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Educação e Filosofia

versión impresa ISSN 0102-6801versión On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.33 no.69 Uberlândia set./dic 2019  Epub 06-Feb-2022

https://doi.org/10.14393/revedfil.v33n69a2019-46672 

Artigos

A educação do negro na imprensa paulista do fim do século XIX (1880 - 1900)1

Education of black people in the press of São Paulo during 19th century

La educación del negro en la prensa paulista de finales del siglo XIX (1880 - 1900)

Kadine Teixeira Lucas* 
http://orcid.org/0000-0003-2368-7717

Daniel Ferraz Chiozzini** 
http://orcid.org/0000-0002-9607-8130

*Doutorado em andamento em História da Educação pela Universidade de Lisboa, UL, Portugal. Bolsista da CAPES, Programa de Doutorado Pleno no Exterior. E-mail: kadineteixeira@yahoo.com.br

**Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (EHPS/PUC-SP) E-mail: danielchiozzini@yahoo.com.br


Resumo

O presente artigo é parte de uma pesquisa que contempla os projetos para a educação dos ingênuos veiculados na imprensa paulista entre a promulgação da Lei do Vente Livre (1871) e os anos subsequentes à abolição da escravidão. Tomando como pressuposto que as ideias são produtos culturais gestados em redes de sociabilidade, analisamos de que maneira as noções acerca de raça e modernização relacionavam-se às propostas educativas para os filhos de escravas na imprensa, suporte material privilegiado para tal circulação de ideias. Trabalhando com três periódicos que julgamos representativos dos segmentos identificados como “imprensa branca”, “imprensa negra” e “imprensa abolicionista”, tidos como fonte e objeto, notamos diferenças substanciais na abordagem relativa ao tema, mesmo identificando o trânsito de colaboradores entre espaços de sociabilidade comuns.

Palavras-chave: História da Educação; Raízes da educação brasileira; Cultura afro-brasileira

Abstract

This article is a part of a research that intends to present the educational projects for slave’s children published in the São Paulo press between the promulgation of free womb law (1871) and the first years after the liberty (emancipation) of slaves, as a part of our master thesis. Thus, we analised how the relations between ideas of race and modernity and the education proposals for slave’s children were presented in the press, having the premise that ideas are cultural products from sociability networks and the journals the material pillar for the ideas’ circulation. Contemplated as historical source and research object, tree journals we consider representative of kinds of press named as “white press”, “black press” and “abolitionist press” were analyzed, in which we notice distinctive differences, although it is noteworthy that collaborators sometimes were in the same sociability places.

Keywords: History of education; Roots of Brazilian education; Afro-Brazilian culture

Resumen

El presente artículo, como parte de una investigación académica más amplia, abarca los proyectos para la educación de los ingenuos vehiculados en la prensa paulista entre la promulgación de la Ley del Vientre Libre (1871) y los años subsiguientes a la abolición de la esclavitud. Tenido como presupuesto que las ideas son productos culturales criados en redes de sociabilidad, analizamos de qué manera las ideas acerca de la raza y de la modernización se referían a las propuestas educativas para los hijos de las esclavas en tres vehículos de la prensa, suporte material privilegiado para tal circulación de ideas. Tomando para análisis tres jornales que consideramos representativo de lo que identificamos como “prensa branca”, “prensa negra” y “prensa abolicionista”, entendido como fuente y objeto histórico, notamos diferencias substanciales en la abordaje relativa al tema, aunque tenido identificado el tránsito de colaboradores entre los espacios de sociabilidad comunes.

Palabras clave: Historia de la Educación; Raíces de la educación brasileña; Cultura afro-brasileña

A bexiga é uma molestia barbara que so tem razão de existir entre os barbaros; todo povo civilizado deve e póde livrar-se das bexigas, procurando convenientemente vacinação.2

(Correio Paulistano, 06/09/1887, p. 2)

Ao navegar pelo impresso Correio Paulistano, nos deparamos com o artigo “Hygiene, conselhos ao povo”, do qual foi extraído o excerto acima, que discutia uma das mais frequentes epidemias do século XIX, a varíola (popularmente conhecido como bexiga), e reforçava uma percepção recorrente à época: a doença estava associada às camadas mais pobres da população. Tal afirmação não é despropositada, uma vez que de fato acometia frequentemente a população pobre (Silveira, 2011; Chalhoub, 1996). Entretanto, o que nos parece ser a finalidade do artigo não é exatamente a preocupação acerca da saúde pública, mas um aspecto que se tornava cada vez mais latente nos centros urbanos brasileiros no século XIX: a necessidade da população se “civilizar”, conforme analisam diversos autores que se debruçaram sobre a questão. Cynthia Veiga, por exemplo, adverte: “a organização da nação brasileira foi fortemente marcada por uma estratégia discursiva em que esteve presente um ‘nós’, autorreferência da elite civilizada, e um ‘eles’, referente àqueles que deveriam ser incluídos no imaginário da nação a se tornar civilizada” (Veiga, 2010, p. 272). Nesse sentido, o fragmento do Correio Paulistano distingue claramente dois grupos: “nós”, a elite civilizada, e “eles”, o povo bárbaro.

Valemo-nos também de Norbert Elias (1994)3 como referencial para o debate sobre o conceito de “civilização”, tendo consciência de que o autor discutia sociedades europeias e das quais não podemos fazer uma mera transposição. Contudo, é sabido que a elite branca no Brasil tomou o padrão de civilidade europeu como modelo a fim de guiá-los no caminho de se tornar “povo civilizado”.

Interessa-nos, pois, nessa definição, a dicotomia entre civilidade e barbárie - também presente no fragmento do Correio Paulistano - e a necessidade da realização de uma reforma para que a primeira supere esta última, de modo a eliminar todos os indícios “bárbaros”, passando pela higiene, pela urbanidade e pela educação. Em São Paulo, o desenvolvimento econômico impulsionado pela cafeicultura e consequente crescimento industrial desembocam em uma “necessidade” civilizadora que leva a ações de civilidade nos três aspectos acima citados. Carlos José dos Santos (2003), em seu livro “Nem tudo era italiano”, mostra como o anseio pelo “moderno” fazia a cidade avançar em direção à urbanização, que passava pela sublimação da pobreza e pela tentativa de supressão desses sinais dos espaços e bairros “civilizados” - tomando sempre a Europa como ideal de “civilização”.

