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Educação e Filosofia

versión impresa ISSN 0102-6801versión On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.34 no.70 Uberlândia ene./apr 2020  Epub 06-Feb-2022

https://doi.org/10.14393/revedfil.v34n70a2020-55513 

Dossiê Governo das diferenças e as cartografias do ingovernável na educação

Cartografias da ingovernabilidade dos corpos na arte e na vida

Cartographies of the ungovernability of bodies in art and life

Cartografias de la ingobernabilidad de los cuerpos en el arte y la vida

Carlos José Martins* 
http://orcid.org/0000-0002-9255-1170

Flávio Soares Alves** 
http://orcid.org/0000-0002-1698-6535

*Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) E-mail: carlos.j.martins@unesp.br

**Doutor em Educação Física pela Universidade de São Paulo (USP). Professor na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). E-mail: flavio.salves@usp.br


Resumo

Sofremos uma crescente governamentalização dos corpos e das condutas ao longo do mundo moderno e contemporâneo. Essa foi uma das expressivas contribuições do pensamento do filósofo francês Michel Foucault. No entanto, tal governamentalização não adveio sem contrapartida. Trata-se, em todo caso, de um empreendimento sistemático de investimento pelo poder e de redução dos corpos à sua dimensão extensiva, utilitária, funcional e orgânica, numa palavra, instrumental. Uma pletora de práticas foi criada em vários campos - saúde, educação, trabalho, lazer, esporte, etc. - com este fim. No entanto, por mais incontornável que seja, os corpos não se deixam reduzir a um estado de coisa, a sua extensão, em resumo, a sua reificação. Este trabalho visa circunscrever esta problemática, para os fins de explorar o tema que concerne a relação entre os corpos, a cultura e o papel da arte como cartografia intensiva, sob o signo da ingovernabilidade.

Palavras-chave: cartografias; ingovernabilidade; corpo; arte; filosofia

Abstract

We have suffered a growing governmentalization of the bodies and behaviors throughout the modern and contemporary world. This was one of the expressive contributions of the French philosopher Michel Foucault’s thought. However, such governmentalization has not come without a counterpart. In any case, it is a systematic undertaking of investment by the power and of reduction of the bodies to their extensive, utilitarian, functional and organic dimension to a word, instrumental. A plethora of practices has been created in various fields - health, education, work, leisure, sports, etc. - to this end. However, bodies are not reduced to a state of affairs, to their extension, in short, to their reification, as unavoidable as it might be. This work aims to circumscribe this problem, in order to explore the theme that concerns the relationship among the bodies, the culture and the role of the art as an intensive cartography, under the sign of ungovernability.

Keywords: cartography; ungovernability; body; art; philosophy

Resumen

Sufrimos una creciente gubernamentalización de los cuerpos y el comportamiento en todo el mundo moderno y contemporáneo. Esta fue una de las contribuciones expresivas del pensamiento del filósofo francés Michel Foucault. Sin embargo, tal gubernamentalización no se produjo sin una contraparte. En cualquier caso, es una empresa sistemática de inversión por poder y la reducción de los cuerpos a su dimensión extensiva, utilitaria, funcional y orgánica, en una palabra, instrumental. Se han creado una gran cantidad de prácticas en diversos campos: salud, educación, trabajo, ocio, deportes, etc. - con este fin. Sin embargo, por inevitable que sea, los cuerpos no se reducen a un estado de cosas, su extensión, en resumen, su reificación. Este trabajo tiene como objetivo circunscribir este problema, a fin de explorar el tema que concierne a la relación entre los cuerpos, la cultura y el papel del arte como cartografía intensiva, bajo el signo de ingobernabilidad.

Palabras clave: cartografía; ingobernabilidad; cuerpo; arte; filosofía

Introdução

Como nos legou o filósofo Michel Foucault, sofremos uma crescente governamentalização dos corpos e das condutas ao longo do mundo moderno e contemporâneo. Essa foi uma das grandes contribuições do pensador francês. Demonstrar que ao mesmo tempo que o mundo moderno inventava e tagarelava sobre as liberdades individuais, inventava e expandia as disciplinas como tecnologia política de governo dos corpos. No entanto, tal governamentalização não adveio sem contrapartida.

