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Educação e Filosofia

versión impresa ISSN 0102-6801versión On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.33 no.69 Uberlândia set./dic 2019  Epub 06-Feb-2022

https://doi.org/10.14393/revedfil.v33n69a2019-49080 

Artigos

Educação estética em “Rua de mão única” (Walter Benjamim) e em “A idade da terra” (Glauber Rocha)1

Aesthetics education in "One-Way Street" by Walter Benjamim and in "The Age of the Earth" by Glauber Rocha

Educación estética en "Calle de sentido único” (Walter Benjamim) y en “La edad de la tierra ” (Glauber Rocha)

*Doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal de Lavras (UFLA). E-mail: carlosbetlinski@ufla.br

**Doutora em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). Professor do curso de Letras da Universidade Federal de Lavras (UFLA). E-mail: dalva.lobo@ufla.br

***Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor de Filosofia da Educação na Universidade Federal de Lavras (UFLA). E-mail: vanderleibarbosa@ufla.br


Resumo

O presente ensaio analisou o tema da educação estética a partir do texto literário “Rua de mão única” de Walter Benjamin e do filme “A idade da terra” de Glauber Rocha e buscou identificar semelhanças entre a forma alegórica presente nas duas obras, bem como descrever as potencialidades pedagógicas presentes nas imagens-pensamentos produzidas por elas junto ao receptor. Definimos como problematização a compreensão do potencial de crítica e ensino da forma alegórica mediada pela literatura e pelo cinema. Nosso principal objetivo foi identificar as características alegóricas na construção das obras, entendendo as relações com os contextos históricos, econômicos e culturais em que foram produzidas. Como principais resultados de nossa investigação apontamos que o cinema e a literatura são espaços privilegiados de construção de imagens-pensamentos, que associados aos conceitos filosóficos potencializam a interpretação e a crítica da realidade histórica, econômica e cultural, derivando na dimensão pedagógica da imagem que acreditamos possa ser melhor explorada pelos educadores.

Palavras-chave: Educação estética; Cinema; Literatura; Alegoria; Ensino

Abstract

The present essay analyzed the topic aesthetics education from the literary text "One-Way Street", by Walter Benjamin, and the film "The Age of the Earth" by Glauber Rocha. It aimed to identify similarities between the allegorical constructions present in the two works, as well as, to describe the pedagogical potentialities present in the images-thoughts produced by them together with the receiver. We defined as questioning the understanding of criticism and teaching potential of the allegorical form mediated by literature and cinema. Our main objective was to identify the allegorical characteristics in creating the works, conceiving relationships with historical, economic and cultural contexts in which they were created. Our main results point out that cinema and literature are privileged spaces of images-thoughts construction, and that associated with the philosophical concepts they can potentiate the interpretation and the criticism of the historical, economic and cultural reality, deriving the educational dimension of the image that we believe educators may best explore.

Keywords: Aesthetics education; Cinema; Literature; Allegory; Teaching

Resumen

En este trabajo se analizó el tema de la educación estética del texto literario "Calle de sentido único" de Walter Benjamin y de la película “La edad de la tierra” de Glauber Rocha. Se buscó identificar semejanzas entre la forma alegórica presente en las dos obras, así como describir las potencialidades pedagógicas presentes en las imágenes-pensamientos producidas por ellas junto al receptor. Definimos como problematización la comprensión del potencial de crítica y enseñanza de la forma alegórica mediada por la literatura y el cine. Nuestro objetivo principal fue identificar las características alegóricas en la construcción de las obras, entendiendo las relaciones con los contextos históricos, económicos y culturales en que se produjeron. Los principales resultados de nuestras investigaciones señalan que el cine y la literatura son espacios privilegiados de construcción de imágenes-pensamientos, los cuales, asociados a los conceptos filosóficos, promueven la interpretación y la crítica de la realidad histórica, económica y cultural, derivando en la dimensión pedagógica de la imagen, y creemos que los educadores puedan sacar mejor provecho de ello.

Palabras clave: Educación estética; Cine; Literatura; Alegoría; Enseñanza

Introdução

A forma estética da alegoria, diretamente associada aos temas da educação, história e sociedade perpassa algumas obras literárias de Walter Benjamim e do cinema de Glauber Rocha. O contato com essas obras permite ao educador e aos estudiosos dos campos da literatura, cinema e filosofia uma compreensão crítica e significativa das características artísticas mobilizadas nesses empreendimentos. Benjamim, servindo-se de uma concepção histórica que se opõe ao positivismo e de uma genuína criatividade artística, produz imagens-pensamentos sobre a realidade social e sobre a própria história. O filósofo mobiliza recursos artísticos e imagens metafóricas da vida cultural e social para a produção de conhecimentos e críticas ao espírito capitalista e à padronização da vida em torno da forma “mercadoria”, tendo como referências a subjetividade, os detalhes e as ruínas, características que ele identificou no drama barroco alemão.

Glauber Rocha, cineasta do Cinema Novo brasileiro, produz filmes introduzindo características artísticas centradas na montagem, nas metáforas que intencionam a construção de alegorias sobre a sociedade brasileira. Nesse cineasta, a forma estética alegórica também remete à construção de imagens-pensamentos, por meio da mobilização de detalhes, fragmentos da cultura, capazes de produzir no espectador certas inquietações e choques que poderão provocá-lo a uma leitura crítica e uma atribuição de sentido ao tema abordado no filme.

No presente ensaio, abordaremos o texto literário “Rua de mão única”, de Walter Benjamim, e o texto/filme “A idade da terra”, do cineasta brasileiro Glauber Rocha, nos quais, embora em contextos históricos e espaços sociais bem distintos, identificamos características semelhantes, tanto na forma de construção estética quanto nos objetivos educativos de suas produções artísticas.

Em “Rua de mão única”, o recurso da forma estética da alegoria possibilita discorrer sobre os “tempos modernos”, referindo-se a Paris da década de 1920, cidade, naquele momento, que melhor representava o espírito capitalista da época. As transformações das ruas e dos espaços públicos, o surgimento dos cafés, as vitrines e os imponentes centros de compras, o luxo, a arquitetura e a modernização do sistema de transporte exigem um outro estilo de vida e de comportamentos sociais. Por outro lado, existem a miséria e alguns personagens que encontram formas alternativas de vida: flâneurs, jogadores, mendigos e prostitutas são alguns exemplos dos que habitam a moderna cidade que segue o ritmo acelerado da máquina capitalista.

No filme “A idade da terra”, Glauber Rocha alegoriza o projeto de construção da nação brasileira, servindo-se de fragmentos culturais, religiosos e sociais específicos do povo brasileiro. A obra apresenta de forma irônica o domínio dos grupos econômicos externos, a subserviência da elite nacional, sempre disposta a aliar-se ao capital internacional, para impedir a possibilidade de construção de uma nação livre que permitisse a ascensão social das populações historicamente exploradas e mantidas em estado de pobreza econômica e ignorância política.

