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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.33 no.69 Uberlândia set./dez 2019  Epub 06-Fev-2022

https://doi.org/10.14393/revedfil.v33n69a2019-47643 

Resenhas

O desencanto das utopias: rupturas entre política e poder

Aloirmar José da Silva* 
http://orcid.org/0000-0001-8396-5323

*Doutorando em Educação pelo Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: aloirmar@hotmail.com

BAUMAN, Zygmunt. Retrotopia, Rio de Janeiro: Zahar, 2017. 164 pp.


Este livro percorre os labirintos da história da utopia e chega a retrotopia, cujo surgimento se dá devido ao divórcio, cada vez mais acentuado, entre poder e política, e o desencanto com ideias, ideais e promessas de futuro. O autor Zygmunt Bauman, sociólogo e filósofo polonês, tornou-se um dos mais importantes analistas de temas hodiernos, dedicando sua vida ao estudo da condição humana. Sua formação e trajetória docente na Universidade de Varsóvia e na Universidade de Leeds, bem como sua vasta produção acadêmica, colocam-no na vanguarda dos intelectuais contemporâneos e caracterizam-no como um dos grandes pensadores da contemporaneidade. Se para alguns ele é o conhecedor perspicaz, para outros é um ingênuo pessimista. Contudo, sua produção acadêmica possui ampla aceitação no campo das ciências sociais, nas ciências da educação, sobretudo nos estudos norteados pela perspectiva pós-estruturalista.

A partir de um diálogo com a “Utopia” de Thomas More, o autor tece seus argumentos na interlocução com diversos pensadores e com as diferentes situações cotidianas noticiadas nos principais jornais do mundo. Ele sistematiza conceitos, pressupostos, posicionamentos e críticas em uma obra densa, disposta em seis seções: a introdução, denominada de “A era da nostalgia”; o primeiro capítulo “De volta a Hobbes?”; seguido por “De volta às tribos”; “De volta à desigualdade”; “De volta ao útero”; e um epílogo, intitulado “olhando adiante, para variar”. Essas seções constituem uma espécie de inventário, que articula sentimentos e práticas retrotopianos, materializados no Lebenswelt (mundo da vida) dos sujeitos imersos na moderna sociedade líquida.

Na introdução, “A era da nostalgia”, o autor situa a nostalgia na ampla família das relações afetivas, como uma condição moderna incurável e inseparável da conduta humana, desde a descoberta do comportamento como uma questão de escolha. Diante da possibilidade de opção nas decisões humanas, o tempo presente passa a ser visto apenas como um entre os muitos mundos possíveis e, é exatamente aí, no conflito entre o reino das possibilidades e a esfera das decisões, que irrompe o estado nostálgico causado por desejos ou sonhos não concretizados, acentuado por um vertiginoso processo de mudanças societárias, que privatizou a ideia de progresso e a necessidade de livrar-se da tutela, da subordinação e da disciplina impostas pelas instituições modernas. Essa fase individual tornou-se também um estágio social, uma vez que “a ‘epidemia global de nostalgia” pegou o bastão da “epidemia frenética de progresso [...] na prova de revezamento da história” (BAUMAN, 2017, p. 9), trazendo consigo uma espécie de derrotismo, e configurando a liberdade buscada pelos sujeitos em um padrão de autossuficiência.

Essa epidemia global de nostalgia de que fala o autor, em vez de consolidar o futuro como ethos de esperanças e expectativas, torna-o um invólucro de medo e pesadelos. É desse cenário complexo que emerge a retrotopia como um “novo” ciclo da história da utopia, substituindo o vigor do tempo incerto que está por vir, por tentativas conscientes de iteração com aspectos bem-sucedidos do passado, projetando-os como futuro, na fantasia de harmonizar segurança com liberdade. Embora não se trate de “retorno direto a um modo de vida antes praticado” (BAUMAN, 2017, p. 14), a suposta estabilidade, o pseudorresguardo no que passou, e a ilusória faculdade de controlar o que pode acontecer, causam um distanciamento entre poder e política, destituindo a soberania do Estado e das agências capazes de regular/prover a vida social. Ao denotar que os sujeitos contemporâneos duvidam da capacidade do Estado, e de qualquer instituição, de levar as coisas a cabo e de escolher entre aquelas que devem ser feitas, o autor revela o desmonte do coletivo como uma instância política de poder e a redução da vida social à capacidade de consumir, exacerbando o âmbito pessoal como responsável pela busca das melhorias de vida.

