uma continuidade essencial com o período maoísta (a tese dos assim chamados “maoístas saudosistas”). No entanto, como tudo parece apontar para uma ruptura histórica essencial entre a presente situação chinesa e o período maoísta, não nos parece que esta visão possua capacidade de explicar os fatores que influenciam de forma decisiva as atuais mudanças na sociedade chinesa. Estas mudanças apresentam aspectos bastante diversificados que se estendem da tecnologia e da economia até a ideologia, a filosofia e a cultura, não sendo nossa pretensão elucidar a totalidade desses fatores. Nossa pretensão aqui é bem mais modesta: ela consiste em pensar as questões filosóficas presentes na sociedade chinesa em sua relação concreta com o atual processo de mudanças. A análise desta questão inclui dois aspectos principais: uma breve consideração a respeito do papel desempenhado pelo pensamento marxista neste processo de transição e uma análise com maiores pretensões de rigor a respeito do renascimento do pensamento chinês tradicional, incluindo aí o Budismo em suas dimensões estritamente filosóficas.

É difícil avaliar o papel desempenhado pelo pensamento marxista na China atual, mas duas proposições parecem se aplicar a ele no momento atual: que existe uma clara descontinuidade entre seu presente papel e o papel por ele assumido no período maoísta e que ele atravessa uma crise em termos de sua função de legitimar o estado chinês. No que diz respeito a primeira proposição, existe na China atual uma grande diversidade de compreensões do pensamento marxista, sendo difícil se referir a ele como uma ortodoxia unificada. No que diz respeito à segunda proposição, existe certamente a necessidade de reconstruir o pensamento marxista através de uma superação crítica do período maoísta. Ou seja, não faz sentido algum falar em “socialismo com características chinesas” sem elucidar as questões teóricas do pensamento marxista em sua relação com a atual realidade chinesa. No entanto, tudo parece apontar para uma crise de legitimação do marxismo em sua função política e esta crise de legitimação parece estar apontando para um renascimento do pensamento chinês tradicional (K. MISRA, 1998). Assim sendo, a relação entre o pensamento marxista e o pensamento chinês tradicional, assim como a atual relação entre a tradição e a modernidade em sua acepção mais ampla se tornam questões inescapáveis no atual contexto chinês.

Conforme é possível deduzir dos desenvolvimentos recentes da cena intelectual chinesa, o renascimento do pensamento chinês tradicional tem sido centrado no Confucionismo e no Novo Confucionismo. O Novo Confucionismo da modernidade chinesa e o Neo Confucionismo que o precedeu são pensamentos centrados nas questões da ética, da subjetividade e da política. No entanto, como o conceito de subjetividade presente nesses pensamentos se desenvolveu claramente em função da mediação proporcionada pelo pensamento budista se torna inescapável uma análise do papel desempenhado pelo Budismo no contexto do desenvolvimento da história da filosofia chinesa. No entanto, conforme pode ser claramente deduzido de uma análise da maioria das obras dedicadas á história da filosofia chinesa é difícil pensar que a questão do papel desempenhado pelo Budismo nesta história já tenha passado por um esclarecimento satisfatório. O mesmo pode ser dito a respeito do papel desempenhado pelo Budismo na articulação do conceito de subjetividade no Neo Confucionismo e no Novo Confucionismo. As dificuldades presentes neste processo de elucidação do papel desempenhado pelo pensamento budista na história da filosofia chinesa podem ser devidamente elucidadas através de uma breve análise da obra “Uma visão contemporânea da filosofia chinesa” do Professor Lí Ri Zhãng (Li Ri ZHÃNG, 1997). Nesta obra, o autor inicia suas considerações sobre as características gerais da filosofia chinesa apontando para fatores como seus objetivos, metodologia, expressão e conteúdo, mas as considerações a respeito dos objetivos e da metodologia possuem um vínculo essencial com a presente análise (Li Ri ZHÃNG, 1997, p. 1, 6). No que diz respeito aos objetivos, ele aponta para um contraste essencial entre a filosofia ocidental e a filosofia chinesa. Ou seja, em contraste com uma filosofia ocidental preocupada com a ordem da natureza e com as ciências, a filosofia chinesa teria por seus objetivos a reforma da existência humana e a reconstrução da sociedade. Em que pese a bem reconhecida preocupação do pensamento chinês com as questões práticas, essa asserção me parece enganosa e dificulta a explicação da relação entre a filosofia e o desenvolvimento das ciências na China. No que diz respeito à metodologia, em contraste com a ênfase colocada pela filosofia ocidental na análise e na lógica, ele aponta para a centralidade da intuição na filosofia chinesa. No entanto, esta asserção também parece possuir um caráter bastante problemático. Ou seja, não só permanece aí o problema da dificuldade de explicar a relação entre este método intuitivo e o desenvolvimento das ciências na China, como também existe uma forte dimensão analítica no pensamento budista indiano que influenciou fortemente o pensamento chinês. Depois de elucidar seus pressupostos essenciais na elucidação da história da filosofia chinesa, o autor procede a uma descrição histórica do pensamento chinês de Confúcio e Laozi até o Neo Confucionismo, passando evidentemente pelo pensamento budista. No entanto, sua descrição do pensamento budista não analisa de forma suficiente as diferenças teóricas existentes entre o pensamento budista indiano (em especial, o pensamento da escola Yogacãra) e o pensamento budista chinês centrado nas escolas Tientai, Hua-Yen e Chãn. O resultado destas considerações é por um lado uma avaliação positiva destas escolas em função de se constituírem em um “Budismo com características chinesas” (Li Ri ZHÃNG, 1997, p. 1, 6) e uma postura negativa em relação à escola Yogacãra do Budismo indiano em função da ausência destas mesmas características. O mais curioso é que ele repete o chavão tradicional que explica o desaparecimento desta escola na China em função de sua suposta incompatibilidade com a “mentalidade chinesa” (Li Ri ZHÃNG, 1997, p. 1, 6) ignorando não só o fato de que ela conquistou uma indiscutível hegemonia no cenário intelectual do Budismo na modernidade chinesa, como também que ela exerceu um papel central e fundamental na formação do conceito de subjetividade no Novo Confucionismo a partir do século XX. Ou seja, sua análise se mostra muito pouco consistente tanto em termos da dimensão conceitual e filosófica quanto em termos da descrição histórica concreta. A mesma fraqueza se mostra também visível em sua análise da relação entre o pensamento budista e a formação do conceito de “mente” ou de subjetividade no Neo Confucionismo de Wang Yang Ming (1472-1529). Caso esta temática seja pensada em termos históricos, a relação com o Chãn se torna em uma questão inescapável, mas o autor introduz de forma súbita e sem maiores explicações os conceitos da escola Yogacãra sem justificar em momento algum esta conexão (Li Ri ZHÃNG, 1997, p. 1, 6). Assim sendo, podemos concluir que existem pelo menos duas questões fundamentais na análise do papel desempenhado pelo pensamento budista na história da filosofia chinesa. A primeira delas é a análise da estrutura teórica e a teoria da consciência no pensamento budista (e, em especial na escola Yogacãra), a segunda é o papel desempenhado pelo pensamento budista na formação do conceito de subjetividade no Neo Confucionismo e no Novo Confucionismo.