Os espaços das filmagens percorrem as cidades de Salvador, Rio de Janeiro e Brasília, as capitais do Brasil e, especialmente a cidade de Brasília, que é tomada como representação da modernidade e do progresso tupiniquim. A arquitetura grandiosa, os operários nas obras, os espaços planejados, as ruas largas e retas, a presença de automóveis e os monumentos brasilienses representam o tempo do domínio da técnica e do desenvolvimento econômico para a sociedade brasileira. Além disso, a cidade é tomada como metáfora de unificação do povo brasileiro em torno do mito do Estado Nacional.

Elegendo como objeto de análise essas duas obras, manteremos o foco de investigação na questão da forma estética da alegoria, destacando seus aspectos artísticos como potencializadores da construção de imagens sociais e históricas. Ressalta-se, ainda, a mediação que a literatura e o cinema possibilitam para a educação estética e construção do pensamento crítico em sua materialidade do tempo histórico. No âmbito deste ensaio, não haverá espaço para a discussão mais aprofundada dos conteúdos das obras estudadas, já que priorizaremos a discussão sobre a forma estética da alegoria como produção de imagens sobre a moderna cidade de Paris e sobre o mito da construção da nação brasileira, muito discutido no período do Cinema Novo brasileiro.

A principal questão que orienta o nosso trabalho é a discussão: qual é o potencial de educação estética da forma alegórica mediada pela literatura e pelo cinema? Para tanto, teremos como objetivos identificar as principais características da forma alegórica concebida por Benjamim e fazer aproximações entre as características estéticas do texto “Rua de mão única” e do filme “A idade da terra”, mediadas pelo pensamento filosófico-literário benjaminiano.

Na primeira parte do texto, trataremos sobre a concepção de alegoria em Walter Benjamim, contextualizando esse estilo artístico-filosófico muito bem desenvolvido pelo pensador e crítico literário do começo do século XX. No segundo momento, caracterizaremos a forma estética da alegoria benjaminiana, em uma análise de seu texto “Rua de mão única”, eminentemente construída a partir das influências do poeta Baudelaire, das vanguardas artísticas e do cineasta soviético Eisenstein. No terceiro momento, abordaremos o filme “A idade da terra”, de Glauber Rocha, com a intenção de fazer algumas aproximações com as características da concepção alegórica de Benjamim e fazer algumas considerações sobre a possibilidade de educação estética mediada pela literatura e pelo cinema.

Concepção de alegoria em Walter Benjamim

No livro a "Origem do Drama Barroco Alemão", publicado originalmente em 1928, Walter Benjamin concebe a alegoria como uma forma estética potente, tanto para interpretar o passado histórico, mediante a investigação de suas ruínas, quanto para compreender o presente, mediante a montagem ou colagem de fragmentos, que, semelhante aos processos de construção artística das vanguardas ou do Cinema Novo, convoca o leitor/receptor a fazer interpretações sobre o conteúdo que a obra de arte pode revelar.

Partindo do sentido etimológico do termo, Benjamin entendeu a alegoria como a revelação de uma verdade oculta. Ela não representa as coisas diretamente tal como são, mas pretende, antes, dar-nos uma versão de como foram ou como podem ser. Por isso, seu modo de pensar a alegoria distancia-o da retórica clássica e assegura que a forma alegórica encontra-se entre as ideias, assim como as ruínas estão entre as coisas. Fortemente influenciado pela arte barroca, Benjamin fala da alegoria como expressão da melancolia, do declínio e observa que,

Quando, com o drama barroco, a história penetra no palco, ela o faz enquanto escrita. A palavra história está gravada, com os caracteres da transitoriedade, no rosto da natureza. A fisionomia alegórica da natureza-história, posta no palco pelo drama, só está verdadeiramente presente como ruína. Como ruína, a história se fundiu sensorialmente com o cenário. Sob essa forma, a história não constitui um processo de vida eterna, mas de inevitável declínio. Com isso, a alegoria reconhece estar além do belo. As alegorias são no reino dos pensamentos o que são as ruínas no reino das coisas. Daí o culto barroco das ruínas (BENJAMIM, 1984, p. 199-200).

Além da consideração da degeneração e transitoriedade da natureza, imagem que Benjamim associa à história dos homens, o olhar melancólico e a atribuição de sentido aos objetos que compõem uma alegoria resultam da sensibilidade artístico-filosófica socialmente construída.

A subjetividade e a historicidade são categorias pragmáticas e sua ambiguidade parece ser consequência necessária, vista como subjacente à alegoria. Elas determinam o seu sentido, não tendo sentido por si mesmas, as coisas que o alegorista usa são insignificantes, resultando qualquer sentido a elas atribuído em uma conexão subjetivamente estabelecida pelo alegorista.

Se o objeto se torna alegórico sob o olhar da melancolia, ela o priva de sua vida, a coisa jaz como se estivesse morta, mas segura por toda a eternidade, entregue incondicionalmente ao alegorista, exposta a seu bel-prazer. Vale dizer, o objeto é incapaz, a partir desse momento, de ter uma significação, de irradiar um sentido; ele só dispõe de uma significação, a que lhe é atribuída pelo alegorista. Ele a coloca dentro de si, e se apropria dela, não num sentido psicológico, mas ontológico. Em suas mãos, a coisa se transforma em algo de diferente, através da coisa o alegorista fala de algo diferente, ela se converte na chave de um saber oculto, e como emblema desse saber ele a venera (BENJAMIM, 1984, p. 205-206).

Depreende-se que a alegoria busca seu sentido no mundo histórico, após separar-se natureza e linguagem, tendo emudecido a natureza e necessitando o homem atribuir-lhe sentido. Então, o sentido alegórico nasce como resultante da relação subjetiva entre signo e coisa, intensificando o princípio da subjetividade subjacente a todo sentido no mundo histórico.

Descrevendo a alegoria como processo de constituição de sentido, Benjamin ressalta a arbitrariedade, o princípio de subjetividade: “Cada pessoa, cada coisa, cada relação pode significar qualquer outra. Essa possibilidade profere contra o mundo profano um veredito devastador, mas justo: ele é visto como um mundo no qual o pormenor não tem importância" (BENJAMIM, 1984, p. 196). A alegoria, então, relaciona-se à linguagem, para além do signo linguístico, este, sim, arbitrário, porque, no mundo histórico, as coisas deixaram de ter sentido em si próprias; o "nome" não mais "é" a coisa, mas todos os fatores da linguagem. As coisas, as palavras e o intérprete estão inevitavelmente envoltos em historicidade.

