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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.33 no.69 Uberlândia set./dez 2019  Epub 06-Fev-2022

https://doi.org/10.14393/revedfil.v33n69a2019-50448 

Artigos

Educação e Filosofia: uma leitura a partir de Freud e Benjamin

Education and Philosophy: a reading from Freud and Benjamin

Educazione e filosofia: una lettura di Freud e Benjamin

Anita Helena Schlesener* 
http://orcid.org/0000-0003-2768-5858

*Doutora em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professora na Universidade Tuiuti do Paraná (UTP). E-mail: anitahelena1917@gmail.com


Resumo

O presente artigo tem o objetivo de tecer algumas considerações sobre as concepções de mundo que formam nosso imaginário a partir de uma leitura de Freud e de Benjamin. Este aporte teórico permite entender a dimensão ideológica de ideias e preconceitos que sedimentam o senso comum e que consolidam relações de dependência. A educação, entendida como processo de formação que acontece na vida, se alimenta da filosofia mesmo inconscientemente e as relações sociais e políticas orientam a formação da subjetividade individual. Benjamin explicita estas relações ao analisar as imagens oníricas cotejando os conceitos de sonho e despertar com o objetivo de mostrar a importância de conhecer o passado e elaborar uma história materialista da cultura, como tarefa básica para pensar o futuro.

Palavras chaves: Educação; Filosofia; Imagens oníricas; Ideologia

Abstract

This article aims to weave some considerations about the conceptions of the world that form our imaginary from a reading of Freud and Benjamin. This theoretical contribution allows us to understand the ideological dimension of ideas and prejudices that sediment common sense and consolidate relationships of dependence. Education, understood as a process of formation that happens in life, feeds on philosophy even unconsciously, and social and political relations guide the formation of individual subjectivity. Benjamin explains these relationships by analyzing the dream-images by comparing the concepts of dream and awakening with the purpose of showing the importance of knowing the past to elaborate a materialistic history of culture as a basic task to think about the future.

Key words: Education; Philosophy; Dream images; Ideology

Riassunto

Questo articolo ha l’obiettivo di fare alcune riflessioni sulle concezioni del mondo che formano il nostro immaginario da una lettura di Freud e Benjamin. Questa base teorica ci consente di comprendere la dimensione ideologica delle idee e dei pregiudizi che basano il senso comune e rinsaldano le relazioni di dipendenza. L'istruzione, intesa come un processo di formazione che accade nella vita, si nutre anche inconsciamente della filosofia e le relazioni sociali e politiche guidano la formazione della soggettività individuale. Benjamin spiega queste relazioni analizzando le immagini dei sogni riunendo i concetti di sogno e risveglio al fine di dimostrare l'importanza di conoscere il passato ed elaborare una storia materialista della cultura, come compito fondamentale per pensare al futuro.

Parole chiave: Educazione; Filosofia; Immagini dei sogni; Ideologia

Introdução:

O decisivo em Baudelaire é um substrato social, no ‘idílio fúnebre’ da cidade: o moderno. [...] O moderno que sempre cita a história primeva (BENJAMIN, 1985, p. 39).

Entender as formas e significados dos muros que formam o nosso pensamento e o nosso caráter e que bloqueiam a nossa convivência com os outros a partir de nossos preconceitos, nossa visão de mundo muitas vezes distorcida, os dogmatismos que se revelam na paixão do debate, implica em retomar os percursos de algumas reflexões que serviram para construir a racionalidade moderna no século XIX. O tema que nos propomos abordar aqui a fim de esclarecer concepções de mundo que formam nosso imaginário, tem como pressuposto uma noção ampliada de educação, como processo de formação continuada que ocorre ao longo da vida dos sujeitos em sua inserção social.

O objetivo é mostrar a importância das leituras de Freud para a compreensão dos contornos da racionalidade moderna e de suas contribuições para redefinir o processo educativo. A partir das descobertas de Freud sobre os limites do consciente cotejado com o universo encarcerado no inconsciente, somadas às contribuições do marxismo, tem-se a possibilidade de uma nova abordagem da ideologia.

É neste contexto que, num segundo momento, retomamos as contribuições de Walter Benjamin sobre a noção de educação, a qual permeia alguns de seus escritos. O autor trata da formação da sociedade capitalista como produtora de mercadorias e seus desdobramentos na formação psicológica e perceptiva do homem moderno, com expressão na imagem onírica enquanto ideologia da modernidade. A educação burguesa é criticada a partir das contradições que permeiam uma educação que pressupõe um ideal de civilização e de cultura que, na verdade, são excludentes, na medida em que separa formação de instrução.

Benjamin nos apresenta uma interpretação das imagens oníricas que formam o imaginário coletivo em determinadas épocas históricas, ampliando as possibilidades de compreender o significado e a força das ideologias. As imagens oníricas são os fantasmas do passado que assombram o presente, mas são também a possibilidade de construção de um futuro diverso, na medida em que contém em si uma verdade a ser descoberta. Desta perspectiva, a necessidade de identificar no presente os sinais do passado, no modo como afloram em preconceitos e condicionam comportamentos no processo educativo, podem ser superados num trabalho histórico de releitura do passado, tarefa da filosofia e da educação.

O presente artigo aborda as bases da teoria de Freud a partir de A Interpretação dos Sonhos para, na sequência, tratar da explicitação das imagens oníricas que Benjamin identifica na realidade urbana do século XIX, em Paris, capital do capitalismo. Na relação dialética entre sonho e despertar, no entrecruzamento de positivo e negativo como polos interdependentes pelos quais a contradição se explicita, Benjamin esclarece os fundamentos da crítica e a sua necessidade para o criar as condições do futuro. A abordagem da relação recíproca entre sonho e despertar no entrecruzar da teoria de Freud com a leitura criteriosa de Marx permite uma interpretação do sonho coletivo implícito na experiência urbana, evidenciando o caráter da ideologia e sua expressão no imaginário social.

