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Educação e Filosofia

versión impresa ISSN 0102-6801versión On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.33 no.69 Uberlândia set./dic 2019  Epub 06-Feb-2022

https://doi.org/10.14393/revedfil.v33n69a2019-46926 

Artigos

Diderot e a educação como projeto de Estado

Diderot and education as State project

Diderot y la educación como proyecto de Estado

Fabiana Tamizari* 

*Doutora em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (MACKENZIE). Servidora na Secretaria da Educação do Estado de São Paulo. Colaboradora da Universidade de Coimbra, Portugal. E-mail: fabitamizari@yahoo.com.br


Resumo

O Iluminismo, além de movimento intelectual, também se traduziu em intensa atividade política, sendo uma das faces desta ação o despotismo esclarecido: fruto da aliança entre filósofos, que buscavam divulgar seus ideais, e monarcas absolutistas, empenhados em melhorar a sua imagem pública. A aproximação do filósofo Diderot com a imperatriz russa Catarina II, produziu reflexões sobre vários temas, um deles aqui explorado: o papel do Estado na educação pública, apresentado na obra Plano de Uma Universidade (1783). Em nosso artigo, partimos da apresentação do despotismo esclarecido, com foco na relação de Diderot com a imperatriz russa. Em seguida, discorremos sobre as bases da educação pública no século XVIII, e finalizamos com a proposta diderotiana sobre o papel do Estado no fomento da educação pública, enfatizando três propostas elementares, que, segundo o autor, promoveriam essa aliança: o acesso irrestrito à educação, a presença do Estado na estrutura administrativa e organizacional, e a atualização curricular.

Palavras-Chave: Iluminismo; Diderot; Educação

Abstract

The Enlightenment was not only an intellectual movement, but was also expressed in politics, such as in enlightened despotism. This was the result of an alliance between philosophers in search to spread their ideas and absolutist monarchs trying to enhance their public figures. Here we explore one among many fruits of the association between Diderot and Catherine the II, Empress of Russia: the role of the State in public education, as presented in The Plan of a University (1783). We start from a general presentation of enlightened despotism, focusing on Diderot and Catherine the Great’s relation; next, we explore the basis of public education on the XVIII century, and finally we present Diderot’s plan itself, in which the State has the role of fostering education, relying on three key aspects: unrestricted access to education, the presence of the State in the organizational and administrative structure, and the update of the curriculum.

Keywords: Enlightenment; Diderot; Education

Resumen

El Iluminismo, además de movimiento intelectual, también se tradujo en intensa actividad política, siendo una de las caras de esta acción el despotismo ilustrado: fruto de la alianza entre filósofos, que buscaban divulgar sus ideales, y monarcas absolutistas, empeñados en mejorar su imagen pública. La aproximación del filósofo Diderot con la emperatriz rusa Catalina II, produjo reflexiones sobre varios temas, uno de ellos aquí explotado: el rol del Estado en la educación pública, presentado en la obra Plan de una Universidad (1783). En nuestro artículo, partimos de la presentación del despotismo ilustrado, teniendo em cuenta la relación de Diderot con la emperatriz rusa. A continuación, discordamos sobre las bases de la educación pública en el siglo XVIII, y finalizamos con la propuesta diderotiana sobre el rol del Estado en el fomento de la educación pública, enfatizando tres propuestas elementales que, según el autor, promoverían esa alianza: el acceso irrestricto a la educación, la presencia del Estado en la estructura administrativa y organizativa, y la actualización curricular.

Palabras Clave: Iluminismo; Diderot; Educación

Introdução

No Verbete “Filósofo”, encontramos uma defesa entusiasta dos efeitos da associação do filósofo com o rei: “Moldai um soberano a um filósofo dessa têmpera, e tereis um soberano perfeito” (DIDEROT; D’ALEMBERT, 2015, p. 294)1, argumento que se completa citando o imperador romano Antonino: “Como serão felizes os povos, quando os reis forem filósofos ou os filósofos forem reis”2 (DIDEROT; D’ALEMBERT, 2015, p. 294). Surge, assim, o movimento denominado despotismo esclarecido, 3no qual se cria a expectativa de que um príncipe ilustrado, devidamente aconselhado ou educado por um filósofo, empreenda uma série de medidas reformistas e se transforme em um agente civilizador, inimigo dos privilégios absurdos, das superstições e da influência do clero (FALCON, 1986, p. 16). Apesar das divergências, alguns traços são comuns nas propostas reformistas dos filósofos do Iluminismo. Apresentemos algumas.

A primeira delas era a necessidade de combater a intolerância religiosa, e, para isso, os filósofos advogavam a separação das jurisdições da Igreja e do Estado (SOUZA, 2015, p. 19). O próximo traço compartilhado era repudiar a tortura, as prisões arbitrárias, o tráfico negreiro, a censura e “tudo que atinge a vida e a liberdade” (SOUZA, 2015, p. 19). Os iluministas também defendiam a ampliação da atuação do Estado, principalmente na educação, por meio da promoção de reformas e da ampliação do acesso à escola. Ainda discutiam como reformular a burocracia estatal, herdeira de uma estrutura ultrapassada, fincada na herança medieval (FALCON, 1986, p. 26). Já economicamente, a maior expressão do despotismo esclarecido foram os fisiocratas. Os economistas desta escola defendiam medidas para superar o mercantilismo, política econômica que já dava sinais de esgotamento durante o século XVIII, defendendo, por exemplo, o aumento da produção por meio da redução das taxas e dos impostos (FALCON, 1986, p. 21).

Os filósofos, assim, assumem um papel atuante como agentes de transformação social entres os iluministas, sendo Voltaire e Diderot os exemplos mais representativos dessa atuação, como ressalta Cambi (1999, p. 325): “Eles usam a pena como uma arma, para atacar preconceitos e privilégios, para denunciar intolerâncias e injustiças, mas, ao mesmo tempo, delineiam um novo panorama do saber [...] útil para o homem e para a sociedade”. Ele ainda completa: “São intelectuais socialmente engajados que dialogam criticamente com o poder político, do qual ambicionam tornar-se conselheiros [...] para promover amplos projetos de reformas em todos os campos da vida social” (Cambi, 1999, p. 325). Além de colocarem suas obras em defesa de mudanças sociais, os dois atuaram, diretamente, junto ao poder estabelecido, buscando com a aproximação aos déspotas esclarecidos, como Frederico II, da Prússia, e Catarina II, da Rússia, empreender mudanças que acreditavam ser necessárias para ampliar o alcance das ideias iluministas.