O alegorista, mudando as coisas, atribuindo novo significado ao significante, aponta as condições especificas sob as quais as coisas adquirem novo significado no mundo histórico. Segundo Benjamin (1984, p. 198), "na esfera da intenção alegórica, a imagem é fragmento, ruína. Sua beleza simbólica se evapora, quando tocada pelo clarão do saber divino. O falso brilho da totalidade se extingue". Portanto, é a alegoria que liberta a coisa do seu aprisionamento funcional, no qual não tem sentido próprio, sendo somente parte de um todo.

A descontextualização e a fragmentação do processo alegórico indicam uma alegoria em si mesma, conforme sugere Benjamin,

seria desconhecer a essência do alegórico separar o tesouro de imagens em que se dá essa reviravolta em direção a um mundo sagrado e redimido, do outro, sinistro, que significa a morte e o inferno. Pois nas visões induzidas pela embriaguez do aniquilamento, nas quais tudo o que é terreno desaba em ruínas, o que se revela não é tanto o ideal da auto-absorção alegórica, como o seu limite. A confusão desesperada da cidade das caveiras, que pode ser vista, como esquema das figuras alegóricas, em milhares de gravuras e descrições da época, não é apenas o símbolo da desolação da existência humana. A transitoriedade não é apenas significada, representada alegoricamente, como também significante, oferecendo-se como material a ser alegorizado: a alegoria da ressurreição. No fim, a contemplação barroca inverte sua direção nas imagens da morte, olhando para trás, redentora (BENJAMIM, 1984, p. 255).

Dessa maneira, arrancado do seu lugar e função, o fragmento, agora descontextualizado, pode reunir-se ou ser reunido com outros fragmentos isolados da realidade, criando, assim, o sentido alegórico, isto é, um novo sentido, não resultante do contexto original dos fragmentos. Uma coisa individual é tomada como fragmento, arrancado do todo para absorver o sentido alegórico, pois somente como tal, adquire novo sentido, procedimento que pode ser entendido como um "resgate", porque sem este a coisa permaneceria condenada à transitoriedade, muda e sem sentido. Mas esse sentido que lhe atribui o alegorista nada tem a ver com seu sentido original, a ideia que ela, a coisa, podia exprimir antes da queda. Com tal procedimento, o alegorista aponta para o estado de redenção messiânica, como que antevendo as coisas tornarem-se novamente linguagem.

Em “Teoria das vanguardas”, Peter Burger (1987) afirma que a concepção de alegoria de Benjamim permite distinguir no plano da análise os aspectos da produção (sentimento melancólico) e o efeito estético (pessimismo provocado nos receptores) e que pode ser uma categoria central para uma teoria das obras de arte de vanguarda. Considera-se que o artista de vanguarda produz uma obra de arte inorgânica em forma de montagem. O vanguardista arranca ou desenraiza seus materiais do contexto em que tem função e significado, fragmenta-os e os usa como signos em devir, aos quais ele atribui novos significados, diferentemente do artista clássico, que buscava a totalidade para os significados, o que minava, de certa forma, seu potencial, como se vê claramente em “Rua de mão única”.

Em relação aos processos de produção, o vanguardista constrói sua obra sobre fragmentos, não a produz como um todo orgânico, mas intenciona fixar um sentido ao reunir os fragmentos. A obra apresenta-se como artefato, produto artístico, servindo-se da montagem como principio básico; compondo-se de imagens da realidade, suprime a aparência de totalidade. Quanto à recepção, conserva em seus momentos concretos elevado grau de independência, interpretáveis no conjunto e separadamente. Por sua vez, o artista clássico intenciona, com sua obra, oferecer um retrato vivo da totalidade, com uma produção que oculta os seus artifícios. Produz, na recepção, uma impressão global, remetendo seus momentos concretos sempre à totalidade.

Ao analisar os movimentos das vanguardas do início do século XX, Burger (1987) identifica a montagem como uma de suas principais características artísticas. Embora o conceito de montagem não figure como categoria nova ou alternativa ao conceito de alegoria, ela permite estabelecer uma relação com alguns aspectos do conceito de alegoria. Destacamos que, na mesma década de 1920, em que Benjamin desenvolvia seu conceito de alegoria, no ensaio sobre o drama barroco alemão, a vanguarda do cinema soviético, com Pudovkin e Eisenstein, explodia a teoria da montagem, explorando um sentido novo, decorrente da contraposição de fragmentos diversos e independentes; e, mesmo nas artes plásticas, era marcante a técnica da "collage", com Picasso e Braque. Enfim, a construção literal vanguardista incorporou, crescentemente, tais técnicas, desde as descontinuidades de Proust ou de Joyce. Portanto, a relação da categoria montagem com a produção alegórica de Benjamim é marcante e fruto de sua relação com esses diferentes movimentos artísticos da mesma época.

Mais do que simplesmente expressar uma realidade mediante a construção de imagens, a alegoria retira da fragilidade das ruínas a sua força, o que constitui seu caráter redentor, isto é, na medida em que se dá o reconhecimento da falibilidade histórica, que se reconhece seu caráter de processo e contradição, abre-se a possibilidade “pedagógica” para que os sujeitos sociais se reconheçam como produtores e produzidos nos diferentes contextos em que atuam, à medida que dão forma e conteúdo à linguagem com que buscam se expressar.

Sendo um ser de linguagem, o homem histórico só pode ser reconhecido por meio dela, a qual, paradoxalmente, não o traduz, ainda que tenha sido criada por ele com o intuito de comunicar-se e transmitir a outrem sua passagem pelo mundo, tendo em vista a sua angústia diante do precário de sua efemeridade existencial. Para Benjamim, a forma alegórica da linguagem tem o poder de produzir inquietações e sentidos mediante seu esforço de interpretação das imagens por ela produzidas.

Utilizar de uma linguagem literária mediada pelo recurso da alegoria para falar sobre aspectos da vida social, estabelecer críticas, apontar desvios de direção, produzir ruídos e resistências pode ser considerado um recurso didático extraordinário. Conhecer por meio da construção de imagens, desvendar os mistérios que as imagens escondem, compor uma imagem da cidade, de um país, de uma determinada situação social em que o receptor da obra literária ou cinematográfica (conforme analisaremos no filme “Idade da terra”, de Glauber Rocha) também se sente autor e envolvido na trama é um recurso pedagógico capaz de provocar o pensamento e o posicionamento crítico do estudante em seu meio social.

Forma estética alegórica em “Rua de mão única”

Rua de mão única”, publicada em 1928, organizada segundo uma estrutura fragmentada, com frequentes interrupções e com a construção de imagens dialéticas, chama a atenção para o efeito da obra de arte como choque, capaz de mover o pensamento e a percepção para o cotidiano. Os fragmentos não objetivam tanto oferecer um conteúdo a pensamentos conceituais, mas, por meio de forma enigmática, buscam chocar e, com isso, produzir um pensamento em movimento. Não se trata de conteúdo conceitual tradicional, estanque, mas mediado por objetos ou fragmentos que movem o pensamento entre pausas e ritmos, semelhante à estrutura de uma música, em que os trechos da composição são relativamente autônomos. Do mesmo modo como os elementos que constituem a música, ou seja, a melodia, o ritmo, a harmonia, nem sempre trabalham juntos, assim também os objetos/fragmentos que compõem “Rua de mão única”, de forma enigmática, produzem o choque.

