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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.33 no.69 Uberlândia set./dez 2019  Epub 06-Fev-2022

https://doi.org/10.14393/revedfil.v33n69a2019-56404 

Dossiê Perspectivas da Filosofia Intercultural

Razão (jñāna) e Devoção (bhakti) no Advaita Vedānta: Madhusūdana Sarasvatī (séc. XVI) e o Bhagavad Gītā1

Reason (jñāna) and Devotion (bhakti) in Advaita Vedānta: Madhusūdana Sarasvatī (16th century) and the Bhagavad Gītā

Raison (jñāna) et Dévotion (bhakti) dans Advaita Vedānta: Madhusūdana Sarasvatī (XVIe siècle) et la Bhagavad Gītā

*Doutor em Filosofia Indiana pela Universidade de Mumbai (Índia). Professor do Departamento de Ciência da Religião da UFJF e Coordenador do Núcleo de Estudos em Religiões e Filosofias da Índia (NERFI-CNPq.) Email: loundo@hotmail.com


Resumo

O artigo tem por objetivo empreender a análise dos princípios constitutivos da práxis devocional (bhakti) proposta pelo Bhagavad Gītā, segundo a interpretação do filósofo Madhusūdana Sarasvatī (séc. XVI). Excelso representante do Advaita Vedānta (“[Escola da] Não-Dualidade”), Madhusūdana Sarasvatī buscou incorporar as práticas devocionais à epistemologia tradicional da escola, centrada num exercício radical de reflexão racional (jñāna), em sintonia com os ensinamentos do filósofo fundador Śaṅkarācārya (séc. VIII). Devoto inarredável de Kṛṣṇa, Madhusūdana Sarasvatī cumpriu sua tarefa filosófica em meio a uma interlocução fascinante com a escola Acintyabhedābheda Vedānta (“[Escola da] Não-diferença e da Diferença Inconcebíveis”), fundada por Caitanya Mahāprabhu (séc. XVI), de orientação predominantemente devocionalista vaiṣṇava.

Palavras-chave: Devoção; Bhakti; Madhusūdana Sarasvatī; Bhagavad Gītā; Vedānta

Abstract

The article aims to undertake the analysis of the constitutive principles of devotional praxis (bhakti) proposed by the Bhagavad Gītā, in accordance with philosopher Madhusūdana Sarasvatī’s (16th century) interpretation. A great representative of Advaita Vedānta (“[School of] Non-Duality”), Madhusūdana Sarasvatī sought to incorporate devotional practices into the school’s traditional epistemology, centered around a radical exercise of rational reflection (jñāna), in line with the teachings of philosopher and founder Śaṅkarācārya (8th century). A great devotee of Kṛṣṇa, Madhusūdana Sarasvatī fulfilled his philosophical task in the midst of a fascinating dialogue with the school Acintyabhedābheda Vedānta (“[School of] Non-difference and Inconceivable Difference”), founded by Caitanya Mahāprabhu (16th century), of a predominant vaiṣṇava devotionalist orientation.

Key-words: Devotion; Bhakti; Madhusūdana Sarasvatī; Bhagavad Gītā; Vedānta

Résumé

L'article vise à entreprendre l'analyse des principes constitutifs de la praxis dévotionnelle (bhakti) proposée par le Bhagavad Gītā, selon l'interprétation du philosophe Madhusūdana Sarasvatī (XVIe siècle). Représentant notable d'Advaita Vedānta («[École de] non-dualité»), Madhusūdana Sarasvatī a cherché à incorporer les pratiques de dévotion dans l'épistémologie traditionnelle de son école, centrée sur un exercice radical de réflexion rationnelle (jñāna), conformément aux enseignements du philosophe fondateur Śaṅkarācārya (8ème siècle). Un ardent dévot de Kṛṣṇa, Madhusūdana Sarasvatī a accompli sa tâche philosophique au milieu d'un dialogue fascinant avec l'école Acintyabhedābheda Vedānta («[École de] la différence non-différence et inconcevable»), fondée par Caitanya Mahāprabhu (XVIe siècle), et dont l’ orientation est principalement dévotionnelle vaiṣṇava.

Mots clés: Dévotion; Bhakti; Madhusūdana Sarasvatī; Bhagavad Gītā; Vedānta

I

O Vaiṣṇavismo é uma das religiosidades mais vibrantes e plurais do subcontinente indiano. Consolidada em torno de Viṣṇu, divindade absoluta, personalidade suprema e fundamento último do Real, o Vaiṣṇavismo tem como fontes textuais mais importantes os Tantras, os Upaniṣads, os Purāṇas e os Épicos (itihāsa) do Ramāyana e do Mahābhārata. Encontra-se, neste último, a obra mais famosa do Vaiṣṇavismo e, quiçá, de toda a tradição do hinduísmo: o Bhagavad Gītā, diálogo da mais alta significância filosófica entre Kṛṣṇa, uma manifestação plena (avatāra) de Viṣṇu, e o guerreiro Arjuna, sobre o caráter não-dual (advaita) de toda a existência (Brahman), em sintonia com os ensinamentos dos textos sagrados dos Vedas e, mais especificamente, de sua dimensão mais profunda, os Upaniṣads ou vedānta2. Concomitantemente, o Bhagavad Gītā sustenta, de forma singular, uma pedagogia da transformação calcada no exercício gradual da ação desinteressada (karma yoga), que tem como condição de efetivação a participação ou devoção plena (bhakti) pela divindade suprema de Kṛṣṇa/Viṣṇu. A propedêutica da participação/devoção envolve a postulação de quatro categorias de devotos (bhakta) que constituem outros tantos níveis de encaminhamento gradual de um projeto espiritual que culmina na realização da unicidade em Viṣṇu.

O Bhagavad Gītā constitui uma textualidade que vai muito além do sentido geralmente atribuído a essa palavra no Ocidente. Textualidade significa aqui um contexto pedagógico de transmissão do conhecimento que envolve diálogo entre mestres e discípulos, cuja designação depende do cumprimento de requisitos. Trata-se, fundamentalmente, de um texto-força, i.e., um texto imbuído de uma capacidade, de um poder intrínseco de transformar o leitor/buscador. A prova definitiva de sua “verdade” é, no limite, uma questão de eficácia existencial metalinguística. Com efeito, o locus de reconciliação de sua discursividade multifacetada é um ser transformado, alguém que vai definitivamente além do sofrimento, que extirpa definitivamente a causa de toda a ignorância e que, assim, alcança mokṣa (Iluminação) ou preman (Realização amorosa em Viṣṇu/Kṛṣṇa).

A teleologia metalinguística confere à pluralidade de variantes hermenêuticas em que se desdobra a tradição do Bhagavad Gītā um sentido de doutrinas instrumentais ao invés de narrativas metafísicas no sentido ocidental. Trata-se de adequações pedagógicas, i.e., caminhos alternativos existencialmente ajustados à pluralidade das formas de alienação e sofrimento humanos, que tendem, não obstante tensões e conflitos e diferenças doutrinárias que vão de um “monismo” a um “dualismo” e de um o “dualismo” a um “pluralismo realista”, vaiṣṇavas e não-vaiṣṇavas, a uma co-existência respeitosa tanto diacrônica quanto sincronicamente. Portanto, ao invés de uma externalidade ao texto-semente sagrado, as tradições comentariais, escritas e orais, refletem a pluralidade de encaminhamentos exegéticos e hermenêuticos que visam ao que poderíamos designar por realização existencial do texto ou, para usar uma expressão de H. G. Gadamer, “aplicações hermenêuticas” do texto (GADAMER, 2006, p. 306-36). Não há margem, neste horizonte, para a dissociação ocidental entre o território da “explicação verdadeira” - a ortodoxia - e o território das dissidências heréticas - a heterodoxia.

Em síntese, o Bhagavad Gītā é muito mais do que um mero texto. Sua seminalidade envolve tradições autoritativas e específicas de ensinamento (sampradāya) que se estruturam na forma de articulações dialógicas e transmissões de conhecimento fundadas na oralidade da relação entre mestres sapientes e discípulos aptos (guru-śisya-paramparā). Sua legitimidade ou, mais especificamente, a legitimidade de suas variantes hermenêuticas não se encontra numa mera autoria gloriosa do passado, mas na verificação sempre contemporânea de sua eficácia, através da aplicação existencial de seus métodos.

II

O contexto vaiṣṇava do Bhagavad Gītā está intimamente associado à personalidade de Kṛṣṇa, tradicionalmente tido como um avatāra de Viṣṇu. A palavra avatāra denota, literalmente, o processo de “descenso” ou “travessia descencional” do transcendente e absoluto Viṣṇu e sua consequente manifestação individualizada, aqui e agora, enquanto imanência e relacionalidade face à realidade empírica imediata. Portanto, ao invés de um deus menor (deva) - i.e., um ente divino dotado de uma jurisdição individual fixa -, o avatāra constitui uma forma personalizada, corporificada, ou existencializada do Absoluto, para quem todas as funcionalidades são potencialmente pertinentes e a quem nenhuma delas esgota. A forma específica dessa personificação varia grandemente, aí se incluindo formas não-humanas, humanas e intermediárias. A tradição vaiṣṇava faz referência reiterada a uma lista de dez principais avatāras, que se sucedem ao longo de um ciclo de manifestação do cosmos, num contexto temporal de criações e dissoluções infinitas. Nessa lista, Kṛṣṇa aparece como o nono e mais recente avatāra, a ser sucedido pelo décimo e último avatāra Kalki, responsável pelo encerramento do ciclo de manifestação cósmica. Os dez principais avatāra são os seguintes: (i) Matsya (peixe); (ii) Kūrma (cágado); Varāha (javali); Narasiṃha (meio homem-meio leão); Vāmana (anão); Paraśurāma (nobre brâmane); Rāma (rei e herói do épico Ramāyāna); Balarāma (irmão de Kṛṣṇa), Kṛṣṇa e Kalki.3

O primeiro princípio que rege a manifestação de um avatāra é o princípio da completude ou plena ciência de sua condição última enquanto universalidade e transpessoalidade. Em outras palavras, o avatāra é uma personalização plenamente consciente da Verdade e, como tal, uma expressão inata do desprendimento enquanto condição máxima de proximidade, responsabilidade e compaixão para com todos os entes. O princípio da completude de um avatāra transcende e, ao mesmo tempo, incorpora o princípio de perfeição moral. Com efeito, o avatāra não é um ente (submetido à regra) moral: ao invés, ele é fonte do qual emana a própria moralidade e, mais especificamente, a pluralidade de suas configurações enquanto adequação à pluralidade das formas do sofrimento e da alienação humanas. As narrativas de Kṛṣṇa são um exemplo vibrante dessa confluência entre completude e metamoralidade: símbolo máximo do amor filial, o infante Kṛṣṇa é tanto o pequeno herói que destrói os demônios do mal quanto a criança travessa que furta coalhada da cozinha de sua mãe; símbolo máximo do amor universal que preenche integralmente o coração das jovens pastoras, ele é o amante secreto (parakīya) que dá sentido e establidade à vida marital das amadas; símbolo máximo da reconciliação socio-cósmica, Kṛṣṇa é tanto o diplomata pacifista quanto o transgressor dos protocolos bélicos visando assegurar a vitória das forças do bem.

