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Educação e Filosofia

Print version ISSN 0102-6801On-line version ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.34 no.70 Uberlândia Jan./Apr 2020  Epub Feb 06, 2022

https://doi.org/10.14393/revedfil.v34n70a2020-59227 

Dossiê Governo das diferenças e as cartografias do ingovernável na educação

Apresentação do Dossiê Governo das diferenças e as cartografias do ingovernável na educação: Entre a arte a política1

Pedro Angelo Pagni* 
http://orcid.org/0000-0001-7505-4896

Divino José da Silva** 
http://orcid.org/0000-0003-0000-1268

*Doutor em Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Professor na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. E-mail: pedropagni@gmail.com

**Doutor em Educação pela FFC/UNESP/Marília. Professor de Filosofia do Departamento de Educação e Programa de pós-Graduação em Educação da FCT/UNESP/Presidente Prudente, SP. E-mail: divino.silva@unesp.com.br


O presente Dossiê tem como tema o governo das diferenças empreendidos pelas políticas estatais no neoliberalismo, as quais têm repercussão na educação. As reflexões aqui desenvolvidas inserem-se, teoricamente, no debate filosófico contemporâneo da governamentalidade e da biopolítica. Particularmente, interessa debater em que medida os corpos ingovernáveis, denominados por vezes de desviantes ou anormais, estão compreendidos por essas formas de governo atuais ou lhes escapam, tanto singularmente quanto na qualidade de povo ou multidão, afrontando-as e agenciando modos outros de subjetivação, assim como potências da vida ou biopotências para tal. Para isso, esses artigos transitam entre a filosofia da diferença, a arte e a política, explicitando uma crítica contundente ao atual governo das diferenças e explorando cartografias do ingovernável na educação.

A partir das diferenças mapeadas nos corpos singularizado, tais como os corpos das pessoas transgêneras, das deficientes, dos grupos afrodescendentes, dos povos indígenas ou quilombolas, este dossiê busca debater o lugar que ocupam no atual governo das diferenças na biopolítica neoliberal. Entende-se que a violência ou a exceção cometidas contra eles na atual conjuntura, quer seja nos contextos escolares ou em outros espaços sociais, assim como o potencial de resistência que apresentam, ao relatarem situações de abuso e de bullying, compõe uma ampla frente de desafios a serem problematizados pela filosofia da educação. É dessa expressividade e ethos que se ocuparão esses artigos, assim como a reflexão sobre e com eles, com vistas a dar visibilidade a esses modos de existência enquanto uma experiência singular e como um entretecido comum, associado às comunidades LGBTT+, afrodescendentes, deficientes, dentre outras, emergentes das suas lutas transversas em escolas e outras instituições.

Apoiados em referências como as de Michel Foucault, Giorgio Agamben, Hannah Arendt, Jean Luc Nancy, Gilles Deleuze e Félix Guattari, dentre outros, assim, os artigos visibilizam esses corpos ingovernáveis, situando-os no jogo de subjugação e crítica empreendida pelas atuais formas de governamentalidade biopolítica - particularmente, na educação escolar. Ao mesmo tempo, como apresentados abaixo, eles abordam as possibilidades de sua biopotência, de sua capacidade de agenciar eticamente novas formas de inclusão pautadas na criação de novos modos de viver juntos e de vida comum.

O primeiro artigo de autoria de Carlos José Martins e Flávio Soares Alves, intitulado “Cartografias da ingovernabilidade dos corpos na arte e na vida”, aborda o processo de governamentalização na modernidade, ressaltando, sobretudo, os investimentos do poder sobre o corpo, via os processos disciplinares que tendem a reduzi-lo à dimensão orgânica e utilitária, afirmando-se o caráter produtivo do poder, o qual passa a ser exercido por uma série de dispositivos que irradiam seus efeitos ininterruptos para todo o corpo social. É nesse ponto que os autores pensam a inflexão e a resistência como força que irrompe contra o poder governamentalização, aparentemente incontornável, posto que os corpos não se deixam reduzir à funcionalidade e à racionalidade dos processos produtivos. Inflexão e resistência que encontram acolhida na arte como expressão sígnica da ingovernabilidade. Os autores são fustigados pela seguinte questão, a qual transformamos numa pergunta: “onde reside a irredutibilidade dos corpos a essa insidiosa governamentalização”? A resposta a ela constitui o eixo sobre o qual se desenvolve o artigo, e para isso são mobilizados os sentidos do corpo e da arte em Gilles Deleuze, o qual recorre a Espinosa, a Nietzsche e a Antonin Artaud. Assim, a arte cumpre aqui uma função sintomatológica em nossa cultura contemporânea, ao expressar sintomas das forças vitais.