A explicitação das imagens oníricas tem um significado político e uma força crítica excepcional quando se considera que, conforme acentua Benjamin retomando Marx e Engels nos escritos sobre Feuerbach, que não podemos “esquecer que ‘o direito, como a religião, não tem uma história própria’. O que vale para ambos vale principalmente e, de maneira decisiva, para a cultura”. As formas de apropriação da cultura na sociedade moderna precisam ser explicitadas para se construir uma nova ordem social. “Pensar as formas de existência da sociedade sem classes, segundo a imagem da humanidade civilizada, seria um contrassenso” (BENJAMIN, 2009, N 5, 4, p. 508). Estas observações se completam com outra: “A barbárie está inserida no próprio conceito de cultura: como conceito de um tesouro de valores considerado de forma independente, não do processo de produção no qual nasceram os valores, mas do processo no qual eles sobrevivem” (BENJAMIN, N 5 a, 7, p. 509).

Cabe investigar as raízes inconscientes deste processo de dominação que se consolida na naturalização dos conceitos, na fragmentação da realidade e no distanciamento (alienação) produzido neste processo. Para Benjamin, trata-se de reler a história da cultura do ponto de vista materialista visto que as mudanças no processo educativo pressupõem mudanças estruturais na sociedade, a fim de superar os limites ideológicos que se colocam a partir das imagens oníricas que permeiam o nosso modo de viver nesta sociedade.

Uma das grandes contribuições de Freud para o pensamento moderno:

Em A Sagrada Família, diz-se do materialismo de Bacon: “A matéria, mostrando-se em seu esplendor poético e sensual, sorri ao homem inteiro” (BENJAMIN, 2009, N 5a, 4, p. 509).

A filosofia moderna tem como pressuposto e fundamento a noção de sujeito consciente, base para o desenvolvimento de todo o conhecimento. O conhecimento moderno, a partir de sua base cartesiana e iluminista, entende como tal o racional, lógico, base para a compreensão do real. O inconsciente neste contexto é o não-ser, a falta, a pura negação, ou seja, não pode existir. Também a psicologia tradicional é uma psicologia da consciência.

Para Freud, a consciência é um dado da experiência que não pode ser definido nem descrito, apenas vivenciado. Embora essencial no processo de conhecimento, a consciência fornece uma visão parcial e lacunar da realidade, porque os processos psíquicos são, na sua maioria, inconscientes. A consciência nos oferece a possibilidade de recepção das qualidades sensíveis por meio da percepção, modo de apreensão das qualidades e diferenças do mundo exterior. É nesta relação com o mundo exterior (e com o outro) que formamos a nossa subjetividade. O fato é que restringir os fatos mentais aos fatos conscientes faz com que se tornem ininteligíveis uma série de fenômenos psíquicos, entre eles, o sonho.

A afirmação de que existem processo mentais inconscientes, descoberta de Freud, abriu caminho para uma nova teoria psicanalítica: os processos mentais inconscientes surgem, repentinamente, como o nosso outro lado desconhecido, cujo conteúdo não está presente no campo atual da consciência; estes processos mentais ocultos e latentes interferem no consciente e com ele mantém uma relação conflituosa. O inconsciente é o instintual, afetivo, que se subtrai de qualquer regra lógica e das leis que regem a consciência.

Freud parte inicialmente, de processos físico-biológicos, nos quais reconhece um sistema de forças que se embatem formando elos ou cadeias de pulsões que se assemelham ao conjunto de forças que regem o mundo material. Esta primeira teoria do inconsciente a partir de um aparato físico-neurológico foi elaborada por Freud no Projeto de uma Psicologia para Neurológos,1 com o objetivo de entender as neuroses nas suas mais variadas formas (de angústia - neurastenia e histeria; de caráter ou comportamental; de destino ou perseguição; narcísica; familiar; fóbica, etc.). Os limites cronológicos destas pesquisas vão de 1890 a 1897, período no qual Freud, juntamente com Bernheim, aprofunda as pesquisas sobre hipnose; a explicação é buscada na análise do elaborado mecanismo dos neurônios e seu funcionamento, numa abordagem de cunho essencialmente positivista (BAKHTIN, 2001, p. 26), de acordo com os princípios da física e da biologia.

Nesta primeira teoria o inconsciente aparece como o reprimido, que não pode aceder ao sistema consciente por não concordar com o aparelho lógico da percepção e do conhecimento, sendo recalcado do campo da atualidade da consciência, na medida em que esta é organizada e racional. Esta primeira teoria vai sendo abandonada na medida em que as análises psicológicas demonstram que os fenômenos psíquicos deveriam ser entendidos numa linguagem psíquica. A partir daí temos a noção do inconsciente inserida em um sistema da estrutura psíquica mental composto de três campos, às vezes reduzidos a dois: inconsciente, pré-consciente e consciente. Embora fale em campos ou sistemas, Freud insiste em que a localização dos mesmos (no aparelho psico-neurológico) é ideal; o aparelho psíquico funciona como um microscópio ou uma máquina fotográfica nos quais não se pode apontar o ponto onde se forma a imagem.

Entra-se então no que se pode chamar a segunda fase das pesquisas de Freud (assinaladas por Bakhtin (2001) no período que vai de 1897 a 1914), que se esboçam em A Interpretação dos Sonhos, onde o inconsciente aparece como um modo de conhecimento de importância fundamental no aparelho psíquico.

Ao afirmar a necessidade de se admitir a existência de processos mentais inconscientes o interesse de Freud não é colocar em xeque a filosofia, mas sim resolver os problemas de seus pacientes entendendo melhor o comportamento humano. Tanto que insiste no caráter empírico de suas pesquisas e em afirmar que a psicanálise não é um sistema filosófico, mas um estudo de fatos pontuais para resolver problemas imediatos. Entretanto, o inconsciente se torna problema à medida que a filosofia moderna se fundamenta na noção de sujeito enquanto consciência reflexiva. A questão se torna polêmica na medida em que a análise dos sonhos para a explicação do psiquismo avança e apresenta resultados satisfatórios.

O ponto que desejamos abordar não é o limite da consciência reflexiva que a psicanálise freudiana põe em questão, mas como a realidade do inconsciente faz parte da formação da subjetividade e se torna fonte de preconceitos e crenças que, em momentos de conflito social, afloram e alteram o comportamento social. Por exemplo: de onde vem a força mistificadora da religião? Como entender a natureza contraditória da religião e a sua atuação, na maioria das vezes como legitimadora da situação social desigual e desumana? Qual a relação intrínseca entre religiosidade e educação?

