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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.34 no.70 Uberlândia jan./abr 2020  Epub 06-Fev-2022

https://doi.org/10.14393/revedfil.v34n70a2020-56419 

Dossiê Governo das diferenças e as cartografias do ingovernável na educação

Sociedade de desempenho e governo da vida deficiente

Performance society and the government of deficient life

Sociedad del desempeño y gobernanza deficiente

Divino José da Silva* 
http://orcid.org/0000-0003-0000-1268

*Divino José da Silva. Doutor em Educação pela FFC/UNESP/Marília. Professor de Filosofia do Departamento de Educação e Programa de pós-Graduação em Educação da FCT/UNESP/Presidente Prudente, SP. E-mail: divino.silva@unesp.com.br


Resumo

Na sociedade de desempenho, atribui-se a cada indivíduo a responsabilidade de fazer render seu corpo, seu tempo, sua criatividade e sua imaginação. Nesse jogo, a vida foi submetida ao cálculo administrativo, visando a eliminar a negatividade, os riscos e modos de resistências que impedem a realização do capital e de sua comunicação. É dessa perspectiva que a alteridade do deficiente, a qual resiste ou retarda a nova ordem, é negada, pois sua negatividade constitui obstáculo à lógica do desempenho, da eficiência e da lucratividade. Tendo em vista o referido contexto, busca-se pensar duas questões: Que ressonância a alteridade e a negatividade dos corpos deficientes têm sobre a cultura do desempenho e do empresariamento da vida? Que vida há nos corpos deficientes que afrontam o biopoder? Essas questões serão abordadas ao longo do artigo, tendo como ponto de referência algumas cenas - crônicas jornalísticas - nomeadas livremente de imagens literárias.

Palavras-Chave: Sociedade de Desempenho; Corpo Deficiente; Empreendedorismo; Empresariamento de si

Abstract

In the performance society, each individual is responsible for making it profitable the body, the time, the creativity and the imagination. In this game, life was subjected to administrative calculation in order to eliminate negativity, risks and ways of resistance that prevent the realization of the capital and its communication. It is from this perspective that the alterity of the disabled, who resists or delays the new order, is denied as its negativity constitutes an obstacle to the logic of performance, efficiency and profitability. In view of the aforementioned context, we seek to think about two questions: What resonance do alterity and negativity of disabled bodies have on the culture of life's performance and entrepreneurship? What life is there in the deficient bodies that face the biopower? These issues will be addressed throughout the article with reference to some scenes - journalistic chronicles - which we freely named literary images.

Keywords: Performance Society; Disabled Body; Entrepreneurship; Entrepreneur of oneself

Resumen

En la sociedad del desempeño, cada individuo es responsable de rendir su cuerpo, tiempo, creatividad e imaginación. En este juego, la vida fue sometida a un cálculo administrativo para eliminar la negatividad, los riesgos y las formas de resistencia que obstaculizan la realización del capital y su fuerza comunicativa. Es desde esta perspectiva que se niega la alteridad de los discapacitados, que resisten o retrasan el nuevo orden, ya que su negatividad constituye un obstáculo para la lógica del rendimiento, la eficiencia y la rentabilidad. En vista del contexto antes mencionado, tratamos de pensar en dos preguntas: ¿Qué resonancia tienen la alteridad y la negatividad de los cuerpos discapacitados en la cultura del desempeño de la vida y el espíritu empresarial? ¿Qué vida hay en los cuerpos discapacitados que enfrentan el biopoder? Estos temas se abordarán a lo largo del artículo con referencia a algunas escenas, crónicas periodísticas, que nombramos libremente imágenes literarias.

Palabras clave: Sociedad del Desempeño; Cuerpo Discapacitado; Autogestión

Introdução

Desde meados do século XX, vem-se confirmando uma série de diagnósticos sobre a sociedade contemporânea, que a caracteriza como sociedade de desempenho (FOUCAULT, 2008; DELEUZE, 1992; HAN, 2017a; GIROUX, 2018). Já não estaríamos submetidos, somente, aos dispositivos de uma sociedade disciplinar, nos moldes das análises desenvolvidas por Foucault, em Vigiar e punir, mas teríamos que nos haver agora com uma nova forma de governo da vida, cuja lógica se vale da racionalidade do desempenho, a qual passou a regular as relações sociais e a mediar os modos como os indivíduos se relacionam entre si e consigo mesmos.