O artigo apresentando na sequência, “Sociedade de desempenho e governo da vida deficiente”, de Divino J. da Silva, busca pensar de que modo se dá, no contexto da sociedade de desempeno e no rearranjo biopolítico por ela produzido, o governo dos corpos e das vidas deficientes. Parte-se do diagnóstico sobre a sociedade de desempenho, marcada pelo empresariamento da vida, baseando-se, principalmente, em aspectos das análises biopolíticas desenvolvidas por Foucault e nas análises feitas por Byung-Chul Han e Alain Ehrenberg sobre as performances de desempenho na atualidade. O eixo em torno do qual desenvolve-se o artigo pode ser sintetizado em duas perguntas assim enunciadas pelo autor: “Que lugar ocupam os corpos lentos, frágeis, doentes e envelhecidos no contexto dessa dominante racionalidade pragmática? Que vida há nesses corpos que afrontam o biopoder?”. Essas questões serão trabalhadas tendo como referência três crônicas jornalísticas, tomadas como imagens literárias, nas quais os corpos deficientes exprimem o que há neles de ingovernável.

Na mesma linha de reflexão dos textos anteriores, o artigo “O governo das diferenças e a potência da vida surda na escola”, de Vanessa Regina de Oliveira Martins, analisa, num primeiro momento, o caráter normalizador das políticas públicas de inclusão de sujeitos surdos no contexto escolar, as quais estão focadas em práticas igualitárias e no respeito à diversidade que submetem os estudantes surdos a um processo de governamentalização escolar, orientado por uma base curricular comum. Essa base curricular comum parte do pressuposto de que os sujeitos escolares são todos iguais. Ou, quando não, trata-os como sujeitos que trazem marcas distintas, mas que no fundo deteriam uma essência humana que os tornariam iguais. Num contraponto a esse modo de pensar a inclusão de deficientes na escola, particularmente os sujeitos surdos, a autora indica a urgência de se afirmar a surdez como um acontecimento ontológico, que ao invés de reforçar os pressupostos da igualdade na diversidade, produziria a diferença como condição radical dos sujeitos surdos. Isso demandaria a construção de uma proposta de escola orientada por um currículo “rizomático, diverso e caótico”, de tal modo que atendesse às múltiplas formas de vida que habitam o espaço-tempo escolar. No entanto, a despeito das práticas inclusivas atuais, os corpos surdos insurgem na escola como corpos ingovernáveis, os quais resistem e não se submetem ao governamento e ao controle da língua oral. Repensar as políticas públicas para surdos requer, afirma a autora, um deslocamento ético, sobretudo quando aqueles que as elaboram não sentem e não se constituem nos “encontros-mundo-diferenças.”

Em continuidade ao trabalho de pensar a presença dos corpos ingovernáveis na escola e em outros espaços, Alexsandro Rodrigues e Leonardo Lemos de Souza, no artigo “Por uma política de leitura aberta de mundos: o buraco negro e o fim do mundo como possibilidade de nascimentos crianceiros”, convocam-nos a refletir sobre a urgente necessidade de fazer viger nos espaços escolares, e demais espaços formativos, histórias infanto-juvenis que narrem as dissidências de gênero, “desde as margens dos buracos negros de vidas dissidentes”. Histórias que rompam com o sistema sexo-gênero que insiste em afirmar, no âmbito do currículo, políticas heterocêntricas mantenedoras de privilégios e práticas que legitimam a violência contra aqueles e aquelas que rompem com os padrões da heteronormatividade. Contra uma educação escolar que se nega a acolher em suas práticas pedagógicas e formativas as vidas concretas, “demasiadamente sexualizadas e generificadas”, só nos restaria, segundo os autores, abrir-nos a outras experiências éticas que virassem do “avesso as pregas de nossas verdades morais”, possibilitando a expansão da novidade imanente à vida dos corpos dissidentes. Para isso, haveria a necessidade de descolonizar a nossa subjetividade recriando os nossos modos de sentir, querer, desejar, ver, falar, ler, escrever, tocar, cheirar... . Descolonizar, nessa acepção, significa pensar com o corpo, pensar com o baixo-ventre - pensar o ânus “como território a ser descolonizado”- e libertar o corpo das arbitrariedade do “regime sexo-gênero binário”. Daí decorre a importância de reaprendermos “outros modos de falar sobre a prisão da criança nos dispositivos da infância e da boa pedagogia.”

Alexandrina Monteiro e Valéria Aroeira Garcia tratam, no artigo intitulado “Em defesa da desordem pedagógica: institucionalização da infância no cinema e no cotidiano escolar”, dos modos como a escola tem exercido o governo dos corpos infantis. Para abordar o assunto, as autoras analisam os filmes A Guerra dos Botões e As Pequenas Flores Vermelhas, sob a perspectiva das abordagens deleuzianas. As autoras pensam o cotidiano escolar a partir dos atravessamentos afetivos que os filmes produziram sobre elas. A partir dessa experiência que as autoras problematizam os processos de institucionalização da infância pela escola, na tentativa de vislumbrar outras possibilidades educativas. Parte-se da hipótese de que o governo da infância pela escola não tem possibilitado o cultivo de disposições que favoreçam relações coletivas de solidariedade. Pelo contrário o que tem ocorrido, sobretudo com o agudo processo de empresariamento da instituição escolar, é o fomento de práticas que reforçam o individualismo e o espírito de competitividade. A questão que desafia as autores é como resistir a esse ordenamento pedagógico na escola. Ordenamento que tem submetido crianças a formas de controle e pressão com resultados desastrosos refletidos nos adoecimentos dos sujeitos escolares. De outro modo também, como ressaltam as autoras, tudo isso tem conduzido à generalização de práticas que medicalizam crianças em idade escolar, sustentadas em discursos que patologizam o ingovernável que habita o corpo infantil.