Sob essa mesma concepção, todavia, tendo como fonte e objeto a imprensa paulistana no século XIX, Lilia Schwarcz demonstrou que a ideia de negro e, antes, de África (berço destes), era sinônimo de barbárie, sendo o continente africano comumente visto como berço do barbarismo, da violência, da superstição e da magia (Schwarcz, 2008, p. 117). A autora analisa como, nos jornais que circulavam em meio à elite paulista do século XIX, os negros são tidos como fomentadores da violência. Nesses impressos avolumavam-se expressões em que “a própria palavra ‘negro’, em si, já indicava fatos infames, violentos e reprováveis: expressões como ‘páginas negras’, ‘negro crime’ eram comumente utilizadas para caracterizar fatos violentos (Idem, p. 122).

Há, contudo, um campo muito citado quando o assunto é a intenção de civilizar: a educação. Depositavam-se fortes expectativas no seu potencial de suprimir os indícios “bárbaros” do caráter. Segundo Rosa Fátima de Souza,

um amplo projeto civilizador foi gestado nessa época, e nele a educação popular foi ressaltada como uma necessidade política e social. (...) responsabilizada pela formação intelectual e moral do povo, a educação popular foi associada ao projeto de controle e ordem social, a civilização vista da perspectiva da suavização das maneiras, da polidez, da civilidade e da dulcificação de costumes. (Souza, 1998, p. 27)

Sob esse entendimento de que a escola era capaz de moldar o caráter, inculcar maneiras e cultivar o espírito, a proposta de educação dos negros fazia muito sentido, uma vez que eram corriqueiramente associados a costumes tidos como grotescos, bárbaros e destituídos de civilização - o vocábulo “negro” era, em si, empregado como adjetivo pejorativo. Assim, considerando-se a escola - sobretudo a Republicana4 - como espaço privilegiado de formação moral e civilidade, viria a calhar a inserção dos ex-escravos nesse contexto, de modo a incutir-lhes os preceitos e padrões desejados. Procurando entender como essas ideias circulavam pela sociedade da época e como o lugar social do negro foi projetado por sujeitos que publicavam na imprensa periódica, foi realizada a análise de três veículos da imprensa paulista entre 1880, momento em que essas ideias começam a circular pela imprensa, e 1900, de modo a abarcar o jornal da imprensa negra. Nesse percurso, que não consiste em uma análise exaustiva da questão, procuraremos sinalizar não apenas o posicionamento presente nas páginas de alguns jornais da imprensa paulista do período sobre a educação da população negra, mas sinalizar algumas lacunas a serem exploradas por pesquisas futuras.

Imprensa como suporte de ideias

É tempo de lembrar, contra os excessos de um comparatismo intelectual hoje muito em moda, que as ideias não passeiam nuas pelas ruas; que elas são levadas por homens que pertencem eles próprios a conjuntos sociais. (Julliard apudSirinelli, 2003, p. 258)

O pensador francês Sirinelli, a partir de Julliard, nos põe atentos ao fato de que as ideias estão vinculadas a grupos sociais - não circulam de forma autônoma e independente estando, portanto, relacionadas a intencionalidades e concepções. Tendo em vista o fato de vincularem-se a determinados grupos por meio de um suporte é que selecionamos três impressos vinculados a grupos diversos, visando à análise de seus posicionamentos sobre a educação de crianças negras que nasciam livres em função da lei de setembro de 18715, procurando identificar como eram vinculadas ideias acerca da relação entre negro, civilização e educação. Foi pensando no modo como as ideias transitavam pelos diferentes círculos sociais que elegemos três impressos como fonte e objeto de investigação: um periódico abolicionista, A Redempção (1887 - 1899)6; um jornal de grande circulação entre os grupos abastados, notadamente a elite branca, o Correio Paulistano (1854 - 1942) e outro cujo subtítulo já explicita o grupo ao qual se vincula, O Progresso - órgam dos homens de côr, que identificamos como imprensa negra7.

No que diz respeito ao tratamento metodológico, utilizar a imprensa como fonte histórica exige não mais nem menos cuidados que o trabalho com outras fontes. Antes, trata-se de estarmos atentos a aspectos específicos que tornem profícua sua análise. Desse modo, torna-se fundamental “(...) se inquirir a respeito das fontes de informação de uma dada publicação, sua tiragem, área de difusão, relações com instituições políticas, grupos econômicos e financeiros (...)” (Cruz & Peixoto, 2007, p. 116), bem como analisar suas funções sociais. Todavia, em função das limitações intrínsecas à natureza de um artigo, não será possível determo-nos no exame da materialidade dos jornais, a qual foi realizada de forma mais apurada em nossa dissertação de mestrado, que procurou investigar os debates acerca da escolarização da população negra na imprensa paulista, notadamente dos ingênuos, tendo sido realizada uma minuciosa análise de cada um dos periódicos aqui abordados. Seguindo o entendimento de Schwarcz (2008) acerca dos jornais como produto social, nossa perspectiva procura percebê-los enquanto meio de articulação de ideias, analisando em que medida refletem e representam valores e princípios das parcelas sociais que os publicavam e para as quais eram destinados.

Sob essa concepção, explanaremos brevemente sobre as características e articulações que identificavam cada um dos impressos que compõem esse estudo. Comecemos pelo jornal que circulou por um período mais longo de anos, o Correio Paulistano, que associaremos a uma imprensa branca - vale destacar que, durante o período analisado, circulou de terça a domingo, com poucas interrupções, podendo integrar o rol dos periódicos diários. Apesar de se constatar a fundação de um jornal de mesmo nome em 1831, esse só sobreviveu por um ano, e não há evidências que nos confirmem se tratar da mesma publicação. O periódico do qual tratamos foi efetivamente fundado em 1854. Destituído de uma possível humildade de principiante e alheio às dificuldades financeiras iniciais, autodeclarou-se enfaticamente como “representante de uma ‘nova era paulista’” (Schwarcz, op. cit., p. 66) no número inaugural, no qual também proclamou sua vocação de “imparcial”. Fazendo jus ao apelido de “camaleão”, atribuído por Schwarcz, durante sua existência esteve ligado aos mais diversos grupos políticos, posição que variava em função do posicionamento hegemônico da época (geralmente ligado a posições conservadoras) ou a quem financiava a impressão. Nesse sentido destacamos como a venda para o chefe da União Conservadora e entusiasta da modernização, Antônio da Silva Prado, em 1882 e a sucessiva compra, em 1890, pelos entusiasmados republicanos Manuel Gonçalves Camillo e Capitão Manuel Lopes de Oliveira8, determinam os discursos que seriam hegemônicos no jornal.