Nesse jogo, atribui-se a cada indivíduo a responsabilidade de fazer render seu corpo, seu tempo, sua criatividade e sua imaginação, com o objetivo de melhorar índices de produtividade e consumo, produzindo “[...] a conversão de tudo e a todos ao estado de mercadoria.” (GIROUX, 2018, p. 01). Para que isso se efetive sem entraves, todas as instâncias da vida foram submetidas ao cálculo administrativo, o qual busca, sob a roupagem da transparência, eliminar riscos, resistências e negatividade que constituam obstáculos à realização do capital e de sua comunicação.

De cada indivíduo é exigido que esteja à altura dos novos desígnios do capitalismo neoliberal, sob pena de ser relegado “[...] a uma ‘humanidade supérflua’, entregue ao abandono, sem qualquer utilidade para o funcionamento do capital.” (MBEMBE, 2018, p. 16). Diante dessa realidade ameaçadora, não tem restado aos trabalhadores outra opção que não seja a submissão ao tempo e à lógica do trabalho flexível, os quais cobram dos indivíduos, além do esforço, eficiência e capacidade competitiva, a docilidade de espírito manifesta na positividade, como uma espécie de disposição psicológica de dizer “sim”, permanentemente, aos novos arranjos produtivos. Mesmo que essa rendição constitua uma ameaça à integridade da própria vida.

É dessa perspectiva que “[...] a negatividade da alteridade e do que é alheio ou a resistência do outro atrapalha e retarda a comunicação rasa. A transparência estabiliza e acelera o sistema, eliminando o outro ou o estranho.” (HAN, 2017b, p. 11). A negatividade que impregna a alteridade do Outro e constitui obstáculo à lógica do desempenho, da eficiência e da lucratividade, na sociedade contemporânea, produz formas de resistência que, no limite, podem barrar, retardar e enfraquecer essa lógica. O Outro, o estranho, o negativo, por conseguinte, o resistente ou recalcitrante, parece não caber no arco da racionalidade estruturante do desempenho e do jogo da transparência que governam a vida na sociedade neoliberal.

Está fora desse arco uma infinidade de vidas que afrontam essa ordem. São vidas vividas no limiar entre discernível e indiscernível, entre claro e escuro, entre força e fragilidade, entre eficiência e deficiência, entre saúde e doença, entre vida qualificada e vida desqualificada, entre vida útil para o trabalho e vida descartável. Todos esses fenômenos produzem o que Lapoujade (2016) denominou movimentos aberrantes, os quais, como forças beligerantes, rompem com a racionalidade constitutiva da linguagem neoliberal, opondo-lhe resistência, na medida em que nos remetem a outros modos de vida possíveis que não vão, não querem ir ou não podem ir na velocidade ditada pela temporalidade das tecnologias digitais, em suas múltiplas filiações ao neoliberalismo econômico. São vidas que resistem, consciente ou inconscientemente, à racionalidade eficiente da maquinaria capitalista.

Buscamos pensar, neste artigo, em que medida e de que modo a racionalidade inerente à sociedade de desempenho, em seu rearranjo biopolítico, tem exercido o governo dos corpos e das vidas deficientes. Como pensar o corpo deficiente, numa sociedade que valoriza ao extremo o corpo eficiente e sua produtividade? Que lugar ocupam os corpos lentos, frágeis, doentes e envelhecidos, no contexto dessa dominante racionalidade pragmática? Que ressonância a alteridade e a negatividade desses corpos têm sobre a cultura do desempenho e do empresariamento da vida? Que vida há nesses corpos que afrontam o biopoder? Essas questões serão abordadas ao longo do artigo, tendo como ponto de referência algumas cenas - crônicas jornalísticas - a que nomeamos livremente de imagens literárias.

Sociedade de desempenho e o empresariamento da vida

À sociedade de desempenho articulam-se aspectos que são próprios da sociedade disciplinar e da sociedade de controle, compondo um novo arranjo nas formas de exercício do poder e de controle sobre a vida. Não demarcaremos as diferenças entre essas sociedades e o modo como o poder se exerce, em cada um desses arranjos, em suas interfaces econômica e política, visto que não se trata de uma sobreposição ou negação de um ao outro, mas da articulação de novos dispositivos que configuram e intensificam os domínios sobre a vida.

