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Educação e Filosofia

versión impresa ISSN 0102-6801versión On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.33 no.69 Uberlândia set./dic 2019  Epub 06-Feb-2022

https://doi.org/10.14393/revedfil.v33n69a2019-50122 

Resenhas

Como Nasce o Novo. Marcos Severino Nobre, São Paulo, Editora Todavia, 2018.

Hélio Ázara de Oliveira* 
http://orcid.org/0000-0002-7983-9882

*Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor de Filosofia na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). E-mail: helioazara@hotmail.com

Como Nasce o Novo. Nobre, Marcos Severino. São Paulo: Editora Todavia, 2018.


Os estudos hegelianos vivem um momento de renovação em plano internacional, embalados pelo crescente interesse suscitado pela Filosofia de Hegel nos países de língua inglesa e por sua recepção por parte de filósofos analíticos. Em âmbito nacional as pesquisas se multiplicam, embaladas por esforços coletivos de associações de estudiosos1, que consolidam um novo patamar de estudos sobre Hegel feitos a partir do Cone Sul. Desafortunadamente o português é, dentre as línguas com maior número de falantes no planeta, o último dos principais idiomas a receber a tradução de partes imprescindíveis do sistema hegeliano, e refiro-me aqui à recente tradução para nosso idioma da Ciência da Lógica, muito embora a pesquisa em filosofia no Brasil se faça desde meados do século XX a partir do estudo dos originais, só tardiamente as partes principais do sistema hegeliano encontraram tradução para o português. E é no bojo dessa renovação que recebemos Como nasce o Novo, lançado em 2018 pela editora Todavia, de autoria de Marcos Nobre. O livro é um trabalho raro de tradução e exegese de um trecho central de um clássico da Filosofia alemã e mundial, Fenomenologia do Espírito, de G. W. F. Hegel. Esta obra pode interessar tanto ao leitor inicial (desde que previamente ciente das dificuldades da empreitada) quanto ao especialista no sentido estrito do termo.

A obra se divide em ao menos três partes principais, 1) uma “Apresentação” de toda a problemática envolvida nesta obra fundamental de Hegel; 2) A tradução da Introdução à Fenomenologia do Espírito, que se faz acompanhar do texto original, sinopticamente disposto; 3) a Análise e comentário do texto, que é completada com a divisão esquemática do texto e com quadros sinópticos da divisão proposta, bem como de uma tábua de termos da tradução adotada. Em cada uma dessas partes, Marcos Nobre explicita seu método e deixa ao leitor opções para seguir ou não os passos do autor, isto é, há um “Manual de instruções” em cada uma das etapas, tornando a obra bastante democrática e aberta.

O livro nos é apresentado já mediante a polêmica, ao que tudo indica infindável, a respeito do “lugar” da Fenomenologia do Espírito na organização sistemática da obra de Hegel. O trabalho minucioso de Marcos Nobre expõe todas as jogadas possíveis desse jogo aberto; realça nuances extremamente sutis entre as interpretações, e consegue fazer o leitor ter a certeza de que só está na largada de uma longa viagem.

Nobre entende a Fenomenologia do Espírito como um “modelo filosófico que subsiste por si mesmo independentemente dos escritos posteriores e da obra posterior de Hegel” (p.14). Um “modelo” correspondente a um determinado diagnóstico de época, que uma vez alterado, alteraria o sistema como um todo, como defende na obra o professor da Unicamp. Contudo, mesmo os pesquisadores que se encaminhem em direção oposta às teses defendidas por Nobre terão, já na Apresentação, um rico guia de estudos dos muitos problemas interpretativos implicados nas tomadas de posição acerca do “lugar” que esta obra ocupa no sistema hegeliano posterior. Na abordagem exegética do texto ocupa o primeiro plano aquilo que Nobre chama de “condições de produção” (p.16) em meio às quais a obra hegeliana de 1807 foi escrita, passando para o segundo plano a “história de sua repercussão filosófica” e as múltiplas interpretações que o texto hegeliano irá comportar.

O diagnóstico de época pode parecer, na análise de Marcos Nobre, algo como uma “meta-filosofia”, uma espécie de fundamento sob o qual se constrói um determinado “modelo filosófico2”, mas ele é a própria Filosofia, ou antes, ele é o resultado da tomada de consciência, com Hegel, de que nos novos tempos a Filosofia tem a “modernidade” como tema central. Amparado na mais recente e especializada bibliografia internacional sobre os problemas da Filosofia hegeliana, bem como nos clássicos que enfrentaram Hegel (o que inclui os intérpretes brasileiros3) o que vemos emergir da “Apresentação” é um Filósofo da modernidade, uma filosofia que toma de modo radical seu “próprio tempo como objeto primeiro e privilegiado de elaboração” (p.22).

O esforço por “historiar” os sucessivos diagnósticos de tempo operados pela Filosofia de Hegel é central na estratégia argumentativa de Marcos Nobre, pois o que se pretende é entender a especificidade do diagnóstico implícito na Introdução da Fenomenologia, uma vez que “mudanças no diagnóstico do tempo devem corresponder a mudanças de modelo filosófico” (p.30). Outra constatação que ganha relevo na argumentação de Nobre é o fato de que a Fenomenologia do Espírito seja entendida por Hegel como “Introdução e primeira parte” de um “Sistema” ainda por determinar, ou ainda em vias de se consolidar. Disso deriva toda a discussão necessária das “condições concretas em que a foi produzida a obra”, como se sabe, sob a marcha dos exércitos napoleônicos.