Já para os reis, ao se associar aos filósofos, eles recebiam o aval e o reconhecimento para os seus governos, como destaca Badinter: “[...] todo déspota deve pretender-se esclarecido. Para isso, é necessário a benção dos filósofos, cuja aprovação e mesmo os aplausos constituem uma espécie de nova forma de legitimidade”. (BADINTER, 2009, p. 19). Ainda como acrescenta a pesquisadora, os reis, para obter esse reconhecimento, “oferecem aos filósofos, à parte as facilidades de praxe, a dignidade e consideração do soberano, que tanto lhes fazem falta em Paris. Melhor ainda, dão-lhes a ilusão do poder, na expectativa da aplicação de suas ideias” (BADINTER, 2009, p. 19).

Ainda que esse movimento tenha obtido alguns efeitos pontuais, o resultado da associação dos monarcas aos filósofos não alterou as estruturas sociais, pois, ao aplicar na íntegra os princípios iluministas, os déspotas estariam declarando o seu próprio fim, como destaca Hobsbawn (2002, P. 42): “[...] o iluminismo implicava a abolição da ordem política e social vigente na maior parte da Europa. Era demais esperar que os anciens régimes se abolissem voluntariamente”. Ainda, como completa Fortes (2004, P. 80), dentro desse contexto “pode-se perguntar se haveria mesmo, afinal, uma diferença assim tão grande entre a atuação dos chamados ‘déspotas esclarecidos’ e a dos outros monarcas - o da França, por exemplo”. Inclusive, reforçando o argumento, podemos destacar, conforme Falcon (1986, p. 65), que, nos governos esclarecidos, houve um “fortalecimento da autoridade monárquica, que assume diferentes formas políticas e administrativas” sempre com o objetivo de aumentar “a riqueza do país, o aumento dos recursos à disposição do tesouro e o fortalecimento militar”.4

Um representante modelo desse movimento foi o imperador da Prússia, Frederico II (1712-1786). Durante os seus quarenta e seis anos de governo, promoveu uma intensa troca de correspondências com Voltaire, incentivou e protegeu artistas, filósofos e literatos, deu asilo aos perseguidos políticos e religiosos, produziu obras de cunho político,5 além de abolir a tortura e a corveia e incentivar a fundação de escolas elementares e a instrução pública. Porém, apesar de todos esses avanços, reforçou o absolutismo, como fica evidente em seu Código, no qual concentra os poderes nas mãos do imperador e proíbe os servos de mudarem de profissão ou de se casarem sem a autorização dos senhores (FORTES, 2004, p. 81).

Além de Frederico II, Catarina II (1729-1796), a imperatriz da Rússia, também passou à história como uma déspota esclarecida. Leitora assídua dos iluministas, Catarina se aproxima dos filósofos após o golpe de Estado que a levou ao poder, em 1762, quando propôs a Diderot e D´Alembert que terminassem a Enciclopédia em território russo, porém não obteve êxito devido aos vínculos dos enciclopedistas com os editores. Frente a uma nova tragédia ligada ao seu nome, a morte de Ivan VI, em 1764, busca novamente se ligar aos filósofos iluministas e, desta vez, consegue estreitar os laços com Diderot, uma vez que adquire a sua biblioteca, no ano seguinte. A soberana, porém, somente aceita recebê-la após a morte do filósofo e ainda o remunera anualmente para preservar a coleção e comprar novos livros. O gesto arrebata toda a República das Letras, que passa ver na imperatriz uma agente modernizadora das terras do Leste.

A imperatriz, imbuída do espírito reformista, empreende algumas mudanças, como secularizar as terras da Igreja, transformar os membros do clero em funcionários do Estado. Ela inicia uma reforma educacional e propõe reformar o código de leis russo. Para isso, escreve o Nazak, no qual estabelece orientações para dirigir a assembleia convocada para tal evento. Mas as intenções esclarecidas de Catarina II são suplantadas pelo seu absolutismo, mostra clara dessa posição são o cancelamento da assembleia para o novo código de leis, o tratamento dado aos servos e sua postura em relação aos territórios conquistados.

Diderot que, no início da relação, estava encantado com a possibilidade de instruir Catarina II e em transformar-se num dos “professores dos senhores do mundo” (BADINTER, 2009, p. 19), toma consciência, em sua estadia na Rússia, que os filósofos “não passavam de peões no jogo de seus protetores” (BADINTER, 2009, p. 19). Frente a esta dura constatação o filósofo escreverá duas importantes obras, em que demonstra a sua análise sobre o despotismo esclarecido. A primeira, em 1774, Observações sobre Nazak, na qual analisa e critica as orientações da imperatriz sobre a Assembleia para a criação do código de leis, e a segunda, escrita em 1778, e ampliada em 1782, Ensaio sobre os reinados de Claudio e Nero e sobre a vida e os escritos de Sêneca, uma obra autobiográfica. Nas duas, percebemos o tom de descontentamento e desilusão ao avaliar a relação com a imperatriz e notar o papel limitado do filósofo em promover mudanças. Diderot, inclusive, demonstra-se, em seus últimos anos, um entusiasta da democracia e da soberania popular.

Entretanto entre as duas obras, Diderot teve um último sopro de esperança de produzir algo relevante por meio da amizade com Catarina II. Admirador das suas reformas educacionais, ele aceitou, em 1774, o convite da imperatriz para traçar e esboçar o projeto para uma universidade na Rússia. A obra foi escrita em cinco meses e se transformou no projeto mais completo sobre educação pública escrita durante o Iluminismo. Diderot que, desde a Enciclopédia, defendia o poder transformador do conhecimento, apresenta nesse plano a maneira de divulgar o saber e fazê-lo chegar a todos os cidadãos, caminho que, para o filósofo, passa, indubitavelmente, pela atuação efetiva do Estado. Para que o Estado pudesse atuar de forma efetiva nesse sentido, era necessário garantir que o ensino atingisse todos os cidadãos, sem distinção de classe, fosse administrado pelo governo e houvesse uma atualização no currículo, tornando-o compatível com os avanços e as novas concepções do conhecimento. Neste artigo, analisaremos a parte política da proposta do Plano de Uma Universidade, no qual destacaremos o papel do Estado na promoção de uma educação atuante na transformação social. Em primeiro lugar apresentaremos um breve panorama sobre a educação no século XVIII, com o objetivo de situar o estado da educação pública no momento das reformas propostas por Diderot.