O segundo princípio que rege a manifestação de um avatāra é o princípio da adequação ou de enquadramento contextual de sua ação no mundo. A adequação contextual é condição sine qua non de sua eficácia cósmico-existencial e revela-se através de um ajuste situacional de seus ensinamentos aos diferentes graus de alienação e sofrimento dos entes. Nasce daqui a dupla dimensão que caracteriza a ação profilática do avatāra: (i) uma funcionalidade geral que se manifesta enquanto abrangência comunitária ou civilizacional; (ii) e uma funcionalidade iniciática, que se manifesta enquanto abrangência existencial individualizada. Em outras palavras, o avatāra é, simultaneamente, o mestre das comunidades e o mestre de cada um dos entes. As duas dimensões são processualmente distintas, mas encontram-se organicamente interligadas através de uma dinâmica de evolução amplificadora, onde a primeira dimensão constitui, por assim, dizer, uma introdução indispensável à segunda, e a segunda o nível de aprofundamento último da primeira. No plano institucional, essas duas dimensões correspondem ao que denomino de Nível 1 e Nível 2 das religiosidades. O primeiro é caracterizado pela primazia da moralidade, da ritualística e da doutrina (dogma) (dharma) e buscar empreender uma purgação - que fica aquém da supressão - dos elementos de interesse egocentrado; ao passo que o segundo trata de eliminar o caráter ativo, interessado, do próprio ego submetendo-o integralmente aos desígnios do Absoluto manifestado (avatāra), que promove a superação definitiva da ignorância e do sofrimento existenciais (moksa).

A vida de Kṛṣṇa dá testemunho exuberante dessa dupla funcionalidade do avatāra. A função profilática de Nível 1 está comprometida com a revitalização e a preservação da moralidade e dos bons costumes4 e sua expressão concreta é a intervenção decisiva de Kṛṣṇa na guerra do Mahābhārata, de forma a assegurar a vitória dos primos Pāṇḍavas: o que está em causa é a sobrevivência da comunidade enquanto plataforma para o exercício do drama da existência. A função profilática de Nível 2 está comprometida com o ensinamento secreto - i.e., o ensinamento que exige o cumprimento de pré-requisitos - sobre o fundamento último da toda ação: a ação correta enquanto transcendência das boas ou más ações, e o exercício da ação desinteressada ou desapegada.5 Sua expressão concreta é o diálogo instrucional entre o Kṛṣṇa, o mestre, e o Arjuna, se discípulo, que constitui a essência da narrativa do Bhagavad Gītā. Há, portanto, que distinguir a guerra enquanto evento de realização dos objetivos de Nível 1; e a guerra enquanto contexto muito especial que desperta no guerreiro Arjuna - e somente nele - a perplexidade que atesta o cumprimento dos pré-requisitos necessários e que apela à intervenção soteriológica de Kṛṣṇa visando à realização dos objetivos de Nível 2. Em outras palavras, se o Mahābhārata, como um todo, tem por objetivo veicular o protagonismo de Kṛṣṇa enquanto restaurador do dharma comunitário, o Bhagavad Gītā, em particular, tem por objetivo veicular o protagonismo de Kṛṣṇa enquanto mestre iniciático de Arjuna, que visa encaminhá-lo à realização última de mokṣa, i.e., à superação definitiva do sofrimento, aqui e agora, nesta vida. O termo que designa esta transformação radical é jīvanmukti, lit. “Iluminação em vida”; e o indivíduo que a alcança é designado jīvanmukta, lit. “Iluminado em vida”.

III

Considerando o acima exposto, podemos afirmar que a vitalidade sagrada do Bhagavad Gītā envolve, a instauração de um momento de ruptura existencial, que define um antes e um depois, e cujo diferencial está marcado por um diálogo reflexivo radical sobre a existencialidade sofredora de Arjuna, tendo como mestre orientador do processo o avatāra Krisna.

O momento de reflexão que instaura o diálogo do Bhagavad Gītā entre Kṛṣṇa e Arjuna abunda em simbolismo. Ainda que analiticamente distinto da ação guerreira propriamente dita, ele se instaura como concomitância substantiva dessa mesma ação. Em outras palavras, trata-se de uma reflexão que se dá no interior mesmo da própria ação: ao invés de apontar para um não-fazer, ela projeta uma mudança qualitativa dentro desse mesmo fazer. A liminaridade em que trafega o sentido maior do Bhagavad Gītā, urdida na interseção entre constituir, por um lado, subseção do Mahābhārata, narrativa épica comprometida com o dharma e, por outro, narrativa de transição intrinsecamente comprometida com mokṣa, sugere que a distinção entre ambas as demandas existenciais envolvidas não se funda, essencialmente, numa diferença de objetos de relação, mas numa diferença de qualidade dessa mesma relação. Em outras palavras, moksa representa, no horizonte do Bhagavad Gītā, o sentido profundo de todo o dharma, i.e, o sentido profundo de toda a ação humana. A passagem de um para outro não se dá através de uma substituição formal de ações, e.g., através da passagem substitutiva da ação cotidiana para a meditação reflexiva, ou ainda da passagem substitutiva deste para um outro mundo. A transição em tela instaura o exercício imperativo da meditação reflexiva sobre a própria ação cotidiana, visando à transmutação do dharma enquanto ação interessada (kāmyakarma) - representada pela expectativa de aquisição privativa de objetos atinentes à sexualidade, à riqueza, ao poder, e a uma vida futura (paradisíaca) - para o dharma enquanto ação desinteressada (naiskāmyakarma) que resulta de descentramento do ego e sua subordinação plena à consciência totalizante da realidade imanente-transcendente de Kṛṣṇa (LOUNDO, 2015, p. 69-70).

A transformação proposta pelo Bhagavad Gītā não constitui, portanto, um deslocamento deste para outro mundo, mas um deslocamento de uma forma de estar no mundo, marcada pelo sofrimento (atual ou postergado), para uma outra forma de estar no mundo, marcada pela beatitude (ānanda) e pela equanimidade. Os elementos operacionais envolvidos nessa transformação instauram uma resignificação de sentido no interior de toda e qualquer ação existencial, caminho inverso de sua negação. Por isso mesmo, o contexto bélico que informa o diálogo entre Kṛṣṇa e Arjuna não constitui uma mera alegoria. Tão pouco constitui o próprio diálogo um movimento de interiorização autoreferente: o horizonte de mokṣa que o informa reclama uma condição de articulação totalizante da experiência humana onde nada daquilo que a constitui pode ser excluído. A situação de guerra vivenciada por Arjuna é emblemática de uma situação concreta radical que promove o sofrimento extremo - a angústia enquanto sofrimento do eu pelo próprio eu. Tal predisposição existencial é a porta que permite a assimilação eficaz das palavras de sabedoria de Kṛṣṇa. (LOUNDO, 2015, p. 70-1).

Essa proposta cognitiva consubstancia-se, então, numa disciplina soteriológica rigorosa: a palavra-chave que a define e que constitui o âmago dos ensinamentos do Bhagavad Gītā é bhakti. Geralmente traduzida por “devoção”, a palavra bhakti deriva da raiz sânscrita bhaj que significa literalmente “participação” “compartilhamento”. Trata-se, por isso, de algo maior do que uma mera disposição emocional prenhe de uma esperança passiva de recebimento de uma graça divina de caráter unívoco. Ao invés, trata-se de uma pedagogia complexa e difícil que combina, de forma articulada, os dois vetores operacionais acima mencionados, que se desdobram aqui nas seguintes dimensões: (i) uma reflexão cognitiva enquanto inquirição sobre a verdadeira natureza da alma (ātmajñāna); (ii) e uma renúncia gradual aos objetos de apego (karmaphalatyāga). O ponto de convergência e reconciliação destinal dessas duas subdisciplinas dá-se como rendição e participação amorosa (preman) do ente na suprema consciência de Kṛṣṇa (LOUNDO, 2015, p. 71).

A convergência territorial entre dharma e mokṣa não suprime, entretanto, a distinção entre ambas. Com efeito, a instrumentalização da ação cotidiana na senda de mokṣa ajusta-se, integralmente, aos requisitos qualitativos da tradição védico-upaniṣádica. Se o caminho do dharma visa, por um lado, ao cumprimento de ações e deveres cotidianos por parte de um agente interessado que aspira à fruição subsequente de seus resultados, o caminho na direção de mokṣa visa ao cumprimento dessas mesmas ações e deveres por esse mesmo agente (originariamente) interessado, mas que se dispõe, subsequentemente, no ato da retribuição dos frutos, a renunciar a eles e a convertê-los em oferendas a Kṛṣṇa (karmaphalatyāga). A reiteração sistemática dessa renúncia/ofertório constitui o cerne da pedagogia do descentramento visando à supressão do próprio agente interessado (naiṣkāmyakarma) e à participação plena na consciência amorosa de Kṛṣṇa (preman).

A liminaridade entre dharma e moksa que, como vimos acima, é, teleologicamente, uma dimensão recorrente das soteriologias indianas, consagra-se, processualmente, no Bhagavad Gītā como uma pedagogia do desinteressamento nas ações cotidianas, de transformação atitudinal no mundo que é, por isso mesmo, o território de reconciliação da transcendência e da imanência. Em outras palavras, não é apenas no evento último de realização que se (re-)abraça o mundo do cotidiano: os próprios métodos também o abraçam. Assim sendo, a expressão karmaphalatyāga possui, no Bhagavad Gītā, um sentido muito técnico e que lhe é eminentemente singular de processo sistemático de renúncia e ofertório (a Kṛṣṇa) dos frutos que resultam das próprias vivências cotidianas do dharma (LOUNDO, 2015, p. 75).

O caminho de bhakti do Bhagavad Gītā está, portanto, longe constituir um caminho fácil ou, até mesmo, de feição “popular” (HABERMAN 2001, p. 61-5). Fundado na teologia/teleologia da unicidade super-pessoal de Kṛṣṇa, bhakti instaura uma disciplina que visa promover uma transmutação qualitativa na ação cotidiana: a passagem da mundanidade à sacralidade através da eliminação gradativa das expectativas de retribuição egocentradas. Feita de renúncia e ofertório, a disciplina do desinteressamento amoroso (bhakti) constitui uma tarefa altamente árdua e dolorosa, em nada inferior aos rigores de uma vida monástica: a persecução de um desabituar de intencionalidades no interior do próprio hábito. Isso requer a adesão e o cumprimento de votos (dikṣā): preparação e treinamento disciplinares intensos e sistemáticos, e a supervisão orientadora de um aparato pedagógico mestre-discípulo, que se faz aqui presente de forma territorialmente dispersa e com menor visibilidade. Portanto, e sem descurar a articulação orgânica com dimensões populares e comunitárias, típicas do Nível 1 das religiosidades orais e escritas, o vaiṣṇavismo/kṛṣṇaísmo do Bhagavad Gītā trata, fundamentalmente, de um encaminhamento soteriológico de caráter iniciático, i.e., de uma busca por mokṣa. Daí sua inserção tradicional no contexto da literatura dos Upaniṣads e sua designação específica de Gītopaniṣad (LOUNDO, 2015, p. 76).