Trata-se, em todo caso, de um empreendimento sistemático de investimento pelo poder e redução dos corpos à sua dimensão extensiva, utilitária, orgânica e funcional. Numa palavra, redução do corpo à dimensão instrumental. Para tanto, uma pletora de saberes e práticas foi criada em vários campos - saúde, educação, trabalho, segurança, lazer, esporte, etc. - com este fim. No entanto, por mais incontornável que seja, os corpos não se deixam reduzir a um estado de coisa, a sua extensão, em resumo, a sua reificação.

Neste sentido, este artigo buscará circunscrever esta problemática, para os fins de explorar o ponto de inflexão e resistência que concerne à arte, no bojo da relação entre corpo e cultura, sob o signo da ingovernabilidade. Por conseguinte, cabe-nos interrogar onde reside a irredutibilidade dos corpos a essa insidiosa governamentalização. Neste particular, será explorada a contribuição da arte, tal como concebida no pensamento de Gilles Deleuze. Para o filósofo, notadamente inspirado em Nietzsche e Espinosa, a arte cumpre um papel crítico e clínico decisivo. Tal papel se desdobra de uma só vez em duas dimensões - diagnóstica e política. Deleuze resgata, a partir de Nietzsche, a função do artista e do filósofo como médicos da civilização. A obra de arte, por se encontrar distanciada dos imperativos normativos que regem a medicina moderna e contemporânea, pode desempenhar funções sintomatológicas inauditas em nossas culturas e sociedades. Para tanto, em um primeiro momento, vamos nos valer da forma singular como Deleuze concebe a questão do corpo através do modo como este a retoma de Espinosa e Nietzsche. Posteriormente, desdobraremos esta problemática no campo das artes através de duas noções de Antonin Artaud, retomadas por Gilles Deleuze. A noção de Corpo sem Órgãos e a noção de Atletismo Afetivo. Posto isto, entendemos poder postular uma região da vida que se mostra irredutível e potencialmente resistente aos processos de governamentalização.

Sintomatologia como cartografia

O corpo para Nietzsche é por princípio uma multiplicidade de forças, impulsos e afetos. Portanto, só se pode tomá-lo como uma unidade e/ou totalidade provisória e temporária. O corpo, neste sentido, é uma das formas de expressão e configuração da vida. Como tal, a vida em seu curso pode transformá-lo e reconfigurá-lo ao sabor das novas forças que a engendram e transfiguram. Ademais, Nietzsche nos propõe tomar o corpo como fio condutor de sua operação de diagnóstico da vida.

Por outro lado, Nietzsche nos propõe uma leitura da cultura - através da arte e da filosofia - como sintoma. Em que sentido? Por um lado, sintoma de afirmação da vida mesmo naquilo que ela comporta de paradoxal como a dor e o mal-estar. Por outro lado, sintoma de negação da vida em nome de algum ideal transcendente, vale dizer, o que Nietzsche chama de ideal ascético. Estes sintomas variam cultural e historicamente. Outrossim, podem ser de várias ordens: religiosos, morais, metafísicos, científicos, estéticos, políticos e/ou filosóficos. Constituem desta forma a tábua de valores de uma sociedade e/ou de um indivíduo cujo conjunto representa um complexo de cultura. Por sua vez, tais complexos traduzem necessidades próprias a seus corpos, em outros termos, as valorações são expressões de necessidades somáticas. Ademais, para o filósofo, toda cultura é uma interpretação da vida, um caso particular da vontade de potência. Tal é o liame genealógico entre o corpo e a cultura tendo em vista o recurso ao termo médico do sintoma. Toda cultura é, portanto, uma interpretação. Cada um dos seus componentes traduz, por conseguinte, uma certa manifestação e um certo regime e estado dos corpos. Portanto, o pensamento sintomatológico nietzschiano é uma cartografia das transferências e correlações entre corpo e cultura.

Tais correlações podem assumir dois grandes tipos de configurações vitais. De um lado, aquelas que traduzem genealogicamente a atividade de expansão das forças vitais. Por outro lado, aquelas que traduzem o declínio da vontade de potência e um estado mórbido ou degenerescente do corpo e da vida. Neste sentido, todo estado de coisa remete a uma relação de forças que, por sua vez reenvia a um estado de potência vital. Em outras palavras, toda relação de forças torna-se passível de uma interrogação quanto a sua potência, uma vez que esta esboça uma tipologia vital, franqueando um exame crítico dos tipos de vida colocados em jogo. Desta forma, Nietzsche esboçou uma tipologia de forças ativas e reativas. Neste sentido, ele pode captar diferentes configurações de forças e circunscrever tipologias sócio-históricas a partir da conjunção das forças implementadas.