Em função do acima, pretendemos desenvolver na seção seguinte uma breve análise do pensamento tradicional chinês e da forma como ele estruturou o conceito de subjetividade através da influência budista.

A gênese do conceito de subjetividade no pensamento chinês tradicional

A presente seção pretende trabalhar com a gênese de pelo menos um esboço do conceito de subjetividade no pensamento chinês tradicional. No presente caso, esta interrogação será desenvolvida através de duas etapas fundamentais. A primeira delas se constituirá em uma breve consideração a respeito da subjetividade no Dao Dé Jing, o clássico mais importante do Daoismo. A segunda consistirá em outra consideração de um caráter bastante breve a respeito da forma com que este possível conceito de subjetividade teria se desenvolvido a partir da influência do pensamento budista.

Quando procuramos refletir a respeito de uma possível gênese do conceito de subjetividade no pensamento chinês tradicional, talvez seja importante analisar a literatura tanto do Confucionismo quanto a do Daoismo. No entanto, como o discurso Confucionista mais antigo é essencialmente centrado nas questões da ética e da política, talvez seja mais difícil discutir conceitos como o de subjetividade neste contexto. Em um claro contraste com isso, talvez não seja exagero dizer que as questões da metafísica no pensamento chinês têm sua origem no Dao Dé Jing, o que pode nos autorizar a desenvolver uma análise nele centrada. Quando procuramos desenvolver esta consideração a partir do Dao Dé Jing, a estrutura temática desta obra pode nos passar a impressão de não possuir vínculo algum com a temática da subjetividade. Ou seja, na medida em que sua concepção de mundo é completamente centrada na ação não intencional do próprio Dao, esta obra parece se situar nas antípodas de qualquer conceito de subjetividade. Esta questão pode ser devidamente equacionada através da análise de uma tradução bastante livre do Capítulo inicial desta obra:

O curso que pode ser percorrido não é o curso constante, o nome que pode ser enunciado não é o nome constante. O inominado é o início do Céu e da Terra, o que tem nome é a mãe das dez mil existências.

Em função disto, o nada constante aspira contemplar os prodígios, o ser constante aspira contemplar o orifício. São ambos nomes distintos que emanam do mesmo, o mesmo é chamado de mistério, o mistério ainda é o mistério, o portal de todos os prodígios (Laozi, 2002, p. 28).

O trecho acima aponta de início para uma realidade inefável na medida em que se refere a um curso que não pode ser percorrido e a um nome que não pode ser enunciado. No entanto, ao mesmo tempo em que ele fala do inominado como o início do Céu e da Terra, ele se refere àquilo que tem nome como a mãe das dez mil existências. Como o termo “dez mil existências” é um número simbólico que aponta para a totalidade das coisas existentes, é possível pensar aqui na totalidade dessas coisas existentes como uma expressão do próprio curso. Todos os parágrafos posteriores parecem apontar para uma relação entre o curso e sua expressão como duas realidades distintas, mas ao mesmo tempo inseparáveis. Talvez não seja um exagero falar aqui do curso como a “substância” e das dez mil existências como a “função” no contexto do conceito de “substância-função” no pensamento chinês tradicional. Certamente, as considerações acima possuem um caráter essencialmente preliminar, mas é certo que este Capítulo inicial se limita a falar do curso e de sua expressão sem fazer referência alguma à realidade humana. Neste sentido, não existe nada neste Capítulo que aponte para uma possível relação com o conceito de subjetividade. Caso a totalidade do pensamento do Dao Dé Jing se limitasse ao conteúdo de seu Capítulo inicial seria possível deixar completamente de lado qualquer relação com o conceito de subjetividade. No entanto, uma análise detida do segundo Capítulo desta obra talvez possa mostrar que a questão é um pouco mais complexa:

Quando todos sabem abaixo dos Céus o que constitui o belo enquanto belo, temos aí o mal. Quando todos sabem o que constitui o bem enquanto bem, temos aí o não bem.

Em função disto, a existência e a não existência surgem mutuamente, o difícil e o fácil se tornam mutuamente, o longo e o curto se comparam mutuamente, o som e a voz se harmonizam mutuamente e o anterior e o posterior se seguem mutuamente.

Em função disto, o Sábio concretiza os eventos sem intenção, exerce o ensinamento sem palavras, as dez mil existências se expressam sem dicção. Elas surgem sem se tornarem uma existência, agem sem se apoiarem, se realizam sem permanecer e por não permanecerem não se extinguem (Laozi, 2002, p. 30).