Um exemplo são os subtítulos que compõem a obra. Eles parecem desconectados e, de fato, considerando cada conto como elemento único, tal impressão parece ser real. No entanto, os fragmentos compõem a unicidade da obra, não como algo estanque, mas como metáforas de cenários do cotidiano da sociedade da época.

O percurso pela “Rua de mão única” é composto por lugares, pessoas e objetos. São placas, posto de gasolina, lojas, vitrines, anúncios encontrados, que compõem uma estrutura fragmentada e vão exigir do leitor a construção de sentidos, ao se estabelecer a relação com a obra. Detalhes que aparentemente são inúteis para o uso prático no pensamento benjaminiano passam a merecer uma consideração inteiramente única, que lembra uma característica da alegoria mencionada no livro do “Drama barroco alemão”. Seu método considera o particular, o detalhe do pormenor, em sua relação com o todo. A relação entre o trabalho microscópico e a grandeza do todo plástico e intelectual demonstra que o teor de verdade só pode ser captado pela mais exata das imersões nos pormenores do conteúdo material.

Na esteira do moderno apresentado pelas vanguardas e sem perder de vista as novidades da virada do século XIX para o XX, sobretudo a fotografia e o cinema, a produção literária de “Rua de mão única” vai além da simples crítica literária e sua própria forma estética torna-se um procedimento de crítica à cultura. Isso porque uma série de mudanças decorrentes da industrialização e urbanização que aconteceram ao longo do século XIX provocou uma contínua vivência do choque e consequentes modificações na percepção e no sentido da arte para as pessoas da época. A produção em larga escala em fábricas, o crescimento e a modernização de grandes cidades, a invenção do cinema são elementos que provocam novas formas de percepções e reações diante da produção dos choques provocados.

A valorização da forma estético-filosófica da alegoria aponta para a falsa totalidade da obra e coloca em evidência a problemática da arte, cujo significado, na concepção benjaminiana, é a percepção da condição precária do mundo mesmo, como demonstrado nos estudos sobre a arte barroca e, em “Rua de mão única”, por meio da iconicidade alegórica. A montagem e a não linearidade natural dessa constituição fragmentada possibilita uma leitura semelhante a um passeio que um transeunte realiza por uma rua principal de uma metrópole.

A montagem que constitui “Rua de mão única” é uma construção que lembra uma mandala e permite a liberdade de leitura a partir de qualquer excerto. Portanto, é possível percorrer essa rua efetuando uma série de movimentos: seguir, retornar, parar, entrar em um estabelecimento, distrair-se com imagens oníricas e com os fetiches representados pela mercadoria. Por meio de seu método de materialismo histórico dialético, Benjamim mobiliza sua criatividade de acordo com os padrões vanguardistas, com um hibridismo composto de elementos diversos como dadaísmo, construtivismo, surrealismo, com teor crítico muito particular retratado na alegoria da rua que tem mão única. Em síntese, apesar de centrado na República de Weimar, pode funcionar como exemplo de crítica e entendimento de vários momentos de ilusão e fantasia provocados pelo fetiche da mercadoria, que configuram a sociedade capitalista e sua ideia de progresso.

Essas preocupações e críticas ficam evidentes no fragmento “Panorama imperial”:

Cada uma delas [das coisas que se fabricam] carimba seu possuidor, que só tem a escolha de aparecer como pobre coitado ou especulador. Pois, enquanto mesmo o verdadeiro luxo é de tal ordem que espírito e sociabilidade são capazes de penetrá-los e levar a seu esquecimento, aquilo que aqui se ostenta de mercadorias de luxo põe em evidência uma massividade tão desavergonhada que nelas toda radiação espiritual se refrata. (BENJAMIM, 1987, p. 25-26).

O fato de que “coisas carimbam seu possuidor” demonstra a ideia de que uma coisa atribui uma qualidade ao sujeito. Aquele que possui um determinado objeto é, nesse caso, quem recebe uma alcunha. Seguindo esse princípio, os objetos não são mais considerados por sua utilidade, eles recebem uma excessiva valorização e passam a ter vida própria, determinando, assim, a vida dos homens.

“Rua de mão única” é constituída de sessenta fragmentos, que contemplam os mais variados temas e formas, desde descrições de lugares, sonhos e situações, até apreciações de brinquedos, análises de comportamentos e paisagens da cidade. Não se trata de um livro de aforismos, mas, antes, de uma coleção de imagens-pensamentos que compõem o percurso de quem por ela caminha.

Esse recurso fica evidenciado no fragmento “Estas áreas são para alugar”, que chama a atenção para os anúncios publicitários fortemente centrados em imagens atrativas ao olhar dos passantes da rua:

O olhar mais essencial hoje, o olhar mercantil que penetra no coração das coisas, chama-se reclame. Ele desmantela o livre espaço de jogo da contemplação e desloca as coisas para tão perigosamente perto da nossa cara quanto, da tela de cinema, um automóvel, crescendo gigantescamente, vibra em nossa direção. E assim como o cinema não apresenta móveis e fachadas em figuras acabadas de uma consideração crítica, mas unicamente sua proximidade teimosa, brusca e sensacional, assim o reclame genuíno acelera as coisas em nossa direção e tem um ritmo que corresponde ao bom filme. Com isso, então, a “objetividade” é finalmente despedida e, diante das imagens gigantescas nas paredes das casas, onde “Chlorodont” e “Sleipnir” estão ao alcance da mão para gigantes, as sentimentalidades sanadas se torna americanamente livre, assim como pessoas a que nada mais toca e comove reaprendem no cinema o choro. Para o homem da rua, porém, é o dinheiro que aproxima dele as coisas dessa forma, que estabelece o contato conclusivo com elas. E o resenhista pago, que no salão de arte do marchand manipula as imagens, sabe, se não algo melhor, algo mais importante sobre elas que o apreciador das artes que as vê na vitrine. O calor do tema desata-se para ele e o põe em disposição sentimental. - O que, afinal, torna os reclames tão superiores à crítica? Não aquilo que diz a vermelha escrita cursiva elétrica - mas a poça de luz que a espelha sobre o asfalto (BENJAMIN, 1987, p. 54-55).