A sintomatologia nietzscheana implica uma forma de saber que avalia ações e produções de uma sociedade e uma cultura em função dos tipos de vida que ela promove. Eis a razão pela qual Deleuze retoma de Nietzsche a potência sintomatológica da arte e a descrição tipológica das configurações de forças vitais. Potências a um só tempo diagnósticas e políticas. Para tanto, a arte combina uma lógica da sensação com uma vocação sintomatológica. Portanto, de um lado, a arte vai ter como sua principal virtude captar forças e torná-las signos sensíveis. Por outro lado, enseja um pensamento da arte que elabora tipologias e mapeia diferentes tipos de signos compondo cartografias vitais intensivas.

Para tanto, em um primeiro momento, vamos nos valer da forma singular como Deleuze concebe a questão do corpo através do modo como este a retoma de Espinosa e Nietzsche. Posteriormente, vamos procurar aproximar esta problemática do campo das artes através de duas noções de Antonin Artaud retomadas por Gilles Deleuze. A noção de Corpo sem Órgãos e a noção de Atletismo Afetivo.

É explorando a noção de corpo no pensamento de Deleuze que podemos começar a constituir o fio condutor desta problemática em sua obra e seus desdobramentos estéticos, éticos e políticos. Para tal, a conjunção Espinosa-Nietzsche é de fundamental importância. Em Nietzsche e a Filosofia de 1963 o filósofo coloca alguns de seus marcos.

Espinosa abriu um caminho novo para a ciência e para a filosofia. Nem mesmo sabemos o que pode um corpo, dizia ele; falamos da consciência e do espírito, tagarelamos sobre tudo isso, mas não sabemos de que é capaz um corpo, quais são suas forças nem o que elas preparam. (DELEUZE, 1976, p. 32)

Chamando a consciência a sua devida modéstia e lhe conferindo o estatuto de sintoma, remete a consciência a uma instância mais profunda de transformações onde preponderam a atividade de forças ao invés de funções espirituais abstratas e especulativas. Antes pelo contrário, Deleuze postula, na esteira de Nietzsche, que talvez se trate exclusivamente do corpo no que diz respeito à questão de desenvolvimento do espírito. Neste caso, cabe-nos indagar e explorar qual a concepção de corpo colocada em jogo pelo filósofo francês.

O que é o corpo? Nós não o definimos dizendo que é um campo de forças, um meio provedor disputado por uma pluralidade de forças. Com efeito, não há “meio”, não há campo de forças ou de batalha. Não há quantidade de realidade, toda realidade já é quantidade de força. Nada mais do que quantidades de força “em relação de tensão” umas com as outras. Toda força está em relação com outras, quer para obedecer, quer para comandar. O que define um corpo é esta relação entre forças dominantes e forças dominadas. (DELEUZE, 1976, p. 33)

Por conseguinte, para Deleuze, todo corpo, seja ele químico, biológico, social ou político é constituído por relações de forças. Por sua vez, para Espinosa, cada corpo é constituído por partes, uma multiplicidade de partes: mas essas partes somente lhe pertencem sob certa relação de movimento e repouso que o caracteriza. Trata-se de situação notadamente complexa e dinâmica, pois os corpos compostos têm partes de ordem diferente que entram sob relações elas próprias variadas; estas relações variadas se compõem entre si para constituir a relação característica ou dominante do indivíduo considerado. Há, pois, uma configuração flutuante de relações para cada corpo e de um corpo para o outro, que constituem sua “forma”.

A segunda proposição referente aos corpos nos remete ao poder de afetar e ser afetado. Não se define um corpo (ou uma alma) por sua forma, nem por seus órgãos ou funções; tampouco se define um corpo como uma substância ou um sujeito. Cada leitor de Espinosa sabe que os corpos e as almas não são para ele nem substâncias nem sujeitos, mas modos. (DELEUZE, 2002, p. 128)

É propondo uma nova concepção de individualidade corporal que Espinosa concebe uma filosofia modal da individuação. Uma nova cartografia intensiva dos corpos. Qual seja: todo indivíduo se compõe de uma infinidade de partículas, que lhe pertence sob uma relação de velocidades e lentidões característica. Tais relações de força que ele compõe desdobra um poder dinâmico de afetar e ser afetado que, por sua vez, qualifica a potência da qual ele é capaz.