A educação no século XVIII e a ideia de uma educação pública

No século XVIII, foi intenso o debate sobre a educação. As discussões giravam em torno do papel do Estado no processo educacional e da eleição da melhor prática pedagógica. Em relação aos aspectos pedagógicos, o século das Luzes defendia a crença no poder ilimitado da educação, tanto no âmbito individual, quanto no coletivo, no aperfeiçoamento infinito da conduta humana, e, para isso, o governo assume um papel central, uma vez que caberá a ele promover as medidas necessárias para o instruir o povo, secularizar a educação e estabelecer a sua subordinação ao Estado.6 Para exemplificarmos esse processo, citemos, resumidamente, as reformas empreendidas na Prússia e na Áustria.

Na Prússia, desde o advento da Reforma Religiosa, no século XVI, liderada por Lutero7 (1483-1546), encontramos a implantação de uma educação pública religiosa, na qual encontramos a fundação de escolas mantidas com recursos públicos, frequência obrigatória e com um conteúdo essencialmente religioso. Cabe destacar que, para a realização destas mudanças, foi estabelecida uma legislação escolar estatal, que pode ser considerada o princípio da educação pública (LUZURIAGA, 1959, p. 06). O processo, iniciado no século XVI, foi sendo aperfeiçoado, e, no século XVIII, além dos aspectos religiosos, a educação passa a ser vista como um instrumento essencial para a formação de um Estado forte, com bons súditos e funcionários. Para alcançar esse objetivo, Frederico Guilherme I (1688-1740) irá intensificar a participação do Estado na educação, estabelecendo em 1736, a Principia regulativa ou Plano geral de escolas, no qual transforma todas as paróquias em sociedades escolares, ou seja, cada Igreja tinha a obrigação de construir uma escola, contribuir para o salário do mestre, e, em parceria com os alunos e a comunidade deveria fornecer as provisões necessárias para o funcionamento do estabelecimento escolar. Ainda como parte do plano, estabelecia um fundo público para financiar as escolas de localidades pobres e estabelecia o Estado como fiscalizador das instituições privadas de ensino (LUZURIAGA, 1959, p. 26).

Já no governo de Frederico II, completa-se o processo de centralização da educação nas mãos do Estado por meio das regulamentações gerais da educação (General Landschulschul Reglement). O monarca esclarecido implantará a secularização da educação que, apesar de não ser mais dirigida pela Igreja, manterá as bases religiosas. Frederico II afirmava que o processo escolar era obrigatório para todas as crianças entre 5 e 14 anos e que, além de aprender ler e escrever, elas deveriam aprender o cristianismo para desenvolver um “racional e cristão temor a Deus” (LUZURIAGA, 1959, 29). Ele completou a sua reforma com a criação de uma escola normal para a formação de mestres, e também a criação de um seminário de mestres em Berlim, e instituiu o exame supletivo para a conclusão do ensino secundário (LUZURIAGA, 1959 p. 31). O processo de reforma educacional foi concluído pelo sucessor de Frederico II, Frederico Guilherme III, que estabeleceu o Código Geral Civil, em 1794, no qual declarou que todas as escolas e universidades eram instituições do Estado, as quais tinham por finalidade instruir os jovens nos conhecimentos úteis e científicos. Com isso, o ensino religioso deixava de ser obrigatório, e todas as instituições eram fiscalizadas pelo Estado (LUZURIAGA, 1959, p. 31).

Na Áustria, a reforma educacional foi conduzida pela rainha católica Maria Tereza (1717-1780) e aprovada em 1774. As escolas eram destinadas a ambos os sexos, e o seu objetivo principal era, conforme declarado por José II, que todos tivessem consciência do seu papel de servir o Estado e adquirir saber e bons costumes. Para alcançar esse objetivo, o sistema educacional austríaco foi constituído de algumas etapas. A primeira era denominada Trivial ou Deutsche Schule, durava dois anos e era destinada a jovens entre seis e doze anos, os quais aprendiam o Trivium (gramática, lógica e retórica), e ainda a esta etapa poderia ser acrescentado um ano de aula de latim. A sequência dos estudos poderia ocorrer nas Hauptschulen, escolas destinadas à formação profissional ou nas Normalschulen, destinadas à formação dos mestres, as duas com duração de quatro anos. Também estava previsto as Gymnasien, escolas intermediárias de latim, com o objetivo de preparar para o ensino universitário, última etapa da formação. A reforma ainda previa algumas escolas diferenciadas, como a academia de equitação, a academia oriental, a escola de desenho manufatureiro para a indústria têxtil e a escola de comércio (MANACORDA, 1989, p. 248).

Para situarmos a posição de Diderot e dos demais pensadores iluministas, devemos apresentar o quadro da educação francesa no século XVIII, o qual forneceu o pano de fundo das suas discussões e de suas propostas. Não havia um sistema educacional público estabelecido, a educação pública e particular estava nas mãos dos particulares e das congregações religiosas. O ensino primário se encontrava, principalmente, com os membros da ordem dos Irmãos da Doutrina Cristã e o ensino secundário estava nas mãos da Companhia de Jesus.8 O Estado tinha pouco controle sobre as instituições, mesmo após a expulsão dos jesuítas, em 1762, o governo não assumiu o controle da educação (CAMBI, 1999, p. 335). O movimento que atingiu os países administrados pelo despotismo esclarecido, pouco influenciou no território francês. Na França, encontramos uma série de propostas que serão discutidas no âmbito teórico, ganhando um aspecto prático somente após a Revolução Francesa, com a possibilidade da instituição de uma educação nacional.