O primeiro capítulo intitulado “De volta a Hobbes?”, Bauman parte de uma indagação para chegar à seguinte constatação: estamos voltando ao estado natural de Hobbes, uma espécie de teatro de guerra - a guerra de todos contra todos - no qual o outro pode fazer mal a qualquer momento e por isso é inimigo, não um semelhante. O autor enfatiza que nesse clima de conspiração constante, os laços humanos são enfraquecidos, o divórcio entre poder e política se acentua e as estruturas políticas são desregulamentadas. Em vista disso, exige-se que os sujeitos apreendam a ser autossuficientes e sejam treinados desde cedo para competir como soldados de guerra: “todos nós mantemos a pólvora seca e as armas bem lubrificadas - sempre à mão e prontas para usar” (BAUMAN, 2017, p. 47). Para ele, o animal hobbesiano não foi eliminado pelo processo civilizatório e emergiu na modernidade de modo vivo e sempre pronto para eclodir, pois o atual processo societário enverniza e terceiriza os atos de violências diante da incapacidade de derrotá-los, já que um mundo livre de violência é a mais bela e a mais fora de alcance das utopias.

De acordo com o pensamento de Hobbes, para viverem em paz os homens precisam do Leviatã, um poder absoluto e centralizado, uma autoridade soberana inquestionável, que em certa medida inspirou a construção do Estado moderno. Na atualidade, existem numerosos Leviatãs, mas nenhum é capaz de garantir de modo pleno a cidadania dos sujeitos e, portanto, funcionam mal ou fracassaram em suas tarefas societárias, uma vez que “[...] o Estado, outrora descrito como a principal (ou mesmo a única) garantia da segurança humana e o único seguro contra a violência, [passa a ser elencado] entre os fatores/causas/operadores principais do ambiente hoje prevalecente de insegurança e vulnerabilidade à violência” (BAUMAN, 2017, p. 24). Ao abdicar de seu papel de defensor e guardião da segurança, o Estado passou a ser um entre os agentes que inscrevem a incerteza e a insegurança na condição humana.

Ao lado do Estado, o autor destaca como agente de insegurança a indústria bélica, que coloca à disposição uma quantidade exorbitante de armas letais e se legitima como fonte de lucro do capitalismo, engrossando as estatísticas de emprego dos governos. Outro agente de insegurança destacado na obra é o fenômeno copycat (imitação). Trata-se de ações de crueldade repetitivas e inovadoras, mas com potencial chocante, capaz de ganhar audiência por meio da internet, haja vista que as tecnologias digitais de informação e comunicação modificam a compreensão dos atos de violência. Essa compreensão compõe o bojo das novas subjetividades, fruto da convergência tecnológica contemporânea1, que trazem consigo outras formas de ação e interação, como também novos relacionamentos sociais, reinventando o que é público e regulamentando o pluralismo.

Para o autor, não se trata de responsabilizar a aliança entre tecnologias digitais e internet pela violência sistêmica que perpassa o planeta, mas de perceber que tal aliança pode facilitar e ampliar o alcance da selvageria, tornando-a passível de imitação. Apesar disso, ele lembra que a agressividade é fruto da humilhação e da degradação gerada pela exclusão social e está ligada à cultura consumista dominante, basta ver que o atual terrorismo suicida tem se mostrado menos ideológico e mais apoiado nas políticas de exclusão adotadas pelos poderes vigentes. Desse modo,

“a vida, na nossa versão atualizada do mundo hobbesiano, é semelhante a andar por um campo minado cujos mapas nunca foram desenhados ou que foram perdidos - um campo, permita-me lembrar, tão cheio de explosivos que a única coisa que pode acontecer são explosões a toda hora, mas ninguém sabe dizer com nenhum grau de certeza onde e quando” (BAUMAN, 2017, p. 50).