Ao se referir à manipulação das imagens, a certa arte que se vê nas vitrines, ele está apontando para uma nova forma de percepção, uma percepção distraída, que é aquela que melhor se adequa ao dinamismo da vida contemporânea. Uma recepção tátil produzida pelo “choque”, ao estilo do dadaísmo, cujo principal efeito é a provocação dos espectadores, tanto o reclame quanto o cinema consolidam um novo modo de percepção estética, já apresentado no ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, que registra a relação com a obra de arte como “recepção tátil”. Ao se referir ao reclame como sinônimo do “olhar mercantil” que “penetra no coração das coisas”, Benjamin compara a estética dos anúncios publicitários a do cinema, cuja velocidade, ritmo e sensorialidade favorecem uma proximidade tátil em detrimento da distância preservada, tanto nos museus quanto nas bibliotecas.

Suas preocupações com as condições de vida no contexto do pós-guerra e sua crítica à sociedade burguesa foram registradas a partir de uma viagem pelo interior da Alemanha, realizada no ano de 1923. Benjamin fez várias anotações e que vão resultar em uma série de fragmentos nomeados de “Panorama imperial”. Seu olhar sobre a miséria, as consequências da hiperinflação, a fragilidade econômica, a falsa impressão de uma economia estável resultam em um olhar melancólico e desesperançoso em relação ao homem e o modelo social.

Um estranho paradoxo: as pessoas só têm em mente o mais estreito interesse privado Quando agem, mas ao mesmo são determinadas mais que nunca em seu comportamento pelos instintos de massa. E mais que nunca os instintos de massa se tornaram desativados e alheios à vida. Onde o obscuro impulso do animal - como o narram inúmeras anedotas - encontra a saída do perigo que se aproxima e que ainda parece invisível, ali essa sociedade, da qual cada um tem em mira unicamente seu próprio inferior bem-estar, sucumbe, como massa cega, com inconsciência animal. [...] Repetidamente se mostrou que seu apego à vida habitual, agora já perdida há muito tempo, é tão rígido que frustra a aplicação propriamente humana do intelecto, a previdência mesmo no perigo drástico. De modo que nela a imagem da estupidez se completa: insegurança, perversão mesmo, dos instintos vitalmente importantes, e impotência, declínio mesmo, do intelecto. Essa é a disposição da totalidade dos burgueses alemães. [...] Os homens que estão encurralados no recinto deste país perderam o olhar para o contorno da pessoa humana. (BENJAMIM, 1987, p. 21-24).

A perversão do caráter humano, o rebaixamento às condições instintivas e o declínio de seu intelecto são registrados diante da miséria econômica e, também, pela perda do olhar para o contorno da pessoa humana. Uma população que se guia pelos instintos e que não coloca os seres humanos em primeiro plano, que preza apenas por seus interesses privados produz um sentimento de desespero e incerteza em relação ao futuro da humanidade. O autor registra, mesmo antes do período de guerra, uma massa populacional submetida às condições de miséria econômica e cultural para que os homens burgueses pudessem amealhar fortunas.

Em síntese, destacamos que a forma estética de “Rua de mão única” figura como a obra que melhor representa esse estilo literário alegórico. Como obra de arte literária que preza pela montagem, contém diversos fragmentos aparentemente desconexos e sem sentido. Somente no conjunto e por referir-se à cidade e às transformações geradas pelo novo estilo de vida produzido pelo capital é que esses fragmentos, em um processo de associação interpretativa fazem sentido. É próprio da alegoria benjaminiana referir-se à historicidade, destacando elementos aparentemente secundários, contraditórios ou marginais e, a partir deles, criar imagens-pensamentos que, a nosso ver, possuem uma dimensão de educação estética e remetem à compreensão crítica da realidade econômico-social.

Inspirado em Baudelaire e na sua poesia, Benjamin retrata os comportamentos sociais que se referem ao modo de vida urbana do capitalismo parisiense. Os cafés, as “passagens”, o novo ritmo de vida, os choques sofridos e provocados aos transeuntes da metrópole. Por outro lado, traz, para o interior de sua alegoria, por meio de descrição de situações, a ironia, o estilo de vida que se opõe ao espírito desenvolvimentista e às novidades fantasmagóricas que sintetizam o motor do capitalismo, a ideologia do progresso.

O filme “A idade da terra”, de Glauber Rocha

Por se tratar de um filme experimental e que segue uma forma estética alegórica, depara-se com várias possibilidades de interpretação da proposta apresentada por Glauber Rocha. Priorizando algumas características que remetem ao tema por nós abordado, entendemos que o diretor constrói uma obra cinematográfica em que se destaca o poder educativo das imagens caleidoscópicas, para produzir impactos/choques no espectador e que o conduza a pensar sobre a realidade do povo brasileiro. Por um lado, são figuras imagéticas, que mostram a dominação econômica e cultural imperialista sobre o Brasil e, por outro, observa-se um discurso político revolucionário e messiânico, apontando para a construção de uma grande nação democrática, onde o amor, a liberdade e o prazer serão valores fundamentais da cultura e da vida social.

O filme se inicia com a exibição de um longuíssimo plano de um pôr do sol, em tempo real, seguido por uma espécie de ritual antropofágico para falar da cultura considerada a mais ancestral de todas em nosso país: a indígena. Utiliza-se de recursos de montagem com planos curtíssimos alternados com planos de média duração, para aumentar a dramaticidade dos rituais, em um ritmo frenético. O personagem de Jece Valadão (Cristo-Índio) aparece no meio da mata e passa a ser o paradigma do herói nacional.

Figura 1: Cristo-Índio em ritual antropofágico. 

Figura 2: Rainha Amazonas em ritual antropofágico. 

Na sequência, outro elemento da cultura brasileira, o samba, é mostrado em um desfile de escola de samba na Marquês de Sapucaí, dando destaque aos personagens de Maurício do Valle (que tem o nome de John Brahms) e que é a alegoria do imperialista americano, juntamente com a personagem da Rainha Aurora Madalena, jovem que alegoriza a elite brasileira, que se soma ao personagem de Tarcísio Meira (Cristo-Militar), que pode alegorizar as forças militares que comandaram o país na época, como também o branco conquistador. Os dois primeiros personagens dançam ao som da escola de samba e o terceiro personagem, vestido com um terno, percorre o desfile da escola de samba com uma espécie de olhar supervisor. Todos estão maravilhados com a beleza do desfile da escola de samba.

Figura 3: O imperialista John Brahms em desfile de escola de samba. 

Figura 4: Cristo-Militar, Rainha Aurora Madalena e Brahms em desfile de carnaval. 

Surpreendentemente, um plano-sequência apresenta o ator Antônio Pitanga (Cristo-Negro) tomando o depoimento do jornalista Carlos Castelo Branco, colunista político que faz uma análise do golpe de 1964 e da relação com a política de alinhamento com os Estados Unidos na Guerra Fria. O cenário no qual acontece a entrevista é uma sala espaçosa decorada com quadros alusivos à cultura nacional, remetendo à ideia de um Brasil civilizado, intelectualizado.

Figura 5: Jornalista Carlos Castelo Branco sendo entrevistado por Cristo-Negro. 