Para tentar esclarecer estas questões retomamos alguns aspectos da segunda teoria do aparelho psíquico de Freud, que nasce de um longo trabalho de análise dos sonhos e que, ao contrário da primeira teoria, construída a partir da física e da biologia, parte agora para a descrição do mecanismo do sonho e a tentativa de sua explicação. Se, na primeira teoria se tratava de uma explicação neurofisiológica, ligada ao mundo como um sistema de forças a serem elucidadas por meio de uma explicação naturalista e energética do psiquismo, na segunda teoria tem-se a tentativa de uma explicação a partir do empírico, redefinindo as categorias anteriormente estabelecidas no plano fisiológico e inferindo novas instâncias psicológicas.

Notas sobre A Interpretação dos Sonhos:

A historiografia, que mostrou “como as coisas efetivamente aconteceram”, foi o narcótico mais poderoso do século (XIX) (BENJAMIN, 2009, N 3, 4, p. 505).

Nesta segunda teoria existe uma retomada do que havia sido dito na Psicologia para Neurólogos, mas em outra perspectiva: não se trata de uma teoria para entender a prática, mas sim de uma teoria que nasce da prática psicanalítica, ultrapassando a colocação naturalista e energética do aparelho como um sistema de forças, para reforçar a abordagem interpretativa a fim de evidenciar os conflitos defensivos latentes formulados no inconsciente.

O objeto de estudo não é diretamente os sonhos de natureza de ideias, mas os sonhos alucinatórios, completamente barrados em seu acesso ao sistema consciente por seu caráter regressivo, de retorno a formas anteriores de produção do pensamento e da estruturação do comportamento, apresentando-se como imagens sensoriais com forte intensidade alucinatória (FREUD, 1972, p. 578).2

O primeiro passo para a descrição do mecanismo do sonho é a constatação de que a força motivadora do sonho é a realização de um desejo, que pode aparecer explicitamente, mas na maioria das vezes encontra-se mascarado, disfarçado pela censura onírica, podendo ainda ocultar uma contradição. Há, no sonho, um conteúdo manifesto e um conteúdo latente, este substituído por aquele. O conteúdo manifesto do sonho é, muitas vezes, truncado e incoerente e esconde pensamentos e desejos que são percebidos pelo trabalho de interpretação.

A análise se concretiza como interpretação, prática que se encontra no centro da teoria e da técnica freudiana de desvelamento do conteúdo do inconsciente, na forma do conteúdo latente do sonho, conteúdo oculto, dissimulado pelo pensamento de vigília. O desejo, expresso no conteúdo latente, é definido por Freud como um impulso psíquico que procura recatexizar3 uma imagem mnemônica produzida por uma experiência de satisfação, ou seja, a excitação provocada por necessidades internas busca descarga no movimento; a satisfação desta necessidade põe fim ao estímulo interno e produz uma percepção particular, conservada em um traço da memória; reevocar esta percepção de satisfação no momento em que a necessidade desperta é o desejo. O desejo inconsciente tende a realizar-se por esta rememoração, que restabelece os sinais da vivência anterior da satisfação. O desejo não está ligado à necessidade, mas sim à conservação dos traços mnemônicos.

Os desejos que se realizam nos sonhos originam-se de uma atividade psíquica que permanece inconsciente durante o dia, aflorando durante o sono. A fonte dos conteúdos que afloram nos sonhos é variada, podendo emergir a partir de um desejo diurno não satisfeito e que permanece no sistema pré-consciente; pode ainda advir de um desejo despertado durante o dia, mas reprimido, isto é, expulso do pré-consciente; ou um desejo sem conexão com a vida diurna e provindo do sistema inconsciente, incapaz de aflorar ao consciente por ser um desejo instintual. Outra fonte de desejos oníricos são os impulsos surgidos durante o sono e impregnados de desejo, como a sede, a necessidade sexual, etc. Muitos desejos provêm do inconsciente. No adulto o desejo onírico surge menos de desejos não satisfeitos durante o dia que de desejos inconscientes, visto a censura do consciente exercer uma atividade mais ampla à medida que se desenvolve o processo mental. Os desejos provindos do inconsciente estão ligados a sinais infantis indestrutíveis, como foi identificado no estudo das neuroses. Freud acentua:

Parece-nos que, com o controle progressivo exercido sobre nossa vida instintiva por nossa atividade do pensamento, estejamos cada vez mais inclinados a renunciar, como não lucrativa, à formação ou à retenção dos desejos intensos que as crianças conhecem (FREUD, 1972, p. 588).

E continua acentuando que podem existir diferenças individuais e que alguns indivíduos “mantenham um tipo infantil de processo mental”. Em geral, porém, o sonho só se materializa se o desejo pré-consciente encontra sustentação em “um desejo inconsciente do mesmo teor e conseguir reforço dele”. Isto é possível porque os “desejos inconscientes acham-se sempre em estado de alerta”, prontos a encontrar um caminho de expressão (FREUD, 1972, p. 589). É transferindo sua força, sua intensidade ao impulso vindo do consciente que os desejos inconscientes podem se manifestar.

Os desejos do inconsciente, mantidos sob repressão, são de origem infantil, visto que é na infância que se vive de forma mais espontânea, segundo os impulsos. A criança é espontânea e vive seus instintos sem censura; esta cresce na medida em que nos tornamos adultos, isto é, na medida em que desenvolvemos nossa capacidade de reflexão e recebemos uma série de condicionamentos: o instintual é reprimido a favor da razão, não pode ser atendido porque contradiz às ideias intencionais do pensamento de vigília.