Nesse novo rearranjo biopolítico, a racionalidade econômica se espraiou para todas as esferas da vida e as mobilizou, em função da produtividade e do lucro. Não se trata mais de explorar somente o tempo de trabalho, nos moldes da mais-valia, no capitalismo industrial, porém, de administrar afetos, de docilizá-los e de modulá-los à lógica do empresariamento de si. Nesse caso, o espírito da empresa transformou-se numa espécie de energia, a qual tende a tornar-se presente em todos os espaços da vida social (DELEUZE, 1992; HAN; 2017a). O discurso empresarial adquire as cores dos discursos de autoajuda, em que se valorizam o esforço individual, o trabalho em equipe, as técnicas de motivação, a competição e o salário por mérito. O espírito de competição foi transmutado na ideia da famigerada colaboração, dissimulando o caráter precário do trabalho e as formas de controle exercidas sobre o trabalhador. Os efeitos desses discursos são amplos, pois aliam o modelo forte da concorrência empresarial ao modelo de realização pessoal. Perde-se, assim, a distinção entre as normas que regulam a vida privada e aquelas que normatizam a vida profissional (EHRENBERG, 2010).

Tem-se, então, o apagamento da fronteira entre tempo de trabalho, tempo de descanso e tempo de lazer, pois o que passa a vigorar sobre esses diferentes tempos é a lógica do desempenho e do consumo, as quais mantêm os sujeitos conectados e excitados, o tempo todo, por demandas que parecem não ter fim. Já não se distinguem mais o que é tempo de trabalho e o que é tempo de vida. Na realidade, a vida foi subsumida pelo trabalho e pelo consumo (PELBART, 2000; CRARY, 2016). É por essa via que o capitalismo neoliberal tem investido na abolição da negatividade, evitando fazer uso das formas coercitivas de poder. “O poder ilimitado é o verbo modal positivo da sociedade de desempenho. O plural coletivo da afirmação Yes, we can expressa precisamente o caráter de positividade da sociedade de desempenho.” (HAN, 2017a, p. 24).

Tendo em vista aumentar a eficiência e a produtividade, a tendência tem sido substituir a rigidez de leis e regras, do modelo disciplinar do trabalho fabril, por noções e relações que demandam dos trabalhadores iniciativa, criatividade, capacidade de comunicação, gerenciamento das emoções e espírito colaborativo, ao mesmo tempo em que os salários passam a ser modulados pela produtividade de cada trabalhador. Essa estratégia é mediada por uma série de dispositivos discursivos, os quais buscam manter os indivíduos motivados e, mais do que isso, convencidos de que eles estão livres de qualquer coerção externa. Esses dispositivos são próprios das práticas de empresariamento de si, em que cada sujeito é instado a transformar-se num pequeno empresário de si mesmo, responsável por gerenciar e administrar as escolhas e os riscos delas decorrentes.

Esse ideário parece já fazer parte do senso comum e passou a definir não somente aspectos da vida política e econômica, na atualidade, todavia, a estruturar uma visão social de mundo. Os efeitos são profundos, pois se constituem como uma ideologia dominante, que agencia valores, modos de pensar e desejar, encontrando sustentação em “[...] aparelhos e plataformas culturais mais amplas” (GIROUX, 2018, p. 01). Conforme Giroux (2018), o senso comum produzido pela economia e política neoliberais funciona como uma “[...] modalidade de pedagogia ‘pública’” (p. 01), que submete a vida cotidiana, as relações de trabalho e as instituições públicas aos padrões da racionalidade empresarial.

Na sociedade de desempenho, como analisa Han (2015), ou na sociedade de controle, para Deleuze (1992), os poderes tendem a ser exercidos anonimamente e sem referência a uma centralidade. O poder encontra-se difuso, tornou-se flexível e sem centro e produz novos modos de sentir, querer, desejar e criar. No registro desses diagnósticos, o poder não se exerce de forma externa aos indivíduos e nem se exerce de forma repressiva, mas se trata de um poder imanente, cujo objetivo não é, necessariamente, impedir que a vida se manifeste e se expanda.