IV

É num contexto vertical de evolução espiritual que envolve gradualidade de etapas e cumprimento de requisitos que se situa a postulação no Bhagavad Gītā de quatro categorias de devotos (bhakta), constitutivas de outros tantos níveis de encaminhamento de um projeto existencial que culmina na realização da unicidade em Viṣṇu/Kṛṣṇa. A demarcação clara e precisa desses diferentes níveis, suas especificidades, requisitos, e conteúdos atestadores de uma maior ou menor proximidade e intimidade com relação a Kṛṣṇa é apresentado no capítulo VII do Bhagavad Gītā, estrofes 16 a 19.

Para uma análise detalhada da propedêutica da devoção (bhakti) proposta pelo Bhagavad Gītā, recorro a Madhusūdana Sarasvatī (séc. XVI), representante da subescola do Vedānta conhecida como Advaita [Vedānta] (“[Escola da] Não-Dualidade Apenas”)6, e contemporâneo de outro grande mestre vedāntino, Caitanya Mahāprabhu (séc. XVI), fundador de uma outra subescola do Vedānta, de orientação vaiṣṇava, denominada Acintyabhedābheda (“[Escola da] Não-diferença e da Diferença Inconcebíveis”). Um grande devoto de Kṛṣṇa, Madhusūdana Sarasvatī buscou incorporar as práticas devocionais, de forma mais orgânica e decisiva, no contexto da epistemologia de sua escola, cujo acento fundamental se radica na reflexão racional (jñāna) tal como sustentado pelo maior expoente da escola, o grande mestre Śaṅkarācārya (séc. VIII).

A corda bamba que Madhusūdana Sarasvatī se dispõe a atravessar parece, à primeira vista, uma impossibilidade em face de posturas aparentemente irreconciliáveis entre, de um lado, cinco das seis principais subescolas do Vedānta, de orientação vaiṣṇava, e, de outro, a sexta e mais antiga dessas subescolas, o Advaita [Vedānta] de Śaṅkarācārya. Para as primeiras, a disciplina devocional (bhakti) constitui não apenas o caminho mas, acima de tudo, a condição última de realização (jīvanmukti) - lá onde a fruição da unicidade em Kṛṣṇa não elimina as diferenciações entre divindade suprema (bhagavad/īśvara) e devoto (bhakta/jīva). Para a segunda, entretanto, a realização da unicidade em Brahman - noção estritamente impessoal - se alcança através de um caminho eminentemente cognitivo-intelectual (jñāna) que tende a relegar bhakti, em sintonia com os ensinamentos de Śaṅkarācārya, a um papel preparatório de “purificador mental” (cittaśuddhi). Ademais, a condição última de realização (jīvanmukti) implica a dissolução total da dualidade e, consequentemente, de qualquer resquício de diferenciação entre o objeto de devoção (bhagavad/īśvara) e o devoto (bhakta/jīva). Neste caso, portanto, nem o caminho nem a condição final implicariam, essencialmente, a condição de devoção/participação (bhakti).

A tarefa hercúlea de Madhusūdana Sarasvatī de incorporar as práticas devocionais, de forma mais orgânica e decisiva, à orientação soteriológica dominante de jñāna é realizada, de forma mais específica, em duas de suas obras: (i) o Bhaktirasāyaṇa e o Gūḍhārthadīpikā, esta última um comentário ao Bhagavadgītā. A primeira obra surpreende pela postulação, em algumas de suas passagens, de uma devocionalidade (bhakti) enquanto caminho soteriológico distinto e independente da orientação gnóstica (jñāna), o que poderia sugerir um rompimento com a orientação normativa da escola Advaita Vedānta. Neste particular, tendo a concordar com Lance Nelson que afirma que o Bhaktirasāyaṇa trata-se, provavelmente, de uma textualidade estratégica que objetivou promover o “viewpoint of Advaita to educated bhaktas [devotos] that stood outside the exclusive tradition of Shankara [Śaṅkarācārya] sannyāsins [renunciantes]. He, therefore, presents the teachings of Advaita in a form adapted to the egalitarian ethos of BP [Bhāgavata Purāṇa] devotionalism, with which, as the result of his own predilection toward bhakti, he has considerable sympathy”. (NELSON 1988, p. 84)

É na segunda obra, entretanto, o Gūḍhārthadīpikā, que Madhusūdana Sarasvatī realiza, de forma mais abrangente, a integração orgânica de bhakti na proposta intelectual-cogitiva de jñāna, estabelecendo as correspondências pertinentes entre, de um lado, as nove disciplinas (navadhā) e os onze estágios (bhūmikā) de bhakti prescritos pelo Bhāgavata Purāṇa e igualmente objeto de análise no Bhaktirasāyaṇa e, de outro, os quatro requisitos (sādhana catuṣṭaya) e as três disciplinas (śravaṇa, manana e nidhidhyāsana) do empreendimento de jñāna ou vicāra prescritas pelos Upaniṣads. O contexto comentarial impele, finalmente, ao estabelecimento das correspondências íntimas entre, de um lado, a devocionalidade proposta pelo Bhagavad Gītā de uma “renuncia a todas as ações” e um buscar “refúgio somente” em Kṛṣṇa (BHAGAVAD GĪTĀ in SARASVATĪ, 1901, XVIII.66, p. 510) e, de outro, o empreendimento reflexivo de realização do sentido último das “grandes sentenças” (mahāvākyas) dos Upaniṣads. Essa correspondência ou acomodação entre bhakti e jñāna não constitui, necessariamente, uma subserviência da primeira à segunda (SAHA 2014, p. 78): trata-se, acima de tudo, de uma integração orgânica, onde o caráter diretor de jñāna funciona como critério de validação da eficácia cognitiva das disciplinas bhakti sem que, com isso, se suprimam as especificidades operacionais desta última.

Madhusūdana Sarasvatī divide o Bhagavad Gītā em três seções fundamentais que correspondem a outros tantos estágios do processo de esclarecimento do sentido último das “grandes sentenças” (mahāvākya) dos Upaniṣads - proposições indicativas da não-diferença essencial entre ātman, o sujeito (aparentemente) ignorante e sofredor, e Brahman, o princípio de unidade do Real -, que constitui o âmago dos ensinamentos soteriológicos da escola Advaita Vedānta. Cada dos três estágios de esclarecimento das mahāvākyas são, por sua vez, identificados com as três disciplinas soteriológicas reveladas por Kṛṣṇa no Bhagavadgītā e no Bhāgavata Purāṇa, a saber, karma-yoga, bhakti-yoga e jñāna-yoga. O ponto de partida de Madhusūdana Sarasvatī são as palavras de Kṛṣṇa no Bhāgavata Purāṇa:

As três disciplinas (yoga) por mim descritas que promovem a perfeição dos seres humanos são: o conhecimento [da unicidade do Real] (jñāna), a devoção (bhakti) e a ação [desinteressada] (karma). Não existe nenhum outro meio (upāya) [para se alcançar a perfeição]. (BHĀGAVATA PURĀṆA, 2019, 11.20.6)7

Após reiterar a pertinência constitutiva dessas três disciplinas no Bhagavadgītā8, Madhusūdana Sarasvatī discorre sobre suas respectivas tarefas e sua correlação com os três estágios de esclarecimento do sentido das mahāvākyas dos Upaniṣads. Para tanto, Madhusūdana Sarasvatī faz recurso à mahāvākya tat-tvam-asi que significa, literalmente, “Tu (ātman) és Isso (Brahman/Viṣṇu/Kṛṣṇa)” (tat-tvam-asi) (CHĀNDOGYA-UPANIṢAD, 1983, VI.viii.7, p. 384) e que constitui uma versão dramatizada das palavras de instrução do mestre. Segundo Madhusūdana Sarasvatī, os seis primeiros capítulos (I-VI) do Bhagavad Gītā versam basicamente sobre o componente “tu” (tvam) da mahāvākya - o ātman enquanto existencialidade ignorante e sofredora - e exortam ao exercício de karma yoga, i.e., o desinteressamento e a renúncia gradual aos frutos da ação (karmaphalatyāga). (BHAGAVAD GĪTĀ XVIII.2, in SARASVATĪ, 1901, p. 454) 9 Os seis capítulos seguintes (VII-XII) versam basicamente sobre o componente “Isso” (tat) - Brahman ou a Suprema Personalidade de Viṣṇu ou Kṛṣṇa - e exortam ao exercício de bhakti e à consequente rendição amorosa a Viṣṇu/Kṛṣṇa - o recipiente dos ofertórios, i.e., dos frutos renunciados da ação.10 E, finalmente, os seis últimos capítulos (XIII-XVIII) versam basicamente sobre a unicidade ou não-diferença essencial entre tat e tvam, Viṣṇu/Kṛṣṇa e seus devotos, respectivamente, que constitui o objetivo último de realização por parte destes últimos, e que se efetiva através do exercício de jñāna (conhecimento) e da consequente eliminação da ignorância constitutiva de uma dualidade pretensamente substancial.11

Ressalta do acima exposto que, diferentemente das tendências modernas neo-vedāntinas de se postular três caminhos alternativos, Madhusūdana Sarasvatī apresenta o Bhagavad Gītā como uma articulação harmoniosa entre as três disciplinas: ao invés de três caminhos, karma, bhakti e jñāna constituem dimensões de um mesmo caminho (sādhana/upāya) para ser alcançar a Libertação (mokṣa). Sua originalidade hermenêutica expressa-se em seus esforços de compatibilizar a proeminência evidente da disciplina bhakti no Bhagavad Gītā com a proeminência evidente da disciplina jñāna nos Upaniṣads, e integrar ambas, organicamente, à disciplina karma. A centralidade de bhakti é, então, formulada nos seguintes termos: de um lado, bhakti é o requisito essencial para o estabelecimento e consolidação de karma (yoga); e, de outro, bhakti cumpre sua teleologia no ato de realização cognitiva (jñāna) da unicidade e não-dualidade (advaita) do Real. Em outras palavras, a centralidade das práticas devocionais de bhakti reflete uma condição singular de inerência nas demais disciplinas (ubhayānugata), e sua capacidade de eliminar a ignorância (avidyā) que obscurece a real natureza do sujeito. Ele afirma: “Como a devoção é inerente às [duas] outras disciplinas, ela é capaz de remover todos os obstáculos” (SARASVATĪ, 1901, Introd. 7, p. 1)12. Vejamos como.