Quanto ao jornal abolicionista A Redempção - ele mesmo se autoproclamava dessa forma -, foi criado pelo advogado e líder do movimento dos caifazes9, Antônio Bento, em janeiro de 1887, circulando aos domingos e quintas até 13 de maio de 1888 - vale dizer que houve ainda outros números que circularam até 1899, mas apenas esporadicamente e em caráter especial, com a finalidade de comemorar a abolição, sem comprometimento com periodicidade. Sua marca de linguagem era a informalidade, numa expressão popular e quase vulgar - assim também se identificavam - que se desprendia das preocupações com a rigidez gramatical, permitindo aos redatores se valer dessa forma de expressão para acentuar o caráter combativo à escravidão que lhe era peculiar. Tal característica valia desavenças com o Correio Paulistano, que acusava o jornal de ter como editor chefe um dos larápios dos senhores de escravos como Antônio Bento (apud Schwarz, op. cit., p. 88).

O jornal representativo da imprensa negra, O Progresso - órgam dos homens de côr, foi lançado em 24 de agosto de 1899. Não localizamos, entretanto, uma série de exemplares, o que nos impede de inferir acerca da periodicidade ou duração. Todavia, pela importância que atribuímos ao lugar de fala e pela escassez de outros jornais na cidade de São Paulo com as mesmas características, julgamos que seu significado valia a análise do único exemplar localizado na Biblioteca Nacional. Tal importância é ampliada ao constatarmos que sua existência ainda no século XIX contestava a periodização apresentada por outras pesquisas publicadas até 200610, as quais indicavam que o primeiro periódico da imprensa negra que havia circulado na capital paulista teria sito O Menelick, em 1915.

Tais veículos de imprensa, produzidos por negros e para negros, são meios privilegiados para difundir ideias e podem ser entendidos também como uma forma de inserir os homens de cor na sociedade pós-abolição. A análise de O Progresso, jornal com essas características, revela seu esforço em exaltar a memória da abolição e de abolicionistas ilustres, como Luiz Gama11, desbancando o cientificismo a partir do qual se afirmava a “superioridade racial” e criticando a preferência pela mão de obra branca.

Educação contra o perigo da “barbárie”

Num primeiro momento, causou-nos estranhamento que o jornal Correio Paulistano, durante a década que antecedeu a abolição, apresentasse notável preocupação com a educação dos ingênuos - o que, todavia, não tardou a fazer sentido. Publicando constantemente atas e resumos das discussões da Câmara e do Senado, evidenciava também os debates que vinham sendo travados em âmbito governamental, geralmente expondo sobre essas entidades suas perspectivas e opiniões. Na edição de 16 de julho de 1882, o jornal publicou uma nota sobre uma sessão realizada cinco dias antes, na Câmara dos deputados, em que se percebe a efervescência dos debates acerca da abolição. Na mesma sessão, o deputado Antônio Pinto apresentou uma representação de autoria de Joaquim Nabuco e Costa Azevedo, pedindo abolição da escravidão, além de ter sido proferido discurso pelo sr. Lacerda Werneck, no qual ele insistiu na “urgencia de escolas para os ingenuos que são um perigo para nossa sociedade, se continuarem entregues à ignorância” (Correio Paulistano, 16/07/1882, p. 2).

A fala de Werneck explicita a apreensão com o suposto impacto social gerado pela promoção dos filhos de escravos à condição legal de livres. Nota-se que ao deputado parece uma ideia óbvia a percepção de que os ingênuos carregam a mácula de “bárbaro” herdada de seus ancestrais, representando, portanto, um “perigo para nossa sociedade”. Tomando de empréstimo a análise de Lilia Schwarcz em obra já citada, percebemos que tal percepção faz sentido nesse grupo social, uma vez que o termo negro, por si só, era identificado como adjetivo pejorativo, e também que os africanos e seus descendentes carregariam a degeneração em seu caráter, sempre tendendo ao vício e à vagabundagem, estando, portanto, impossibilitados de conviver com a civilização. A declaração do deputado, apesar de indicar essa concepção, entretanto, aponta para uma possibilidade de reverter o estigma: a educação. Ela revela, assim, a crença de que a educação, sendo capaz de tirá-los da ignorância, os habilitaria ao convívio social.

Na mesma linha desse posicionamento, há também a publicação da proposta feita pelo Dr. Dias da Silva Junior, identificado como redator-proprietário do Jornal do Agricultor, no que diz respeito à transição da forma de trabalho. Dentre medidas diversas, propõe:

providencias sobre a educação dos ingenuos, já tornando obrigatoria a creação de escolas de instrucção primaria nas fazendas onde o numero dos ingenuos, por cujo trabalho os fazendeiros optarem, exceder a vinte e cinco, já creando-se colonias orphanologicas, onde serão recolhidos os ingenuos entregues ao governo, de conformidade com a Lei de 28 de Setembro de 1871 (Correio Paulistano, 27/01/1881, p. 1)

Nesse ponto vale salientar a interlocução entre diferentes veículos da imprensa da época e a circulação de ideias entre dois periódicos, que permite a um jornal, legitimando a proposta do outro, a reprodução sem ressalvas, na íntegra. Além de reproduzir, o Correio Paulistano posicionou-se positivamente diante da proposta do redator do Jornal do Agricultor, reiterando que o melhor caminho para o fim da escravidão seria um processo lento, que teria nessa lei o caminho principal.

O aspecto central da proposta de Dias da Silva Jr. é o trabalho, mormente em função da iminência da abolição da escravidão, já sinalizada pelos caminhos da legislação e da sociedade e do gradual processo que já vinha se consolidando, sobretudo após o fim do tráfico em 185012 e da Lei do Ventre livre, de 1871. Nesse sentido nota-se também a preocupação com a “vagabundagem”, como indicado no art. 6º de sua proposta: “repressão da vagabundagem, por meio de termo de obrigação de trabalho, que force os vagabundos a buscarem profissão honesta, dentro de 40 dias” (idem, grifo do autor).