No entanto, cabe aqui uma ressalva, pois, situados que estamos numa temporalidade regida pela força do capital, a qual tende a se apropriar da nossa vitalidade e força criativa, intensificam-se os investimentos para que se eleve a vida à sua máxima potência produtiva. Essa maneira de atuação do poder dificulta opor-lhe resistência, porque ele atua no âmbito da cultura e da produção dos afetos e dos desejos, portanto, na construção de novos processos de subjetivação (PELBART, 2007; ROLNIK, 2018).

É desse modo que, na atualidade, a vida é submetida aos desígnios do capital. Já não sabe de onde vem o poder, e suas formas de atuação não se mostram tão evidentes. E o mais perverso, nessa modalidade de exercício do poder, não reside somente no fato de o mesmo não se anunciar como tal, contudo, está no modo como somos por ele capturados e postos a trabalhar, já que “[...] nós próprios nos encarregamos de administrar nosso controle, e o próprio desejo já se vê inteiramente capturado. Nunca o poder chegou tão longe e tão fundo no cerne da subjetividade e da própria vida, como nessa modalidade contemporânea do biopoder.” (PELBART, 2007, p. 58).

Numa sociedade em que o culto ao desempenho e ao rendimento se sustenta na motivação e na incitação à criatividade e à imaginação, o indivíduo se transforma, ao mesmo tempo, em explorador e explorado (HAN, 2017a). A repressão e os dispositivos disciplinares deixam de ser os únicos recursos utilizados no controle dos corpos. Nesse contexto, a repressão passa a ser interiorizada, e cada um se encarrega de exercê-la sobre si mesmo, via incorporação de práticas e regras, sem que isso produza a sensação de perda de liberdade, de tal modo que os próprios indivíduos “[...] venham a conformar-se por si mesmos a certas normas.” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 19).

Essa parece ser uma das questões mais importantes do pensamento de Foucault, formulada no livro Nascimento da Biopolítica, curso ministrado no Collège de France, em 1979. Segundo Foucault (2008), o neoliberalismo produziu uma mudança, a qual não se deu no plano econômico ou político, mas no nível ético, ao estender o modelo da empresa para outras esferas da vida que até então não tinham uma relação direta com a economia. A vida seria, a partir de então, orientada e ordenada seguindo o modelo da empresa, no qual as capacidades de cada um deveriam se rentabilizar ao máximo. Para isso, seria necessário que cada um se empenhasse em suas relações, em seus afetos, em sua história, em sua educação e em sua vida psíquica, tendo como referência o modelo da rentabilização de determinados investimentos, tornando-se, portanto, um empresário de si mesmo. É nesse ponto que o neoliberalismo oculta a sua força coercitiva, visto que instaura a ideia de que o sujeito do rendimento é livre, quando compreendido sob a ótica do empresariamento de si.

Esse modelo de eficiência encontra-se personificado no modo como se associam, sobretudo a partir das duas últimas décadas do século XX, o mundo da empresa e o mundo dos esportes. De acordo com Alain Ehrenberg (2010), tem-se adotado o esporte para dar visibilidade às performances da empresa. Valoriza-se sobretudo o esporte-aventura, como expressão da mitologia da autorrealização, em que cada indivíduo pode atingir a verdadeira individualidade, singularizando-se e tornando-se si mesmo. Os esportes radicais são os que mais se prestam a esse uso, pois aqueles que os praticam vendem a imagem da autossuperação do medo de enfrentar riscos, que é inerente à competição do indivíduo no mercado. É dessa perspectiva que “[...] o empreendedor foi erigido como modelo da vida heroica porque ele resume um estilo de vida que põe no comando a tomada de riscos numa sociedade que faz da concorrência interindividual uma justa competição.” (EHRENBERG, 2010, p. 13).