O primeiro grupo de teóricos é ligado à política. Dentre estes, La Chalotais (1701-1785), no Essai d´education national, defende que a educação seja conduzida pelo Estado, voltada para o bem civil dos cidadãos e secularizada, porém impõe restrições à formação das classes populares, que deveria ser restrita às suas ocupações. Rolland d´Erceville (1734-1794), presidente do parlamento francês, apresenta, em 1768, um relatório no qual defende a universalização da aprendizagem da leitura e da escrita, a secularização dos professores, a criação de uma instituição para formar mestres e a criação do cargo de Diretor superior da Educação (cargo subordinado ao Ministério da Justiça), mas também mantém as restrições impostas por La Chalotais. O último político foi Turgot (1727-1781), que denuncia a insuficiência da instrução dada pelas congregações religiosas e defende que o objetivo da educação era a formação do cidadão devidamente informado sobre suas obrigações sociais. Ele também destaca que as escolas estejam instaladas em cada paróquia e devem ensinar a ler, escrever, contar e princípios da mecânica, e defende a criação de um conselho de Instrução Nacional (LUZURIAGA, 1959, p. 34-35).

Já entre os pensadores iluministas, quanto ao princípio da instituição da educação pública, encontramos declaração de Montesquieu, na obra do Espírito da Leis, na qual defende que as leis relativas à educação devem ser determinadas pelo Estado. Ali, afirma que um governo monárquico estimula o conhecimento do mundo e da vida, e um governo despótico reduz a educação ao temor, pois este tem consciência do perigo provocado pelo saber.

Para D`Alembert, como lemos no verbete “Colégio” da Enciclopédia, os jovens recebem uma educação deficitária em desacordo com os avanços promovidos pela ciência, e que em nada contribui para a sua formação moral e religiosa:

[...] um jovem que passou dez anos de sua vida no colégio, anos que estão entre os mais preciosos, deixa essa instituição com conhecimentos imperfeitos de uma língua morta, com preceitos de Retórica e de Filosofia que seria melhor esquecer, muitas vezes com os costumes tão corrompidos que a degradação de sua saúde é o menor dos males, porventura com princípios de uma devoção equivocada, e no mais das vezes com conhecimentos de religião tão superficiais que sucumbem à primeira conversação ímpia ou à primeira leitura perigosa (DIDEROT; D´ALEMBERT, 2015, p. 66).

Segundo o enciclopedista, tal situação somente poderia ser revertida com o Estado assumindo o papel de dirigente da Educação e a atualização do currículo conforme os ditames iluministas. D’Alembert também se posiciona contra a educação gratuita e defende a valorização dos professores. Segundo ele, na França, “costuma-se fazer pouco dos que se dedicam a cumprir seu dever público; prefere-se que sejam frívolos” (DIDEROT, D´ALEMBERT, 2015, p. 71).

Rousseau apresentou as suas reflexões sobre a educação em duas obras, o Emílio e Considerações sobre o Governo da Polônia. A primeira o consagrou como o “pai da pedagogia contemporânea”, no momento em que o filósofo coloca a criança como centro da sua teoria. Já a educação pública é abordada pelo filósofo genebrino na obra Considerações sobre o Governo da Polônia. Nela, Rousseau ressalta que a educação pública deve ter como principal objetivo estimular o amor à pátria e valorizar as práticas republicanas, como podemos ler no trecho a seguir:

É a educação que deve dar às almas a forma nacional e dirigir de tal forma suas opiniões e seus gostos, que elas sejam patriotas por inclinação, por paixão, por necessidade. Uma criança, abrindo os olhos, deve ver a pátria e até à morte não deve ver nada além delas. Todo verdadeiro republicano sugou o leite de sua mãe e o amor de sua pátria, isto é, das leis e da liberdade. Esse amor faz toda sua existência; ele não vê nada além da pátria e só vive para ela; assim que está só, é nulo; a partir do momento em que não tem mais pátria, não existe mais, e se não está morto, é pior do que isso (ROUSSEAU, 1982, p. 36).

Rousseau ainda cita que não há a possibilidade do estabelecimento de uma educação pública totalmente gratuita e, por isso, defende que as mensalidades devem ser acessíveis aos pobres ou o estabelecimento de um sistema de bolsas cuja concessão seria mediante análise dos serviços que os pais prestaram à pátria. Inclusive, defende que sejam aplicadas uma série de jogos públicos, tanto para os alunos educados nos colégios, como os que recebem uma educação doméstica, com o objetivo de “acostumá-los desde cedo à regra, à igualdade, à fraternidade, às competições, a viver sob os olhos de seus concidadãos e a desejar a aprovação pública” (ROUSSEAU, 1982, p 38). Ele também ressalta a necessidade de estimular as crianças à prática de exercícios físicos, que possuem um duplo sentido na formação: “não somente para formar temperamentos robustos e sadios, mas ainda tendo em vista o objeto moral, que se negligencia ou que não se preenche a não ser em virtude de um monte de preceitos pedantescos e vãos que são palavras perdidas” ( p. 38).

Diderot também compunha as fileiras dos iluministas franceses que se dedicaram a pensar a educação. Além de aspectos pedagógicos, o enciclopedista dedicou-se de modo detalhado a pensar a institucionalização da educação pública. Desde a edição e redação de artigos da Enciclopédia, bem como com a elaboração para Catarina II de Planos e estatutos dos diferentes estabelecimentos ordenados pela Imperatriz Catarina II para a educação da juventude ou Plano de Uma Universidade, elegeu a educação como a ferramenta essencial para transformar o indivíduo e a sociedade por meio do estabelecimento de uma educação pública e do desenvolvimento de um currículo de inspiração iluminista.

Diderot e a defesa da educação pública

No Plano de Uma Universidade, Diderot expõe nos mínimos detalhes o que ele considera uma universidade ideal, descrevendo seus princípios, o seu funcionamento e a ordem dos estudos das quatro faculdades que compõem a universidade: Belas Artes, Medicina, Direito e Teologia. A obra também apresenta uma crítica contundente à presença da religião no sistema educacional, a qual para Diderot, representa a perpetuação do obscurantismo, da preservação da intolerância religiosa e também pelo descompasso entre os conteúdos ensinados, vinculados a uma tradição medieval, e os avanços científicos que são uma realidade desde o Renascimento. O documento representa, como afirma Badinter, “o projeto universitário mais elaborado saído da pena de um dos filósofos; também continuaria sendo o mais concreto e o mais documentado” (BADINTER, 2009, p. 264). Portanto, mesmo que o plano não tenha sido implantado por Catarina II, como afirmamos anteriormente, ele representou de forma concreta como Diderot defendia a educação nos moldes iluministas, complementando assim o seu projeto de difusão das luzes iniciado com a Enciclopédia. A seguir, apresentaremos os aspectos políticos e sociais discutidos no Plano. Para Diderot, a educação representava a possibilidade real de desenvolvimento da nação: “Instruir uma nação é civilizá-la. Extinguir nela os conhecimentos é reduzi-la ao estado de barbárie” (DIDEROT, 2000, p. 263). Para reforçar o seu argumento, o filósofo recorre à história e cita os gregos, os romanos, os egípcios e africanos,9 que viveram o apogeu e experimentaram a decadência após se afastarem do conhecimento (2000, p. 263).