Na década de 1880, o representante da imprensa branca apresenta também evidências que deixam transparecer o intenso debate associado ao fim iminente da escravidão, no qual se inseria a educação daqueles que já gozavam legalmente da liberdade, os ingênuos - embora muitas vezes não de fato. A preocupação com a “vagabundagem” e com o “perigo” que representam para a sociedade tornava urgente a “providencia sobre a educação dos ingenuos”, cuja “ignorancia” nata, herdada dos ancestrais africanos “entregues à barbárie” deveria ser combatida pela instrução. Por conseguinte, a educação apresentava-se como possibilidade para tirá-los da barbárie e conduzi-los à civilização. Apesar de não haver clareza nem consenso no que diz respeito à forma pela qual a educação deveria ser realizada, no entanto há uma tendência a se pensar uma educação sempre vinculada ao trabalho. Além de se apresentar como elemento civilizador, é também elemento disciplinador, que garantirá, inclusive, a permanência dos filhos de escravos nos tipos de trabalho realizados pelos pais - não se trata de uma educação que coadune a emancipação, mas que impeça o acesso aos saberes que deveriam continuar sendo exclusividade dos brancos. Conforme mencionado nos trechos acima citados e em outros nos quais não será possível nos deter, há referências à “instrucção primaria”, à criação de “colonias orphanologicas", à necessidade de se “formar associações para educar esses ingênuos” (Correio Paulistano, 07/10/1880), além de propostas de criação de escolas agrícolas (Correio Paulistano, 19/02/1882) e requerimentos apresentados na Câmara sobre educação de ingênuos (Correio Paulistano, 15/07/1882), sem mais detalhamentos.

Todavia, um fato curioso se nos apresenta: quanto mais se aproximava o ano de 1888, mais se falava em abolição, libertações, alforrias e menos em educação de ingênuos. A iminência do fim da escravidão parece ter tornado rarefeita a preocupação com a educação da população negra, permitindo formularmos a hipótese de que ela pode, ao fim e ao cabo, ter sido apenas um entre vários condicionantes apresentados pela elite paulista para o fim da escravidão. O mais conhecido deles, evidentemente, era a solicitação de indenização para os antigos proprietários de escravos.

Por outro lado, pelo caráter abolicionista do jornal A Redempção13, fervilham artigos sobre a escravidão e a abolição. De fato, esse é basicamente seu único assunto, que se desdobra em seções como “Propaganda Abolicionista”, “Album Abolicionista”, “Cronica de annos”, “Secção Particular” entre outras, todas referentes à abolição, chegando a possuir temáticas sobrepostas e até repetitivas. Considerando nosso interesse central, que reside na investigação sobre a abordagem do jornal acerca da educação dos ingênuos e possíveis propostas educativas, fomos surpreendidos pela constatação de que a referência à temática é praticamente inexistente, sobretudo no período de circulação regular do periódico. Não há efetivamente nenhuma menção explícita à educação de ingênuos nos 132 números analisados, como encontramos no Correio Paulistano. Com exceção de duas notícias em que alguma discussão está presente - uma delas abordando a educação da mulher e outra que será analisada mais adiante - todas as outras aparecem visando meramente divulgar instituições de ensino.

Primeiramente chamamos atenção para a publicação de 26 de abril de 1888, da ata de fundação da Escola Antônio Bento, inaugurada dia 23 do mesmo mês. O documento da escola que leva o nome do fundador e proprietário do jornal é extremamente burocrático, não apresentando muitas informações para além de data, local, horário e presentes à cerimônia de inauguração. Destacamos o único indício sobre as características da escola, representado pela breve menção ao discurso inaugural do padre Francisco “Barroso, aclamado presidente da reunião, que mostrou a conveniência da instituição da Escola Nocturna, atentos os relevantes serviços prestados pelo benemérito Dr. Antonio Bento, a cauza do progresso do paiz (A Redempção, 26/04/1888, p. 3, grifo nosso). Tanto o horário de funcionamento - à noite - quanto a referência à atuação de Antônio Bento em prol do progresso do paiz, nos levam a crer que deveria se destinar ao atendimento de trabalhadores, porém não sendo possível aferir se exclusivamente negros. Considerando o contexto (publicação em um periódico abolicionista extremamente combativo e atuação de Bento como caifaz), é possível que esta ideia de progresso estivesse associada ao fim da escravidão. No entanto, não há menção deliberada a isso, nem nos parece haver preocupação em destacar o segmento atendido ou a necessidade de se atendê-lo. Não foi encontrada mais nenhuma referência a essa escola nesse jornal, nem nos registros dos estabelecimentos particulares de ensino da Província de São Paulo, nos ofícios ou nos relatórios dos inspetores da instrução pública14. A escola funcionaria nos salões dos Remédios, sede da Associação Religiosa Mantenedora do Jornal e supostamente do “movimento” dos caifazes.

Isso posto, identificamos que o propósito fundamental da notícia era a divulgação da abertura da escola, não havendo preocupação em discutir educação de negros (seja libertos, livres ou escravizados) ou sua participação entre o alunado da instituição. Verifica-se o mesmo nas menções à outra instituição de ensino, também vinculada aos Remédios: o Externato Santo Antônio, codirigido pelo Padre Francisco Barroso - o mesmo que presidiu a cerimônia de fundação da escola acima - em parceria com Joaquim A. Mattoso Ferraz. O primeiro anúncio da instituição, publicado em 29 de março de 1888, não parece ter outro cunho senão o da publicidade. Excluindo-se o possível vínculo com um grupo abolicionista (aferido em função da codireção do Padre Barroso, atuante entre os abolicionistas, e ao fato de funcionar nos salões da Confraria Nossa Senhora dos Remédios), não há nenhum outro indício de que seria uma instituição voltada ao atendimento de ingênuos. Ao contrário, a presença do valor da mensalidade em todos os anúncios para os cursos primário, secundário e extra, nos leva a crer que se tratasse mais de uma instituição voltada para os filhos da elite, com vistas a obter fundos para a Associação, do que para atender negros. Além disso, foi encontrado o mesmo anúncio no jornal opositor, o Correio Paulistano15, ou seja, em um jornal que associava o abolicionismo a arruaças e agitações perturbadoras da ordem publica” (Correio Paulistano, 19/09/1886, p. 1), explicitando como a atuação do Externato deveria estar apartada das causas dos caifazes. O anúncio repete-se nas edições que se seguem, indicando uma preocupação em divulgar a escola para angariar alunos16.