Outra linha de força que estrutura a análise de Marcos Nobre é a caracterização da Fenomenologia como um “programa” distinto do sistema posterior a 1817, isto é, distinto da versão enciclopédica da Filosofia hegeliana e do diagnóstico de tempo que a condiciona4. Nobre extrai múltiplas consequências desta “caracterização” e com isso impõe a Como Nasce o Novo uma “leitura própria” da obra hegeliana, não sem o fazer dando voz às interpretações com as quais discorda ou mesmo refuta. Trata-se, enfim, de estabelecer “qual o lugar próprio da Fenomenologia do Espírito” na constelação da obra de Hegel. Ao insistir em uma consideração radical das condições de produção da obra e no “diagnóstico de época” que a condiciona e permite, o professor da Unicamp repele a interpretação corrente na bibliografia especializada que prioriza o sistema acabado em detrimento de suas partes constitutivas, e com isso procura compatibilizar a Fenomenologia do Espírito com o sistema posterior a 1817.

O que o exame exaustivo da Introdução mostra é que o próprio percurso fenomenológico tem na figuração da “representação natural” seu ponto de partida5, e não a “certeza sensível”, título do primeiro capítulo da Fenomenologia. Essa “representação natural”, mostra Marcos Nobre, é expressão da “consciência filosófica dos novos tempos”, isto é, da modernidade filosófica, e pode, sem muito receio ser tipificada na Filosofia Crítica de Kant.

Há ainda na “Apresentação” de Nobre uma seção que confere vivacidade ao seu estudo de Hegel e mostra um promissor horizonte de trabalho, tanto para o hegelianismo estrito, quanto para os estudos de seus leitores posteriores, particularmente aqueles agrupados pelo autor como “Teóricos Críticos”. Intuições retiradas de sua caracterização da Filosofia hegeliana são estendidas a outros autores e “modelos filosóficos” (Marx, Lukács, Horkheimer, Habermas, Honneth) o que abre a “caixa de pandora” das atualizações e das divergências. Ao estender aos demais “teóricos críticos” dois momentos divergentes, a exemplo do que teria ocorrido com Hegel na interpretação de Marcos Nobre, a obra abre um campo de atualização do “modelo Filosófico” próprio da Fenomenologia, inaugurando um caminho que é intrigante e dá, certamente, no que pensar, ou em outras palavras, Marcos Nobre faz de seu “Hegel” um nosso contemporâneo.

Na terceira parte da obra, isto é, na seção Análise e Comentário, a Introdução anteriormente traduzida é dividida segundo o “método estrutural” e analisada em seu detalhe. Divididos os dezessete parágrafos em blocos argumentativos, são examinadas as possíveis articulações destes blocos entre si, o que, por si mesmo, já possibilita Marcos Nobre a extrair muitas e instigantes conclusões sobre o papel desta “Introdução” no Modelo filosófico da Fenomenologia do Espírito6. O comentário sobrepõe camadas argumentativas acerca de cada parte do texto previamente dividido, procurando exaurir todos os possíveis sentidos ali recobertos. Tudo se passa como se Nobre procurasse oferecer ao seu leitor múltiplas “visadas” sobre os mesmos argumentos hegelianos contidos na Introdução. Disso resulta que a Fenomenologia do Espírito é pensada em sua sistematicidade própria, e não à luz da obra posterior, o que, para a interpretação defendida em Como nasce o novo, ocultaria o seu “programa” próprio, em muito divergente daquele inaugurado pela Enciclopédia de 1817. Lida “do ponto de vista de sua produção intelectual” o texto da Introdução, por assim dizer, rejuvenesce e ganha plausibilidade para a compreensão do nosso presente histórico, eis uma tese central da obra de Marcos Nobre.

Como nasce o novo faz uma rigorosa apresentação do texto hegeliano da Introdução à Fenomenologia do Espírito e consiste igualmente em uma tradução (bilingue), um comentário e uma interpretação da obra de Hegel, obra essa que reverbera em muitos outros pensadores e filósofos do passado e do presente, mantendo aberta, por assim dizer, a filosofia hegeliana às mais díspares incorporações e críticas.

REFERÊNCIAS

Como Nasce o Novo. Marcos Severino Nobre, São Paulo, Editora Todavia, 2018. [ Links ]

1Particularmente a Sociedade Hegel Brasileira (SHB) e da revista Estudos Hegelianos.

2Sobre “diagnóstico de época” e “diagnóstico de tempo presente” e sua ligação com a ideia de um “modelo filosófico”, ver Marcos Nobre: A Teoria Crítica e “Introdução”, in Curso Livre de Teoria Crítica, Campinas, Papirus, 2008. Na obra aqui resenhada o tema é diretamente enfrentado na nota 28.

3É, deste ponto de vista, uma leitura de Hegel e de sua Fenomenologia a partir do hemisfério Sul.

4Tal mudança de diagnóstico é referida expressamente por Marcos Nobre na página 62, trata-se da “mudança de diagnóstico de tempo do Hegel napoleônico da Fenomenologia para o diagnóstico do Hegel da modernidade normalizada da enciclopédia”.

5Nunca é demais lembrar que em Filosofia hegeliana o problema do começo ou a pergunta: “por onde deve começar a ciência” é sempre uma das mais decisivas batalhas filosóficas.

6Ver nesse sentido especialmente as páginas 106-7.

Recebido: 20 de Agosto de 2019; Aceito: 27 de Maio de 2020

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