Todo corpo é constituído por um composto dinâmico entre dois planos. De um lado, uma face atual, macroscópica, individualizada em uma forma orgânica extensiva. De outro, um plano virtual, intensivo, microscópico, molecular onde persiste a heterogênese. É, por conseguinte, o que se coloca em jogo entre estes dois planos que nos dá a dimensão plástica dos corpos. Tanto quanto ao seu sentido estético, quanto a seu sentido político. Em outros termos, é liberando esta dimensão plástica dos corpos que a arte, ou, se preferirmos, a função artista nos diversos campos da cultura e da sociedade, pode operar de forma criadora e liberar novas configurações possíveis de vida.

Não foi por acaso que Foucault, após explorar as formas de investimento dos corpos pelas técnicas de poder e de governo para conceber sua genealogia do indivíduo moderno, inaugurou um novo desdobramento no campo de investigações de sua obra, no que se refere às artes da existência. O que o filósofo entendia por essa expressão?

Em o Uso dos Prazeres (1985) ponto de inflexão de sua trajetória nos diz:

Deve-se entender, com isso, práticas refletidas e voluntárias das quais os homens não somente se fixam regras de condutas, como também procuram se transformar. Modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e responda a certos critérios de estilo. Essas “artes da existência”, essas “técnicas de si”, perderam sem dúvida, uma certa parte de sua importância e de sua autonomia quando, com o cristianismo, foram integradas no exercício de um poder pastoral e, mais tarde, em práticas de tipo educativo, médico ou psicológico. (FOUCAULT, 1985, p. 15)

Em Sobre A Genealogia da Ética (1984), Foucault nos interpela de forma aguda com seu diagnóstico.

O que me impressiona é o fato de que em nossa sociedade, a arte se tenha tornado algo relacionado somente a objetos e não a indivíduos, ou à vida. Esta arte é algo especializado ou fornecido por “experts” que são os artistas. Porém a vida de cada pessoa não poderia se tornar uma obra de arte? Por que a lâmpada ou a casa pode ser uma obra de arte e a nossa vida não? […] A partir da ideia de que o indivíduo não nos é dado, acho que há apenas uma consequência prática: temos que criar a nós mesmos como uma obra de arte. (FOUCAULT, 1984, p. 50)

A presença, particularmente sensível, da relação entre arte e vida em pensadores da envergadura de Foucault e Deleuze dá conta da dimensão da sua importância em diferentes e destacadas perspectivas. Vejamos a seguir como esta questão se coloca no pensamento de Deleuze no que tange à relação entre arte e corpo, tema central de nossa investigação.

Deleuze atribui a arte, por meio da noção de sensação, a tarefa de dar acesso a uma corporeidade aquém e/ou além de sua estruturação organicista enquanto forma e função. Em outros termos, a arte seria capaz de captar a vida fora das operações que a reduzem a uma forma determinada e a uma função específica. É nesta perspectiva que Deleuze lança mão das noções de Atletismo Afetivo e Corpo sem Órgãos cunhadas por Artaud. Em tais concepções corporais a dimensão plástica e afetiva ganha proeminência sobre a dimensão morfológica e funcional.

Atletismo Afetivo

Para circunscrever o estatuto privilegiado que a noção de afeto ganha em seu pensamento, Deleuze tomará de empréstimo uma expressão cunhada por Antonin Artaud, para dar ênfase à importância requerida por tal noção. Qual seja - Atletismo Afetivo. Em seu livro O Teatro e seu Duplo (1999), no capítulo intitulado Um Atletismo Afetivo, Antonin Artaud postula a existência de uma “musculatura afetiva”. No seu entendimento o ator possuiria, tal como um atleta, um corpo afetivo paralelo ao corpo orgânico. Tal corpo seria um duplo do outro, no entanto, operando em um plano distinto, o plano dos afetos. Nas palavras de Artaud: “O ator é como um verdadeiro atleta físico, mas com a ressalva surpreendente de que ao organismo do atleta corresponde um organismo afetivo análogo, e que é paralelo ao outro embora não aja no mesmo plano”.