Todavia, o mais notável artigo do qual é possível extrair alguma concepção sobre educação foi publicado em abril de 1887 em forma de uma pequena nota na terceira página, intitulada “prisão de meninos vagabundos”, na qual é exaltada a atitude da polícia em prender os “meninos vagabundos e vadios”, que se recusariam a trabalhar e a frequentar cursos. Eis o que dizem:

(...) Há seis anos que a confraria de N. S. dos Remedios sustenta uma aula gratuita de musica.

Matricula-se um menino naquella aula, frequenta algum tempo e, quando se espera tirar desse individuo um bom musico, retira-se dalli dando prejuízo e vae para a vacância, apoiado pela inercia da policia.

Note-se que o provedor da confraria17esforça-se em ter todos os alumnos da escola de musica empregados, e talvez seja esse o motivo de sempre se retirarem os meninos da aula, para assim poderem vagar livremente (...) (A Redempção, 21/04/1887, p. 3, grifo nosso).

É perceptível a concepção explicitada acerca de uma tendência natural à vagabundagem, portanto, de rejeição ao trabalho, uma vez que ele seria o motivo de sempre se retirarem (...) da aula”. Para o redator, e também o provedor das aulas, a única maneira de viabilizar a permanência seria a coerção, já que a “inercia da policia” é o principal motivo de se atirarem à “vacância”. O fato de as aulas serem oferecidas gratuitamente pela confraria que sedia o movimento dos supostos caifazes nos leva a crer que, se não todos, muitos dos meninos atendidos eram ingênuos. Estando certa esta inferência, podemos afirmar que, no único artigo em que aparece, mesmo discretamente, há uma discussão sobre educação, e ela reproduz a preocupação com a “vagabundagem” e a percepção desses sujeitos como ameaça à sociedade, pois despidos de civilização. A nota aponta apenas dois caminhos possíveis para a vida desses meninos: as aulas (aqui nem mesmo se tratava do ensino das primeiras letras) e o trabalho, ou a vadiagem.

No pós-abolição, quando o jornal A Redempção se torna esporádico e centrado em números comemorativos, nota-se timidamente algum debate sobre educação. A edição comemorativa da abolição de 1895 traz uma ferrenha denúncia sobre a situação dos ex-escravos no pós-abolição, mencionado inclusive o impedimento de acesso a algumas instituições. O artigo intitulado “Os pretos excluídos de tudo” afirma que nenhuma providência foi tomada pelo governo para proporcionar condições aos que deixavam seus senhores apenas com a roupa do corpo, denunciando em seguida as dificuldades e, por vezes até impedimento, ao acesso à educação:

Nos institutos religiosos que actualmente existem em S. Paulo, nos diversos collegios que sempre abrem 2 ou 3 logares para os pobres, os filhos dos pretos não são admitidos. Allegam como razão que os brancos é que sustentam esses estabelecimentos, e, como os brancos ricos são os antigos escravocratas, não consentem nesses estabelecimentos os filhos dos pretos.

Há escolas modelos, mas não vê neles um preto. O escandalo chega até ao ponto do sr. Arco-Verde fazer o regulamento do Seminario Episcopal com o seguinte artigo: ARTIGO 10 - Para ter logar entre os gratuitos e meio-pensionistas do Seminario é preciso o pretendente não ser de côr Preta!!!18(...) (A Redempção, 13/05/1895, p. 2).

Esse excerto, bem ao modo do caráter combativo assumido pelo jornal abolicionista em todo seu tempo de existência, se não apresenta uma discussão sobre qual educação deveria ser proporcionada aos “pretos”, ao menos denota uma preocupação com a garantia do acesso, algo praticamente inexistente nas edições até 13 de maio de 1888. Na esteira da preocupação com o acesso à escola, uma nota publicada em uma edição de 1897 traz não uma denúncia, mas um elogio a uma escola pública, o Grupo Escolar Sul da Sé. Reservando um espaço privilegiado ao artigo, que ocupa mais de uma coluna na primeira página, exalta o estabelecimento onde “encontram-se de mistura com os meninos brancos, pardos e negros, tornando-se verdadeiramente uma escola popular” (A Redempção, 18/07/1897, p. 1), enfatizando não só o espaço dado aos negros, como a “mistura” e a convivência entre os três grupos. Vale destacar que a direção da escola ficava a cargo de Frontino Guimarães, identificado como “um antigo companheiro de lutas” pelo próprio jornal. Essa afirmação nos faz supor que, de alguma maneira, o diretor havia sido ligado aos caifazes, o que em certa medida explica o suposto atendimento aos meninos negros. No entanto, apesar dessa exaltação inicial, a coluna segue lamentando as condições físicas e materiais do prédio onde funcionava a escola, “tão acanhada para conter o numero de meninos que tem. Ela expõe o funcionamento em biombos das classes, não havendo “logar para o recreio (...) tornando-se uma cousa fatigante e contra todas as regras de hygiene” (idem). É interessante perceber que as reclamações que seguem reproduzem em certa medida as considerações do diretor nos relatórios apresentados ao Secretário do Interior. No apresentado em 03 de novembro de 1897, por exemplo, afirma ter sido “forçado a matricular um numero de creanças superior a lotação do prédio, que infelizmente não satisfaz as exigências da pedagogia moderna” (Frontino Guimarães, 03/11/1897). Nota-se a semelhança nos textos, e o que nos chamou atenção é o fato de o artigo do jornal ser anterior ao relatório. Tal conformidade nos faz supor que o “antigo companheiro de lutas” ainda era bem presente. Contava em detalhes o funcionamento da escola que dirigia ou, quiçá, teria ele mesmo escrito o artigo, que termina com um pedido a Campos Salles, então presidente do Estado de São Paulo, para a compra da “casa dos jesuítas, na rua da Gloria” (A Redempção, 18/07/1897, p. 1), pedido também feito por Guimarães no relatório em questão, o que dá força à nossa hipótese sobre a possibilidade de ter sido ele o autor do artigo, que não está assinado.