No segundo capítulo, designado “De volta às tribos”, o autor argumenta que modelos do passado tribal na experiência civilizatória da humanidade estão sendo resgatados e tomados como parâmetros de sociabilidade. Segundo ele, isso ocorre devido à necessidade humana de reduzir a complexidade da vida em sociedade a algo que pareça razoável, possível de ser vivido. A alternativa, neste caso, é reviver a ideia de tribo que, sustentada na emocionalidade, torna possível escolher quem será apoiado e quem será eliminado, considerando que o critério de pertencimento fala mais alto. Nessa perspectiva, devido à globalização e à lacuna entre poder e política, os Estados são vistos como vizinhanças amplas, confinados em fronteiras vagamente demarcadas, atravessáveis, mas trazidas à baila pelo tribalismo que restringe as diferenças entre grupos populacionais à equação de inferioridade versus superioridade. Embora os nacionalismos modernos lutem por um Estado soberano (territorial e politicamente), a globalização torna a soberania uma ilusão e mais uma vez voltar às tribos de indivíduos se torna a alternativa compatível com mundialização de finanças, comércio e informação.

Para o literato, “a principal mudança de paradigma que testemunhamos é o deslocamento de um anseio de independência em relação a uma sociedade constituída por comunidades para um anseio de pertencimento a uma sociedade constituída de indivíduos” (BAUMAN, 2017, p. 54) e neste caso a polarização “um” ou “outro” se torna inevitável. A divisão em “nós ou eles” emerge intacta, visto que humanidade é uma categoria mental e a busca por identidade exige essa binaridade. Cresce o número de grupos de identificação e de oposição, mas “um e outro”, “nós e eles” são proibidos, pois a ressurreição de fundamentalismos passa a compor as relações sociais em todos os níveis e a perspectiva de diálogo com a diversidade vai-se tornando escassa. A tendência em voga é escutar cada qual o seu gueto, eliminar as mensagens de quem pensa diferente, na ilusão de garantir fidelidade à identidade e saciar a sede de superioridade.

O autor acredita que a liberdade individual foi paga com segurança individual e aí o “tiro saiu pela culatra”. Por isso, a lógica do consumo coloca em lados opostos a segurança de pertencimento e os benefícios da autonomia individual, com intuito de expandir lucros e reduzir gastos. Esse paradoxo reacende o medo do futuro, e a ideia de progresso é associada a perdas e não a novas realizações. Incapaz de moldar o futuro, a política tende a ser transferida para o espaço da memória coletiva, e no espaço da política da memória, o passado adquiriu características de futuro e se transformou em zona de conforto. O descontrole do tempo presente, do qual o futuro irá germinar, gera também a desesperança de controlar o futuro. Dentre os mais afetados pelo temor do futuro estão os jovens que, segundo Bauman (2013), são sujeitos dispensáveis, sempre vistos como um novo mercado a ser explorado e deixaram de ser incluídos nas promessas de um futuro melhor. Diante desse argumento urge um processo de “educação permanente” (PORCHEDDU, 2009, p. 674) em todas as agências de educação da sociedade contemporânea, que substitua a lógica do adestramento dos estudantes para o consumo e promova o resgate da capacidade de sonhar, de eleger ideais cooperativos e de compartilhar projetos de vida.