Este Capítulo parece se iniciar com uma referência ao surgimento de um senso comum social que pretende definir a essência de conceitos como o belo e o bem. No primeiro trecho aparece um interessante contraste entre o belo entendido como um conceito estético e o mal como um conceito de natureza ética (é perfeitamente possível que o contraste entre estética e ética não faça sentido algum no contexto do pensamento do Dao Dé Jing). Aparece em seguida um trecho em que é colocado o contraste entre o bem e o não bem. Certamente, esses trechos iniciais precisam se tornar objeto de uma análise mais aprofundada e mais consistente, mas existe aí algo que pode ser situado de forma clara e inequívoca: o surgimento deste consenso a respeito da essência do belo e do bom implica em uma ação essencialmente humana que não expressa o curso do Dao. Certamente, não existe aí uma referência à subjetividade individual, mas é certo que esse consenso possui um caráter essencialmente humano. Assim sendo, na medida em que este mesmo consenso expressa uma realidade problemática que contrasta a forma de ser usual do ser humano com o curso do Dao, é possível deduzir daí uma Antropologia negativa que compreende a condição humana comum como algo que volta as costas para o Dao. O contraste entre opostos que aparece no trecho seguinte parece apontar ao mesmo tempo para um contraste essencial e para a interdependência entre esses mesmos opostos, mas não aparenta possuir uma relação com nossa presente interrogação. No entanto, a referência à postura do Sábio que concretiza os eventos sem intenção e que exerce o ensinamento sem palavras parece apontar para o outro polo da Antropologia do Dao Dé Jing: uma forma de ser do ser humano que renuncia a sua intencionalidade e que se torna no lugar da ação do Dao. Certamente não é possível falar aqui de subjetividade ou de consciência no sentido comum do termo, mas existe uma clara indicação dos dois polos da Antropologia do Dao Dé Jing. Vamos citar aqui o terceiro Capítulo da mesma obra no sentido de desenvolver um pouco mais a presente análise:

Quando não são venerados os eruditos, o povo não entra em conflito, é por não serem cobiçados bens difíceis de serem conseguidos que o povo não se dá ao roubo, e é por não mostrar aquilo que provoca desejo que a mente do povo não fica sujeita á perturbação.

É por causa disto que a política dos Sábios esvazia o coração, fortalece as entranhas, enfraquece a vontade e fortalece os ossos. É por permanecer constantemente em uma condição sem conhecimento e sem desejo que não se permite que os sabichões ousem agir. A atividade da não atividade não deixa nada sem governo (Laozi, 2002, p. 32).

O presente Capítulo parece pressupor uma estrutura bem mais complexa que os anteriores, mas a distinção entre os Sábios, os eruditos e os sabichões parece acrescentar alguns detalhes a esta Antropologia do Dao Dé Jing. Esta é certamente uma questão complexa e importante a ser retomada com rigor em um futuro trabalho, mas não possui uma relação direta com os objetivos da presente investigação. No entanto, acredito ser possível afirmar o seguinte a respeito de suas implicações para a Antropologia do pensamento Daoista: as duas direções da condição humana conforme pressupostas por sua estrutura de pensamento são desenvolvidas em sua relação com a realidade social. Falando concretamente, na primeira parte do Capítulo a forma de ser do ser humano centrada em sua intencionalidade e que volta as costas para o Dao é associada com fenômenos sociais como o conflito, o roubo e uma condição coletiva de perturbação mental. Em um claro contraste com isso, a forma de ser do ser humano que renuncia à sua intencionalidade através da atividade não intencional do próprio Dao é associada com uma sociedade harmoniosa em que nada fica sem governo. Neste sentido, é possível concluir que o pensamento do Dao Dé Jing tem por seu centro a concepção de um curso constante que não pode ser percorrido (substância) e a expressão deste curso enquanto as “dez mil existências” (função). No entanto, este pensamento também inclui uma Antropologia negativa em que a forma de ser do ser humano centrada na ação intencional é considerada uma violação à ação do próprio Dao, sendo que a superação desta condição só pode se dar através da atividade não intencional e espontânea do Dao. Neste sentido, não é possível pensar aqui em uma teoria da subjetividade em seu sentido estrito, mas existe certamente uma compreensão da condição humana em sua relação com o Dao. Nossa questão seguinte consiste em desenvolver uma breve consideração a respeito da forma como esta concepção da condição humana foi desenvolvida através da influência do pensamento budista, se encaminhando por fim em direção a uma teoria da subjetividade no sentido pleno deste termo no Neo Confucionismo da Wang Yang Ming.

A questão de como este conceito da subjetividade se desenvolveu no pensamento chinês através do encontro com a concepção da condição humana no Daoismo e a teoria da mente ou da consciência no pensamento budista é extremamente complexa, mas acredito ser possível e oportuno desenvolver aqui alguns breves comentários a respeito do processo de interação entre o Budismo e a cultura chinesa. Este encontro instaura uma curiosa dialética que apresenta pelo menos dois aspectos importantes. O primeiro deles é a curiosa relação dialética que acaba por se estabelecer entre duas tendências essencialmente opostas. Ou seja, entre uma tendência a uma radical significação do Budismo que se desenvolve das escolas Tientai e Hua-Yen até o surgimento do Chãn e uma tendência a um retorno às fontes normativas do Budismo indiano conforme pode ser visto nas traduções de Xuan Zhang (596-664). Curiosamente, é a segunda tendência que não só vai dominar a perspectiva intelectual do Budismo na modernidade chinesa, como que também vai influenciar o Novo Confucionismo a partir do final do século XIX. O segundo vai implicar na curiosa relação dialética estabelecida entre o pensamento budista, o Neo Confucionismo e o Novo Confucionismo que vão surgir deste processo de interação. O Neo Confucionismo irá surgir dominantemente a partir do Chãn e o Novo Confucionismo a partir do encontro entre o Confucionismo e a escola Yogacãra do Budismo indiano, mas este encontro vai instaurar uma dialética sem síntese em meio ao pensamento chinês. A principal razão disto é que ao mesmo tempo em que o surgimento do conceito de subjetividade no pensamento Neo Confucionista e no Novo Confucionismo dependeu no essencial do encontro com o pensamento budista, mas a partir do momento em que este confronto é instaurado ele pressupõe duas posições filosóficas bem fundamentadas e isto impossibilita o surgimento de uma síntese final entre suas posições. Neste sentido, uma análise rigorosa da atual situação do pensamento chinês tradicional pressupõe ao mesmo tempo uma relação profunda e essencial entre essas duas correntes de pensamento e um conflito entre elas que não pode admitir uma síntese final. É neste sentido que é possível dizer que o surgimento do Neo Confucionismo e do Novo Confucionismo instaura uma dialética sem síntese em meio ao pensamento chinês tradicional. O segundo ponto, a que pretendemos nos referir apenas de passagem, é a importância do conceito budista das “Duas Verdades” no processo de formação da noção de subjetividade no pensamento chinês. O desenvolvimento deste conceito em meio à história da filosofia budista chinesa admite três momentos essenciais, a saber:

O primeiro momento, representado pelo pensamento do Abhidharma e pelos Mestres da escola do Satya-siddhi é representado pelo conceito das “Duas Verdades com base no princípio”. Neste caso, além de se pressupor a importância central dos dharmas da mente e das funções mentais, as “Duas Verdades” são compreendidas essencialmente como asserções de verdade de caráter linguístico que pressupõe uma relação lógica mutuamente exclusiva. Evidentemente, esta concepção se situa nas antípodas do pensamento chinês tradicional conforme representado pelo Dao Dé Jing.

O segundo momento, representado pela compreensão chinesa da escola Madhyamaka pressupõe um conceito das “Duas Verdades centradas no ensinamento”. Neste caso, pode existir uma distinção convencional entre as “Duas Verdades”, no entanto seu conteúdo teórico é nivelado na medida em que essas verdades são compreendidas como “Meios hábeis” que conduzem seres sensíveis com diferentes capacidades à realização de um “princípio” inefável e para além da palavra e do conceito. É desnecessário dizer que esta modalidade de compreensão é bem mais próxima ao ponto de vista do pensamento chinês tradicional. No entanto. Mesmo pressupondo esta semelhança, existe nesta escola uma curiosa contradição que a distancia até mesmo da concepção da condição humana presente no Dao Dé Jing: a quase completa ausência de uma análise da mente e das funções mentais esvazia por completo a temática da subjetividade.

O terceiro momento é representado pelo “Tratado do Despertar Da Fé do Mahayana” (Da Chéng Qy Xin Lún) e pela escolástica budista tardia por ele representada. Nesta obra, a estrutura das “Duas Verdades” pressupõe o conceito de uma “Mente uma com dois portais”. Ou seja, trata-se aqui de uma mente uma entendida como a “Mente dos seres sensíveis” que possui dois aspectos. O primeiro deles é não nascido e não sujeito à extinção e independente dos Kleshas ou fatores de continuidade do Sansara. Neste caso, este primeiro aspecto é identificado com a “Verdade última”. O segundo é a mente sujeita ao surgimento e extinção e marcada pela presença dos Kleshas ou fatores de continuidade do Sansara. Este segundo aspecto é identificado com a “Verdade mundana”. Como neste caso a “Verdade mundana” emana da “Verdade última” e a ela retorna no processo de extinção do Sansara, a estrutura desta versão da teoria das “Duas Verdades” expressa e desenvolve a concepção da condição humana do Dao Dé Jing na direção de uma teoria da subjetividade. Ou seja, a “Verdade última” neste contexto se assemelha ao Dao inefável e a “Verdade mundana” às “dez mil existências”. No entanto, como esta mesma estrutura de pensamento está centrada no conceito de uma “Mente uma com dois portais” ela explicita concretamente um conceito de subjetividade que estava apenas implícito na concepção da condição humana no Dao Dé Jing. É possível dizer que a estrutura da subjetividade no Budismo chinês tradicional se consolidou através de uma escolástica centrada no “Tratado do Despertar da Fé do Mahayana” e que esta modalidade de compreensão se manteve hegemônica até o final do século XIX. No entanto, a reintrodução da escola Yogacãra do Budismo indiano do final do século XIX até a primeira metade do século XX vai reverter de forma decisiva esta situação. Ou seja, ela vai apresentar uma crítica radical a este modelo de pensamento centrado no “Tratado do Despertar da Fé do Mahayana” e se consolidar como uma influência decisiva no Novo Confucionismo do século XX. Esta questão será tratada com detalhe na próxima seção deste artigo.

O renascimento do pensamento budista na modernidade chinesa

A reintrodução da literatura da escola Yogacãra do Budismo indiano, assim como o estudo e a reflexão dela derivada se constitui como o mais importante fator no renascimento do pensamento budista que se dá a partir do final do século XIX. A compreensão deste fator exige uma abordagem que inclua uma descrição de seu processo histórico e uma avaliação de seu sentido teórico e intelectual. O processo de descrição histórica possui diversas facetas complexas, mas é bastante simples em suas linhas gerais. Ou seja, ele pode ser reduzido em suas linhas gerais ao processo que se estende da reintrodução da literatura desta escola a partir do Japão no final do século XIX até a formação da “Escola chinesa de estudos internos” durante a “Renascença chinesa” das décadas de 20 e de 30 do século XX. (J. MONTEIRO, 2015, p. 123, 131). No que diz respeito à avaliação do conteúdo teórico ou filosófico desta escola existe um interessante paradoxo: a decadência e o eventual desaparecimento desta escola na história do pensamento chinês é explicada com frequência em termos de sua suposta incompatibilidade com a mentalidade chinesa. No entanto, é extremamente curioso que ela tenha assumido uma forte hegemonia intelectual precisamente no momento em que a China inicia a formulação de sua própria versão da modernidade. Talvez seja mesmo possível afirmar que é precisamente o rigor teórico e analítico desta escola que a tornou apta a pensar as temáticas teóricas da modernidade e é perfeitamente possível também pensar que esta capacidade deriva precisamente de seu distanciamento em relação à mentalidade de senso comum. E é também muito curioso que ela, mesmo possuindo uma estrutura bastante diversa do pensamento chinês tradicional, tenha se constituído em uma forte influência na formação do Novo Confucionismo. Assim sendo, é perfeitamente possível pensar que esta escola tenha contribuído para formular um conceito de subjetividade capaz de estabelecer uma mediação entre a tradição e a modernidade.