Em A Redempção está presente uma concepção civilizadora, assim como no periódico da imprensa branca. No entanto, apesar dessas manifestações pontuais de indignação, defendia-se ferrenhamente a abolição, mas não houve efetivamente uma preocupação com um projeto educativo no pós-abolição. Ao longo do período de existência do jornal, o que prevaleceu foi o silêncio acerca da questão.

“Eduquemo-nos”

E como se posicionaram os próprios negros letrados, que também se utilizavam do impresso como espaço de circulação de suas ideias, sobre a educação de seus pares? No único exemplar encontrado de O Progresso, o número 1, publicado em 24 de agosto de 1899, chama-nos a atenção um extenso artigo sob o título “Eduquemo-nos”. A começar pelo que, diferente dos outros periódicos analisados, revela o lugar de pertença. Não se está falando do outro, mas de si mesmo. Além disso, obviamente, a proposta de educar vinha ao encontro de nosso objeto de estudo, o olhar dos periódicos sobre a educação dos negros. Já no início do artigo, estabelecemos um diálogo com o último trecho de A Redempção analisado por nós. Assim como o periódico abolicionista, o jornal da imprensa negra anuncia, em tom profético:

Lançando um olhar para o futuro, sem esquecermos o passado vemos que o futuro nos sorri: vemos que o homem preto, por sua indole, intelligencia e amor ao trabalho, pode ter papel saliente na sociedade, embora espiritos retrogrados afirmem ao contrario, querendo collocal-o abaixo do nivel das outras raças (O Progresso, 24/08/1899, p. 2).19

A educação aparece como criadora de possibilidades para o futuro, no qual o redator consegue “ver” o negro inserido. Procura destacar qualidades geralmente desejadas pelo “mundo civilizado”, o que já nos indica uma apropriação desse discurso, também presente no periódico da imprensa branca e no abolicionista, além de evidenciar um incômodo com o preconceito sofrido pelos negros no pós-abolição, como explicita mais adiante:

Esperavamos nós os negros que finalmente, ia desapparecer para sempre de nossa patria o estupido preconceito da côr e que os brancos, empunhando a bandeira da igualdade e fraternidade entrassem em franco convivio com os pretos (...). Qual não foi, porém, a nossa decepção ao vermos que o idiota preconceito em vez de diminuir cresce (O Progresso, 24/08/1899, p. 2, grifo nosso).

O que se apresenta nesse trecho é uma manifesta indignação com o preconceito que sofriam os negros após a abolição, o que corrobora a ideia de que teriam sido excluídos do projeto civilizador no qual a questão da educação desse grupo era pauta, conforme indicamos na análise do Correio Paulistano da década de 1890. A incredulidade diante da manutenção do preconceito revela também o desejo do convívio e da inserção na sociedade, o que talvez explique a intensa defesa dos valores europeus e a refutação da cultura africana, como fica explícito no trecho a seguir:

Enquanto isso se passava os pretinhos que forneciam o cobre para tudo isso eram tão estupidos que nem ao menos sabiam valorizar.

Ao redor de uma fogueira, na escuridão da noite, destacava-se o grupo de sambeiros; com seus (ilegível) e zabumbas ryhtmavam a dança, que era seguida de cantarolla, por falta de musica.

La dentro a civilisação e cá fora a estupidez!...

Como exigir, pois, desses homens, a civilização que lhes não deram? (O Progresso, 24/08/1899, p. 2idem, grifo nosso).

É clara a tomada dos valores de civilidade, a polidez e a rejeição da matriz africana, o que, nesse aspecto, assemelha o discurso com o da elite branca e do próprio governo que, conforme é possível se conferir em Santos (2003, p. 124), procurava reprimir com uso da força policial manifestações como congadas, batuques, sambadas. Todavia, seria simplista e talvez anacrônico enxergar esse posicionamento do jornal da imprensa negra como mero reprodutor de valores brancos. O que se apresenta é uma percepção que, reconhecendo serem os elementos da cultura europeia o padrão de civilidade, defende então que os negros se apropriem deles de modo a desconstruir a ideia de inferioridade e de ineducabilidade, segundo a qual a arte e a música erudita, por exemplo, seriam tão superiores à cultura africana - e de seus descendentes - que os negros não teriam ferramentas intelectuais para alcançá-la ou aprendê-la. Compreendendo a valorização de elementos culturais afro-brasileiros como um movimento posterior, a ser desenvolvido no século XX, torna-se possível não cometermos o equívoco de buscar em um tempo e espaço aquilo que ainda não era possível se encontrar.

Considerações finais

Nota-se que após a Lei Áurea desaparecem do Correio Paulistano as discussões sobre educação dos negros - os acalorados debates que ora tomaram as páginas do jornal até 1888 simplesmente se esvaem. As palavras educação e instrução aparecem juntas 4.242 vezes, mas, na grande maioria das vezes, estão ou vinculadas à propaganda das escolas privadas - portanto nos anúncios dessas escolas -, ou relacionadas à instrução pública, mas nesse caso como comunicação oficial de ofícios e despachos de licenças, exonerações, concursos, exames, pedidos de remuneração de docentes.

Outro fator a ser considerado nesse período é a “descoberta” do imigrante, fazendo com que a elite cafeicultora e industrial paulista encontrasse um grupo que já estaria a meio caminho de seu projeto civilizador, em função de ser originário do continente que representava seu modelo de civilização, a Europa. A aparente maior facilidade de concretização do projeto com o imigrante pode ter contribuído para o abandono do grupo remanescente da escravidão, de modo a eliminá-lo (ao menos no seu imaginário). Não temos a ilusão de pensar que os imigrantes foram acolhidos e considerados pares da elite paulista, mas que, num primeiro momento, o deslumbre advindo da chegada dos imigrantes em São Paulo os fez destinar sua ação civilizadora a esse grupo. A pesquisa empírica, nesse caso, reforçou os apontamentos da bibliografia de referência. (Santos 2003; Azevedo, 1987).