O enciclopedista destaca que a educação promove a emancipação do indivíduo: “A ignorância é o quinhão do escravo e do selvagem. A instrução dá ao homem dignidade e o escravo não tarda a sentir que ele não nasceu para a servidão” (DIDEROT, 2000, p. 263). Portanto, como lemos nas palavras de Diderot, a educação tem o poder de conscientizar o homem da sua condição e mobilizar a sua luta para reverter a condição de opressão que ele possa viver. Neste ponto, não podemos deixar de citar que Diderot discutia uma questão sensível no território russo, a servidão. Com características muito próximas da escravidão, era uma prática recorrente no país e que o governo de Catarina não reverteria, pelo contrário, houve uma ampliação no número de servos durante o seu reinado.

O filósofo segue apontando as vantagens de instruir o indivíduo: “O selvagem perde essa ferocidade das florestas que não reconhece nenhum senhor, e assume em lugar dela uma docilidade refletida que o submete e o prende às leis feitas para a sua felicidade” (DIDEROT, 2000, p. 263), e, novamente, reforça o aspecto político do processo educacional: “Sob um bom soberano é o melhor dos súditos; é o mais paciente, sob um soberano insensato” (2000, p. 263), ou seja, a educação aprimora as habilidades dos cidadãos em julgar um governo, torna-os conscientes em avaliar as decisões tomadas pelo soberano. Não podemos esquecer que esse documento foi escrito após Observações sobre Nazak, no qual Diderot abertamente critica Catarina II pelo caráter arbitrário do seu governo e quanto era essencial o estabelecimento de um governo baseado na soberania popular, no qual todos, inclusive o monarca, fossem submetidos às leis.

Além dos aspectos individuais, Diderot também atribui à educação o desenvolvimento da sociedade e seu aprimoramento moral:

Depois das necessidades do corpo que reuniram os homens para lutar contra a natureza, sua mãe comum e sua infatigável inimiga nada os aproxima mais e não estreita mais apertadamente dos que as necessidades da alma. A instrução adoça os caracteres, aclara os deveres, sutiliza os vícios, os sufoca ou os vela, inspira o amor à ordem, à justiça e às virtudes, e acelera o nascimento do bom gosto em todas as coisas da vida (DIDEROT, 2000, p. 264).

Ele segue: “Eu ousaria assegurar que a pureza da moral seguiu os progressos das vestimentas, desde a pele do animal, até o tecido de seda” (DIDEROT, 2000, p. 264). Cabe destacar que, além da moral, também nasce da educação as ideias de honra e glória: “sentimentos que elevam a alma e engrandecem ao mesmo tempo uma ponta de delicadeza sobre os costumes, os procedimentos e os discursos” (DIDEROT, 2000, p. 264).

O resultado de uma nação educada se traduz em um cidadão consciente e cumpridor dos seus múltiplos papéis sociais, como lemos no trecho a seguir:

Trata-se de dar ao soberano súditos fiéis, ao império, cidadãos úteis; à sociedade, indivíduos instruídos, honestos e mesmo amáveis; á família bons maridos e bons pais, à república das letras, alguns homens de grande gosto, e à religião, ministros edificantes, esclarecidos e pacíficos (DIDEROT, 2000, p. 266).

Mas, para que a educação cumpra a sua tarefa iluminista, ela precisa ser antes, ao mesmo tempo, no entender de Diderot, laica e universal. E, no entender do filósofo, isso somente seria possível por meio da intervenção do Estado, que seria o responsável por promover as mudanças essenciais para alcançar o desenvolvimento do indivíduo e da nação e também reverter a interferência da Igreja. Como indica Diderot, desde a Idade Média, a Igreja havia estabelecido uma aliança com o Estado, provocando atraso em todas as áreas do governo: “A tolice ou o interesse do grande Constantino, que abandonou quase todas as funções importantes do Estado aos padres cristãos, deixou traços tão profundos que estes jamais se apagarão” (DIDEROT, 2000, p. 269).

Além dos aspectos organizacionais, a interferência do Estado seria fundamental para eliminar ou minimizar a presença da Igreja no currículo e nos estudos desenvolvidos pelas universidades, fortemente influenciadas pelas doutrinas episcopais, e que mantiveram essas organizações longe do desenvolvimento possível: “O que era a França sob Carlos Magno, a Inglaterra sob Alfredo. Este fundou as escolas de Oxford e Cambridge que sucessivamente se aperfeiçoaram, mas que estão ainda longe do que poderiam ser” (DIDEROT, 2000, p. 269). Ainda cita sobre o tema o espanto que lhe causa a defesa da presença dos jesuítas, mesmo após a comprovação dos problemas promovidos pelos seus métodos educacionais, e que tal postura somente demonstra como as comunidades escolares são fechadas às luzes por “uma barreira levantada durante séculos” (2000, p. 277), no qual se transformaram em um “asilo de disputas ruidosas de inutilidades” (2000, p. 277). Mas reforça que há possibilidade de mudança, mencionando que ao lado de instituições “bárbaras e góticas”, como a Sorbonne, que estuda escolástica e direito romano, funcionam na França três célebres academias, dedicadas a estudos relevantes e fundadas nos novos parâmetros científicos.

O modelo educacional universitário proposto por Diderot resume-se, poderíamos dizer, na seguinte frase: “Universidade é uma escola cuja porta está aberta indistintamente a todos os filhos de uma nação e onde os mestres estipendiados pelo Estado os iniciam no conhecimento elementar de todas as ciências” (DIDEROT, 2000, p. 267). Diderot relaciona, portanto, três pontos fundamentais para garantir que a escola fosse ao mesmo tempo laica e universal: o acesso irrestrito à educação; o pagamento dos mestres e a fiscalização das instituições pelo Estado; e a atualização do currículo, adequando às descobertas dos novos tempos (DIDIER, 1995, p. 83). Exploremos, então, estas características.