O pensamento onírico tem origem na vida cotidiana, na vida mental normal. Elaborado durante o sono, este pensamento pode ter origem em sequencias lógicas realizadas no dia anterior, que se desenvolveram sem a atenção da consciência. Freud dedica uma atenção aos resíduos da vida diurna que são introduzidos no estado de sono: problemas não resolvidos, preocupações e impressões que marcaram o dia, mas que não receberam a devida atenção. Classifica estes impulsos do pensamento em grupos que são: a) “o que não foi levado à conclusão durante o dia, devido a algum obstáculo fortuito”; b) o que não foi tratado adequadamente e que não conseguimos resolver devido à “insuficiência de nosso poder intelectual”; c) o que “foi rejeitado ou suprimido durante o dia”; d) o que “foi colocado em ação no Inconsciente pela atividade do pré-consciente no decorrer do dia”; e) as “impressões diurnas que são indiferentes e que, por essa razão, não foram tratadas” (FREUD, 1972, p. 590).

A sequência mental própria da consciência se apresenta na atividade psíquica chamada atenção; se a atenção abandona uma ideia (por julgá-la errada ou inútil para seus propósitos intelectuais) e passa a seguir outra, a sequência mental abandonada pode continuar a desenvolver-se até se completar, permanecendo inobservada pela consciência até o início do sono, podendo tornar-se base de pensamentos oníricos. Freud acentua que esta continuidade demonstra que a atividade da consciência pode ser mínima na realização do pensamento e que, muitas vezes, “as mais complicadas realizações do pensamento são possíveis sem a assistência da consciência” (FREUD, 1972, p. 631).

O apoio que a ideia reprimida do inconsciente busca nos resíduos da vida diurna para se manifestar, transferindo sua intensidade para este resíduo e “ficando ‘coberta’ por ele”, Freud denomina “transferência”, fato descoberto no estudo da vida mental dos neuróticos. A “ideia pré-consciente, que assim adquire imerecido grau de intensidade”, pode ser alterada ou não, conforme o processo de transferência (Freud, 1972, p. 599). O processo de transferência é o mecanismo usado pelo inconsciente para burlar a censura, o que mostra que o sonho é o lugar no qual se chocam forças diferentes, mostrando o conflito entre consciente e inconsciente. As distorções ocorridas no sonho resultam deste choque e do modo como os desejos são dissimulados pela influência da censura psíquica. A significação deste conflito de forças, revelado pela experiência analítica, transparece nas versões do sonho, que revelam dois sentidos: um manifesto e outro latente e que escapam à consciência.

Retomando o objeto de estudo, que são os sonhos alucinatórios, Freud se dedica a esclarecer o fenômeno da regressão e suas características psicológicas no processo do sonhar e sua diversidade de movimento em relação ao estado de vigília. Neste, “o movimento para trás nunca se estende além das imagens mnemônicas”, enquanto rememoração intencional do pensamento. Na elaboração onírica segue-se a direção inversa na qual “a ideia é transformada na imagem sensorial” da qual se derivou (FREUD, 1972, p. 579). O ponto de partida para o entendimento da regressão nos sonhos foi a constatação de regressões nos estados patológicos de vigília, como a histeria e a paranoia.4

Não se trata, aqui, de aprofundar esta questão, mas de explicitar as características da formação dos sonhos a partir do inconsciente para entender o que se oculta na formação do imaginário social. O que Freud acentua no processo de formação dos sonhos é uma cisão marcante entre a atividade mental consciente e uma outra forma de atividade psíquica, desconhecida do comum dos mortais, que é a atividade do inconsciente o qual, por sua vez, também exerce um tipo especial de representação, produzindo uma forma de saber desconhecido da atividade consciente.

Retomando o percurso de modo sintético: o inconsciente é o reprimido, o censurado, o representante instintual, proibido de emergir ao consciente, por vários motivos, entre eles o de não satisfazer às normas de coerência a que está submetido o consciente. O inconsciente exerce uma pressão constante no sentido de aflorar à consciência, enfrentando a resistência que impede o seu acesso ao sistema consciente. Neste sistema inconsciente se localiza o impulso à formação dos sonhos, a força motivadora e a energia que emerge no estado de sono, quando as resistências do sistema consciente diminuem permitindo que o pensamento onírico se produza em forma não de ideias, mas em forma de imagens sensoriais.

Para explicar esta ocorrência, isto é, o sonho em forma de imagens sensoriais e não de ideias (embora às vezes o sonho possa ocorrer como pensamento sem imagens), Freud usa o conceito de regressão: a excitação, nos sonhos, não acontece no sentido progressivo, da extremidade sensória à extremidade motora, mas percorre uma direção inversa, da extremidade motora do aparelho à extremidade sensória, o que caracteriza a regressão topográfica.

A regressão é característica não só dos sonhos, mas também da recordação, da rememoração intencional; esta, porém, embora envolva um movimento de regressão no aparelho psíquico, reproduz apenas ideias, pensamentos, não imagens sensoriais. O trabalho dos sonhos se faz por imagens sensoriais que não apresentam uma ordenação lógica por serem material psíquico de origem instintual. Trata-se de um pensamento que se apresenta como imagem porque sofreu uma transformação por estar ligado a lembranças suprimidas ou representações inconscientes. A falta de ordenação lógica ocorre porque os elementos do inconsciente estão sob censura e precisam recorrer a outros meios para se manifestar.

Uma segunda característica do pensamento onírico é que ele se formula em uma situação atual: trata-se de “um pensamento de algo que é desejado, que é objetivado no sonho e é representado como uma cena ou, tal como nos parece, é experimentado” (Freud, 1972, p. 570). Esta transposição de uma expectativa para o tempo presente, como pensamento objetivado, está subordinada à realização de um desejo que, no sonho, se manifesta como desejo atendido e representado em imagens sensoriais, experimentadas como na vida de vigília.

Em linhas gerais, trata-se de uma teoria na qual o aparelho psíquico é apresentado em três momentos que definem as características do sonho: a regressão, o conflito de forças e a presentificação. Freud acentua que, nestas três situações, há uma ausência de referência anatômica; a noção de lugares psíquicos é ideal, ou seja, o mecanismo mental precisa ser abordado sem que haja a preocupação de determinar a localização psíquica do fenômeno. No campo psicológico deve-se “representar o instrumento que executa as funções mentais como semelhante a um microscópio” ou a um “aparelho fotográfico”, e o lugar seria o ponto onde surge a imagem. Como se sabe, “no microscópio e no telescópio isto ocorre em pontos ideais, em regiões nas quais não se acha situado nenhum componente tangível do aparelho” (FREUD, 1972, p. 572). Evidencia-se aqui o afastamento de Freud em relação ao primeiro Projeto, neurofisiológico, visto que o lugar psíquico é um ponto virtual e não espacial, embora seja retomada constantemente a colocação energética, de um sistema de forças. A referência ao microscópio é analógica, superando a colocação anterior onde os lugares do aparelho correspondiam a lugares no sistema nervoso e se comparava o aparelho a uma máquina hidráulica.