Ao pensar a relação entre arte, educação e a produção do comum, no artigo intitulado “Arte, educación y comunidad en la estética pedagógica”, Jorge Santiado Massoh Castillas desenvolve acurada reflexão acerca do referido debate, tratando, particularmente, dos aspectos que o mesmo assume no âmbito da “estética pedagógica”, vertente da estética contemporânea, a qual defende a aproximação entre arte e educação. A problemática que perpassa o artigo se volta para as implicações desses dois campos de saberes e experiências formativas na construção de um comum, em que, de fato, seja possível reinventarmos modos de vida que se contraponham à máquina capitalista contemporânea, nos moldes como a ela se referiu Guattari. No decorrer do artigo, o autor demarca as implicações que há na combinação híbrida entre arte e educação, sob a denominação, desde final dos anos de 1990, de “estética pedagógica”. A presença da arte na escola, a partir de então, propõe formas de resistências que “passam por criar comunidades de sentir”, que assumem elementos das pedagogias críticas e anti-institucionais, pós-68. É nesse contexto que vários filósofos, dentre eles Jacques Rancière, Jean-Luc Nancy e Habermas se interrogam acerca do que significa “viver juntos” hoje. A resposta essa questão assumirá desdobramentos que passam pelo modo como os autores abordam o sentido e a construção do comum, pensado em duas perspectivas distintas. Uma que passa pela via da “estética dialógica”, numa filiação ao pensamento de Habermas, produtora de processos subjetivos comunitários; e a outra que pensa a confluência entre o estético e o educativo como “estética comunitária”, defendida, sobretudo, por Jean-Luc Nancy como uma experiência de abertura ao outro - um colocar-se com o outro. Nesse caso, pressupõe-se algo que está para além da produção da comunidade restrita ao educativo-estético, o qual atravessa, ontologicamente, todos os espaços. Desse modo, uma “estética pedagógica” que pretenda ter alcance político em nossos dias, ela não poderia ocorrer alheia à uma reflexão sobre o comum.

No artigo, “O lugar do próprio no espaço impróprio: o negro, o judeu e o comum”, Paulo Henrique Fernandes Silveira reconstrói o debate que ocorre, sobretudo na França, a partir do final dos anos de 1940, acerca da condição de exilados e de expatriados de negros e de judeus. O judaísmo e a negritude, analisa o autor, são pensados por Franz Fanon, Maurice Blanchot, Jacques Derrida e Edmond Jabès, na perspectiva das experiências de exílio e de expatriação. Toda essa discussão é retomada tendo em vista compreender de que modo a concepção de não-pertencimento vivida por negros e judeus ressoa nas concepções de comunidade e comum de pensadores como Jean-Luc Nancy, Giorgio Agamben e Jacques Rancière. O percurso feito no artigo busca ligar fios que nos ajudam a pensar o sentido da comunidade e do comum de uma perspectiva que abole a figura essencialista de sociedade, de identidade e de subjetividade. A experiência do não lugar, do não-pertencimento e do exílio, aparece como uma espécie de inscrição em um novo modo de “habitar sem hábito” o mundo, afirmando uma nova relação com o Exterior. Relação essa construída a partir da interrupção, da suspensão e dos fragmentos da linguagem. Aqui se encaixam as experiências daqueles que viveram nos campos de concentração nazistas, em que a comunidade é constitutiva de uma forma de resistência, em que se abole qualquer tipo de pertencimento, de singularidade e de identidade fixa. Talvez resida aqui um dos desafios políticos mais sérios endereçados aos nossos dias, qual seja o de desconstruir os essencialismos identitários que inibem, ou, quando não, impedem a renovação do comum.

Com os artigos aqui reunidos procuramos responder a um tema atual e a desafios estéticos e políticos que se apresentam em nosso tempo presente, particularmente, relacionados ao governo e ao potencial das diferenças como um território a ser cartografado na educação e na arte como um campo de problematização, um foco de resistência e uma possibilidade de criação de subjetivações outras. Esperamos que essa proposta não seja somente a dos autores, das autoras e dos organizadores deste Dossiê, como também provoque os leitores a pensar e a se engajar conosco nessa tarefa ao mesmo tempo artística, filosófica e educacional.

Divino J. da Silva
FCT/UNESP
Pedro Angelo Pagni
FFC/UNESP
Organizadores

1Os artigos reunidos em torno deste título, retratam a segunda parte das discussões ocorridas nas mesas redondas do VIII Simpósio Internacional em Educação e Filosofia, ocorrido de 27 a 29 de agosto de 2019, na UNESP, Campus de Marília/SP. Agradecemos a FAPESP (2019/07882-5), CAPES (PRINT-UNESP 88887.310516/2018-01; PAEP 88881.358867/2019-0) pelo apoio financeiro que nos possibilitou a apresentação dos resultados da proposta.

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