Tendo elucidado os pontos acima, vamos adentrar em seguida em uma breve consideração do conteúdo teórico desta escola. A estrutura básica de seu pensamento pressupõe a existência de um sistema de oito consciências que se constitui como a base comum do Sansara e da extinção do Sansara. Quando estas consciências funcionam em sua forma corriqueira impulsionada pela ignorância, elas se constituem na base do Sansara, quando elas são transmutadas através da sabedoria, se tornam na base da extinção do Sansara. Assim sendo, esta teoria das oito consciências implica essencialmente em uma conversão cognitiva em que a ignorância é transmutada em sabedoria. Ao mesmo tempo, este sistema das oito consciências é dividido em dois subsistemas, ou seja, em um subsistema da sétima e da oitava consciências que trabalha com as dimensões não sensoriais da consciência e em outro subsistema de seis consciências que trabalha com a dimensão sensorial da consciência. Caso esta estrutura de pensamento seja elucidada em termos dos “30 versos sobre a pura consciência” de Vasubandhu, é possível iniciar nossa análise com o Verso inicial desta obra:

Sendo o ãtman e os dharmas existências puramente nominais, existem aí diversas modalidades de transformação (da consciência) e tudo se produz em função dessas transformações. No que se refere à atividade dessas transformações, existem apenas três (Cheng Weíshilún, 1975, p. 271).

A estrutura do pensamento deste Verso inicial implica em um nítido contraste entre o caráter puramente nominal do ãtman e dos dharmas e a realidade das três transformações do fluxo de consciência que constitui a totalidade da experiência possível. O segundo Verso aponta para uma breve definição dessas três transformações: “Elas se intitulam a consciência da retribuição cármica, a consciência calculadora e a consciência que identifica os seus objetos”. A primeira que é a “oitava consciência” se constitui na totalidade das sementes da retribuição cármica. (Cheng Weíshilún, 1975, p. 274). As três transformações acima descritas podem ser relacionadas com as oito consciências. Ou seja, a primeira transformação pode ser identificada com a “oitava consciência”, a segunda transformação com a “sétima consciência” e a terceira transformação com o sistema das seis consciências como um todo. Este Verso é concluído com uma breve definição da “oitava consciência” como a totalidade das sementes cármicas. Os dois Versos seguintes desenvolvem uma análise mais detida da “oitava consciência”:

Sendo um apego incognoscível, suas distinções estão sempre associadas ao contato, à atenção, à sensação, à distinção e à volição sendo equânime em relação a elas (Cheng Weíshilún, 1975, p. 271).

Sendo neutra e não conducente à perturbação, são assim também o contato e os demais dharmas. Ela se transforma como uma correnteza violenta e só é abandonada na condição de Arahat (Cheng Weíshilún, 1975, p. 271).

O terceiro Verso pode ser resumido em dois aspectos. O primeiro deles é a definição da “oitava consciência” como um apego incognoscível. Esta definição diz respeito à forma corriqueira de ser desta consciência quando se torna objeto da “sétima consciência” passando a se constituir como a sede do “apego inerente”. O segundo é a relação entre a “oitava consciência” e as funções mentais que estão presentes em todo e qualquer instante de consciência. O quarto Verso resume duas características da “oitava consciência”. A primeira delas é o seu caráter neutro, na medida em que inclui em seu interior tanto sementes mundanas quanto supramundanas. Ou seja, ela só se torna a causa indireta do Sansara enquanto permanece como objeto de uma falsa apreensão por parte da “sétima consciência”. Ao mesmo tempo, na medida em que na realização da condição de Arahat desaparece sua característica de objeto do apego, ela só perde seu nome e não sua realidade enquanto fluxo de consciência.

Os três Versos seguintes descrevem o conteúdo da “sétima consciência”, ou seja, da “segunda transformação”:

Temos em seguida a terceira transformação, a da consciência denominada Manas. Ela se transforma apoiada naquela outra consciência (“oitava consciência”) e a toma por seu objeto. Sua característica e sua natureza é o pensamento calculador (Cheng Weíshilún, 1975, p. 271).

Ela é sempre acompanhada das quatro paixões que são a ignorância do ãtman, a visão do ãtman, o orgulho do ãtman e o amor ao ãtman. Ela também é acompanhada pelo contato e pelas demais funções (Cheng Weíshilún, 1975, p. 271).

Ela é classificada como neutra e conducente à perturbação. Ela não existe na condição de Arahat, no Samadhi da extinção e no caminho supramundano (Cheng Weíshilún, 1975, p. 271).