Todo o processo psíquico situa-se entre uma extremidade perceptiva e uma extremidade motora do aparelho. A regressão no sonho acontece porque a atividade motora, essencial no estado de vigília, adormece e a extremidade perceptiva permanece. O que acontece não é uma mudança de lugar, mas uma enervação, uma catexia de energia que, de modo dinâmico, liga-se a um novo grupamento mental. “Tudo que pode ser objeto de nossa percepção interna é virtual, como a imagem produzida num telescópio pela passagem dos raios luminosos” (FREUD, 1972, p. 649).

Os processos psíquicos são, em sua maioria, inconscientes, e a consciência fornece apenas uma visão parcial desses processos. A consciência tem a capacidade, na vida de vigília, de recepção das qualidades sensíveis por meio da percepção, excitações recebidas “da periferia de todo o aparelho, do sistema perceptivo e, além disso, pode receber excitações de prazer e desprazer, que mostram ser quase a única qualidade psíquica que se liga a transposições de energia no interior do aparelho”. À consciência cabem os processos de pensamento que englobam as recordações, os raciocínios e as representações (FREUD, 1972, p. 612).

Na consciência, distingue-se o que é representado do que é percebido, diferenciação entre mundo interior (prazer-desprazer) e mundo exterior (percepções). O sistema percepção-consciência, além de controlar as ações que podem modificar o mundo externo, dirige também a afetividade, cerceando o desenvolvimento do afeto e inibindo o impulso instintual (fruto de um processo educativo).

A repressão retém tanto o que tem origem na consciência quanto as manifestações instintuais. A repressão (ou censura) ocorre entre consciente e inconsciente no sentido de expulsar da consciência uma ideia ou afeto desagradável, qualquer conteúdo que, por acarretar um acúmulo de excitação do aparelho psíquico, gera desprazer. O conteúdo reprimido torna-se inconsciente; este conteúdo pode ser um afeto ou uma ideia que representam um instinto.

O que se caracteriza como “saúde mental” é a ausência de angústia ou outro mal-estar que implique a participação de impulsos instintuais alterando nosso comportamento, possibilitada pelo controle da censura no sistema consciente. Se tais impulsos ressurgem e encontram expressão nos sonhos, isso não é preocupante, porque “mesmo que este guardião crítico vá descansar, ele também fecha a porta ao poder de movimento”, de modo que os impulsos instintivos “permanecem inofensivos, uma vez que são incapazes de colocar em movimento o aparelho motor”, meio de interferência no mundo externo(salvo em casos de patologias graves) (FREUD, 1972, p. 604-605). Implicitamente, na medida em que questiona a centralidade da consciência no processo mental, Freud também questiona o próprio conceito de normalidade: a consciência reflexiva é parcial, secundária e mistificadora, visto que alicerçada na censura para garantir nossa saúde mental.

Cabe ainda uma breve referência a outros dois conceitos: a barreira crítica preserva a consciência durante o dia, mas enfraquece durante a noite, quando os impulsos inconscientes banidos durante o dia emergem nos sonhos. Durante o sono, quando a resistência se acha enfraquecida, o inconsciente burla a pouca censura que resta por meio dos processos de condensação e de deslocamento. A condensação é o trabalho de reelaboração que ocorre no sonho entre o pensamento onírico e o conteúdo onírico e consiste em fazer confluir numa única representação todos os significados de uma cadeia associativa ou de cadeias associativas, o que gera a possibilidade de vários significados no momento da interpretação do sonho.

A direção em que as condensações avançam é determinada, por um lado, pelas relações racionais pré-conscientes dos pensamentos oníricos e, por outro, pela atração exercida pelas lembranças visuais do inconsciente. O resultado da atividade da condensação é a obtenção das intensidades necessárias para forçar caminho aos sistemas perceptivos (FREUD, 1972, p. 634).

O deslocamento é entendido como a passagem de energia psíquica de uma representação para outra, é a transferência de interesse, a acentuação de representações originariamente pouco intensas. Há uma diferença de intensidade entre o conteúdo manifesto do sonho e os pensamentos latentes descobertos pela interpretação: os elementos mais importantes do pensamento onírico são representados por pormenores muitas vezes indiferentes, ou seja, uma representação aparentemente insignificante pode conter todo o significado e a intensidade originariamente atribuídos a outra.

Estas breves notas visam a explicitar alguns elementos que entendemos importantes para a compreensão da formação da subjetividade e entender a natureza contraditória da religiosidade e a sua atuação, na maioria das vezes como legitimadora da situação social e dos preconceitos que afloram em tempo de crise econômica, social e política. Se a teoria psicanalítica de Freud acentua que existem elementos da realidade cotidiana que são recalcados e que se alojam no inconsciente; que este inconsciente tem origem em sentimentos que se aplicavam a um objeto infantil (da infância da criança e da infância da humanidade), como pensar a formação religiosa e suas contradições? Conforme Laplanche, J. e Pontalis, J.-B. (1970, p. 570), Freud ampliou sua teoria:

Freud insistiu muitas vezes no fato de que o passado infantil - do indivíduo e da humanidade - permanece sempre em nós. [...] Reencontra esta ideia de uma volta para trás nos domínios mais diversos: psicopatologia, sonhos, história das civilizações, biologia, etc. A ressurgência do passado no presente é ainda marcada pela noção de compulsão à repetição.