O ponto nevrálgico de afirmação da proeminência imperativa da devoção (bhakti) faz-se presente, portanto, na segunda das três divisões propostas por Madhusūdana Sarasvatī. Nela se incluem os ensinamentos fundamentais sobre a natureza do Absoluto - a Suprema Personalidade de Kṛṣṇa -, que se iniciam no capítulo VII e têm seu clímax nos capítulos X e XI com a descrição extraordinária da manifestação cósmica e universal de Kṛṣṇa (viśvarūpa). A condição simultaneamente transcendente e imanente de Kṛṣṇa dá, no entendimento de Madhusūdana, os contornos ou fundamentos ontológicos para a inevitabilidade da devoção (bhakti) enquanto fator que permeia toda e qualquer forma de existencialidade - a existencialidade ignorante, a existencialidade buscadora e, finalmente, a existencialidade conhecedora (jīvamukta).

V

Para entender o sentido dessa permeabilidade absoluta de bhakti, aí se incluindo a condição última de Iluminação, é importante destacar a dupla dimensão de originalidade de Madhusūdana Sarasvatī no contexto da escola Advaita Vedānta e, ao mesmo tempo, sua adequação aos princípios substantivos desta última tal como enunciados por Śaṅkarācārya. As críticas que apontam, por um lado, para uma mera estratégia de persuasão visando atrair adeptos das escolas devocionalistas vaiṣṇava para um contexto Advaita Vedānta e as que apontam, por outro, para uma subversão dos princípios enunciados por Śaṅkarācārya, parecem-me igualmente infundadas. Entre essas duas posturas antinômicas, existe, em minha opinião, um meio termo que faz jus ao caráter dinâmico e reformador inerente a todo o exercício hermenêutico legítimo na tradição filosófica indiana: a postura de Madhusūdana Sarasvatī constitui um fator de enriquecimento tanto das metodologias de transformação da escola Advaita Vedānta quanto dos sentidos indicativos da noção de bhakti prevalentes nas demais escolas vedāntinas.

A primeira dimensão de originalidade é a inclusão de bhakti como disciplina vital (sādhana), ao invés de meramente ancilar ou preparatória, no processo de esclarecimento do sentido último das “grandes sentenças” ou mahāvākyas. Sobre a onipresença de bhakti, em si e em todas as outras disciplinas, ele afirma: “São três os tipos de devoção: a que está associada às ações (karmamiśrā), a pura (śuddhā), e a que está associada ao conhecimento (jñānamiśrā) (SARASVATĪ, 1901, Introd. 7, p. 1)13.

A renúncia aos frutos da ação (karmaphalatyāga) enquanto renúncia gradual à pretensa autonomia do ego constitui, como vimos acima, o cerne do processo de esclarecimento do termo tvam da mahāvākya tat-tvam-asi. Ora, a disposição renunciatória exige, em sua consolidação, o florescimento de um valor maior que funciona, subjetivamente, como âncora motivacional que consagra o ato de renúncia como ato de ofertório. Esse valor maior é representado, precisamente, pela devocionalidade de bhakti - e, mais especificamente karmamiśrā bhakti, i.e., “bhakti associada às ações” - que constitui, para Madhusūdana Sarasvatī, o cerne da pedagogia atinente ao segundo termo tat. Tradicionalmente identificado com o princípio unicista constitutivo de toda a realidade, brahman, o termo tat assume, na hermenêutica de Madhusūdana Sarasvatī, o sentido maior de suprema personificação do Absoluto, Viṣṇu/Kṛṣṇa. Diferentemente do sentido abstrato de “unidade” do conceito de tat ou Brahman, ainda envolto num véu de mediaticidade (parokṣatva) (SUREŚVARĀCĀRYA, 1968, III.23-24, p. 262), o Absoluto Viṣṇu/Kṛṣṇa objeto de devoção põe em cena uma transcendência muito peculiar: aquela que se achega intimamente à subjetividade e que se institui como participação amorosa, imediaticidade na consciência e imanência ontológica. É nesse contexto que a devocionalidade de bhakti concorre, de forma eficaz, para a dinâmica de realização do sentido último da mahāvākya que constitui a tarefa precípua do terceira parte do Bhagavadgītā - a saber, a realização da não-diferença essencial entre tat e tvam, Viṣṇu/Kṛṣṇa e seus devotos.

A proposta de Madhusūdana Sarasvatī de um caminho devocional vaiṣṇava (bhakti) organicamente integrado ao processo de discriminação reflexiva (jñāna) representa uma expansão de horizontes no contexto das metodologias soteriológicas da escola Advaita Vedānta.14Ao concorrer para a realização última da não-diferença ontológica entre Viṣṇu/Kṛṣṇa (tat) e seus devotos (tvam), essa inserção renovada sugere o reposicionamento de bhakti como metodologia de implicações gnósticas (jñāna). Isso está explicitamente declarado na expressão jñānamiśrā bhakti, i.e., “bhakti associada ao conhecimento”, na qual bhakti se apresenta como disciplina propositiva e co-participativa do processo de análise discriminativa (vicāra) das mahāvākyas15.

O compromisso cognitivo da metodologia bhakti (jñānamiśrā bhakti), em sua função de esclarecimento do sentido do termo tat (Brahman/Viṣṇu/Kṛṣṇa) da mahāvākya tat-tvam-asi, está amplamente refletido na análise feita por Madhusūdana Sarasvatī das nove disciplinas (navadhā) de bhakti prescritas pelo Bhāgavata Purāṇa, que são objeto do comentário à estrofe 14 do capitulo XIX do Bhagavadgītā que trata, especificamente, dos requisitos e modos de devoção a Kṛṣṇa.16 Em contraste com a análise originalmente apresentada no Bhaktirasāyaṇa17, o Gūḍhārthadīpikā sugere uma vinculação estreita entre a funcionalidade das nove disciplinas de bhakti e a funcionalidade das disciplinas de jñāna (vicāra) - a saber, śravaṇa, manana e nididyāsana. Citando o Bhāgavata Purāṇa (7.5.23), Madhusūdana Sarasvatī descreve, assim, as nove disciplinas de bhakti:

(i) Ouvir [as glórias] de Viṣṇu (śravaṇa), (ii) cantar seu nome (kīrtan), (iii) contemplá-lo (smaraṇa), (iv) render-lhe homagens, tocando-lhe os pés (pādasevā), (v) adorá-lo (arcana), (vi) fazer-lhe saudações [em reverência] (vandana), (vii) dedicar-se a servi-lo (dāsya); (viii) fazer amizade com ele (sakhya), (ix) e se entregar [completamente] a ele (ātmanivedana). (BHĀGAVATA PURĀṆA 2019, 7.5.23) 18

Em seu comentário, estabelece correlações funcionais e operacionais entre as disciplinas de bhakti e as disciplinas soteriológicas consagradas pela tradição do Advaita Vedānta - a saber, śravana (ouvir), manana (refletir) e nididhyāsana (meditar profundamente) e também pela tradição do Yoga de Patañjali (séc. II). Nesse contexto correlacional, por exemplo, Madhusūdana Sarasvatī aproxima a expressão kīrtayanto (cantar louvores a Deus) do ato de ouvir e recitar as mahāvākyas dos Upaniṣads, núcleo central da disciplina śravaṇa; a expressão yatantaśca (o ato de fixar [a mente] em Deus) com o processo de reflexão meditativa que permite dirimir dúvidas, núcleo central da disciplina manana; e, finalmente, a expressão bhaktyā nityayuktā upāsate (permanecer eternamente em ato de adoração, pleno de devoção) com o encaminhamento processual das oito disciplinas do Yoga que culminam no samādhi, em especial com a metodologia de īśvara pranidhāna (devoção por Deus) (PATAÑJALI, 2018, p.2). Com isso, conclui Madhusūdana Sarasvatī, alcança-se a realização imediata (sākṣātkāra) da unicidade (akhaṇḍa) de Brahman/Viṣṇu/Kṛṣṇa, núcleo central da disciplina nididhyāsana (SARASVATĪ, 1901, IX.14, p. 288-9).

VI

O projeto de mão dupla bhakti-jñāna torna-se ainda mais transparente quando passamos a analisar a segunda dimensão de originalidade de Madhusūdana Sarasvatī no contexto da escola Advaita Vedānta: a inclusão de bhakti não apenas como método (sādhanabhakti) mas como condição última (sādhyabhakti/phalabhakti) de Iluminação (mokṣa/jīvanmukti), em aparente contradição com a postura de Śaṅkarācārya de uma ausência absoluta de qualquer resquício de dualidade no ato de cognição plena da unicidade de Brahman. São várias as passagens do Gūḍhārthadīpikā em que Madhusūdana Sarasvatī admite a devocionalidade de bhakti como “fruto” (phala) e condição última do Iluminado em vida (jīvanmukti). É o caso do comentário à estrofe 66 do capítulo XVIII do Bhagavad Gītā onde Kṛṣṇa se revela como refúgio definitivo (śaraṇa) da existencialidade sofredora (SARASVATĪ, 1901, XVIII.66, p. 512)19. E é, acima de tudo, em sua introdução ao Gūḍhārthadīpikā que Madhusūdana Sarasvatī deixa abundantemente clara sua postura:

Na condição de “Iluminado em vida” (jīvanmukta), não pode ser contemplada a ideia de que a devoção (bhakti) se destinaria a algum outro fruto. Pois, [nessa condição], a devoção a Hari [Viṣṇu] permanece como algo espontâneo (svabhāva), tal como [é espontâneo] estar livre do ódio e outros [defeitos]. Essa é a grandeza da [devoção a] Hari (Viṣṇu): ainda que livre da ignorância, os sábios que se deleitam tão somente em sua própria natureza (ātman), prestam espontaneamente devoção a Viṣṇu. De acordo com o dito [no Bhagavad Gītā], dentre os devotos [de Viṣṇu], aquele que está firmemente estabelecido no conhecimento é [considerado] o mais excelso por sua constante firmeza e devoção inabalável. É este, portanto, imbuído de plena devoção amorosa, que é considerado o maior [dos devotos] (SARASVATĪ, 1901, Introd. 37-39, p. 3)20

Como sustentar, nesse contexto, a pertinência de bhakti e da (aparente) distinção devoto-objeto de devoção? Em minha opinião, a singularidade de Madhusūdana Sarasvatī na admissibilidade de bhakti como condição última contempla dois vieses distintos mas interdependentes, tal qual os dois lados de uma mesma moeda.