Os três Versos acima apresentam aspectos diferentes da “sétima consciência”. O quinto Verso descreve o processo através do qual a “sétima consciência” se desenvolve tomando a “oitava consciência” por seu objeto de apego, assim como sua característica central enquanto pensamento calculador. Estas são sem dúvida alguma as determinações mais fundamentais deste conceito da “segunda transformação” ou da “sétima consciência” O ponto central do sexto Verso implica na relação essencial existente entre a “sétima consciência” e as quatro paixões inerentes, isto é, paixões que embora possam ser extinguidas são inerentes à própria consciência, não derivando do falso discernimento nem da estruturação linguística. Existe aí também uma referência à sua relação com as funções gerais, ou funções presentes em todo e qualquer instante de consciência. Por fim, o sétimo Verso discute a relação da “sétima consciência” com o processo da continuidade e da extinção do Sansara. A “sétima consciência” é definida aqui como neutra na medida em que pode se constituir tanto como a causa direta da continuidade do Sansara quanto de sua extinção. Ou seja, em seu funcionamento normal ela capta falsamente a “oitava consciência” como um ãtman, a ele se apega e dá origem à dimensão mais profunda do Sansara. Ao mesmo tempo, quando ela é transmutada pela sabedoria correta ela abandona este “apego inerente” à “oitava consciência” como um ãtman, ativa as sementes supramundanas desta mesma consciência dando origem ao processo de extinção do Sansara. Que ela não exista na condição de Arahat, no Samadhi da extinção e no caminho supramundano significa que ela perde seu nome de consciência do apego e não que ela desapareça enquanto tal. Os sete Versos acima descritos analisam o subsistema da sétima e da oitava consciências responsável pelo aspecto não sensorial da consciência.

O subsistema das seis consciências responsável pelo aspecto da consciência associado aos sentidos é descrito da seguinte forma no oitavo Verso: “Vem em seguida a terceira transformação. Ela possui seis modalidades distintas e tem por sua natureza e por sua característica a identificação de seu objeto. Em sua totalidade não é benéfica nem maléfica” (Cheng Weíshilún, 1975, p. 271). Este último Verso descreve de forma bastante sucinta a “terceira transformação”, que corresponde ao subsistema das seis consciências. Esse subsistema consiste nas cinco consciências sensoriais e em uma sexta consciência que articula linguisticamente os dados sensoriais em um todo coerente. Esse sistema não é benéfico nem maléfico, pois tanto a origem quanto a extinção do Sansara em sua dimensão mais profunda derivam do subsistema da sétima e da oitava consciências.

A descrição acima do sistema das oito consciências e de sua relação com a continuidade e com a extinção do Sansara é evidentemente esquemático e insuficiente. No entanto, ele talvez seja suficiente para se constituir na base de uma explicação das diferenças essenciais do pensamento da escola Yogacãra do Budismo indiano em relação ao pensamento chinês tradicional conforme representado principalmente pelo Dao Dé Jing. Acredito ser possível apontar para pelo menos duas diferenças de caráter essencial. A primeira consiste no fato de que na medida em que este pensamento é completamente centrado nas oito consciências entendidas como a totalidade da experiência possível e de sua eventual transmutação, ele não possui nenhum equivalente à realidade inefável do Dao como um fator gerador das “dez mil existências”. É verdade que existe no sistema Yogacãra o conceito de “Tathãta” que pode ser considerado como uma realidade inefável, mas mesmo aqui existe uma diferença de caráter decisivo: o “Tathãta” conforme entendido por esta escola não exerce qualquer atividade e não produz nenhuma realidade equivalente às “dez mil existências”. O debate entre a escola Yogacãra e o Budismo chinês tradicional centrado no “Tratado do Despertar da Fé do Mahayana” aponta claramente para esta questão. O conceito de “Tathãta” conforme entendido por este Tratado implica em um processo de emanação dos dharmas condicionados e contaminados a partir do aspecto não condicionado da “Mente una” e é precisamente por isso que este pensamento foi duramente criticado pelos expoentes da escola Yogacãra na China moderna. A segunda diferença é que na medida em que o pensamento da escola Yogacãra é completamente centrado na análise da consciência e de seus processos, ele aponta diretamente para um conceito próximo ao de subjetividade conforme entendido pela filosofia moderna. E esta é a principal razão que nos leva a pensar que esta formulação pode fornecer uma mediação entre o pensamento moderno e o pensamento chinês tradicional. Este tópico será o objeto da análise da próxima seção deste artigo.

O problema da subjetividade no pensamento Yogacãra

Conforme já foi apontado através das considerações acima, a escola Yogacãra do Budismo indiano possui a capacidade de articular um conceito semelhante, mas não idêntico ao conceito de subjetividade conforme presente na moderna filosofia ocidental. Ao mesmo tempo, este conceito parece possuir a capacidade de superar a oposição binária entre tradição e modernidade. No entanto, não é suficiente apontar para esta possibilidade, é fundamental explicitar as razões que nos levam a pensar desta forma. Assim sendo, parece-nos que o essencial da questão pode ser indicado através dos pontos abaixo.

O ponto de partida do conceito de subjetividade na filosofia moderna deriva da distinção entre “res cogitans” e “res extensa” no pensamento de Descartes (1596-1650). Neste contexto, o cogito, considerado como uma instância auto evidente, é pensado como uma entidade unitária e oposta aos objetos. Embora a filosofia moderna tenha desenvolvido formas bastante sofisticadas de compreensão da subjetividade posteriormente a Descartes, o modelo cartesiano serviu de base à formação do “esquema sujeito-objeto” que dominou a maior parte da filosofia na modernidade.