Universalidade do ensino e a democratização da educação

Atingir todos os indivíduos de uma nação é para Diderot uma condição fundamental para que o processo educacional alcance seus objetivos: “Eu digo indistintamente, porque seria tão cruel quanto absurdo condenar à ignorância as condições subalternas da sociedade” (DIDEROT, 2000, p. 267). Ele reitera essa posição em uma troca de correspondências com a imperatriz russa, publicadas em Mélanges pour Catherine II, em que é destacada a necessidade de investimentos no ensino básico público e não somente nas instituições universitárias, pois em todo o império haveria indivíduos que por sua constituição estavam destinados a grandes feitos:

Sua majestade estabeleceu duas casas, onde se prepara indivíduos de mérito raro. Mas estes dois não podem conter todos os seus filhos, e entre aqueles que permanecem dispersos e esquecidos no império, e que perpetuam na ignorância e no preconceito, não há dúvida de que a natureza destinou para grandes coisas (DIDEROT, 1994, p. 282).

Para Diderot, inclusive, tratava-se de uma questão matemática. No Plano, ele destaca que o número de choupanas é muito maior do que os edifícios particulares e palácios, em uma relação de dez mil para um; portanto, a possibilidade de que os gênios e homens de virtude podem ter uma origem humilde é muito maior do que a proveniente das classes mais abastadas. Ainda acrescenta que a população de origem mais modesta tem mais consciência do valor da educação para a possibilidade de alterar a sua condição social, por isso, costuma-se dedicar com mais afinco e rigor (DIDEROT, 2000, p. 267-268).

Essa defesa diderotiana da educação universal ou, em outros termos, da democratização da educação, impõe-se como um grande avanço, mesmo entre os pensadores iluministas, pois poucos eram os que compartilhavam do valor de que a educação deveria atingir a todos os franceses. Voltaire, por exemplo, sustentava uma posição aristocrática sobre o assunto, como bem assinala Carlota Boto:

Havia, em Voltaire, como em outros expoentes da própria Enciclopédia, o medo de que a instrução esparramada por camadas distintas do tecido social desorganizasse os afazeres e os ofícios manuais, prejudicando - com isso - a economia pública e fomentando rebeliões populares (BOTO, 2003, p. 739).

Diderot via a questão de forma mais ampla. Sua proposta de uma escola popular, acessível à toda população, seria um reflexo dos anseios de igualdade da burguesia, classe social á qual pertencia (DIDIER, 1995, p. 83). Mas também podemos considerar que para o filósofo o conceito de cidadania estava, intimamente, ligado ao conceito de igualdade de direitos, como podemos ler no verbete “Cidadão”: “Quanto mais os cidadãos estiverem próximos do ponto de vista de igualdade de pretensões e de fortuna, mais tranquilo será o Estado” (DIDEROT; D’ALEMBERT, 2015, p.71). Inclusive, neste mesmo verbete, ele se apoia em Hobbes, para defender que não existem diferenças entre os súditos e os cidadãos: “Hobbes não estabelece nenhuma diferença entre um súdito e um cidadão. O que é verdadeiro, se tomarmos o termo súdito e o termo cidadão no sentindo mais amplo, considerando este em relação às leis e aquele em relação ao soberano” (2015, p. 70). Encontramos um exemplo dessa postura diderotiana no processo de concessão de bolsas de estudos: “Mas não deve ocorrer em absoluto que tais lugares ou bolsas sejam ocupadas por nomeação de seus fundadores. [...] Essas bolsas serão postas a concurso público, ou concedidas a um mérito constatado por um exame rigoroso” (DIDEROT, 2000, p. 385). O filósofo, até mesmo, já trata a educação como um dever, algo do qual nenhum homem pode ser impedido de ter acesso, e, para garantir isso, propõe que os pais sejam obrigados a manter os seus filhos na escola, mesmo os que fossem mais pobres tinham que ter, fornecido pelo Estado, material e alimentação (LUZURIAGA, 1959, p. 36), conforme lemos neste trecho da obra:

As escolas primárias abertas a todas as crianças do povo, desde o momento em que podem falar e andar. Aí, elas devem encontrar mestres, livros e pão. Mestres que lhes ensinem a ler, a escrever e os primeiros princípios da religião e da aritmética; livros de que a maior parte não estaria talvez em situação de prover-se; pão que autoriza o legislador a forçar os pais mais pobres a enviar a elas seus filhos (DIDEROT, 2000, p. 379).

Diderot era, portanto, um entusiasta da educação pública, como destaca Dolle: “No momento em que os pensadores oscilavam entre a educação particular, dirigida por preceptores, e a educação coletiva, o enciclopedista via na segunda modalidade uma possibilidade maior de interação e crescimento pessoal e da nação” (DOLLE, 1973, p. 176).

O financiamento e a administração da educação pelo Estado

Para Diderot, a educação formal divide-se em duas etapas: a primeira destinada à educação primária ou elementar e a segunda desenvolvida na universidade. Na fase inicial, as lições deveriam enfocar a leitura, a escrita, os princípios da religião e aritmética, sendo obrigação do Estado fornecer os professores, os livros e a alimentação (DIDEROT, 2000, p. 379). Ao término dessa primeira fase, os jovens poderiam escolher entre dois caminhos, aprender um ofício ou encaminhar-se para as universidades para prosseguir seus estudos (2000, p. 379). Cabe destacar que não havia necessidade de uma idade mínima para a continuação dos estudos, como era regra na época, bastava a comprovação das capacidades mínimas compreendidas pelo currículo da escola primária (2000, p. 379). Para Diderot, caberia ao Estado administrar e fiscalizar a educação primária e a universitária. Vejamos alguns exemplos de como Diderot concebe esse controle.

O primeiro ponto é a fiscalização e administração dos membros do corpo docente e discente de uma universidade; para Diderot essa tarefa é exclusiva do Estado, como lemos em suas palavras: “Não haverá nenhum outro inspetor absoluto da educação pública exceto o Estado. Compete ao Estado nomear, manter ou mudar o reitor e os diretores, destituir professores, mandar embora os repetidores ou mestres de alojamento e excluir da escola os alunos ineptos ou viciosos” (DIDEROT, 2000, p. 389). O filósofo ainda ressalta que não cabe ao Estado ser indulgente, inclusive, deve insistir nos exercícios públicos, pois, assim, é possível manter a qualidade e o controle das atividades educacionais (2000, p. 387). Ainda em relação aos docentes, Diderot defende que sejam realizados concursos públicos para os postos de ensino e que sejam concedidas remuneração e aposentadoria generosas, como forma de atrair os melhores profissionais (2000, p. 390). Ele também ressalta que a remuneração dos professores deve ser responsabilidade do Estado, evitando qualquer possibilidade de intervenção externa no controle das bases educacionais (DIDEROT, 1966, p. 133).