O primeiro viés é eminentemente ontológico e tem como referência a passagem VII.18 do Bhagavad Gītā. Ao apresentar a condição mais excelsa de devoto, o jñānin - lit. “aquele que está [firmemente] estabelecido no conhecimento (jñāna)” -, Kṛṣṇa descreve-o como alguém que não é senão “seu próprio ser” (ātmaiva)21. Nesse sentido, a reverência devocional do jñanin a Kṛṣṇa é a reverência do sujeito à sua própria essência imanente (ātman ou Si-Mesmo), ao Kṛṣṇa que a tudo permeia, ao regente interno de todos os fenômenos (antaryāmin). Não há aqui qualquer externalidade envolvida nem, consequentemente, qualquer ímpeto à objetificação desejante. O ímpeto em direção à sua própria essência constitui uma espontaneidade existencial (svabhāva) e consagra-se como ode à plenitude da realização da inexistência de qualquer distinção substantiva (advaita/abheda) entre o ente sentiente e seu princípio constitutivo Krsna, o Absoluto.

A reverência devocional do sujeito à sua própria essência imanente (ātman) reflete, portanto, a condição de realização da unicidade em Krsna. Trata-se, por assim dizer, de uma “revelação direta [que] fixa, definitivamente, a mente em Deus” (GUPTA, 2006, p. 130), expressão do caráter fundamentalmente gnóstico de bhakti. No comentário à estrofe 18 do capítulo III, Madhusūdana Sarasvatī associa, de forma original, o sentido teleológico de bhakti à condição de realização da não-dualidade de Brahman. O modelo lá utilizado são as sete etapas gnósticas (jñāna-bhūmikā)22 de realização da condição de jīvanmukta presentes na obra Yoga Vāsiṣṭha, de autoria atribuída ao legendário sábio Vālmīki, que combina a disciplina da contemplação (samādhi) da escola do Yoga de Patañjali com o processo de discriminação racional de vicāra (e suas três disciplinas śravaṇa, manana e nidhidhyāsana) da escola Advaita Vedānta. A expressão tanmaya, geralmente usada nos contextos devocionais e na tradição contemplativa do Yoga para se referir ao processo através da qual a mente assume amplamente a forma do objeto de concentração, assume aqui o sentido específico de uma realização definitiva da não-diferença ontológica entre o devoto e Krsna: daí seu caráter “eterno” (saravadā tanmaya), meta-mental, e livre de todo e qualquer resquício de consciência dual (bhedadarśanābhāva) (NELSON, 1998, p. 76).

Nesse sentido, a distinção sustentada no Bhaktirasāyaṇa23 entre bhakti enquanto cognição conceitual determinada (savikalpakavṛtti) que assume a “forma da Suprema Personalidade [Krsna]” (bhagavadākāra) e jñāna enquanto condição cognitiva indeterminada de realização do Brahman não-dual (nirvikalpakamanovṛtti) deve ser relativizada: o savikalpakavṛtti não se institui como realização de uma alteridade, mas de uma unicidade imanente, que é constitutiva de toda a realidade e que, portanto, é ilimitada e refratária a toda e qualquer determinação; por outro lado, o nirvikalpakavṛtti, ao invés de uma negação das formas trata-se, antes de tudo, de uma condição de absoluta não-identificação com toda e qualquer forma. “In both the cases, a determinant process of cognition reveals an indeterminate and transcendent experience [i.e., que vai além do sujeito individual] (...) Bhakti is transcendent and beyond the reach of the mind, which is a product of māyā” (GUPTA, 2006, p. 128). Assim sendo, as palavras de Bryant fazem sentido:

[Madhusūdana Sarasvatī] revives Shankara’s habit of blurring the distinction between the para-brahman and the saguna Deity. As in Shankara, Krishna in Madhusudana’s commentary on the Gita becomes primarily the avatara of the nirguna Brahman. (…) Often, in this author’s paraphrasing of the text, Krishna explicitly identifies himself as the nirguna (…), “the nondual Self, a mass of perfect Being, Consciousness, and Bliss, the pure Existence which is the substratum of all” (BRYANT, 2007, p. 315) .

A condição de tanmaya (lit., “transmutado nisso”) que caracteriza a sétima e conclusiva etapa da metodologia conducente à Iluminação (mokṣa), tal como proposta no Yoga Vāsiṣṭha, pressupõe a assunção da soberania plena por parte da Divindade Suprema (parameśvara) que absorve, por assim dizer, os arroubos substancialistas do sujeito e se revela como fonte sustentadora de seu alento vital (prāṇa). A descrição de Madhusūdana Sarasvatī desta a sétima e última etapa denominada de turīyāvasthā abunda em eloquência retórica:

[A sétima etapa, turīya,] constitui uma condição de absorção espiritual (samād) da qual, em face da ausência de percepção de dualidade, o yogin não emerge por si-mesmo nem através [dos esforços] de outros. Ele permanece sempre e totalmente absorto, tal qual uma massa homogênea de pura e suprema beatitude, com suas funções corporais gerenciadas por outros - sem nenhum esforço pessoal - , uma vez que suas forças vitais estão sob o controle [absoluto] da Suprema Personalidade [de Deus]. Aquele que alcança essa sétima etapa é chamado de “maior conhecedor de Brahman” (brahmavidvariṣṭha) (SARASVATĪ, 1901, III.18, p. 108)24.

O segundo viés da perspectiva original de Madhusūdana Sarasvatī no que tange à inclusão de bhakti como condição última (sādhyabhakti/phalabhakti) de Iluminação (mokṣa/jīvanmukti) possui um caráter fenomenológico e reflete a dupla dimensão que envolve a figura do “Iluminado em vida” (jīvanmukta): do ponto de vista da mundanidade (ignorante) (vyavahāra), ele se apresenta como um indivíduo; ao passo que, do ponto de vista da realidade última (paramārtha), ele transcende toda a individualidade pois sua natureza última não é distinta da natureza da unicidade do Absoluto, Krsna. Pois bem, a inseparabilidade amorosa e eterna entre amado e amante, entre Krsna e seu devoto - expressão máxima da devocionalidade bhakti - constitui, em termos da dualidade mundana, a tradução mais excelsa da unicidade que subjaz, essencialmente, à individualidade aparente do jīvanmukta. Em outras palavras, (i) ser parte eterna de um Todo maior (preman) ou (ii) ser esse mesmo Todo (mokṣa) são duas formas de expressar, a partir de horizontes de enunciação distintos, uma mesma condição última de Iluminação.

VII

Ressalta do acima exposto que a devocionalidade (bhakti) perseguida por Madhusūdana Sarasvatī no contexto da escola Advaita Vedānta, tradicionalmente focada em jñāna, apresenta nuances bem distintas daquela sustentada por outras escolas vedāntinas, em especial a escola dualista de Madhvācārya (séc. XIII) para quem a distinção entre jīva e īśvara/bhagavad possui um caráter ontológico inarredável. Um dos aspetos centrais dessa singularidade faz-se presente em nuances relativamente obscurecidas da etimologia da própria palavra bhakti. Como já acima referido, a tradução generalizada e não-qualificada de bhakti por “devoção” parece-me altamente problemática, não apenas pela ênfase desmedida que coloca num emocionalismo subjetivo - que se inspira, por certo, em releituras modernas da mística cristã -, mas também pela desconsideração que promove dos elementos ontológico-epistemológicos que a constituem. Conversamente, acredito que a palavra “participação”, no sentido próximo à noção grega de méthexis da filosofia de Platão, possui vantagens comparativas extraordinárias e faz jus, ademais, à etimologia da raiz sânscrita bhaj, que significa precisamente “participar” ou “compartilhar”.

Definida como “pertencer ou estar contido em (outrem)”, a ideia filosófica de “participação” aponta para a condição ontológica inexpugnável de todo o ente de “ser” ou “existir” em Kṛṣṇa. Tal condição não decorre, evidentemente, de qualquer escolha subjetiva; ao invés, todo o exercício de escolha já pressupõe a participação em Kṛṣṇa. Portanto, a condição de salvação em Kṛṣṇa não constitui propriamente uma situação inédita, nem tão pouco um retorno após um real afastamento: trata-se, antes de tudo, da realização de uma condição sempre-presente, alvo circunstancial do esquecimento. Por isso, o contexto vaiṣṇava da tradição Advaita Vedānta representada por Madhusūdana Sarasvatī combina, de forma inusitada, o que numa terminologia ocidental seria denominado “monoteísmo” e “monismo” (SASTRI, 2019). Este “monoteísmo monista” ou “monismo monoteísta” está magnificamente sintetizado nas palavras do Swami Dayananda Saraswati, mestre contemporâneo da escola Advaita Vedānta: “Não dizemos que existe um único Deus. Dizemos que apenas Deus existe” (cited in ADVAITA VISION, 2019).

O aporte original de Madhusūdana Sarasvatī e sua proposta de incorporação decisiva da disciplina bhakti está, como vimos acima, umbilicalmente inserida na esfera iniciática de Nível 2 das religiosidades vaiṣṇavas e, mais especificamente, no contexto soteriológico da escola Advaita Vedānta que visa à superação da ignorância e do sofrimento através da realização da condição não-dual da Realidade (Brahman). É nesse contexto que devemos avaliar os debates e as controvérsias surgidas em torno dos requisitos e das condições de eligibilidade necessárias para o exercício de bhakti. É comum se afirmar que a postulação de bhakti envolve uma posição mais liberal de flexibilização de requisitos para o empreendimento soteriológico. Isso seria corroborado pela afirmação de Madhusūdana Sarasvatī no Baktirasāyana de que, diferentemente de jñāna (brahmavidyā) que estaria reservada apenas a “renunciantes da mais alta ordem (paramahaṃsaparivrājaka) que cumprem os quatro requisitos [tradicionais] (sādhana catuṣṭaya)”25, bhakti estaria aberta a “todos os seres sentientes” (prāṇin)26. Ainda que haja pertinência em alguns de seus aspetos, a tese da “liberalização” requer qualificações complementares de modo a evitar que seja confundida com propostas “populistas” de dispensa absoluta de requisitos.

A afirmação de Madhusūdana Sarasvatī coloca em questão, fundamentalmente, a indispensabilidade do saṇnyāsa āśrama - i.e., a renúncia à sociabilidade familiar e comunitária de origem e a adoção de uma condição monástica - para a persecução das pedagogias soteriológicas. Esse questionamento-chave possui três desdobramentos possíveis: (i) o questionamento da indispensabilidade da condição social de brâmane como pré-requisito sócio-cultural; (ii) o questionamento da indispensabilidade do cumprimento dos requisitos meritológicos do sādhana catuṣṭaya; (iii) o questionamento da condição de saṇnyāsa como sendo a única que atesta o cumprimento dos requisitos do sādhana catuṣṭaya e de outros a ele organicamente integrados.