A prática de esportes radicais, nos moldes como dela se apropriou a empresa, passou a se constituir como modelo para o estilo de vida heroico, o qual passa a definir um estado de espírito. Denota também uma maneira de assumir a responsabilidade por si mesmo, num mundo em que as garantias de emprego e de seguridade social se esvaíram. O esporte passou a definir não só um estilo de vida, mas ditar aos indivíduos um modo de condução de suas condutas nas relações de trabalho e competição no mercado. “O esporte é uma técnica de fabricação da autonomia, uma aprendizagem do governo de si mesmo que se desenrola tanto na vida privada quanto na vida pública.” (EHRENBERG, 2010, p. 20). O esporte é um convite a que os indivíduos se reinventem, contando com suas próprias forças. Por conseguinte, o modelo empresarial e as práticas esportivas se fundem na produção dos valores para a ação integrada no mundo. Produz-se, assim, a heroificação do indivíduo diante das incertezas, as quais só podem ser superadas adotando-se o código do empresariamento de si.

Essa força coercitiva se oculta na performatividade sobre a qual se sustenta a constituição do si mesmo (self) dos sujeitos, e tem como modelo as performances esportivas que ditam os parâmetros da nossa “atlética autossuficiência”. É inerente a esse modelo a ideia do inacabado e a obsessão pela autossuperação de limites, cujo fim é conduzir os humanos a quebrarem recordes, a produzirem mais em menos tempo e a vencerem obstáculos. Em todos esses apelos, estão expressas ideias de perfectibilidades, por trás das quais se escondem a fragilidade, a fraqueza, o sofrimento e os limites do próprio corpo. E tudo isso ocorre num momento quando a nossa subjetividade foi reduzida aos aspectos do corpo. Em que somos definidos do ponto de vista ético/moral pela aparência, pela imagem e pela performance do corpo bem-sucedido. O corpo tem que se adequar tanto às normas do espetáculo e do consumo quanto ao modelo da grande saúde e da eficiência (COSTA, 2004).

Sob a égide da rentabilização do corpo via empresariamento de si, a noção de Bem já não é mais definida na perspectiva das virtudes morais, contudo, se define pela proximidade dos padrões de qualidade de vida identificados com aspectos do corpo: saúde, boa forma, longevidade, juventude e eficiência. O sentido da existência, a busca da felicidade e a escolha de estilos de vida têm como referência, conforme escreve Jurandir Freire Costa (2004, p. 191), “[...] o que se adapta ao programa de vida bem-sucedida, do ponto de vista biológico.” O desempenho corporal adquire, nessa lógica, o patamar de desempenho moral.

Os efeitos físicos e emocionais provocados por esse programa de vida bem-sucedida, a qual tem como referência o corpo eficiente ou o bom funcionamento do corpo biológico, estabelecido conforme parâmetros científicos, são sem dúvida intensos e violentos, ainda que o seu caráter coercitivo esteja camuflado pelos discursos sobre a livre iniciativa dos indivíduos, fazendo coincidir, paradoxalmente, liberdade e coerção. Além desse aspecto coercitivo, o qual produz efeitos amplos sobre o nosso comportamento e modo de viver, atentamos para o quanto essa maneira de pensar orientada por tais parâmetros dita ou impõe formas rigorosas de julgamento e avalição dos corpos circundantes, o que tem causado em nós o que Costa (2004) caracteriza como uma espécie de desconfiança persecutória, pois, agora, mais do que em outras épocas, a nossa identidade está exposta na superfície do corpo, porque temos aprendido a nos definir e a definir os outros pelo que se manifesta na transparência do corpo. Na realidade, não nos sentimos apenas como corpos que são examinados e dissecados pelo olhar do outro, todavia, tornamo-nos também observadores invasivos das marcas bioidentitárias as quais são consideradas como desviantes dos padrões de normalidade, de eficiência e de desempenho.

No duplo registro dessa atitude, em que somos perseguidos e perseguidores, há algo de paradoxal, pois todas as vidas são vidas deficientes, vidas deficitárias, vidas incompletas, visto que não somos dotados de um corpo infalível e perfectível, embora o que se busca seja exatamente ocultar esses limites intransponíveis. Essa constatação não deveria provocar em nós tanto escândalo, sofrimento e dor. No entanto, essa desconfiança persecutória, além de provocar tais efeitos, funciona como uma espécie de crivo que aplicamos, a todo momento, sobretudo àqueles corpos que distam dos modelos de eficiência e de desempenho definidos como rentáveis pelo mercado.