Outro ponto de destaque diz respeito ao fornecimento de bolsas de estudo para estudantes carentes. O critério a ser adotado não seria a indicação, mas sim uma seleção pública, que garantindo que os mais bem preparados recebessem o benefício (DIDEROT, 2000, p. 385), como declara em termos que chocariam os educadores da atualidade: “Não se deve perder tempo e cuidados em cultivar os espíritos tapados de uma criança a quem a natureza deu apenas braços que seriam arrebatados a trabalhos úteis” (DIDEROT, 2000, p. 385).

Ainda sobre o financiamento das bolsas, cabe destacar que Diderot aponta os aristocratas e a própria imperatriz, ou seja, o Estado, como financiadores dos alunos, ressaltando que todos têm interesse em uma nação desenvolvida e devem colaborar para tal situação (DIDEROT, 2000, p. 389). Outro ponto de destaque sobre a questão dos bolsistas é que o filósofo é enfático em que não haveria nenhuma diferença entre os alunos motivados pelo critério de pagamento da escola, todos deveriam estar submetidos às mesmas normas e cobranças. O único critério de diferenciação apontada pelo filósofo diz respeito aos uniformes utilizados pelos alunos internos e externos, este devido à “bagunça” no horário da saída deveriam ser identificados, evitando saídas não autorizadas (DIDEROT, 2000, p. 38). O filósofo também ressalta em uma carta dirigida à Catarina II, que os alunos, independente da sua origem social, deveriam frequentar alojamentos mistos, favorecendo a integração e troca de ideias e evitando qualquer privilégio motivado por posição hierárquica (DIDEROT, 1966, p. 131).

Segundo Diderot, também era responsabilidade do Estado estabelecer uma rígida rotina de estudos para os jovens. Em seu programa, eram previstas tarefas detalhadas para todos os dias da semana, inclusive com a previsão de atividades recreativas e físicas. A título de exemplo, citemos como o filósofo descreve a necessidade do tempo dedicado às atividades físicas:

As classes estarão fechadas e haverá suspensão de trabalho para os mestres e para os alunos, na quarta-feira e no sábado, somente depois do meio-dia, e até as seis horas.

[...] Essas duas meias jornadas serão empregadas em toda a sorte de jogos. O repouso é necessário aos mestres, e o exercício, aos alunos. Entre os alunos, os filhos do campo são mais robustos que os da cidade; entre os filhos da cidade, os do povo e dos artesãos são mais vigorosos que os dos ricos burgueses. Os mais fracos e os menos saudáveis são os filhos dos notáveis. Tudo se compensa.

A vida sedentária do homem de estudo, a meditação, exercício dos mais contrários à natureza, são ao mesmo tempo fontes de doenças particulares. A estagnação dos humores leva à sua alteração e o corpo se corrompe, enquanto a alma se depura. Isso é triste (DIDEROT, 2000, p. 383).

Essa necessidade de planejamento reflete as dificuldades que se encontram no processo educacional, conforme o filósofo “Seria preciso zombar da simplicidade dessas boas pessoas que pretenderam formar honrados e hábeis cidadãos, homens úteis, grandes homens, passeando, conversando ou gracejando” (DIDEROT, 2000, p. 266). Ainda completa sobre o seu ponto de vista: “Não atormentemos o homem inutilmente; mas não procuremos arrancar todos os espinhos do caminho que conduz à ciência, à virtude e à glória. Não teríamos êxito nisso” (DIDEROT, 2000, p. 266). Portanto, para Diderot, somente a dedicação era capaz de produzir os efeitos pessoais e coletivos propostos para o sistema educacional: “Não dissimulemos em absoluto a nós próprios e aos nossos alunos que seus progressos só podem ser frutos da obstinação” (2000, p. 266).

Para Diderot, o planejamento detalhado e a exigência de dedicação aos estudos, devido à consciência das dificuldades enfrentadas para obter bons resultados, deveriam ser valorizadas por meio de recompensas que serviriam de estímulo ao trabalho bem feito. Nesse sentido, não deveria ser admitido nenhum castigo arbitrário ou corporal em casos de faltas disciplinares. De acordo com Diderot, para evitar essas situações, bastava “Um pequeno código das faltas contra a disciplina, os costumes e os estudos obviria a parcialidade e a severidade deslocadas, e pouparia aos mestres o ódio dos culpados punidos pela lei” (DIDEROT, 2000, p. 386).

Cabe destacar que, apesar de defender que haja padronização nos conteúdos oferecidos para cada disciplina e uma rotina rígida de estudo, o filósofo salienta a necessidade de ofertar uma gama variada de objetos de estudo, assim atendendo as mais variadas aptidões:

Os estudantes não têm uma igual aptidão para tudo. Um, dotado de uma memória prodigiosa, fará progressos rápidos em história e geografia. Um outro, mais refletido, combinará com facilidade números e espaços, e se instruirá, quase sem trabalho, em aritmética e em geometria. Se o ensino durante toda a sua duração tiver apenas um só e único objeto, o estudante a quem a natureza não tiver dado senão pouca ou nenhuma aptidão para esses estudos, será constantemente humilhado e desencorajado (DIDEROT, 2000, p. 387).

Inclusive para Diderot, ao valorizar as aptidões naturais de cada aluno, possibilitaria estabelecer uma condição de igualdade entre os alunos: “No curso da jornada de estudos, se cada aluno exibir sua aptidão natural, não haverá nenhum que guarde constantemente a superioridade, e eles terão todos um motivo de se estimular reciprocamente” (DIDEROT, 2000, p. 387).