O primeiro desdobramento refere-se a pré-requisitos que estão atrelados a especificidades socio-culturais, fonte de grandes debates no interior da escola Advaita Vedānta. Se, por um lado, a posição de Śaṅkarācārya é ambivalente, Sureśvarācārya, seu discípulo excelso, e Madhusūdana Sarasvatī são manifestamente a favor da não-indispensabilidade da condição de brâmane para o empreendimento soteriológico. O segundo desdobramento pode parecer, à primeira vista, a posição de Madhusūdana Sarasvatī. Entretanto, sua postulação de requisitos específicos para o exercício de bhakti atende, primordialmente, a exigências idiossincráticas de perfis psicológicos distintos e não implica, necessariamente, a dispensa dos princípios reguladores do sādhana catuṣṭaya. Já vimos também acima que a defesa de bhakti enquanto disciplina independente de jñāna no Baktirasāyana representa, possivelmente, um momento de persuasão estratégica Madhusūdana Sarasvatī. No limite, o exercício independente de bhakti conduziria o devoto a um paraíso divino, para que lá, então, ele pudesse efetivamente se embrenhar na pedagogia reflexiva das mahāvākyas dos Upaniṣads (NELSON, 1988, p. 83). Em outras palavras, o exercício independente de bhakti poderia, no máximo, se inserir nos contextos populares do Nível 1 das religiosidades vaiṣṇavas, aí se incluindo as fases preparatórias de transição para o Nível 2. Os requisitos que lhe são correlatos assegurariam aos devotos, então, a condição de “simpatizantes” (upāsaka) mas não ainda de “iniciados” (adhikārin).

O terceiro desdobramento acima ventilado reflete, em nossa opinião, a posição dominante de Madhusūdana Sarasvatī que está presente, de forma privilegiada, no Gūḍhārthadīpikā. Ao deixar de lado a supremacia de prema sobre mokṣa, Madhusūdana Sarasvatī sustenta a possibilidade do cumprimento dos requisitos atinentes às práticas devocionais de bhakti, tendo por princípio diretor as metas de sādhana catuṣṭaya e sem que haja a necessidade da adesão à condição de renunciante (saṇnyāsa). Note-se, ademais, que a possibilidade desta isenção não se restringe aos contextos de demanda bhakti: os próprios contextos jñāna possuem correntes paralelas que propugnam o exercício “laico” da soteriologia. São exemplos disso as narrativas dos Upaniṣads e seus sábios protagonistas não-renunciantes (a maioria, kṣatriyas) e a tradição dos gṛhastha bodhisattvas27 do budismo Mahāyāna. Num contexto que integra organicamente bhakti e jñāna, o Bhagavad Gītā do comentário de Madhusūdana Sarasvatī constitui um exemplo exuberante dessa possibilidade: o protagonista Arjuna é, simultaneamente, um guerreiro no campo de batalha e um “devoto iniciado” (adhikārin) por Kṛṣṇa.

Portanto, com ou sem a adesão à condição de saṇnyāsa, a pertinência de um caminho soteriológico está, fundamentalmente, associada ao cumprimento de requisitos (adhikāra), à assunção dos votos (vrata) de amar e prestar serviço a Kṛṣṇa, e à aceitação da autoridade de um mestre (guru).28 O processo de iniciação (dikṣā) consiste, precisamente, na aceitação voluntariosa de um compromisso de dedicação plena às disciplinas prescritas e numa disposição de renúncia às intencionalidade habituais egocentradas que marcam a cotidianidade das ações. Quais são, então, para Madhusūdana Sarasvatī, os requisitos para o exercício das disciplinas de bhakti? O verso 12 do comentário introdutório é especialmente significativo para essa determinação. 29 Nele, Madhusūdana Sarasvatī afirma:

[O requisito inicial] é a realização de ações desinteressadas, e a rejeição dos rituais e deveres associados a retribuições futuras e das ações proibidas. Aqui, de novo, o maior mérito está na repetição e nos cantos de louvor a Hari (Kṛṣṇa) (SARASVATĪ, 1901, Introd. XII, p. 2).

A passagem acima dá vazão lógica às proposições iniciais, acima analisadas, que propugnam a divisão do Bhagavad Gītā em três seções. Sendo a devocionalidade bhakti o objeto específico da segunda seção, o requisito essencial para seu desenvolvimento não pode ser senão a efetuação das disciplinas do karma (yoga), objeto específico da primeira seção. Em face, outrossim, da presença inerente de bhakti nas demais seções (karmamiśrā bhakti), a praxiologia das ações desinteressadas (niṣkāmyakarma) e a renúncia consequente à aquisição e fruição de objetos, neste e noutro mundo, ganha ímpeto exponencial quando associado às práticas devocionais, tais como a recitação e a entoação de louvores a Kṛṣṇa (japastutyādi). A transcendência não-objetiva de Kṛṣṇa é, finalmente, a porta de entrada para a consideração de sua imanência unicista, fator que favorece de transição da condição popular do devoto simpatizante (upāsaka) para a condição soteriológica do devoto-iniciado (adhikārin). Coerentemente, na sequência das estrofes, Madhusūdana Sarasvatī vincula, orgânica e teleologicamente, esses requisitos de bhakti aos requisitos de jñāna (sādhana catuṣtaya), a saber, viveka (discriminação entre o eterno e o não-eterno); (ii) vairāgya (desapego por todos os objetos, presentes ou futuros, deste ou doutro mundo); (iii) saḍsampatti (seis virtudes)30; (iv) e mumukṣutva (ardente desejo pela Iluminação).

VIII

O “monoteísmo monista” de Madhusūdana Sarasvatī é um selo garantidor da sacralidade constitutiva de toda a realidade fenomênica. A absoluta permeabilidade cósmica de Kṛṣṇa, que dá os contornos estruturantes do quadro categorial de devotos (bhakta) apresentado nas estrofes 15 e 16, dá o tom dominante do conteúdo do capítulo VII do Bhagavad Gītā. Da estrofe 4 à 12, Kṛṣṇa revela as duas dimensões constitutivas da realidade enquanto manifestações de suas outras tantas potências: sua potência inferior (aparaprakṛti) é o princípio da materialidade densa e sutil - a saber, os cinco elementos (terra, água, fogo, ar, espaço), a mente, o intelecto, e o ego; e sua potência superior (paraprakṛti) é o principio da consciência (cetanā)31, que se expressa através consciências individuais da pluralidade dos seres sentientes. A ação combinada dessas duas potências dá testemunho da condição simultânea de imanência e transcendência de Kṛṣṇa: imanência enquanto manifestação plural da materialidade e transcendência enquanto unicidade absolutiva. Kṛṣṇa resume essa questão com as seguintes palavras: “Saibam que não sou eu quem está neles [transcendência]; são eles que estão em mim [imanência]” (BHAGAVAD GĪTĀ, 1901, VII.12, p. 245).

Num contexto cósmico de ubiquidade plena de Kṛṣṇa, a condição de “devoto” (bhakta) abarca, inevitavelmente, toda e qualquer forma de existência sentiente. O quadro categorial de devotos (bhakta) é o objeto explícito das estrofes 15 e 16 do capítulo VII do Bhagavad Gītā, sendo a primeira inteiramente dedicada ao que poderíamos genericamente designar por “não-devotos” (abhakta)32 ou “devotos negativos”. Com isso, da condição extrema de total ignorância à condição extrema de plena ciência, as estrofes 15 e 16 e seus detalhamentos subsequentes das estrofes 17 a 23 apresentam um quadro de evolução gradativa de proximidade devocional/participativa dos entes sentientes com relação a Kṛṣṇa. Estabelece-se aqui uma correspondência estreita entre os níveis de devoção/participação amorosa em Kṛṣṇa e os níveis de conhecimento/realização de sua natureza absolutiva. Não surpreende, assim, que os termos designativos das diferentes categorias de devotos sejam, em grande medida, derivativos da raiz verbal jña (“conhecer/realizar”), como veremos abaixo. Analisemos, então, as estrofes em questão com base nos comentários e ensinamentos de Madhusūdana Sarasvatī.

Nas estrofes 15 e 16 do capítulo VII do Bhagavad Gītā, Kṛṣṇa declara:

Aqueles que perpetram más ações, [que são] idiotas ignorantes, [que possuem] natureza vil, [que são] privados de conhecimento por causa das ilusões [mundanas], e que possuem características demoníacas - esses não buscam refúgio (na prapadyate) em mim.

Existem quatro categorias de seres virtuosos (sukṛtīn) que prestam devoção (bhajante) a mim: os que sofrem (ārto), os buscadores do conhecimento (jijñāsu), os buscadores de prosperidade material (arthārthī) e os sábios (jnānī) (BHAGAVAD GĪTĀ VII.15-16, in SARASVATĪ, 1901, p. 249-50).33

Somadas as quatro categorias da estrofe 16 com a categoria da estrofe 15, temos um total de cinco categorias de devotos (bhakta) englobando a totalidade dos entes sentientes. São elas (por ordem crescente de realização da verdadeira natureza de Kṛṣṇa):

  • (i) apahṛitajñāna (lit., “aqueles que são privados de conhecimento”) - os não-devotos, i.e., aqueles totalmente privados do conhecimento de Kṛṣṇa por causa das ilusões [mundanas];

  • (ii) ārta (lit., “aqueles que sofrem”) - os que buscam Kṛṣṇa com o objetivo de aliviar o sofrimento;

  • (iii) arthārthin (lit., “aqueles que desejam riquezas”) - os que buscam Kṛṣṇa com o objetivo de obter prosperidade material;

  • (iv) jijñāsu (lit. “aqueles que nutrem desejo pelo conhecimento”) - os que buscam conhecer sua verdadeira natureza enquanto imanência de Kṛṣṇa em si-mesmo;

  • (v) jñānin (lit., “aqueles que conhecem”) - os que estão [firmemente] estabelecidos no conhecimento/realização da unicidade de Kṛṣṇa.

A primeira categoria, os não-devotos ou “devotos negativos” (abhakta), inclui todos aqueles que não reconhecem a existência de Kṛṣṇa ou de qualquer uma de suas formas de manifestação divina. Dada a condição ontológica natural (svabhāva) de devoção/participação em Kṛṣṇa, a atitude do não-devoto é de rebelião e negação de sua própria natureza. O termo central que o define, apahṛtajñāna, aponta para um ente cuja condição natural do existir em Kṛṣṇa (jñāna) é de tal obscurecida (apahṛta) pelas ilusões mundanas que ele deixou, por completo, de reconhecer a própria existência deste último ou de qualquer outra forma de transcendência à sua individualidade. Em outras palavras, a condição de ausência de discriminação (mūḍha), pontuada por características demoníacas (āsura), expressa-se numa rejeição de qualquer transcendência à pretensa substancialidade do ego: é o reino do puro narcisista, lá onde vigora a soberba, a arrogância e a fantasia de uma autarquia plena. Em síntese, a condição de não-devoto (apahṛtajñāna) constitui-se à margem de toda e qualquer religiosidade, de toda e qualquer admissibilidade de uma teleologia divina.