Outro aspecto importante a ser conduzido ao centro do processo educativo é a alteridade na ótica de Lévinas (2008), tornando o ato educativo um acontecimento ético, dialógico, responsável e capaz de configurar as redes de aprendizagem como lugar da hospitalidade. Essa perspectiva vai de encontro à análise trazida pelo autor na obra em apreço, onde o outro é visto como estrangeiro, uma ameaça clara ou ainda não revelada, mas que precisa ser enfrentada e, se necessário, eliminada. A vida é vista como estrangeira, frágil, instável e tediosa. O autor assinala que, diante da perspectiva de exclusão que opera na lógica de mercado vigente na ordem mundial, as políticas de volta às tribos, tais como a construção de muros, o fechamento de fronteiras e a extradição permanente são bandeiras assumidas para nutrir ódio aos excluídos e abandonados, afastando qualquer possibilidade de reconhecimento do outro. A migração é considerada um modo de vida moderno que responde à construção da ordem e do crescimento econômico, levando as pessoas que sobram em seus lugares de origem, a buscar abrigo longe de casa. Apoiado em Agier, ele afirma que da globalização de capitais, mercados e imagens passamos à globalização da humanidade.

O terceiro capítulo tem como título “De volta à desigualdade” e nele o autor assinala a desigualdade como resultado da relação capital versus trabalho, agravada e multiplicada pela crise do capitalismo. No campo da desigualdade, a sociedade é dividida em nação dos ricos e nação dos pobres e os habitantes dos dois mundos passam a vida e não se encontram, como se vivessem numa comunidade murada móvel ou uma bolha dentro de uma couraça. Para ele, em qualquer perspectiva de análise adotada pelos economistas, é inegável a constatação de que a desigualdade aumenta e que chegou ao seu apogeu, diante dos números alarmantes da distribuição de renda, confirmando que a riqueza socialmente produzida está muito longe de ser socialmente distribuída. Há um esforço dos donos do capital em fazer valer um ambiente de privação permanente flutuante, para vender a ideia de que a privação não tem cura, portanto, é inerente à condição social e legitima a desigualdade como elemento constitutivo da sociedade. Essa perspectiva se ancora em dois processos: a globalização de poderes e a globalização de informação, tornando as responsabilidades fluidas e elevando o padrão real de comparação a patamares inatingíveis.

A sociedade atual, destaca o autor, é individualista, desregulamentada, transpassada por alianças e coalizões etéreas, com expectativa de vida curta, qualificada para transferir a política social de responsabilidade do Estado para o âmbito individual. Em vez de gerar solidariedade é uma indústria de suspeitas recíprocas e do antagonismo de interesses, produtos caros à atual filosofia administrativa e às novas estratégias de dominação. Qualquer discurso que engendra a solidariedade é tido como uma armadilha para ingênuos e levianos, pois na moeda em circulação a solidariedade é um peso morto. A essa altura, o autor disserta sobre a renda básica como pedra angular da igualdade, ganho social e moral, capaz de reverter a desigualdade. Ele se associa aos pensadores que defendem a renda básica como direito inalienável de qualquer cidadão e se opõe a todos os que colocam foco na renda básica como projeto de transferência de renda para necessitados, pois tal perspectiva retorna ao pensamento do passado de projetos para pobres, que os tornam culpados pela pobreza, estigmatizados, como estando abaixo de qualquer patamar de dignidade, como é o caso das ações empreendidas pelo contraditório e obsoleto Estado de bem-estar social. Contudo, “a guerra contra a pobreza deve ser travada e conduzida por órgãos que empreguem armas políticas” (BAUMAN, 2017, p. 85).

No quarto capítulo, cognominado “De volta ao útero”, o autor tem como ponto de partida a desapropriação dos camponeses e artesãos dos meios de produção no século XIX e sua semelhança com o século XXI, onde os meios se tornaram mais sofisticados, mas o fim continua o mesmo: a exploração da força de trabalho em prol do lucro do capital. Nesse mundo povoado por miseráveis, o autor sinaliza que alguns extraem persistência da esperança e outros investem seus sonhos em voltar ao passado, não obstante, abandonados ao jogo do mercado, tornam-se seres humanos mercantilizados e ao coisificarem os outros e as relações, passam a buscar maneiras de enfrentar a realidade no abrigo enganoso do egoísmo e da autorreferência. Assim, de volta ao útero, é a volta ao eu como corrida em busca de abrigo, uma espécie de fuga da sociabilidade, de culto narcísico ao ego inflado de um eu adoecido pela imposição de vender e consumir.