A economia do sobrevivencialismo e o ingovernável dos corpos deficientes

Em nossos dias, o empresariamento da vida naturalizou-se via implementação de sofisticadas formas de concorrência e através do espraiamento do modelo da empresa para diferentes espaços da vida social. Esse duplo movimento criou uma nova espécie de governamentalidade neoliberal, orientada por um conjunto de normas globais, as quais se valem da ideia de liberdade concedida aos indivíduos, sem que os mesmos se deem conta do quanto suas condutas e escolhas são resultantes das estratégias econômicas mundiais, as quais adquirem especificidades em solo nacional. Entretanto, prevalece, nessa lógica normativa que orienta a conduta dos indivíduos, modos de poder que são transversais a uma sociedade e à sua época. É nesse sentido que a governamentalidade neoliberal encontra no empreendedorismo uma espécie de princípio essencial à universalização dos interesses capitalistas, na atualidade (DARDOT; LAVAL, 2016).

A governamentalidade neoliberal passou a se alimentar e, por conseguinte, a estimular uma espécie de economia da sobrevivência que é constitutiva do ethos do empreendedorismo atual. A racionalidade dessa lógica sobrevivencialista se vale de um duplo recurso. Primeiro, busca despotencializar as contradições inerentes à ordem econômica e social, através da eliminação ideológica e depois legal, não necessariamente nessa ordem, de diferentes movimentos sociais e culturais que manifestem resistência à ordem econômica e política. O segundo movimento concomitante é a persistente naturalização da concorrência e competividade sustentadas no empresariamento neoliberal como fenômeno inexorável, estendendo-o a todos os âmbitos da vida, cumprindo a clara função de eliminar as contradições constitutivas da ordem econômica e social. Assegurar a sobrevivência significa, nesse caso, render-se ao fluxo das demandas externas como uma forma de quitarmos uma dívida impagável, a qual se renova todos os dias. É também dessa perspectiva que tudo que represente resistência, oposição, negatividade, finitude e morte é tratado como afrontoso e imediatamente se apresenta às almas aflitas a positividade do “Yes, we can”, que, paradoxalmente, parece despojar a vida de sua intensidade.

Desse modo, fomos transformados, assinala Pelbart (2007), numa espécie de sobreviventes, em sujeitos que, por um excesso de cálculo sobre a vida, tendo em vista potenciá-la e torná-la transparente e rentável, a perdemos, circunscrevendo-a aos limites do “sobrevivencialismo.” Vivemos, escreve Pelbart (2007, p. 60),

[...] no registro de uma vida biologizada, reduzidos ao mero corpo, do corpo excitável ao corpo manipulável, do corpo espetáculo ao corpo auto-modulável: é o domínio da vida nua. Continuamos na esfera da sobrevida, da produção maciça de sobreviventes, no sentido amplo do termo, mesmo que os sobreviventes sejam de classe média ou alta, ou mesmo no extremo luxo do consumo.

Por mais asfixiante que seja esse controle sobre a vida, em que ficamos com a sensação de que não há saídas, é contra esse biopoder que a vida se manifesta. “Ao poder sobre a vida responde a potência de vida. Mas esse responder não significa uma reação, já que o que se vai constatando cada vez mais é que essa potência de vida já estava lá por toda parte, desde o início.” (PELBART, 2007, p. 58). Dessa constatação feita por Pelbart (2007) emerge uma questão cujo desdobramento nos ajuda a trazer para o centro da discussão a negatividade, como forma de resistir ao excesso de positividade e exigência de transparência a que estamos submetidos. Afinal, “[...] como dar passagem a estas forças num corpo que não seja justamente blindado, atlético, perfeito?” (PELBART, 2007, p.63). Que corpos são esses, em que a vida não pode ser controlada, submetida e regrada pelo cálculo da rentabilidade e da eficiência? Que corpos são esses, em que da impotência se extrai uma potência?