A segunda e a terceira categorias de devotos integram, por excelência, as dimensões populares, familiares e comunitárias, de caráter moral e ritual, constitutivas do que acima denominei de Nível 1 das religiosidades e, neste caso, das religiosidades viṣṇavas. São o que acima denominei de “devotos simpatizantes” (upāsakas) e compreendem duas vertentes: os devotos ārta, que buscam Kṛṣṇa “com o objetivo de aliviar o sofrimento causado por inimigos, doenças, etc.” (SARASVATĪ, 1901, VII.16, p. 250)34; e os devotos arthārthin, que buscam Kṛṣṇa “ávidos pela obtenção de objetos de prazer neste ou noutro mundo” (SARASVATĪ, 1901, VII.16, p. 250).35Eles têm em comum o reconhecimento da existência de algo que transcende a individualidade do ego, sem que haja, entretanto, clareza sobre a natureza precípua dessa transcendência. Em outras palavras, ambos reconhecem a existência superior de Kṛṣṇa, mas permanecem relativamente ignorantes de sua condição de essencialidade imanente. Para essas duas categorias, ao invés de uma autoridade-fundamento e inevitabilidade teleológica, Kṛṣṇa é, acima de tudo, uma autoridade-instrumento, i.e., um fator facilitador no processo de satisfação de desejos egóicos. No caso dos devotos ārta, o recurso à autoridade-instrumento de Kṛṣṇa visa à mitigação do sofrimento causado pelas perdas sistemáticas dos objetos de desejo e ao reavivamento, consequente, do ânimo subjetivo que visa a uma nova aquisição. No caso do buscador de prosperidade material, o recurso à autoridade-instrumento de Kṛṣṇa visa viabilizar, diretamente, a aquisição dos objetos de desejo, neste ou noutro mundo, aí se incluindo os renascimentos “paradisíacos” resultantes do processo de transmigração.

Assim sendo, o reconhecimento da existência de Krisna e a devoção e serviço a ele prestados pelos devotos ārta e arthārthin submete-se, no limite, aos interesses egocentrados destes últimos: persiste, aqui, um déficit significativo no conhecimento da real natureza de Kṛṣṇa. É neste déficit cognitivo (hṛtajñāna)36 que assenta o caráter nem sempre direto do reconhecimento da existência de Kṛṣṇa. Com efeito, o objeto explícito de devoção é, frequentemente, uma ou mais das muitas divindades menores (devatā)37, que regem geralmente regiões cósmicas paradisíacas, e que funcionam, por assim dizer, como fatores instrumentais especializados conducentes à satisfação dos desejos dos devotos. Nas estrofes 20 a 23, Kṛṣṇa revela-se como aquele que, efetivamente, opera na retaguarda das divindades menores e na retribuição dos frutos almejados pelos devotos. A necessidade precípua de śraddhā - lit., “fé”, “convicção” nas divindades - dá, finalmente, testemunho do caráter meritório da adesão dos devotos a uma realidade transcendente ao ego, ainda que o grau de compreensão dessa realidade seja deficitário, tanto em sua forma indireta, através das divindades menores, quanto em sua forma direta, o próprio Kṛṣṇa.

A quarta categoria de devotos integra, por excelência, a dimensão de aprofundamento soteriológico, constitutiva do que acima denominei de Nível 2 das religiosidades e, neste caso, das religiosidades vaiṣṇavas. Os devotos jijñāsu constituem o que acima denominei de “devotos iniciados” (adhikārin), cuja meta precípua é a busca do conhecimento/realização da verdadeira natureza de Krisna e cuja marca distintiva é a convicção inabalável de que a transcendência de Kṛṣṇa constitui, outrossim, a essencialidade imanente de todos os entes. Em outras palavras, devotos jijñāsu são aqueles que buscam o conhecimento do Si-Mesmo (ātmajñāna), i.e., aqueles que buscam a Iluminação (mumukṣu) (SARASVATĪ, 1901, VII.16, p. 250).38 Após renunciar aos desejos pelos objetos deste ou doutros mundos, os devotos jijñāsu dedicam-se integralmente à busca teleológica pela compreensão da unicidade em Kṛṣṇa, onde, por assim dizer, se realizam, irrevogavelmente, todos os desejos - presentes, passados e futuros. Os devotos jijñāsu são formas superiores e raras de participação/devoção e constituem o núcleo do processo de alquimia existencial que consagra a propedêutica (sādhana) da Iluminação (moksa), i.e., da superação definitiva de toda ignorância e sofrimento.

O empreendimento hercúleo dos devotos jijñāsu, que exige requisitos (adhikāra), votos (vrata) e orientação de um mestre (guru), enquadra-se, de forma imediata, na dimensão soteriológica do exercício da devocionalidade bhakti proposta de Madhusūdana Sarasvatī no contexto da escola Advaita Vedānta. Constitutiva da primeira dimensão de originalidade acima analisada - a saber, a inclusão de bhakti como disciplina vital (sādhanabhakti), ao invés de meramente ancilar ou preparatória, no processo de esclarecimento do sentido último das “grandes sentenças” ou mahāvākyas - o percurso gnóstico dos devotos jijñāsu constitui enredo central de toda a obra de Madhusūdana Sarasvatī, desdobramento comentarial das textualidades śruti (“sagradas”) dos Upanisads e quase-śruti do Bhagavad Gītā e do Bhāgavata Purāṇa.

A quinta e última categoria de devotos consagra, por excelência, a teleologia de todo o empreendimento soteriológico. Os devotos jñānins são todos aqueles que se encontram firmemente estabelecidos no conhecimento/realização de Kṛṣṇa. Após incontáveis práticas e disciplinas de serviço, devoção e conhecimento, os devotos jñānins alcançam a condição de plenitude, descrita como devoção espontânea, pura e eterna por Kṛṣṇa. O caráter devocional da condição última de Iluminação (sādhyabhakti/phalabhakti), que classificamos acima como a segunda dimensão de originalidade de Madhusūdana Sarasvatī, é expresso, simultaneamente, em dois registros: no registro fenomenólogico enquanto eterna beatitude amorosa entre Kṛṣṇa e seu devoto (prema); e no registro ontológico enquanto realização da imanência existencial da unicidade de Kṛṣṇa (mokṣa). “[Os devotos jñānins, diz Madhusūdana Sarasvatī,] têm sua mente definitivamente absorta em Deus (bhagavad), que, [por sua vez], não é diferente do Si-Mesmo imanente (ātman)” (SARASVATĪ, 1901, VII.16, p. 251).39 Esses dois lados da mesma moeda soteriológica - prema e mokṣa - são retratados por Kṛṣṇa das estrofes 17 e18 com as seguintes palavras, que ecoam a grande sentença do Bṛhadārṇyaka Upaniṣad (III.ix.28), “Brahman é conhecimento (vijñāna) e beatitude (ānanda)”40:

De todos [os devotos], aquele que está estabelecido no conhecimento (jñānī) é o mais excelso, já que possui equanimidade inabalável e devoção totalmente focada. Eu sou profundamente amado pelo jñānī e o jñānī é [igualmente] amado por mim. Todos eles são virtuosos, mas o jñānī é o meu próprio ser (ātmaiva). Esta é minha firme convicção (BHAGAVADGĪTĀ in SARASVATĪ, 1901, VII.17-18, p.251 ).41

Referências

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1As palavras transliteradas do sânscrito seguem as normas do International Alphabet of Sanskrit Transliteration (I.A.S.T.). Todas as traduções de originais em sânscritos foram feitas pelo autor

2A palavra vedānta significa literalmente “a parte final dos Vedas”, i.e., os Upaniṣads. Ela designa, ainda, a escola filosófica de fundo hermenêutico-soteriológico que se desenvolveu em torno dos Upaniṣads.

3Em tradições como o Vaiṣṇavismo Gaudīya, Kṛṣṇa é equiparado a Viṣṇu como fonte dos avatāras. Nesse caso, como acontece na introdução do poema Gītā Govinda (JAYADEVA, 1977, p. 129-31) conhecida como “Daśāvatāra Stotra” (“O Hino dos Dez Avatāras”), Buddha ocupa o lugar de nono avatāra.

4Isso é explicitamente declarado na seguinte passagem do Bhagavad Gītā: “Sempre que há um declínio no cumprimento dos deveres religiosos (dharma), ó Bharata (Arjuna), eu me manifesto. Sempre que há um aumento no exercício das práticas não-religiosas, eu me manifesto. Eu renasço, em cada era cósmica, com o objetivo de proteger aqueles que perpetram boas ações e de destruir aqules que perpetram más ações. [Nasço, portanto,] para a consolidação da religiosidade. [yadā-yadā hi dharmasya glānir bhavati bhārata / abhyutthānam adharmasya tadā’tmānam sṛjāmy aham // paritrāṇāya sādhūnām vināśāya ca duṣkṛtām / dharmasansthāpanārthāya sambhavāmi yuge-yuge] (Bhagavad Gītā, 1985, IV.7-8, p. 121-2)

5Isso é explicitamente declarado no declinar do Bhagavad Gītā: “Isto [que te foi ensinado] não deve ser ensinado àqueles que não praticam austeridades, àqueles que não são devotos, àqueles que não prestam serviço, àqueles que falam mal de mim. Aquele que transmitir, com suprema devoção, estes ensinamentos para aqueles que são meus devotos, esse, por certo, chegará até mim.”. [idam te nātapaskāya nābhaktāya kadācana / na cāśuśruṣave vācyam na ca mām yo 'bhyasūyati // ya idam paramam guhyam madbhakteṣvabhidhāsyati / bhaktim mayi parām kṛtvā māmevaiṣyatyasamśayaḥ] (Bhagavad Gītā, 1985, XVIII.67-8, p. 516-7)

6Fundada por Śaṅkarācārya (séc. VIII), a subescola Advaita Vedānta é conhecida também como Kevalādvaita Vedānta ou Escola da Pura Não-Dualidade. Essa designação tem por objetivo contrastar a proposta de não-dualidade (advaita) de Śaṅkarācārya - que exclui qualquer possibilidade de distinção subsistente entre ātman (princípio da subjetividade) e Brahman (princípio de unidade do Real) - e outras propostas de não-dualidade que admitem diferenciações subsistentes entre ambos ou, ainda, um misto de diferença e não-diferença.

7 yogās trayo mayā proktā nṝṇāṁ śreyo-vidhitsayā jñānaṁ karma ca bhaktiś ca nopāyo ’nyo ’sti kutracit (BHĀGAVATA PURĀṆA, 2019, 11.20.6)

8“As três partes referem-se, sucessivamente, aos rituais, meditações [i.e., devoções] e conhecimento. Em conformidade com elas, o Bhagavad Gītā, que consiste em dezoito capítulos, possui três seções. (karmopāstistathā jñānamiti kāṇḍatrayam kramāt / tadrūpāṣṭādaśādhyāyī gītā kāṇḍatrayātmikā) (SARASVATĪ, 1901, Introd. 4, p. 1)

9Madhusūdana Sarasvatī afirma: “Na primeira seção, por um lado, o puro Si-Mesmo, expresso através da palavra ‘tu’, é racionalmente determinado através do caminho da renúncia [aos frutos da] ação (tatra tu prathame kāṇḍe karmatattyāgavartmanā / tvampadārtho viśuddhātmā sopapattirnirūpyate) (SARASVATĪ, 1901, Introd. 8, p. 1).