Dialogando com Christopher Lasch, o autor aborda a substituição do homem econômico, ideal proclamado no primeiro ciclo do capitalismo, pelo homem psicológico, produto supremo do individualismo burguês que opera nesta nova fase do mercado consumista. Ele suscita um questionamento: as tendências narcisistas são transtornos de personalidade ou transtorno de sociedade? E embora não apresente resposta, deixa evidente que o narcisismo se tornou norma reguladora do comportamento contemporâneo. Esse “de volta ao eu” desloca a responsabilidade pelo que está presente no mundo para a veneração do corpo, tornando o dever moral privado e autorreferente. Se o dever moral é individual, tudo passa a ser válido e os parâmetros da ética, os critérios de justiça e de verdade saem do extremo do essencialismo e caem no outro extremo do fatalismo e do relativismo.

Para o autor, a solidão e o medo da solidão são fatos concretos da vida líquida moderna, e as habilidades de socialização enferrujaram por falta de prática. O útero é um lugar solitário, mas seguro, sem competidores. Não há outros dentro do útero e por isso é zona de autorreferência. A internet pode promover esse retorno, na medida em que possibilita ao sujeito conectar-se mais com pessoas que pensam como ele e menos com os diferentes, pois basta um clique e os diferentes não incomodam mais, é possível excluí-los, bloqueá-los, descartá-los usando apenas teclas. Esses apontamentos do autor levam a pensar a educação como um todo, e singularmente na escola como uma agência educativa da contemporaneidade. Mais do que nunca, o processo educativo empreendido precisa desenferrujar as habilidades de socialização, promover o convívio compartilhado, ensinar a cooperação e a solidariedade. Ao discorrer sobre educação e juventude, o próprio Bauman (2013) fala da necessidade de aprender e praticar a arte de conviver com o diferente, não de tolerar o outro, mas de acolhê-lo em sua integridade e inteireza, reconhecendo a mistura de inspirações culturais como motor de criatividade, fonte de enriquecimento mútuo, afinal, “a companhia humana é a mais difícil e a mais obstinada das realidades que tornam um ser vivo humano” (BAUMAN, 2017, p. 137).

Por fim, a obra traz um epílogo intitulado “olhando adiante, para variar” como uma forma de alento aos leitores diante do viés de análise adotado pelo autor, que quase sugere o fim da linha, pois de volta a Hobbes, às tribos, à desigualdade e ao útero é a efígie da assustadora retrotopia de uma “era em que tudo - ou quase tudo - pode acontecer, ao passo que nada - ou quase nada - pode ser empreendido com convicção e certeza de se chegar ao fim” (BAUMAN, 2017, p. 143). Desse lugar, ergue-se o medo do futuro e sua associação a algo pior que o presente, bem como o retorno às grandes ideias sepultadas no passado. Esse estágio societário faz com que a vida nada tenha de gratificante e mais uma vez o mercado de consumo oferece uma resposta na enorme variedade de psicotrópicos medicamentosos.

Contudo, diante do desafio de integrar, sem separar, de resgatar a utopia de uma vida melhor no futuro, de suscitar esperança e coragem para a construção de outra lógica societária, o autor toma emprestado o discurso do Papa Francisco e aponta uma saída no empreendimento de uma cultura do diálogo. Para ele, tomar parte na cultura do diálogo representa uma disposição para curar as feridas desse mundo multiconflituoso e o primeiro passo para um senso planetário de solidariedade e coabitação pacífica, que reclama o resgate do trabalho como elemento fundante do ser social e a distribuição justa da riqueza socialmente produzida. Tomar consciência da retrotopia e comprometer-se na construção de um senso de comunidade fundada em bases dialógicas requer voltar o “Anjo da História” de Paul Klee para o futuro e vencer a tempestade que agora o empurra para o passado, pois “estamos diante da perspectiva de nos darmos as mãos ou de rumar para as nossas valas comuns” (BAUMAN, 2017, p. 155).