O periódico da imprensa branca parece mesmo corroborar esta ideia. Porém, se os discursos se assemelhavam no que diz respeito a um relativo consenso sobre a necessidade de civilizar os negros no período escravista, algumas novas questões emergem para os abolicionistas do A Redempção após o seu término. Se até maio de 1888 sua principal preocupação era a manumissão definitiva dos escravizados, agora era louvar a memória dos abolicionistas, da princesa Isabel, “a redentora”20 e comemorar a abolição - nos parece que reside aí o motivo da sobrevivência do jornal para além da abolição, não à toa os números comemorativos. No entanto, ainda que timidamente, mas proporcionalmente em maior número do que nas edições regulares (em 2 dos 7 números comemorativos disponíveis falando especificamente dos negros), surgiu um olhar sobre a inclusão do negro por meio da educação.

Quanto ao jornal da imprensa negra, o projeto de educação dos pretos não foi abandonado, como nos pareceu no veículo da imprensa branca, ou simplesmente negligenciado, como parece ao abolicionista; ao contrário, era cada vez mais latente. Era visando a incutir os valores “civilizados” nos pretos que o jornal clamava pela educação:

Educai o preto, abri as portas dos estabelecimentos de ensino a esta gente; procurai mesmo facilitar a sua collocação em estabelecimentos agricolas, fazei tudo o que for possivel em beneficio dessa raça por que o resultado será em beneficio do nosso amado Brazil.

Abandonai para sempre o maldito preconceito. Chamai-nos ao trabalho e lá estaremos convosco; (...) chamai-nos ao convivio social e vereis que seremos dignos (idem, grifo nosso).

Mas, ao fazer isso, procurava ao mesmo tempo desfazer o estigma da inferioridade, exaltando a inteligência do negro e sua capacidade de aprendizado, destacando que os filhos de libertos que tiveram acesso à educação tornaram-se grandes homens, com destaque e proeminência. Provavelmente também pretendia, dessa forma, encorajar os negros a “se educarem”, apesar de quaisquer impedimentos. Pois tais obstáculos também são denunciados, como fez A Redempção. Justamente, após abordarem esses homens que puderam estudar, por conjecturas favoráveis, ressalta as dificuldades daquele momento: “que os filhos dos pretos que antigamente eram recebidos nas escolas publicas, são hoje recusados nos grupos escolares; (...) que os poderes publicos em vez de curar (sic) do adeantamento dos pretos, atira-os à margem, como cousa imprestavel? Se a denúncia proceder, parece que o Grupo Escolar Sul da Sé era mesmo uma exceção, como já indicavam os próprios abolicionistas: “é o unico estabelecimento republicano desta terra” (A Redempção, 18/7/1897, p. 1); entendemos aqui que, na perspectiva desse grupo, a qualidade de republicano significava aquele que efetivamente proporcionava a educação popular.

Quanto ao longo artigo da imprensa negra, nos parece uma espécie de manifesto dos negros para os negros - e para os brancos. Um grito para serem ouvidos, enxergados, humanizados. Ao mesmo tempo, uma convocação aos seus pares para que tomem para si algo que era monopólio dos brancos e se insiram nas letras, nas artes, nas ciências europeias, conforme enuncia O Progresso, mesmo que isso custe rejeitar seu passado cultural e incorporar os valores considerados dignos dos “homens de bem”.

Essas considerações finais são, evidentemente, parciais. Uma pesquisa mais apurada demanda não apenas a localização e análise de outros exemplares de O Progresso, mas de outros jornais que ofereçam pistas da atuação dos negros na imprensa e de sua representação da relação entre educação e trajetória social. Isso implica mapear e explorar as redes de atuação de militantes negros no período no Rio de Janeiro e em São Paulo, como é o caso de Ferreira de Menezes e Luiz Gama. Segundo Pinto (2014), os dois intelectuais negros se conheceram na ocasião da mudança de Menezes para São Paulo, em 1861, a fim de frequentar a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco - aliás, vale salientar que esse foi um espaço de efervescência do movimento abolicionista. Além do Direito, tinham em comum o gosto pela literatura e a luta pela abolição, tendo também compartilhado a atuação em veículos de imprensa, como no jornal O Ypiranga, e a escrita de textos políticos. A afinidade entre Gama e Menezes é destacada pela autora e explicitada em episódios como a sucessiva troca de cartas publicadas na Gazeta da Tarde - jornal que circulou no Rio de Janeiro fundado por Menezes em junho de 1880 - ou no apoio de Luiz Gama à Revolta do Vintém, a qual havia tido participação ativa de diversos literatos e advogados, dentre eles Menezes, os quais, na noite após a repressão à população, realizaram uma reunião na qual deliberaram sobre objetivos de ação, dentre os quais a formação de uma comissão para tratar diretamente com o Ministro da Guerra. A intensa atuação do advogado negro carioca nos desdobramentos da Revolta o deixou vulnerável, como se pode identificar nas difamações advindas da própria justiça, como as do 1º delegado Carlos Alberto de Bulhões Ribeiro. Situações como essa certamente o motivaram a partir temporariamente para a cidade de São Paulo no ano de 1880 - pouco antes da fundação do jornal acima citado - abrigando-se na casa de Luiz Gama.

Além disso, para se alcançar conclusões mais efetivas, seria importante investigar mais detidamente as mudanças nos debates e propostas para a educação dos ingênuos entre a lei do ventre livre e a abolição - esforço que fizemos na dissertação de mestrado -, bem como uma investigação acerca da escolarização da população negra em instituições que teriam atendido ingênuos, numa abordagem mais ampla e aprofundada.

Há que se destacar, no entanto, a dificuldade para acessar o universo da educação escolar dos negros, não só pela dificuldade generalizada de recuperar documentação de instituições do período que poderiam ter recebido essa população, mas de sua condição ter sido apagada dos textos da imprensa, diluindo-se entre os genericamente classificados como dos “desvalidos”.

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1Artigo elaborado a partir de trabalho publicado nos anais do XXVIII Simpósio Nacional de História sob o título “O lugar da educação do negro no projeto civilizador paulista do fim do século XIX”.

2Será utilizada a grafia original em todos os documentos citados.

3Diversos autores brasileiros tomam Elias como referência para discutir a questão da civilidade no Brasil. Outra autora que será utilizada por nós, Rosa Fátima de Souza (1998), também o faz.