10Madhusūdana Sarasvatī afirma: “Na segunda seção, por outro lado, mediante a postulação [da necessidade] de uma firme devoção a Deus, o sentido da palavra ‘isso’ é determinado enquanto Suprema Personalidade e [fonte de] beatitude máxima (dvitīye bhagavadbhaktiniṣṭhāvarṇanavartmanā / bhagavānparamānandastatpadārtho’ vadhāryate)” (SARASVATĪ, 1901, Introd. 9, p. 1).

11Madhusūdana Sarasvatī afirma: “E, finalmente, na terceira seção, o sentido último da frase ‘Tú és Isso’ é expresso em termos da unicidade entre ambas [as palavras]. Nesse sentido, o Bhagavad Gītā possui, inegavelmente, uma organicidade entre as [três] seções (tṛtīye tu tayoraikyam vākyārtho varṇyate sphuṭam / evamapyatra kāṇḍānām sambandho’ sti paraspam)” (SARASVATĪ, 1901, Introd. 10, p. 1).

12ubhayānugatā sā hi sarvavighnāpanodinī (SARASVATĪ, 1901, Introd. 7, p. 1).

13karmamiśrā ca śuddhā ca jñānamiśrā ca sā tridhā (SARASVATĪ, 1901, Introd. 7, p. 1).

14Appayya Dīkṣita (séc. XVI), contemporâneo de Madhusūdana Sarasvatī, realizou tarefa semelhante no contexto da vertente śaiva da escola Advaita Vedānta, na qual Śiva emerge como divindade absoluta, personalidade suprema e fundamento último do Real.

15Nesse sentido, e ainda que com conteúdos processuais distintos, a inseparabilidade bhakti-jñāna que domina o projeto de Madhusūdana Sarasvatī em seu comentário Gūḍhārthadīpikā aproxima-se do projeto de Rūpa Gosvāmī (séc. XVI) em seu Bhaktirasāmṛtasindhu, fundamento teórico da escola vedāntina Acintyabhedābheda do grande mestre Caitanya Mahāprabhu.

16“Entoando, continuamente, cantos de louvores, fixando continuamente a mente [em mim], firmes no cumprimento dos votos (de adoração), e zelosos na saudação (reverencial) a mim, eles permanecem eternamente em ato de adoração, pleno de devoção (satatam kīrtayanto mām yatantaśca dṛḍhavratāḥ / namasyantaśca mām bhaktyā nityayuktā upāsate)” (BHAGAVAD-GĪTĀ IX.14, in SARASVATĪ, 1901, p. 288).

17Os onze estágios (bhūmikā) em que se desdobram as nove disciplinas de bhakti, vinculadas a outras tantas rasas (SARASVATĪ, 1998, I.1, p. 1), são as seguintes: (ii) mahatām sevā (servir aos sábios), (ii) taddayāpātratā (ser digno da compaixão dos sábios), (iii) śraddha’tha teṣām dharmeṣu (ter fé nos ensinamentos dos sábios), (iv) hariguṇaśruti (cantar as qualidade de Hari/Kṛṣṇa), (v) ratyāṅkuropatti (o despertar da semente do amor), (vi) svarūpādhigati (realização da natureza última da Verdade), (vii) paramānande premavṛddhi (intensificação do êxtase amoroso que conduz à suprema beatitude), (viii) tasya sphuraṇa (manifestação direta da Suprema Personalidade), (ix) bhagavaddharma niṣṭhā (imersão espontânea nas disciplinas de devoção à Suprema Personalidade), (x) svaminstad guṇaśālitā (aquisição em si-mesmo das qualidades, (xi) premṇo’tha paramākāṣṭhā (o limite supremo do êxtase amoroso) (SARASVATĪ, 1998, I.34-6, p. 26). O último estágio preman - i.e., o êxtase definitivo em Kṛṣṇa - é aqui concebido, pelo menos para o devoto, como superior à estrita eliminação da ignorância que encobre Brahman (mokṣa).

18śravaṇaṃ kīrtanaṃ viṣṇoḥ smaraṇaṃ pādasevanaṃ / arcaṇaṃ vandanaṃ dāsyaṃ sakhyamātmanivedanam (BHĀGAVATA PURĀṆA 2019, 7.5.23).

19“Renuncia a todas as ações e busca refúgio somente em mim (sarvadharmān parityajya māmekaṁ śaraṇaṁ vraja)” (BHAGAVAD-GĪTĀ XVIII.66, in SARASVATĪ, 1901, p. 510).

20jīvanmuktidaśāyām tu na bhakteḥ phalakaçpanā / adveṣṭṛtvādivatteṣām svabhāvo bhajanam hareḥ // ātmārāmāśca munayo nirgranthā apyurukrame / kurvantyahaitukim bhaktimitthambhūtaguṇo hariḥ // teṣāṃ jñānī nityayukta ekabhaktirviśiṣyate / ityādivacanāt premabhakto’yaṃ mukhya ucyate (SARASVATĪ, 1901, Introd. 37-39, p. 3).

21“Mas aqueles que estão firmemente estabelecidos no conhecimento [supremo], que são dotados de uma mente firme, cujo intelecto está unido ao meu, e que me enxergam como seu objetivo supremo - eu os considero como o meu próprio ser” (jñānī tvātmaiva me matam āsthitaḥ sa hi yuktātmā mām evānuttamāṁ gatim) (BHAGAVADGĪTĀ in SARASVATĪ, 1901, VII.18, p.251).

22As sete etapas são as seguintes: śubhecchā (determinação), vicāraṇa (reflexão), tanumānasa (concentração mental), sattvāpatti (experiência da Verdade), asamsakti (não intercurso), padārthābhāvana (ausência de objetos [substanciais]), turīya (Êxtase/Iluminação) (YOGA VĀSIṢṬHA, 13.113-4, cited in SARASVATĪ, 1901, VII.18, p.107).

23dravībhāvapūrvikā hi manaso bhagavadākāratā savikalpakavṛttirūpā bhaktiḥ / dravībhāvānupetādvitīyātmamātragocarā nirvikalpakamanovṛttirbrahmavidyā (SARASVATĪ, 1998, I.1, p. 6-7).

24yasyās tu samādhyavasthāyā na svato na vā parato vyutthito bhavati sarvathā bheda-darśanābhāvāt / kintu sarvadā tanmaya eva svaprayatnam antareṇaiva parameśvarapreritaprāṇavāyuvaśād anyair nirvāhyamāṇadaihikavyavahāraḥ paripūrṇaparamānandaghana eva sarvatas tiṣṭhati / sā saptamī turīyāvasthā tāṃ prāpto brahmavid variṣṭha ity ucyate (SARASVATĪ, 1901, III.18, p. 108).

25Os quatro requisitos para o empreendimento filosófico na tradição Advaita Vedānta são os seguintes: viveka (discriminação entre o Real e o Não-Real); vairāgya (renúncia à fruição de todos os objetos, presente ou futuros, deste ou doutro mundo); adsampatti (proficiência em seis virtudes, a saber, controle da mente, controle dos sentidos, controle das ações, tolerância, fé nos Vedas e no mestre, foco absoluto na meta a alcançar); e mumukṣutva (intenso desejo pela Iluminação).

26prāṇimātrasya bhaktāv adhikāraḥ / brahma-vidyāyām tu sādhanacatuṣṭayasampannasya paramahaṃsaparivrājakasya (SARASVATĪ, 1998, I.1, p. 6).

27Vimalakīrti é, sem dúvida, o mais conhecido de todos eles.

28Os iniciados devem possuir as qualidades de (i) amor para com Deus (bhagavadanurakti); (ii) amor para com o mestre (guru-bhakti); (iii) e dedicação ao serviços a eles (śuśruṣā) (SARASVATĪ, 1901, XVIII.47, p. 512).

29niṣkāma-karmānuṣṭhānaṃ tyāgāt kāmya-niṣiddhayo / tatrāpi paramo dharmo japastutyādikaṃ hareḥ (SARASVATĪ, 1901, Introd. XII, p. 2).

30São elas: serenidade (śama), auto-controle (dama), tolerância (titikṣā), fé/convicção (śraddhā) e concentração mental (samādhāna).

31Cf. BHAGAVAD-GĪTĀ, X.22, in SARASVATĪ, 1901, p. 312.

32A expressão abhakta aparece no Bhagavad-Gītā, XVIII.67 (in SARASVATĪ, 1901, p. 512) e no Bhāgavata Purāṇa, 11.27.18 (2019).

33Na māṁ duṣhkṛitino mūḍhāḥ prapadyante narādhamāḥ māyayāpahṛitajñānā āsuraṁ bhāvam āśhritāḥ / caturvidhā bhajante māṁ janāḥ sukṛitino ’rjuna ārto jijñāsur arthārthī jñānī ca bharataṛṣabha (BHAGAVAD GĪTĀ VII.15-16, in SARASVATĪ, 1901, p. 249-50).

34śatruvyādhyādyāpādagrastastannivṛttimicchan (SARASVATĪ, 1901, VII.16, p. 250).

35Iha vā paratra vā yadbhogopakaranam tallipsuḥ (SARASVATĪ, 1901, VII.16, p. 250).

36Deve-se fazer aqui uma distinção entre os termos linguisticamente afins apahṛtajñāna e hṛtajñāna: o primeiro significa “privado [totalmente] de conhecimento” e refere-se à condição de não-devoto; o segundo significa “privado [parcialmente] de conhecimento” e refere-se à condição de ārta (“sofredor”) e de arthārthin (“buscador de prosperidade material”).

37A palavra devatā (divindade) deve ser aqui contraposta à palavra āsura da estrofe 15: a primeira envolve o reconhecimento, por meio de śraddhā, de algo transcendente ao ego, ao passo que a segunda envolve a rejeição de qualquer forma de transcendência.

38jijñāsurātmajñānārthī mumukṣuḥ (SARASVATĪ, 1901, VII.16, p. 250).

39bhagavati pratyagabhinne sadā samāhitacetā (SARASVATĪ, 1901, VII.16, p. 250).

40vijñānam ānandam brahma (BṚHADĀRṆYAKA UPANIṢAD, 2019, III.ix.28).

41teṣāṃ jñānī nityayukta ekabhaktirviśiṣyate / priyo hi jñānino'tyarthamahaṃ sa ca mama priyaḥ // udārāḥ sarva evaite jñānī tvātmaiva me mata (BHAGAVAD-GĪTĀ VII.17-18, in SARASVATĪ, 1901, p. 251).

Recebido: 30 de Julho de 2020; Aceito: 21 de Outubro de 2020

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