Em seguida, o filme apresenta a imagem imponente do personagem de Maurício do Valle (John Brahms) praguejando ameaças contra o Brasil. Sua cabeleira loura e seu sotaque de “gringo” o associam a um imperialismo americano demonizado: sempre obsceno, reunindo atributos da decadência, da corrupção e do poder cínico. Em um cenário que tem a Esplanada dos Ministérios e grandes estátuas da cidade de Brasília, o personagem interage com operários que estão construindo uma grande pirâmide. Ele está maravilhado com as riquezas brasileiras e com o caráter exótico do povo brasileiro.

Figura 6: Brahms na esplanada dos ministérios em Brasília. 

Posteriormente, o filme mostra planos sequências no litoral, remetendo a traços da cultura africana em um ritual do candomblé. Uma espécie de pai de santo batiza as pessoas na água do mar, ao som de músicas católicas, retratando o sincretismo religioso do Brasil. O pai de santo entrega ao herói nacional (personagem de Jece Valadão) as armas para a luta contra os inimigos: flechas e um cocar. Uma figura aparentemente folclórica, com um chapéu napoleônico multicolorido, assobia a “Marselhesa” e é chamado de satanás por nosso herói nacional, que se aterrorizava de medo. A figura apocalíptica, imagem do colonialismo europeu, diz aos gritos que o nosso herói é extremamente perigoso e que foi mandado para matá-lo, mas que não o faria, pois o brasileiro seria obediente, o apoiaria e respeitaria, em uma mostra do embate da cultura brasileira contra o domínio estrangeiro.

Na sequência, em um cenário com aspectos eróticos, sob o olhar preocupado de Brahms é apresentado a personagem feita por Geraldo Del Rey (Cristo-Guerrilheiro). Ele está junto à mulher de Brahms, personagem loira, maquiada de forma excessiva e seminua. Ela lembra uma prostituta que alegoriza o movimento revolucionário latino-americano, ora do lado da revolução e de um projeto político e ético, ora aliado aos interesses estrangeiros, da dominação capitalista e de seu padrão de cultura.

Figura 7: Cristo-Guerrilheiro sendo preparado por Glauber Rocha. 

Nos planos-sequência posteriores apresentam-se outros elementos da cultura nacional, como fragmentos religiosos da Igreja Católica, representada de forma pomposa por bailarinas vestidas de freiras que dançam com muita leveza. Uma teatralização com uso de uma caveira faz alusão ao diabo, referindo-se ao embate das crenças e doutrinas religiosas entre os imperialistas brancos e os povos latino-americanos.

Em síntese, o desenvolvimento do roteiro é centralizado no personagem do empresário John Brahms, único que tem um nome e é a personificação do domínio estrangeiro e do diabo. Além disso, ele tem uma visão exótica do nosso povo e trata nosso país sem nenhuma seriedade. Outro eixo de leitura é a alegorização dos “Cristos redentores” da nação brasileira: Cristo-Índio, Cristo-Negro, Cristo-Militar e Cristo-Guerrilheiro, personagens apocalípticos que ressuscitam o Cristo no Terceiro Mundo e que, por meio dos evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João, recontam a história do grande mito religioso. Além de passagens dos textos bíblicos que são proferidas literalmente em alguns momentos, a voz do próprio Glauber, proferindo discurso de militância de esquerda, anuncia a libertação do Brasil e a construção de uma grande nação democrática.

Forma alegórica e educação estética no filme “A idade da terra”

Em relação à educação estética que é o foco de nossa análise, nota-se que o cineasta utiliza-se dos recursos artísticos/alegóricos que remetem a alguns aspectos da construção de “Rua de mão única”, por exemplo, quando aborda o tema do filme mobilizando fragmentos da história brasileira que trazem as marcas da exploração e da miséria do povo. Diante de uma população que vive às margens do desenvolvimento cultural, econômico e do esclarecimento político, Glauber Rocha apela para as metáforas messiânicas como forma de instigar a problematização sobre as grandes contradições e injustiças, representadas, por um lado, pela “modernidade brasileira” e, por outro, pela pobreza do povo brasileiro, em todos os sentidos. Os contrastes sociais são apresentados imageticamente e alguns comportamentos sociais específicos da população brasileira são abordados como forma de provocar o espectador para a compreensão da nossa realidade social e econômica. Assim ele constrói as imagens-pensamentos sobre quem é o povo brasileiro e o que significa o Estado nacional.

Quais são os valores e as motivações que orientam o pensamento e a existência cotidiana do povo brasileiro? O que representa a modernização do Estado e a presença do capitalismo internacional para o nosso povo? Como o discurso revolucionário de cunho socialista é recepcionado e assimilado pela massa populacional brasileira? O que se pensa sobre o futuro de nossa nação frente às condições econômicas e culturais do povo brasileiro? Essas são algumas questões sobre as quais somos provocados a pensar, a partir das imagens produzidas pelo filme de Glauber Rocha.

Considerando essas problematizações anteriormente levantadas, apresentamos, a seguir, algumas características artísticas observadas no filme e que contribuem para a sua construção alegórica.

Observa-se que, no filme, não há uma narrativa linear e ele não está centrado nos papéis dos personagens. Esses se apresentam mais como figuras alegorizadas e que, no seu conjunto, constituem a grande alegoria sobre a história do povo brasileiro e sobre a ideia da construção de uma nação livre. O que vemos é uma montagem, que associa imagens, personagens e cenários, que remetem a fragmentos religiosos, historiográficos, políticos, ao imperialismo e ao pensamento revolucionário e messiânico de libertação.

Ao tratar da estética do cinema de Glauber Rocha e referindo-se especificamente ao filme “A idade da Terra”, o teórico Ismail Xavier assim se manifesta.

A mim, entre outras coisas, admira a sua peculiar invenção de um estilo, a sua coerência formal capaz de abrigar fortes tensões, dentro da dialética de fragmentação e de totalização que marca, em diferentes arranjos, todo o seu cinema. Havia a dimensão dos esquemas teóricos e o recurso ao mito como moldura de observação, mas os seus filmes nunca engessaram o tempo em chaves já conhecidas, pois a sua interação com o real, aqui e agora, exigia movimentos exploratórios incertos, onde o presente era assumido em sua abertura. Daí o seu esforço de tudo incluir, de acumular fragmentos e procurar a síntese nem sempre possível, em verdade cada vez mais difícil: este foi o seu movimento até A idade da terra, ponto da descontinuidade maior e da mistura de estilos, da lida com impasses que sempre encarou de frente, sem apelar para um falso equilíbrio das formas para maquiar a sua vivência da crise da História. (XAVIER, 1981, p.16-17).