A concepção das seis consciências na escola Sarvãstivãda pressupõe uma distinção entre os “dharmas da forma” e os “dharmas da mente”, que fundamenta um ponto de vista que não dá margem para nenhuma modalidade de fisicalismo. No entanto, existem aí algumas diferenças de base em relação ao “esquema sujeito-objeto” que domina a maior parte da filosofia moderna. As seis consciências são explicadas no contexto desta tradição através do conceito das “dezoito esferas”, ou seja, das seis bases, dos seis objetos e das seis consciências. Ou seja, cada uma destas consciências surge através do contato entre uma base e um objeto específicos. Uma consciência mental surge do contato entre a percepção interior e os instantes anteriores de consciência, uma consciência auditiva surge do contato entre uma base auditiva e um som e assim por diante. Esta estrutura de compreensão conduz a algumas consequências importantes. A primeira delas é que existe uma multiplicidade de consciências e não uma entidade unitária chamada de “consciência”. Este ponto de vista contrasta de forma contundente com a suposta unidade do cogito. A segunda é que na medida em que cada consciência só pode surgir em função do contato entre uma base e um objeto, não é possível postular um sujeito auto evidente em contraste com o objeto. A terceira é que mesmo supondo uma distinção essencial entre as cinco consciências associadas aos sentidos e uma sexta consciência puramente mental, esta última consciência é apenas uma das seis consciências e não uma entidade unitária que unifique a vida mental. O quarto é que esse conceito das “dezoito esferas” no pensamento Sarvãstivãda pressupõe um otimismo epistemológico que defende um acesso à realidade através da simultaneidade entre os instantes em que a base toca no objeto e o instante do surgimento da consciência. Existe por fim outra diferença de caráter decisivo entre esse conceito de “seis consciências” e o cogito cartesiano. Como a sexta consciência em sua forma mundana de funcionamento é dominada pela “ignorância” ou pelo falso discernimento, ela não compartilha em momento algum da autoevidência do cogito. Assim sendo, é possível concluir que mesmo supondo a oposição a todo reducionismo fisicalista, como uma característica comum entre a teoria Sarvãstivãda das “seis consciências” e o cogito cartesiano, o ponto de vista desta escola nega por completo a identidade e a auto evidência do cogito. Assim sendo, o ponto de vista que pressupõe um “sujeito” unitário e auto evidente em sua relação com o “objeto” contrasta de forma contundente com a teoria das “seis consciências” presente no Abhidharma da escola Sarvãstivãda.

O ponto de vista da escola Yogacãra se desenvolveu tendo por pano de fundo a perspectiva da escola Sarvãstivãda, mas também apresenta alguns contrastes em relação a ela. O primeiro ponto a ser levado aqui em consideração é que, na medida em que a escola Yogacãra pressupõe uma completa cisão entre o instante em que a base toca no objeto e o instante do surgimento da consciência, ela não só recusa o otimismo epistemológico da escola Sarvãstivãda, como também entende o real em termos da experiência da consciência. Ou seja, em sua perspectiva, o real consiste em uma série causal de instantes de consciência. Ao mesmo tempo, a escola Yogacãra reconstrói a teoria tradicional das “seis consciências” como uma teoria das “oito consciências” a partir deste ponto de vista. Esta teoria das “oito consciências” é ainda desmembrada em um sistema da sétima e da oitava consciências responsável pela elucidação do aspecto da consciência independente dos sentidos, e em um sistema das seis consciências que trabalha com as cinco consciências sensoriais, e a estruturação linguística do mundo se dá em função de uma sexta consciência especificamente postulada para este fim. Embora não nos seja possível explicar detalhadamente as implicações desta teoria dentro dos estreitos limites do presente trabalho, é possível postular aqui duas consequências importantes desta perspectiva filosófica. A primeira delas é que, na medida em que o real é definido como uma série causal de instantes de consciência, desaparece de uma forma ainda mais radical a possibilidade de postular um “sujeito” em contraste com os “objetos”, a segunda é que, na medida em que a auto evidência da auto consciência é pensada aqui como o produto de uma falsa apreensão da “oitava consciência” pela “sétima consciência”, o vínculo entre essa pretensa auto evidência da consciência e o falso discernimento é evidenciado de uma forma mais contundente.

Os esclarecimentos acima são evidentemente insuficientes no sentido de apontar para o potencial presente na escola Yogacãra em articular um conceito semelhante, mas não idêntico ao moderno conceito de subjetividade e de superar a oposição binária entre tradição e modernidade a partir deste conceito. No entanto, as considerações abaixo a respeito da relação entre o Budismo chinês, o pensamento chinês tradicional e a formação do Neo Confucionismo podem ajudar a clarificar esta questão a partir de uma perspectiva histórica.

O pensamento chinês tradicional, conforme presente no Daoismo e no Confucionismo, incluía elementos cosmológicos e éticos, mas não apresentava nenhuma concepção sistemática de temas como a mente, a consciência ou a subjetividade.

É possível falar de uma diferença essencial entre a introdução do Budismo na China e em outras regiões da Ásia. Na Ásia central e no Sudeste da Ásia a transmissão do Budismo coincide com a formação das civilizações locais, mas a China foi o único caso na história asiática da introdução do Budismo em uma civilização já plenamente consolidada a partir de suas próprias bases. Neste sentido, o encontro e o diálogo entre o Budismo e o pensamento chinês tradicional assume uma importância central na articulação das temáticas da história da filosofia chinesa.

Uma questão de importância central neste contexto é que a articulação das temáticas filosóficas da mente, da consciência e da subjetividade no pensamento chinês praticamente coincidem com a introdução do pensamento budista. Essa influência vai se dar em pelo menos dois momentos distintos, na Dinastia Ming através do Chãn e na modernidade através da escola Yogacãra. Esses dois momentos vão suscitar respostas de natureza bastante distinta por parte do pensamento Confucionista em suas diversas vertentes.

Na Dinastia Ming, o pensador Neo Confucionista central que vai articular uma ética a partir do ponto de vista da mente ou da subjetividade vai ser Wang Yang Ming. Seu pensamento apresenta uma forte contraposição ao Chãn, ao mesmo tempo em que tem nele um forte pano de fundo. Sua influência vai se estender por toda a Ásia oriental, permanecendo até a modernidade.

Na modernidade chinesa, a formulação de uma temática próxima à da subjetividade vai sofrer uma forte influência da escola Yogacãra do Budismo. Essa influência se inicia no final do século XIX, se consolida através da “Escola chinesa de estudos internos” durante a “Renascença chinesa” das décadas de 20 e de 30 do século XX e irá marcar fortemente o desenvolvimento do Novo Confucionismo na modernidade chinesa. Não se constitui em um exagero afirmar que o vínculo entre Budismo e Confucionismo vai se tornar bem mais próximo e bem mais estreito na modernidade.