No que concerne à educação e suas agências educativas, os argumentos centrais dessa obra clarificam a ressurreição dos fundamentalismos e extremismos que apresentam seus contornos e ações no campo educacional da atualidade. No caso brasileiro, a onda de conservadorismo que envolve a perspectiva do projeto “Escola sem Partido”; as discussões retrógradas e aprovação de leis municipais que proíbem o tratamento das questões de gênero em sala de aula; a aprovação pelo Supremo Tribunal Federal do Ensino Religioso confessional em escolas públicas; as políticas curriculares que envolvem a padronização e colocam ênfase no ensino de língua e cálculo, dentre outras perspectivas regressistas em voga, permitem afirmar uma espécie de retrotopia educacional.

Essa retrotopia educacional tem reverenciado construções curriculares centradas no ser homem, branco, heterossexual, adulto, ocidental a partir de modelos do passado e nutrindo uma espécie de cultura do ódio ao diferente, à pluralidade e à multiculturalidade que caracterizam a sociedade contemporânea. O modelo de educação e escola exaltado é de treinamento para o mercado e o consumo e, de quebra, para atender os padrões das avaliações de larga escala. Como afirma o próprio Bauman, tem sido uma guerra de todos contra todos, cotidianamente conduzida pelos mercados, mas também pelos professores nas escolas, de modo que “nós somos, desde a tenra infância, nutridos e adestrados para passar nossas vidas como soldados dessa guerra”, incutindo nas crianças, nos adolescentes vestibulandos, nos jovens universitários, que “somos todos competidores uns dos outros; estejamos já desmascarados com tal ou certos de que seremos desmascarados na primeira oportunidade” (BAUMAN, 2017, p.47). O modelo tribal de nós ou eles, o binarismo das concepções, o puritanismo e a exacerbação das vontades individuais apontadas nesta obra ora resenhada, chegam às instituições educacionais por meio de políticas, práticas, documentos jurídicos impetrados por associações e famílias na busca de garantir o retorno ao útero, mantendo a ordem e a dominação dos poderes vigentes na lógica societária do dia.

Assim como no epílogo da obra em apreço emerge uma alternativa, o autor, em “Sobre Educação e Juventude” (2013), afirma que, mesmo estando imerso nessas contradições, submetido ao jogo do mercado consumista e com poderes limitados, o sistema educacional ainda tem capacidade de transformação e pode ser considerado um germe promissor de revolução. É obvio que revolucionar aqui não passará pela luta armada dos motins e das grandes passeatas em praça pública, mas por arquitetar um processo em que a especificidade do ato educativo esteja na relação e não no saber e no fazer técnico. No horizonte de Lévinas (2008), implica um projeto de acolhida do outro, não como limitante da liberdade, mas como hospitalidade, que exige um comportamento ético que o permita ser, isto é, existir outramente. Por isso, capaz de curar o desejo de posse, de dominação e instaurar práticas dialógicas, democráticas, solidárias e cooperativas, embasadas no respeito à dignidade da pessoa humana, na igualdade de direitos e na valorização da diversidade. Um processo educativo com essas características será capaz de recolocar a utopia no futuro e devolver a capacidade de sonhar aos sujeitos aprendentes.

Referências

BAUMAN, Zygmunt. Retrotopia. Rio de Janeiro: Zahar, 2017. [ Links ]

BAUMAN, Zygmunt. Sobre educação e juventude: conversas com Riccardo Mazzeo. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. [ Links ]

LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Lisboa (PT): Edições 70, 2008. [ Links ]

PORCHEDDU, Alba. Zygmunt Bauman: entrevista sobre a educação. Desafios pedagógicos e modernidade líquida. Cad. Pesqui.[online]. São Paulo, v. 39, n.137, maio/ago. 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742009000200016>. Acesso em: 20 jun. 2018. https://doi.org/10.1590/S0100-15742009000200016Links ]

1Convergência tecnológica entendida como agregação de diferentes dispositivos em uma mesma plataforma ou infraestrutura;

Recebido: 30 de Março de 2019; Aceito: 30 de Outubro de 2019

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