Diderot ainda argumenta ser responsabilidade do Estado a produção de livros para serem utilizados nas aulas. Na descrição que faz dos cursos, Diderot cita uma série de livros clássicos que poderiam ser utilizados em cada disciplina, mas argumenta que existe a necessidade de produção de obras atualizadas e em consonância com os avanços científicos. Cita, por exemplo, que, para a disciplina de geometria, deveria ser aproveitado o vasto conhecimento de D`Alembert para elaborar a obra (DIDEROT, 2000, p. 391).

Diderot efetivamente se preocupa com o desenvolvimento da educação em todas as áreas. Apesar de não detalhar no Plano, o filósofo indica a necessidade de investir em áreas, como negócios públicos, engenharia, marinha, agricultura e comércio (DIDEROT, 2012, p. 286). Encontramos no verbete “Arte”, uma análise do filósofo sobre os prejuízos do não investimento em pesquisas voltadas ao desenvolvimento das artes mecânicas:

O que deve acima de tudo encorajar nossas pesquisas e nos determinar a considerar com atenção o que se encontra ao nosso redor são os séculos escoados sem que os homens percebessem coisas importantes, que estavam, por assim dizer, diante de seus olhos, como a arte de imprimir ou a de gravar. Como é bizarro o espírito humano! (DIDEROT, 2015, p. 52)

Para Diderot, o Estado só tinha a ganhar investindo na educação, pois, além do desenvolvimento do indivíduo, havia a possibilidade do aprimoramento geral da sociedade. O filósofo defende que o governo deveria aproveitar os melhores alunos em seus postos, demonstrando o valor da educação: “Cumpre sobretudo criar esperanças para o futuro, designando para os postos públicos, à saída dos cursos, aqueles que tiverem se distinguindo” (DIDEROT, 2000, p. 387). Portanto, para Diderot, o Estado, assumindo o controle da educação possibilitaria a universalidade do ensino e o estabelecimento de uma educação laica, o que garantiria ampliação das luzes a todos, fatores decisivos para o progresso e o aperfeiçoamento da sociedade. O filósofo, portanto, nesse tema se tornou distinto dos demais iluministas, uma vez que sob a sua pena, o conhecimento assume um caráter universalizante e se transforma em um projeto de democratização do saber.

Referências

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1Este verbete é de autoria de Diderot, Voltaire e Dumarsais.

2Os pensadores do século XVIII retomam a ideia platônica do rei-filósofo. Para Platão, os regimes políticos degradados ou corrompidos, ou seja, longe das suas formas ideias eram conduzidos por governantes que desconheciam os princípios da ciência política. Para reverter tal situação, Platão defende que a ciência política poderia ser ensinada, portanto, era possível moldar o governante para que ele visse o poder político não como um exercício de poder, mas sim, como uma realização da justiça para o bem comum da cidade. O ideal para Platão era que o filósofo exercesse esse papel de formação do rei (CHAUI, 2002, p. 302).

3Sobre a origem do termo: “A expressão despotismo esclarecido à primeira vista parece ter sido inventada pelos historiadores alemães do século XIX para designar um fato histórico próprio de uma certa época (segunda metade do século XVIII) e de certos países (da Europa central, oriental e mediterrânea) (FALCON, 1986, p. 05), porém o autor ainda cita que a expressão já era usada no século XVIII, e cita como exemplo as cartas de Diderot enviadas ao abade Raynal e os textos dos fisiocratas (FALCON, 1986, p. 06). O historiador também destaca que o movimento pode também ser chamada de absolutismo ilustrado (FALCON, 1986, p. 06).

4Encontramos em vários reinos europeus a presença do despotismo esclarecido, podemos citar, entre eles, os reinados de Maria Tereza (1740-1780) e José II (1780-1790), na Áustria; Cristiano VII (1766-1808), na Dinamarca; Gustavo III (1771-1792), na Suécia; nos reinos italianos das Duas Sicílias, no Ducado de Parma, Grão-Ducado de Toscana e Ducado de Milão; Filipe V (1700-1746) e Carlos III (1759-1788), na Espanha; e no reino de José I (1750-1777), principalmente na atuação do Marquês de Pombal (1699-1782), em Portugal; e os seus dois principais representantes Frederico II, da Prússia e Catarina II, da Rússia.

5As obras de Frederico II foram Anti-Machiavel, 1740; História do Meu Tempo, 1746; Testamento Político, 1752; e Ensaio sobre as Formas de Governo e sobre os Deveres dos Soberanos, 1752 (FORTES, 2004, p. 77).

6Conforme destaca Luzuriaga, o século XVIII, pode ser dividido em dois modelos de educação pública. O período compreendido entre os três primeiros quartos do século dominado pelo modelo “educação estatal” e somente após a Revolução Francesa, um modelo focado em uma “educação cidadã” (LUZURIAGA, 1959, p. 25). Cabe destacar que neste trabalho, estamos analisando o desenvolvimento da educação estatal.

7Ainda como afirma Luzuriaga, Lutero foi “O primeiro a chamar a atenção, de modo insistente, para a necessidade de criar escolas por meio das autoridades públicas [...], que em 1524 escreve uma Carta aos regedores de todas as cidades da nação alemã, para que estabeleçam e mantenham escolas cristãs” (LUZURIAGA, 1959, p. 06).

8Boto destaca sobre a educação jesuíta no território francês: “Seja como for, o século XVII e o século XVIII na França foram impregnados pelos corolários da pedagogia jesuítica. Se o problema do método de ensino inquietava vários teóricos da educação nesse período já caracterizado como a ‘renascença pedagógica’, os jesuítas na Europa desenvolviam, ao largo, procedimentos educativos que, sistematizados, ofereceriam, posteriormente, algumas das principais balizas do que chamamos hoje ensino tradicional. A partir da aliança paradoxal entre o que se supunha ser a inocência e a corruptibilidade típica das almas infantis, esse modelo pedagógico opera com dois pressupostos básicos: a desconfiança em relação ao mundo adulto e a criação de um ambiente educativo dele dissociado. Nesse movimento de formação da criança pautado por isolamento rigoroso e vigilância intermitente, havia um mundo da pedagogia, que paulatinamente ia se construindo por exclusão do contato com o mundo exterior (BOTO, 1996, p. 49)

9Cabe destacar que apesar do Egito se localizar na África, Diderot os destacou em separados dos demais povos africanos. Por rigor ao texto, decidimos manter a separação proposta pelo filósofo.

Recebido: 08 de Fevereiro de 2019; Aceito: 30 de Outubro de 2019

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