4Apesar do recorte temporal perpassar o Império e a República, a análise das alterações no projeto educativo proposto pelo Estado em cada um dos regimes não será foco desse estudo. Centraremos as reflexões na circulação de ideias nos impressos selecionados - desse modo, é inevitável que o regime político seja um aspecto presente sem, no entanto, apresentar-se como objeto privilegiado. Ainda que reconheçamos diferenças no papel atribuído à educação pela Monarquia e pela República, temos em conta que esse é apenas um dentre os vários elementos relacionados aos debates que circulavam nos jornais da época e não necessariamente implicam em diferentes perspectivas para a escolarização dos negros. No parágrafo em questão, apenas lançamos luz à relação entre a escola e o projeto civilizador que ganha destaque na República, seguindo a perspectiva de Rosa Fátima de Souza.

5Conhecida como “Lei do Ventre Livre”, ou “lei Rio Branco” (em função de ter sido sancionada pelo Visconde de mesmo nome, que presidia o ministério à época), a lei promulgada em 28 de setembro de 1871 determinava em seu artigo 1º que estavam livres, a partir daquela data, crianças nascidas de ventre cativo: Os filhos de mulher escrava que nascerem no Império desde a data desta lei serão considerados de condição livre (BRASIL, 1871). Todavia, estabelecia condições para essa liberdade, a título de indenização, dando ao proprietário da mãe a autonomia para decidir se gozava dos serviços do rebento até os 21 anos de idade ou se o entregava aos cuidados do Estado aos oito anos em troca de uma quantia em dinheiro.

6Os originais de A Redempção estão sob a tutela do Arquivo do Estado de São Paulo (AESP). Na ocasião da realização dessa pesquisa, o processo de incorporação ao acervo não estava totalmente concluído - em função do minucioso trabalho de restauro a que estiveram submetidos -, tendo sido a consulta aos fac-símile gentilmente autorizada pela coordenação de apoio à pesquisa da instituição.

7A expressão “imprensa negra” aparece pela primeira vez publicado em uma obra de estudo em 1951, no artigo A imprensa negra no Estado de São Paulo, de Roger Bastide. O sociólogo é pioneiro ao atribuir legitimidade histórica e sociológica a esse segmento da imprensa e, mesmo com tiragem menor que a de outros impressos e certa intermitência - constatada por ele próprio - considera que cumprem o papel de representação coletiva de um determinado grupo social. Produzidos por negros e para negros, raramente constitui-se como “imprensa de informação”.

8Ambos integrantes da Sociedade anônima da Fundação da República.

9A partir das pesquisas de Maria Helena Machado publicadas em 2010, pudemos identificar a atuação de uma rede difusa que articulava fugas de escravos em massa, ações de defesa em processos, acoitamento, encaminhamento clandestino ao quilombo Jabaquara - localizado em Santos - SP, dentre outras. Tendo atuado em 1882 e 1888 pressionando fazendeiros, era conhecido por movimento dos caifazes e aglutinava sujeitos das mais diversas ocupações e classes sociais. O termo ‘caifaz’ aparece também com esse sentido numa canção popular do fim do século XIX, a “Canção do abolicionismo brasileiro - para ser cantada nas ruas - oferecida aos pretos do Quilombo do Jabaquara”. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, vol. XXXVI, junho de 1939, P. 225-227.

10Em setembro de 2006, Ana Flávia Magalhães Pinto defendeu, no Instituto de Ciências Humanas da Universidade de Brasília, uma dissertação de mestrado em que analisava este e outro periódico da imprensa negra paulista ainda mais antigo (“A Pátria”, 1889). Com este trabalho, trazia a público uma nova periodização sobre jornais produzidos por negros em São Paulo. Até então, pesquisas como as de Bastide, 1972; Ferrara, 1986; Moura, 1992; Domingues, 2002; Gomes, 2005; Simões Pires, 2005, entre outros apontavam “O Menelick” (1915) como o mais antigo na Capital e “O Baluarte - orgam oficial do Centro Litterario dos Homens de Côr” (1903), de Campinas, como o primeiro do Estado.

11Advogado negro, filho de uma liberta e um português, advogou a própria liberdade após ter sido vendido ilegalmente pelo pai e, a partir de então, passou a atuar na defesa de escravos, propondo ações de libertação baseadas, sobretudo, na lei de 1831 que proibia o tráfico de africanos para o Brasil, mas que foi solenemente ignorada por traficantes e escravocratas.

12Após a falácia da lei de 1831, o então Ministro da Justiça, Eusébio de Queirós, destacado deputado do Partido Conservador por diversos mandatos anteriores, propõe nova lei de fim do tráfico negreiro, a qual é aprovada e começa a vigorar.

13Durante os anos 1880 localizamos apenas um impresso da imprensa negra, A Pátria (1889), do qual encontramos 2 exemplares. Contudo, uma vez que não há nenhuma referência, discussão, sequer menção à educação dos negros - nosso objeto de estudo - optamos por não analisá-lo nesta ocasião, focando a análise relativa à imprensa negra na década de 1890..

14Todos os materiais consultados encontram-se no Fundo da Instrução Pública do AESP.

15Uma nota é publicada no Correio Paulistano dia 02/03/1888 indicando abertura da escola. A mesma nota repete-se nas edições nos dias 16, 18, 20, 21, 24 e 28 do mesmo mês.

16Apesar de o Estudo das instituições escolares não ser o foco desta pesquisa, é pena não termos localizado, nos fundos da instrução privada do Arquivo Público do Estado de São Paulo, documentação do Externato Santo Antônio que pudesse levar a um olhar mais acurado acerca do funcionamento da instituição.

17A saber, Antônio Bento.

18Após termos encontrado tal artigo em nossa pesquisa, o vimos também citado no livro de Antônia Quintão, “Irmandades negras: outro espaço de luta e resistência (1870-1890)”, 2002. No entanto, a autora indica como origem o periódico “A Liberdade”, de 13/05/1893, também editado por Antônio Bento. Fizemos uma busca para verificar se o artigo havia sido mesmo replicado em “A Redempção” dois anos depois. No entanto o único exemplar localizado, que consta no Arquivo do Estado de São Paulo, está fora de circulação para restauro.

19Os trechos citados a seguir são todos do mesmo artigo. Não repetiremos a referência.

20Na edição comemorativa de 13 de maio de 1899 uma gravura da Princesa Isabel aparece no centro da primeira página com esta insígnia.

Recebido: 24 de Fevereiro de 2019; Aceito: 29 de Outubro de 2020

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