Estas breves notas que apresentam o aparelho psíquico e seu funcionamento nos abrem várias possibilidades de leitura que assinalamos aqui: o questionamento da noção de sujeito e da consciência como centro do conhecimento racional, claro e conciso enquanto pressuposto da modernidade; o questionamento da história oficial, linear e progressiva, que procura apresentar o fato “como de fato foi” e que, na releitura historiográfica, mostra que o passado deixou traços no presente que precisam ser identificados para se superar contradições e construir o futuro; a interferência do psicológico na formação social e ideológica que se expressa nos preconceitos presentes no imaginário social; desvios de comportamento com base em regressões que geram a inversão da realidade, os frágeis limites da ideia de normalidade, a repressão dos desejos e as neuroses geradas pela educação repressiva, as perversões, o fetichismo e outros sintomas psicóticos.

Esta explicação nos permite avançar no sentido dos escritos de Walter Benjamin sobre a leitura da história, a educação pela repetição e, principalmente, a formação do comportamento e sua expressão no mito. Retomando conceitos como regressão, transferência, repetição e, principalmente a estrutura do sonho para pensar a sociedade moderna, Benjamin abre a senda para uma releitura da história do ponto de vista materialista.

Notas sobre o capitalismo como fenômeno onírico

O capitalismo foi um fenômeno natural com o qual um novo sono, repleto de sonhos, recaiu sobre a Europa e, com ele, uma reativação das forças míticas (BENJAMIN, 2009, K 1a, 8, p. 436).

A partir da experiência do capitalismo do século XIX Benjamin explicita a relação intrínseca entre a formação da sociedade capitalista como produtora de mercadorias e a formação psicológica e perceptiva do homem moderno, com expressão na imagem onírica enquanto ideologia da modernidade. A noção de sonho e sua interpretação retomada da psicanálise permite esclarecer a imagem que a sociedade faz de si mesma, o seu entendimento do passado e a sua perspectiva de futuro; mostra como o capitalismo tem uma dimensão utópica que impulsiona o processo de construção social, embora não seja um impulso inovador, mas sim de eterna repetição do mesmo, visto que nada muda e o capitalismo se apoia nesta dimensão utópica para se reproduzir como o mesmo. O impulso à ação se produz pela imagem dos desejos coletivos não explicitados e que funcionam também no sentido contrário, de imobilização na expectativa do novo. O símbolo material dos sonhos da sociedade do século XIX são as passagens, galerias que surgiram em 1822 como centros comerciais de luxo, como Benjamin (1985, p. 31) recorda na citação de um Guia Ilustrado de Paris:

Estas galerias são uma nova invenção do luxo industrial, são vias cobertas de vidro e com o piso de mármore, passando por blocos de prédios, cujos proprietários se reuniram para tais especulações. Dos dois lados dessas ruas, cuja iluminação vem do alto, exibem-se as lojas mais elegantes, de modo tal que uma dessas passagens é uma cidade em miniatura, é até mesmo um mundo em miniatura (BENJAMIN, 1985, p. 31).

O cenário lembra imagens de sonho, com a iluminação a gás, a sensação de se estar em uma “cidade em miniatura”, sensação produzida pelo teto de vidro e o estilizado dos caminhos possíveis com a construção em ferro, vidro e ferro que permitem uma “renovação da arte no antigo sentido grego”. O voltar-se ao passado denota o quanto os arquitetos da época tinham dificuldade em reconhecer a natureza funcional do ferro, tanto que, nas passagens, “imitam colunas pompeianas e nas fábricas imitam moradias”; a “construção adota o papel do subconsciente” da história (BENJAMIN, 1985, p. 31).

Na verdade, Paris, capital do século XIX, pode ser lido como uma tentativa de mostrar que se vive uma época de profundo sono, marcado por momentos de breve sonho. Nosso legado para as gerações futuras consiste em abrir as sendas do despertar. Mas como fazê-lo? A opção de Benjamin neste escrito é salientar as imagens oníricas que permeiam a experiência moderna, para fazer uma releitura da história da perspectiva dos vencidos. Esta necessidade de despertar do sono para descobrir o sonho coletivo do futuro perpassa os escritos das Passagens, nas observações sobre a “morada do sonho”, que guarda os “sonhos do futuro”:

O despertar como um processo gradual que se impõe na vida tanto do indivíduo quanto das gerações. O sono é seu estágio primário. A experiência da juventude de uma geração tem muito em comum com a experiência do sonho. Sua configuração histórica é configuração onírica. Cada época tem um lado voltado para os sonhos, o lado infantil (BENJAMIN, 2009, K 1, 1, p. 433).

O propósito de Benjamin, como acentua neste fragmento, é explicitar as técnicas do despertar, o que implica aprofundar o tema da educação: a “educação das gerações anteriores interpretava esses sonhos segundo a tradição, no ensino religioso, a educação atual volta-se simplesmente à distração das crianças”. Perde-se, na modernidade, os elos com a tradição e, consequentemente, a capacidade de rememoração, o que torna as novas gerações “mais pobres do que as gerações anteriores”, porque “abandonadas à própria sorte” e, por isso, conseguindo apropriar-se “dos mundos infantis apenas de maneira solitária, dispersa e patológica”. O despertar implica retomar os elos da rememoração (por meio da educação) e isso se constitui, se assim se pode definir, numa “revolução dialética” (BENJAMIN, 2009, p. 433).

Tem-se clareza aqui que as características desta revolução consistem em desvelar o avesso da ordem instituída, escrever uma história materialista da cultura visto que a história dos dominadores é idealista e criar estratégias para despertar do sono profundo. Tais estratégias parecem estar ancoradas na psicanálise, na técnica de descrever os sonhos a fim de dar-lhes uma interpretação. É isso que se percebe em Paris, capital do século XIX, na descrição de experiências cotidianas para desvelar os seus pressupostos sociais e culturais, assim como na forma de entrecruzamento do antigo com o moderno na arquitetura do ferro e do vidro que passam a fazer parte da estrutura urbana.

“É notável o fato de que as construções nas quais o especialista reconhece antecipações da arquitetura atual não pareçam ter nada de precursor” aos olhos de um observador comum, para o qual a nova arquitetura apresenta “um aspecto essencialmente antiquado, como pertencentes a um sonho” (BENJAMIN, 2009, K 1 a, 4, p. 435). Este quadro apresenta ainda características que só no século XX se explicitam com clareza: “uma mistura singular de tendências individualistas e coletivistas”. Nunca como nesta época cola-se “em todas as ações a etiqueta ‘individualista’ (o Eu, a Nação, a Arte)”, mas o cotidiano esconde, “como em uma vertigem, os elementos para uma configuração coletiva” - “construções cinzentas, mercados abertos, lojas de departamentos, exposições” (BENJAMIN, 2009, K 1 a, 5, p. 435).