Destarte, para Deleuze, a esfera afetiva é a esfera de pertencimento propriamente dita do artista. Não que lhe seja exclusiva, uma vez que todos corpos comportam, em alguma medida, tal plano somático. Não obstante, este é o campo no qual o artista exercita sua maior potência. Deleuze, inspirado em Artaud, nomeará como Corpo sem Órgãos este plano afetivo da existência somática que será fundamental para sua teoria da sensação no campo das artes. Em outros termos, o que ele também chamará de “fato intensivo do corpo” para designar a sensação enquanto marcadamente distinta do sensacional, do representacional, bem como do plano extensivo e funcional do corpo. Neste sentido, para Deleuze, a sensação decorreria do encontro de uma onda que percorre o corpo com as forças que agem sobre ele.

Outrossim, a tematização do Corpo sem Órgãos retoma e modula uma questão já colocada por Espinosa e Nietzsche: como fazer do corpo uma potência que não se reduza a uma morfologia e a uma função? Vale dizer, que não se reduza a um organismo, uma vez que toda nossa tradição anátomo-fisiológica assim concebe os corpos. Sendo a Anatomia e a Fisiologia ciências que estudam respectivamente a forma, a disposição e a estrutura de um ser organizado, e que investiga as funções exercidas por cada um dos órgãos que o constituem. Para enfrentar esta questão Deleuze vai convocar uma concepção não organicista da vida. Vai apontar para o que poderíamos chamar de um vitalismo metaorgânico:

Trata-se de toda uma vida não orgânica. Pois o organismo não é a vida, ele a aprisiona. O corpo é inteiramente vivo, e portanto não reduzido ao orgânico. Assim, a sensação, quando atinge o corpo através do organismo, toma um movimento excessivo e espasmódico, rompe os limites da atividade orgânica. Em plena carne ela é diretamente levada pela onda nervosa ou emoção vital. O Corpo sem Órgãos é carne e nervo; uma onda o percorre lhe traçando níveis; a sensação é como o reencontro da onda com Forças que agem sobre o corpo, “atletismo afetivo”, grito-sopro ; quando assim se remete ao corpo, a sensação deixa de ser representativa e se torna real; e a crueldade será ainda menos ligada à representação de qualquer coisa de horrível, ela será somente a ação das forças sobre o corpo, ou a sensação (o contrário do sensacional). (DELEUZE, 2007, p. 52)

Neste aspecto específico, gostaria de destacar a maneira particularmente fecunda como Deleuze se apropria ao mesmo tempo que reinventa Artaud para constituir sua teoria da sensação aplicada e ampliada ao universo das artes como um todo. De acordo com o filósofo, um problema comum atravessaria o campo das artes.

De um outro ponto de vista, a questão da separação das artes, de sua autonomia respectiva, de sua hierarquia eventual, perde toda a importância. Pois há uma comunidade das artes, um problema comum. Em arte, tanto em pintura quanto em música, não se trata de reproduzir ou inventar formas, mas de captar forças. É por isso que nenhuma arte é figurativa. A célebre fórmula de Klee, “não apresentar o visível, mas tornar visível”, não significa outra coisa. A tarefa da pintura é definida como a tentativa de tornar visíveis as forças que não são visíveis. [...] Isso é evidente. A força tem uma relação estreita com a sensação: é preciso que uma força se exerça sobre um corpo, ou seja, sobre um ponto da onda, para que haja sensação. (DELEUZE, 2007, p. 62)

Definindo a arte como captura de forças, Deleuze inscreve a arte na ordem do real. Neste sentido, opera um deslocamento importante do ponto de vista ontológico, estético e político em relação à clivagem real e imaginário. Por conseguinte, a arte deixa de ser tomada por uma mera ficção imaginária, bem como um simples entretenimento cultural.

Enquanto captura de forças e não forma, a arte é uma modalidade de expressão e pensamento por meio da sensação. Ela não se reduz ao domínio do privado, nem a uma interioridade representacional em nível mental. Não se vincula ao sonho, nem à fantasia. Não é imaginária ou simbólica. Ela opera realmente produzindo efeitos que fazem sentir e pensar fora dos parâmetros ordinários, normativos e funcionalistas. Da mesma forma, ela evita formas de neutralização que a remetem para fora do real. É neste sentido que a arte opera como uma singular e potente cartografia dos afetos. Afeto aqui remete ao corpo em um sentido diferencial, pois tal cartografia pode assumir configurações corporais muito especiais, notadamente diferentes das normativas e funcionalistas, tais como as representações organicistas que remetem a uma imagem prévia do corpo.