Ao refletir sobre essas questões, Pelbart (2007) menciona, rapidamente, sua experiência na coordenação da “Companhia Teatral Ueinzz”, na qual atuam atores que são “usuários de saúde mental”. Ele escreve assim sobre sua experiência com esse grupo: “E entre alguns destes atores nós reencontramos essas posturas como que extraviadas, inumanas, disformes; rodeados de sua sombra branca, ou imersos numa espécie de zona de opacidade ofensiva.” (p. 63). São nesses corpos deficientes, disformes, extraviados, inumanos, sobre os quais pairam a opacidade e uma certa impotência, que é possível encontrar, ressalta Pelbart, uma potência de vida que acena para uma virada.

Essas são vidas que não cabem nos registros, ou pelo menos não em quaisquer tipos de registros, pois elas são intransparentes, realidade que escandaliza os epígonos da cultura da transparência que inadvertidamente querem submetê-las, registrá-las, esquadrinhá-las e reduzi-las às certezas normalizadoras, eliminando sua opacidade. É interessante perceber o quanto a exigência de transparência tem a sua contraface na desconfiança. Conforme Han (2017b, p. 14), “[...] onde impera a exigência de transparência não há lugar para a confiança. Em vez de dizer que a transparência funda a confiança, deveria dizer que a transparência suprime a confiança.” Numa sociedade orientada pela lógica da transparência, do desempenho e da eficiência, a opacidade dos corpos deficientes soa como um redundante “não”. Na verdade, essa opacidade é um não-para... Um não-para a positividade que diz a todo instante “sim, nós podemos”; um não-para a velocidade que nos pressiona e comprime o nosso tempo, um não-para a nossa hiperatividade, um não-para o excesso de estímulos, de informação e impulsos, os quais modificam a economia da nossa atenção, um não-para a utopia da grande saúde perfeita, um não-para a ideologia do corpo perfeito (HAN, 2017b).

De que modo os corpos deficientes ou as vidas deficientes acenam para uma virada, para uma potência de vida que nega a positividade da nossa “autossuficiência atlética?” Pelbart (2000, 2007, 2011) aborda essa questão, recorrendo ao que Deleuze denomina uma vida, no artigo “Imanência, uma vida”. Uma vida é o que escapa à nomeação, é o puro acontecimento, é pura potência. É o querer viver obstinado apesar de toda a impotência. Passaremos ao longe da leitura deleuziana, no entanto, gostaríamos de pensar na fragilidade desses corpos que estão próximos do inumano ou que tangenciam a morte ou ainda, como veremos, corpos que negam o “sobrevivencialismo” inerente à nossa cultura e que, diante do sofrimento iminente e prolongado, escolhem a morte antecipada ou escolhem simplesmente viver. Nesses tipos de renúncias ou de enfrentamentos está presente, sublinha Pelbart (2011, p. 44),

[...] o signo de uma resistência [...]. Nesses seres somos confrontados a uma surdez que é uma audição, uma cegueira que é uma evidência, um torpor que é uma sensibilidade exacerbada, uma apatia que é puro pathos, uma fragilidade que é indício de uma vitalidade superior.

A questão, talvez, esteja mesmo em como ser afetado por esses corpos que estão imersos numa “zona de opacidade ofensiva.” Como acolher esses corpos? Uma tentativa de elucidação dessa questão, sem a pretensão de respondê-la, está em retomar o corpo em sua dor e em seu sofrimento, na relação com a exterioridadade que o afeta e o confronta em sua alteridade. Essa alteridade é, como assevera Han (2014, p. 19), “[...] a atopia do outro, que se subtrai a todo poder”, pois “[...] o seu verbo modal negativo é o não poder poder.” Esse atopos é o que escapa a qualquer nomeação. É o que não é possível possuir, captar, conhecer. Com ele só podemos estabelecer uma relação a distância. É um aproximar-se a distância que traz consigo um longe, o qual se revela assimétrico e desprovido de lugar, ao mesmo tempo em que porta uma negatividade, uma tensão vivaz: uma vida que se subtrai ao cálculo.