Existe por fim a necessidade de avaliar o surgimento do Novo Confucionismo em sua relação com o Budismo. O debate entre o Novo Confucionismo e o Budismo na modernidade parece ter instaurado uma dialética sem síntese no pensamento chinês de um caráter mais agudo e mais contundente do que teria ocorrido em momentos históricos anteriores, tensão dialética esta que consiste em um debate entre duas posições bem fundamentadas e que não admite uma conclusão ou uma síntese de caráter final. A formulação desta dialética e a análise de seus desenvolvimentos parece se constituir na dinâmica que impulsiona um momento bastante desenvolvido da história da filosofia chinesa. Tendo elucidado em suas linhas gerais um conceito semelhante ao da subjetividade no moderno Budismo chinês, vamos procurar refletir a respeito de suas possíveis implicações éticas na China contemporânea. Este será o tópico de seção seguinte do presente trabalho.

A questão da ética no Budismo chinês contemporâneo

Existe uma clara diferença entre avaliar ou tentar deduzir os possíveis desenvolvimentos do pensamento budista na China contemporânea e procurar pensar os dilemas éticos que este pensamento possivelmente irá enfrentar no presente momento histórico. A razão disto é que uma dedução dos possíveis desenvolvimentos do pensamento budista na China atual se constitui em uma tarefa possível de ser desenvolvida no interior de uma análise histórica do Budismo chinês e de suas temáticas, enquanto que uma tentativa de pensar os possíveis dilemas éticos a serem confrontados na China atual se constitui em uma tarefa que pressupõe uma confrontação com a atual realidade social. As reflexões sobre o Budismo chinês neste último sentido estão apenas se iniciando, mas talvez seja possível apontar para a relevância dos tópicos seguintes.

A teoria da consciência ou da subjetividade na escola Yogacãra possui uma estrutura teórica bastante rigorosa, mas apresenta pelo menos uma diferença essencial em relação às tendências dominantes na filosofia acadêmica. Ela procede da mesma forma que as vertentes acadêmicas da filosofia na medida em que procura analisar com rigor seus objetos teóricos, mas seu objetivo final consiste em suscitar uma transmutação da consciência daquele que exerce a atividade filosófica. Na medida em que esta transmutação implica na superação da ignorância, do ódio e da cobiça, ela possui claramente uma dimensão ética.

A ética social do Budismo tradicional coloca uma forte ênfase no papel do estado na superação da injustiça econômica. Este aspecto talvez seja respaldado pelos atuais esforços do governo chinês em reduzir as disparidades econômicas, mas existem novos fatores na sociedade atual que podem exigir um esforço renovado de compreensão e de ação.

Não temos no presente momento informações suficientes a respeito da influência da “quarta revolução tecnológica” e de suas implicações para a sociedade chinesa e para o mundo do trabalho na China atual. No entanto, como esta influência já está se fazendo presente com vigor, ou pelo menos tende a fazê-lo em um futuro próximo, este processo irá suscitar questões bem mais complexas no que diz respeito à justiça econômica e aos processos de trabalho. Esta “quarta revolução tecnológica” possui uma forte vinculação com a informática, com a inteligência artificial, com a robótica e disciplinas afins e pode suscitar consequências bastante difíceis de serem previstas em um futuro próximo. Certamente, uma reflexão budista de caráter dogmático se mostraria impotente neste contexto, mas existe um aspecto do pensamento budista, e, em especial, da escola Yogacãra que pode desempenhar um papel importante neste contexto. Refiro-me aqui à clara distinção entre os dharmas da forma e os dharmas da mente, assim como a defesa de uma especificidade da condição humana que recusa sua total absorção nos processos cognitivos das ciências naturais. Neste sentido, a escola Yogacãra possui claramente a possibilidade de se constituir no fundamento de uma “filosofia do espírito” (M. GABRIEL, 2018) capaz de confrontar as implicações fisicalistas e naturalistas das “filosofias da mente”.

À guisa de conclusão, as temáticas do presente artigo podem ser sintetizadas em dois tópicos centrais. Ou seja, uma avaliação da possível influência da escola Yogacãra na China contemporânea e de sua relação com a articulação de um conceito semelhante, mas não idêntico ao de “subjetividade” na filosofia moderna, e uma proposição de um possível papel crítico a ser desempenhado por este conceito em relação aos dilemas éticos presentes nas tendências dominantes da “quarta revolução tecnológica”.

Conclusão

O presente artigo tem seu ponto de partida em uma breve análise das mudanças em curso na atual sociedade chinesa, com uma ênfase especial no renascimento do pensamento chinês tradicional. Ele se desenvolve através de uma interrogação a respeito da gênese do conceito de subjetividade no pensamento chinês desde a concepção da condição humana no Dao Dé Jing até o surgimento do Neo Confucionismo e do Novo Confucionismo no século XX. Neste processo é enfatizada a mediação promovida pela teoria da consciência da escola Yogacãra do Budismo indiano e dois aspectos centrais da interação entre o pensamento chinês tradicional e o Budismo. O primeiro consiste na relação dialética entre o processo de significação do Budismo e a forte tendência ao retorno às fontes normativas do Budismo indiano, o segundo consiste na relação entre o Budismo, o Neo Confucionismo e o Novo Confucionismo. Se pressupõe aqui que esta relação entre o Budismo e o Confucionismo instaura uma dialética sem síntese possível em meio ao pensamento chinês. Neste sentido, parece-nos importante pensar as consequências práticas desta dialética sem síntese no processo de formulação das questões éticas presentes na atual configuração histórica da sociedade chinesa.

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Recebido: 29 de Julho de 2020; Aceito: 21 de Outubro de 2020

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