Arte como sintomatologia

Tal como Nietzsche concebera, Deleuze toma o filósofo e o artista como fisiólogos e/ou médicos da cultura. Em suma, sintomatologistas dos estados afetivos de vitalidade ou degenerescência do corpo e da vida. Neste sentido, a arte assume um caráter clínico e crítico. Clínico na medida em que expressa determinadas posturas vitais, e crítico, enquanto trabalho de diagnóstico de seu tipo vital. Em outras palavras, a arte opera como captura sintomatológica de um determinado estado de forças vital. Tais estados de força, por sua vez, são descritos de acordo com uma tipologia, bem como são objeto de avaliação. Esta avaliação procura determinar o estado de potência de vida correspondente a tais configurações de forças através de um levantamento cartográfico deste composto de forças. Esta avaliação não remete ao plano pessoal de uma história individual, ele descreve a composição concreta dos afetos em presença. Nunca se trata de julgar um corpo ou indivíduo, mas traçar a cartografia imanente de seus afetos. Esta avaliação visa dar conta da potência criadora da arte. O artista se faz sintomatologista na medida em que abandona o plano transcendente do julgamento e assume a delicada tarefa de descrever o plano imanente dos afetos. Tal é o princípio ético, estético e político que Deleuze retoma e renova a partir dos pensamentos de Espinosa, Nietzsche e Artaud.

Uma vez que, para esta perspectiva, todas as coisas e seres remetem a uma relação de forças, a uma composição de ações e reações, bem como à variação de suas velocidades e lentidões, pode-se avaliar o estado de tais configurações de forças, assim como a dinâmica de sua capacidade de afetar e ser afetado. A isto Deleuze denominou hecceidades. Vale dizer, trata-se de considerar as relações de força entre elementos não formados, ou, relativamente não formados. Em estado pré-individuado, ou, em processo de individuação. Trata-se de acessar o plano molecular da vida. Moléculas ou partículas carreadas por fluxos. Portanto, com efeito, tal individuação não se dá sob a forma de um sujeito ou de uma coisa supostamente dados ou constituídos.

Vejamos, a este respeito, uma passagem emblemática do anexo intitulado Sobre a morte do homem e o super-homem, de seu livro sobre Foucault, onde Deleuze nos diz:

Eis o princípio geral de Foucault; toda forma é um composto de relações de forças. Estando dadas forças, perguntar-se-á então primeiramente com que forças de fora elas entram em relação? E, em seguida, qual a forma resultante. Consideradas as forças no homem. Objetar-se-á que tais forças já supõe o Homem; mas não é verdade. As forças no homem supõem apenas lugares, pontos de aplicação, uma região do existente. (DELEUZE, 2007, p. 132)

Deleuze elaborou uma teoria intensiva das formas que vem de Espinosa, passa por Nietzsche e, entre outros autores, chega a Artaud em sua concepção de Corpo sem Órgãos. Neste plano, já não há formas previamente constituídas, mas relações cinemáticas entre elementos não formados. Da mesma forma, não há sujeitos, mas subjetivações pré-individuais. Outrossim, não há organismo, mas a cartografia flutuante de intensidades corporais.

Através da arte e sua teoria da sensação, definindo o Corpo sem Órgãos enquanto fato intensivo do corpo, Deleuze dá conta da irredutibilidade do corpo a sua dimensão extensiva, utilitária, funcionalista, normativa e instrumental. Mais do que isso, estabelece uma trincheira onde se coloca em jogo uma luta entre, de um lado, as forças que buscam capturar e governamentalizar os corpos e, de outro, as forças que escapam o tempo todo a esta captura e dão conta da ingovernabilidade dos mesmos. Daí a persistência espinosana da pergunta ingovernável que não quer e não deve calar - como fazer do corpo uma potência que não se reduza à servidão dos poderes e das normas de governamento?

Referências

ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu Duplo. São Paulo: Martins Fontes, 1999. [ Links ]

DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Trad. de Edmundo Fernandes Dias e Ruth Joffily. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976. [ Links ]

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Recebido: 16 de Junho de 2020; Aceito: 22 de Julho de 2020

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