Para produzir efeitos e provocar o espectador, as cenas são predominantemente nebulosas, com pouca nitidez e quase sempre contrastando com luzes multicoloridas que incidem sobre os personagens e cenários. Além da falta de nitidez e de luz nas cenas, a câmera não se atém a muitos enquadramentos e percorre detalhes, em movimento muitas vezes aleatórios, revelando aspectos pitorescos que rementem ao estilo barroco. Mas, durante todo o filme, há a predominância das imagens e dos sons em relação aos diálogos dos personagens.

Para caracterizar a estética do filme “A idade da terra”, recorremos, novamente, a Ismail Xavier, quando ele diz que

O seu olhar é táctil, sensual, mas a moldura de sua representação é alegórica. Figuras simbólicas compõem o seu teatro como um grande cerimonial que a câmera na mão capta em estilo documentário, apalpando corpos e superfícies. Tudo acentua a tensão entre os espaços abertos da natureza e as formas variadas de delimitar a cena, separá-la de seu entorno imediato para que ela possa abrigar as forças especiais que atuam no drama e se condensam no transe. (Xavier, 2011, p. 17).

Esses aspectos são percebidos com destaque logo no início do filme, com a apresentação de situações grotescas, retratando um ritual antropofágico em que predominam sons/ruídos, danças e gestos que remetem ao transe sensorial e espiritual. Será essa a grande alegoria de Glauber para referir-se ao estado psicológico e político do povo brasileiro? Evidentemente, o ritual antropofágico remete a uma utopia da possibilidade de redenção e construção de uma grande nação brasileira construída a partir da diversidade de características culturais do povo brasileiro. O único personagem chamado pelo nome é Brahams que alegoriza o capitalismo imperialista. Destacamos a presença de personagens femininas que fazem o papel de rainhas, como é o caso da Rainha Amazonas, que atua na parte inicial do filme junto ao Cristo-Índio e é a representação da resistência e da liberdade dos povos da floresta. Também registramos a presença da rainha Aurora Madalena, uma jovem prostituta que tenta se vingar dos homens e que remete à imagem alegórica da elite nacional submissa ao capital internacional e aliada na exploração do povo brasileiro.

Um dos detalhes marcantes da obra é que seu realizador pretendia que os rolos do filme não fossem numerados, possibilitando que se assistisse à “A idade da Terra” em qualquer ordem. A Embrafilme, financiadora do trabalho, não permitiu tamanha ousadia, por entender que deveria haver o mínimo de coerência necessária exigida por um mercado padronizado. Não obstante, a edição apresentada pela Versátil Home Vídeo traz um recurso que permite ao espectador experimentar a proposta glauberiana, selecionando o modo aleatório de exibição, em que o espetáculo épico-onírico ganha a força de um caleidoscópio audiovisual que busca o cerne da psique existencial da política brasileira.

Por meio da subversão das convenções narrativas e imagéticas, o cineasta compõe um quadro de um país do Terceiro Mundo destinado a sucumbir ao poder do imperialismo capitalista, não apenas no que diz respeito à economia, mas, também, às características culturais e sociais. O cineasta aposta em um processo de libertação das condições da opressão e na construção de uma nação baseada nas características culturais do próprio povo. Por isso, observa-se uma intenção pedagógica do filme, o qual pretende despertar uma provocação do pensamento por meio das imagens.

Antes que as imagens sejam compreendidas racionalmente, elas visam causar impacto imediato no espectador. Com isso, por meio de imagens agressivas, seu cinema põe a nu o caráter elitista e excludente da política brasileira, quanto da presença do imperialismo nos países subdesenvolvidos. Ao desvelar o caráter elitista do imperialismo, a solução, contudo, não se dá pela imersão do povo na cena do poder. Em seus filmes a ruptura da estrutura é possível com a presença de um líder messiânico que conduz o povo à libertação. Recoloca-se, assim a necessidade de um líder que conviva com a cultura do oprimido. Dessa forma, os mitos populares e os rituais religiosos são elementos que impulsionam o povo a rebeldia: o papel histórico dos povos subjugados se cumpre com a afirmação de suas crenças no plano religioso e não como negação da religiosidade. (SILVA, 2016, p. 147).

A aposta no poder das imagens produz um afastamento do espectador em relação ao filme, uma ausência de identificação com os personagens apresentados e, apesar de o produtor priorizar a imersão do espectador na obra, não há a criação de um enredo com apresentação das situações e dos personagens envolvidos, além dos personagens não possuírem nome próprio, que os individualize, pois essa é uma característica da construção metafórica que os envolve, no sentido de representarem não um ser isolado, mas uma ideia. Essa é uma característica central das construções alegóricas: os personagens atuam com a intenção de remeter o espectador a uma ideia, um discurso, conceito ou concepção moral.

Glauber utiliza-se de várias metáforas atreladas aos rituais, às cidades e a seus personagens, como se observa nas figuras de Brahams, a qual está associada a alegorização do imperialismo capitalista. As imagens dos rituais religiosos, do transe como representação da condição intelectual e do comportamento social e moral do povo brasileiro: por meio dessas imagens-pensamentos, ele faz uma montagem alegórica que restitui a utopia de uma nação onde suas elites superaram a promiscuidade moral, política e econômica e, juntamente com seu povo, estabeleceram os valores da liberdade, da democracia e de suas crenças religiosas como baluartes de sua existência.

O grotesco, os aspectos antropofágicos primitivos, o transe espiritual, a forte ligação com aspectos da natureza e a crença em um salvador da pátria são alguns elementos materiais da cultura e da história brasileira. Quem é o povo brasileiro? Aquele retratado de forma simbólica (no sentido de unidade), no mito da democracia brasileira? Como os elementos materiais de nossa cultura e de nossa história interferem no projeto político de construção de uma nação?

Ao utilizar a ideia da reencarnação de Jesus Cristo, o grande mito religioso, em quatro personagens (Cristos), no Brasil, o cineasta pretende trabalhar com fragmentos de nossa cultura e de nossa história e, a partir dos dados dessa materialidade histórica, da opressão do nosso povo que segue, desde a colonização europeia, passando por várias fases de dominação do capitalismo imperialista, que sempre contaram com a aliança da elite nacional, caracterizada como atrasada e corrupta, impedindo, dessa forma, a construção de uma nação soberana e de um povo livre e não submetido às condições de miserabilidade.

O filme, que prioriza os aspectos de nossa história e da religiosidade, está estruturado em torno de quatro personagens principais: o Cristo-Índio, o Cristo-Negro, o Cristo-Militar e o Cristo-Guerrilheiro, que alegorizam nossas raízes, o pensamento, a resistência e a possibilidade de “salvação” do povo brasileiro.

A partir dessas imagens alegóricas, o cineasta intenciona provocar o pensamento crítico e remeter o espectador à materialidade da história brasileira. Uma história feita com fortes traços de dominação e opressão dos povos nativos, dos negros e brancos submetidos aos interesses econômicos e culturais estrangeiros. Ao recorrer a esses quatro personagens para construir o filme, Rocha pretendeu contribuir para a construção da identidade do povo brasileiro, assim como retratado no filme, com caraterísticas da miscigenação, do sincretismo religioso, do vínculo com a natureza e de um pensamento messiânico que vincula a crença religiosa com a política. Ainda se espera um salvador da pátria.