Mas qual o caráter fundamental do sono moderno permeado de sonhos? Não é apenas o progresso tecnológico na forma do maquinismo e do mecanicismo, mas é também o “seu historicismo narcótico e a sua mania de se mascarar”. Este deve ser o alvo da crítica ao século XIX, reconhecendo que as formas de manifestação dos “sonhos coletivos”, se bem interpretadas, são “da maior importância prática, permitindo-nos conhecer o mar em que navegamos e a margem da qual nos afastamos” (BENJAMIN, 2009, K 1 a, 6, p. 435). Explicitar as formas deste historicismo narcotizante a partir da compreensão dos sonhos que habitam o sono profundo no qual se encontra a sociedade implica retomar o conceito benjaminiano de expressão (Ausdruck), que nos dá uma ideia da relação recíproca entre estrutura e superestrutura, superando a relação causal e mecânica, característica de algumas interpretações de Marx.

Trata-se de entender que a cultura não existe descolada do econômico, social e político, sendo a sua expressão: “se a infraestrutura determina de certa forma a superestrutura no material do pensamento e da experiência”, esta relação não é meramente de causa e efeito, mas de expressão. As condições econômicas e sociais que constituem determinada sociedade “encontram na superestrutura a sua expressão” num modo de vida e de pensamento. As condições de vida “encontram no sonho a sua expressão e no despertar a sua interpretação” (BENJAMIN, 2009, K 2, 5, p. 437).

Este conceito é importante e já o abordamos em outra ocasião, retomando aqui alguns pontos: acentuamos naquele escrito5 que Benjamin procura explicitar o “caráter expressivo dos primeiros produtos industriais, das primeiras construções industriais, das primeiras máquinas, mas também das primeiras lojas de departamentos, reclames, etc.” (Benjamin, 2009, p. 502, N 1 a, 7), ou seja, como o modo de produção se traduz em um estilo de vida burguês.

Para Georg Otte (2001, p. 406), o fenômeno da expressão aproxima-se dos “processos do inconsciente, deixando bem claro que se trata de algo que o sujeito não domina”, tanto que se faz analogia com o funcionamento do organismo na digestão e como um estomago cheio pode produzir pesadelos. Otte acentua que “a ‘pressão’ (Druck) é um fenômeno da natureza que ocorre sem a intervenção do sujeito”. Se para Marx “tratava-se apenas de ver uma analogia entre as leis da natureza e as da sociedade, visando uma compreensão completa dos mecanismos sociais”, Benjamin “aplica os próprios fenômenos da natureza à sociedade, distanciando-se, assim, da abordagem marxista”, no sentido que a arte, a arquitetura parisienses são “legados do século XIX que a sociedade de então ‘ex-pressou’ de si num ato de “inconsciente coletivo”.

O termo “expressão”, na nossa leitura, tem um significado bem mais amplo que permite relacionar ideologia e sonho a fim de estender as imagens oníricas e delas retirar uma interpretação da realidade social e política. “Tem como objetivo mostrar que o ideológico já se encontra implícito no movimento de formação da mercadoria”, na profunda alienação que se concretiza no conjunto da sociedade, com raízes na estrutura econômica e que se traduz no direito, na religião, na cultura em geral, condicionando o imaginário social e a nossa subjetividade (SCHLESENER, 2013, p. 30).

Substituir “nexo causal” por “ligações expressivas” permite salientar as relações recíprocas entre econômico, social, político e ideológico, mostrando como este último se enraíza no inconsciente, com desdobramentos no imaginário coletivo formado no conjunto das relações sociais. A alienação, que se enraíza na estrutura do trabalho e que se generaliza no conjunto das relações sociais se caracteriza pelo ocultamento dos vínculos reais entre os homens agora transformados, como todo o conjunto social, em meras mercadorias. “Para que esta alienação seja recíproca, basta que os homens se defrontem, tacitamente, como proprietários privados dessas coisas alienáveis e, por isso mesmo, como pessoas independentes” (Marx apud Benjamin, 2009, p. 698, X 3 a,1).

“Durante o processo de trabalho, o trabalho passa continuamente da forma da inquietação para a forma do ser, da forma do movimento para a forma da objetividade” (Marx apud Benjamin, 2009, p. 701, X 5 a, 3). A qualidade é transformada em quantidade a ser medida e objetivada na mercadoria; o trabalho social se solidifica e se materializa em tempo quantificado e medido; o processo de trabalho se transforma a tal ponto que o trabalhador não se reconhece mais no resultado do seu trabalho e os participantes da troca, agora despersonalizados, perdem a dimensão ontológica do trabalho e da inversão que transformou a sua atividade criadora em uma forma de atividade entre as coisas: “Para [...] relacionar as coisas entre si como mercadorias, seus guardiões devem relacionar-se entre si como pessoas cuja vontade reside nessas coisas” (Marx apud Benjamin, 2009, p. 698, X 3 a, 2).

Benjamin acentua que há uma reciprocidade entre a “natureza abstrata do trabalho social e a natureza abstrata do homem que se comporta como proprietário em relação a seus semelhantes” (Benjamin, 2009, p. 699, X 4, 4) e uma inversão ideológica necessária para o funcionamento desse sistema, inversão por meio da qual “o sensível concreto vale apenas como manifestação do universal abstrato - e não o contrário, o universal abstrato como qualidade do concreto -, que caracteriza a expressão de valor...”, situação que se expressa na correlação mística evidenciada no direito, na política e na cultura (Benjamin, 2009, p.700, X 4 a, 1).

Estas colocações retomadas de Marx para esclarecer aspectos da alienação tomam uma nova dimensão quando relacionados com imagens oníricas para explicitar como se produzem concepções de mundo que se sedimentam no senso comum sem a compreensão da origem de sua formação. “O século XIX, um espaço de tempo”, um “sonho de tempo” no qual a consciência individual mergulha em sua interioridade e a consciência coletiva alimenta seus sonhos profundos (BENJAMIN, 2009, K 1, 4, p. 434).

Assim como aquele que dorme - e que nisto se assemelha ao louco - dá início à viagem macrocósmica através de seu corpo, e assim como os ruídos e sensações de suas próprias entranhas, como a pressão arterial, os movimentos peristálticos, os batimentos cardíacos e as sensações musculares - que no homem sadio e desperto se confundem no murmúrio geral do corpo saudável - produzem, graças à inaudita acuidade de sua sensibilidade interna, imagens delirantes ou oníricas que traduzem e explicam tais sensações, assim também ocorre com o coletivo que sonha e que, nas passagens, mergulha em seu próprio interior (BENJAMIN, 2009, K 1, 4, p. 434).

Assim como nossa subjetividade se forma no conjunto das relações sociais, forma-se também o nosso imaginário social, cujos sonhos se formam de lendas, mitos e crenças cuja origem e significado se perderam no tempo, possibilitando um sonho de tempo; assim como no corpo são os processos vitais permanecem ocultos, também os fantasmas do passado se manifestam na forma do sonho, que se traduz na moda, na arte, na religião, na cultura em geral. São imagens oníricas de origem desconhecida, que se alojam no inconsciente e que transbordam em tempos de crise, na forma do preconceito, do fascismo, do feminicídio ou do ódio de classe. Daí a nossa epígrafe: “O capitalismo foi um fenômeno natural com o qual um novo sono, repleto de sonhos, recaiu sobre a Europa e, com ele, uma reativação das forças míticas” (BENJAMIN, 2009, K 1a, 8, p. 436).

A proposta revolucionária de nosso autor é tentar, por meio da crítica, despertar a sociedade deste profundo sono. “O despertar é a revolução copernicana e dialética da rememoração” (BENJAMIN, 2009, K 1, 3, p. 434). Este é o trabalho da crítica ou, como acentua o autor, da Teoria: desfazer o encantamento que nos envolve e nos determina na prática; interpretar os sonhos transpondo o estado de consciência tal como ele aparece no momento de vigília. “A arquitetura, a moda, até mesmo o tempo atmosférico são, no interior do coletivo, o que os processos orgânicos” são no interior do indivíduo. E enquanto não são explicitados, ou seja, “enquanto mantêm sua forma onírica, inconsciente e indistinta” [...] permanecem “no ciclo da eterna repetição até que o coletivo se apodere deles na política e quando se transformam, então, em história” (BENJAMIN, 2009, K 1, 5, p. 434).

Trata-se, para Benjamin, de dissolver “a ‘mitologia’ no espaço da história. Isso, de fato, só pode acontecer através do despertar de um saber ainda não consciente do ocorrido” (BENJAMIN, 2009, N 1, 9, p. 500). Para nós, se trata de escrever a história materialista da cultura, dando voz aos dominados para recriar as condições de surgimento do novo. Retomando uma frase de Rudolf Borchart, Benjamin (2009, N 1, 8, p. 500) acentua: o “lado pedagógico deste projeto: ‘Educar em nós o médium criador de imagens para um olhar estereoscópico e dimensional para a profundidade das sombras históricas’.” Esta é a tarefa do historiador materialista, visto que a “apresentação materialista da história leva o passado a colocar o presente numa situação crítica” (BENJAMIN, N 7a, 5, p. 513).

Breves observações conclusivas:

Fazer a crítica do presente descobrindo nele os rastros do passado: todos os preconceitos que afloram neste início do século XXI, todos os fantasmas que saem desta caixa de Pandora, emergem porque não acertamos as contas com o passado. E esta é a tarefa da educação e da filosofia, que esta breve abordagem pretendeu explicitar.

Benjamin nos desafia a reinterpretar a tradição e a história, a mostrar a importância da filosofia para a crítica do presente, a compreender a educação como forma de produção da vida e do conhecimento no movimento dialético que se constitui de embates e de relações de força. Sua leitura das imagens oníricas supera as interpretações individuais e subjetivas da psicanálise para acentuar a dimensão social e política da formação de nossa subjetividade, base para se reinterpretar a história.

Os poucos fragmentos aqui levantados do Trabalho das Passagens mostram a riqueza e a complexidade de um pensamento que soube fazer, com cuidado e precisão, a relação entre a teoria dos sonhos de Freud e as bases fundamentais da crítica marxista ao capitalismo, vertente que procuramos seguir e aprofundar em nossos próximos trabalhos.

Referências

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SCHLESENER, Anita Helena. Os Tempos da História: leituras de Walter Benjamin. Brasília: Liber Livro, 2011. [ Links ]

1Em carta enviada para Wilhelm Fliess em 1895, Freud sinaliza que está trabalhando na “Psicologia para Neurólogos”, nome que utilizamos aqui a partir da Obra Completa, Volume I, escritos de 1886-1899, Argentina: Amorrortu Editores, tradução do alemão para o espanhol de Jose L. Etcheverry, 1966, p. 325.

2Regressão: retorno em sentido inverso deste um ponto já atingido a um ponto anterior e superado, voltando-se a modos de expressão e de comportamento de nível inferior (cf.: LAPLANCHE, J.; PNTALIS, J.-B, 1970, p. 567-568).

3Catexia: Concentração de toda a energia psíquica (mental ou emocional) na representação de uma ideia, uma imagem, um objeto, etc.

4Minha explicação das alucinações na histeria e na paranoia e das visões em sujeitos mentalmente normais é que elas são de fato regressões - isto é, pensamentos transformados em imagens - mas que os únicos pensamentos que sofrem esta transformação são aqueles que se acham intimamente ligados a lembranças que foram suprimidas ou permaneceram inconscientes (FREUD, 1972, p. 580).

5SCHLESENER, A. H. Benjamin leitor de Marx: na senda de Das Passagen-Werk. CRITICA MARXISTA (SÃO PAULO), v. 36, p. 27-41, 2013.

Recebido: 09 de Setembro de 2019; Aceito: 27 de Maio de 2020

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