Vários aspectos mostrados no filme se contradizem com o ideal de desenvolvimento econômico e com a ideia de progresso civilizatório. Pelo menos com o projeto humano idealizado pelo pensamento iluminista e pelo pensamento revolucionário de cunho socialista. Não se deve esquecer que, do ponto de vista do desenvolvimento histórico, cultural e moral, ainda somos uma sociedade em que o padrão de comportamento nas relações sociais são orientados pelo “jeitinho brasileiro” e pelo cálculo capitalista exploratório, e não pela idealizada moral iluminista em que prevalece o juízo moral acima das aspirações fisiológicas e narcísicas. Esses traços da conduta moral são resultantes da promiscuidade das elites dominantes nacionais, das adversas condições materiais de sobrevivência a que a maioria da população sempre esteve submetida.

A conjugação desses vários aspectos muito bem retratados no filme “A idade da terra” constituem fragmentos da nossa cultura e retratam a verdadeira história presentificada do povo brasileiro. Essa concepção de cultura e de história não correspondem a nenhuma das denominações oficiais do povo brasileiro. O Estado-nação não representa nosso povo e nossa cultura, o lema “ordem e progresso” figura, ideologicamente, desde o início da República, apenas como idealização de um povo e de uma nação.

Quanto à forma estética alegórica do filme e suas possibilidades de educação estética, podemos destacar a sua composição fragmentada, a utilização de jogo de luzes, priorizando a nebulosidade das cenas e, principalmente, o seu propósito de causar incômodo e provocar o pensamento do receptor. O próprio Glauber pretendia organizar o material em blocos de filmagens que pudessem ser assistidos aleatoriamente e deixar o espectador/receptor interferir no processo, após sofrer os choques visuais ou ser provocado por certos incômodos, e produzir alguns pensamentos, interpretações sobre a realidade retratada. No caso do filme, produzir conclusões, mesmo que provisórias, sobre um país latino-americano historicamente explorado e, agora, no tempo presente, pelo poderio empresarial estadunidense.

Conforme pensado por Benjamim, a memória histórica se atualiza para pensarmos o presente. Nesse sentido, as ruínas, os vestígios, o sofrimento, os sonhos, os saberes, as cenas e os cenários figuram como elementos potentes para compreender o presente e produzir a interrupção da história, tirar a história dos trilhos, redimir os vencidos. No filme, é retratado o permanente fluxo histórico da exploração. O nosso país sempre figurou como o eldorado para os empreendedores imperialistas do centro do capitalismo.

A cultura brasileira é fortemente marcada pelo cristianismo e por outras denominações religiosas de matriz indígena e africana, e ao lado de outras manifestações culturais como o carnaval e o futebol influenciam o comportamento e o pensamento das massas populacionais. Portanto, se nossa história não oficial é marcada pela diversidade de aspectos culturais, econômicos, religiosos, sensoriais e místicos, é a partir desses elementos materiais que podemos ler a história do presente. Uma história marcada pela segregação social, contradições econômicas, corrupção e pela dominação política e que, nem de longe, aproxima-se dos ideais iluministas de libertação que predominaram na Modernidade; menos ainda, pelo espírito dos empreendimentos capitalistas engendrados pelas grandes potencias e corporações econômicas que, em um continuum histórico, se apropriam da produção de nossa riqueza e impõem a sua cultura.

Considerações finais

Retomando o nosso foco de análise, que pretendeu identificar o potencial de educação estética da forma alegórica presente na literatura e no cinema, fazemos algumas considerações, não conclusivas, mas especulativas, em relação ao tema estudado.

Partindo da concepção de alegoria de Benjamim, há uma forte tendência de compreensão de que ela figura como sendo a arte da construção de imagens-pensamentos por meio da linguagem literária. Esse conceito refere-se, ainda, a um determinado contexto histórico, situação político-econômica ou cultural, em que o autor mobiliza fragmentos, ruínas, objetos, espaços sociais e cenas do cotidiano das pessoas para induzir ou provocar o receptor ao pensamento e à compreensão dessa realidade alegorizada.

As imagens alegóricas presentes em “Rua de mão única” e “A idade da terra” permitem uma compreensão dialética da história, mas de uma dialética que opera a partir dos fragmentos históricos, das particularidades e imagens culturais colhidas no tempo presente. Não é, portanto, uma dialética que opera por meio de sínteses e que tende sempre à universalidade ou definição de verdades a respeito dos processos históricos, culturais e econômicos.

Tanto a literatura quanto o cinema são espaços genuinamente propícios para a educação estética pelo viés da forma alegórica. Construir imagens artisticamente e tecnicamente, fazer pensar por meio dessas imagens é a grande possibilidade de potencializar a crítica cultural e a crítica social. O cinema e a literatura são espaços privilegiados de conjugação das imagens alegóricas com os conceitos filosóficos. Essa associação potencializa a interpretação e a crítica da realidade histórica, econômica e cultural. Aí reside uma dimensão pedagógica riquíssima, mas pouco explorada pelos educadores.

Outro destaque para o qual chamamos a atenção é a semelhança entre as obras analisadas, no que diz respeito ao pensamento messiânico metaforizado nas imagens de quatro Cristos que simbolizam a possibilidade de “redenção” ou mudança da realidade existencial do povo brasileiro. A força messiânica do mito religioso poderá dar unidade nacional e possibilitar a construção de uma nação orientada pelos valores da democracia, liberdade e sem o domínio econômico e cultural do imperialista. É possível comparar o pensamento de Glauber Rocha, exemplificado em “A idade da Terra”, com a ideia de redenção da história benjaminiana? A redenção dos oprimidos, dos povos sem pertencimento a uma nação, poderá ser restituída a partir da compreensão de sua história e de um personagem político-messiânico alegorizado?

Referências

A IDADE DA TERRA. Direção: ROCHA, Glauber. Produção: Embrafilme e Centro de Produção e Comunicação Glauber Rocha. Rio de Janeiro:1980. Disponível em: www.youtube.com/watch?v=WAmJR3Km__ALinks ]

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XAVIER, Ismail. Glauber Rocha e as culturas na América Latina. Revista do Instituto Ibero-Americano (IAI), 2011. Disponível em: http://publications.iai.spk-berlin.de/receive/reposis-iai_mods_00002489. Acessado em: 04 mar 2019. [ Links ]

1Apoio FAPEMIG ao projeto de pesquisa APQ 02218-18: O Cinema Novo como experiência inovadora da formação cultural docente.

Recebido: 09 de Junho de 2019; Aceito: 09 de Dezembro de 2019

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