Parece residir nessa atopia, nesse fora do lugar, nesse não poder poder, que está tão presente na deficiência, a possibilidade de se rechaçar o determinismo acachapante da lógica do desempenho, constitutivo do nosso ethos. Obviamente que não se trata, nesse caso, de anunciar alguma saída espetacular, mas de produzir territórios “existenciais alternativos” àqueles agenciados pelas urgências do mercado. De quais recursos podemos lançar mão, na tentativa de produzir novas subjetividades que escapem à serialização a que estamos submetidos via jogo da produção econômica material e imaterial? Para isso, teríamos que, parafraseando Benjamin, escovar esse nosso presente a contrapelo, mantendo com ele uma relação de estranhamento e perplexidade, a qual fizesse vir à tona o que fora relegado ao esquecimento pelo presente triunfante. É urgente encontrar maneiras de pensar e experimentar que interrompam a nossa temporalidade presente e que tomem nas mãos “o contemporâneo nu” (BENJAMIN, 1994), de sorte a pôr em risco nossos modos de existências.

Pensamentos e experimentos que ponham em risco os nossos modos de existências e que, no caso em questão, interrompam ou estabeleçam uma tensão com a positividade de um mundo que nos encerra na racionalidade do tempo presente, obstruindo a negatividade do não-para... do não posso... do não aguento... expressa nos limites do corpo. Para isso, assinala Pelbart (2011), é necessário mantermos, à maneira do escritor, a nossa fragilidade e imperfeição como condição para a permeabilidade que possibilita a vida embrionária emergir, “[...] em meio a uma atlética autossuficiência.” (p. 44). Esta é a condição do escritor que, de tanto ter visto e ouvido, se sente exausto e atravessado por essas histórias que são maiores do que ele, com as quais ele só pode manter uma relação de imperfeição e inacabamento. Esses gestos abrem a esfera da ética, sobretudo quando eles se dão a partir de corpos frágeis, desfigurados, desfeitos, nos quais se conjugam a imagem da fragilidade moribunda e a da vida embrionária que se manifestam sob essa roupagem. É o que acontece com os personagens de Kafka e Melville (PELBART, 2011).

Giorgio Agamben (2015) nos lembra que a literatura é o campo do experimento onde os nossos modos de vida são postos em risco. Ou, como escreve Skliar (2017), a literatura nos possibilita a aproximação do ínfimo que não cabe nos relatos oficiais e muito menos se deixa apreender pelas categorias da racionalidade eficiente. Como campo do experimento, a literatura demanda um processo de desaprender a ver como consciência da nossa incapacidade de nomear sem produzir a ocultação de rostos. Contra esse risco iminente de produzir ausências e esquecimentos, é necessário o refinamento da sensibilidade e do tato, como condição para aproximação daquilo que não se deixa dizer ou que, de algum modo, foi soterrado pelo excesso de falas. É nesse registro que se situa o desafio de escrever e dizer as vidas que se desdobram em múltiplas direções, que não obedecem a nenhuma determinação prévia.

É dessa perspectiva que apresentamos a seguir, de maneira resumida, três imagens que nomeamos, com bastante liberdade, de literárias. São, na verdade, crônicas jornalísticas que estão distantes dos gêneros literários mais respeitados. A primeira crônica, “Eva contra as almas deformadas”, de Eliane Brum, foi publicada no livro A vida que ninguém vê. Assim começa a narrativa sobre Eva Rodrigues: mulher, negra, pobre vítima de uma paralisia cerebral em decorrência de uma complicação no parto. No entanto, Eva insurgiu-se contra os risos que a humilhavam e as imitações que dela faziam e contrariou o destino que dizia que ela deveria ficar amontoada num canto. Conseguiu com muita luta entrar na escola.

Suas mãos não obedeciam, eram dois membros convulsos que Eva não dominava. Eva usou toda a força de que dispunha para que a mão esquerda segurasse a direita. Uma mão retorcida sobre a outra, dores horrendas pelo esforço, Eva escreveu pela primeira vez. O atrito da mão dobrada sobre o papel deixou os dedos em carne viva. (BRUM, 2006, p. 99).

Mesmo com as melhores notas, foi obrigada a repetir de ano, pois a professora não se conformava que ela tivesse aprendido a escrever. Entrou na universidade para cursar Pedagogia, mas também lá os obstáculos se multiplicaram: “[...] como vai escrever no quadro-negro tremendo desse jeito? [...] Não vê que só vai incomodar? Não entende que entre você e um menina normal vão escolher a normal?” (BRUM, 2006, p. 100). Estas foram as palavras que ela ouviu de uma educadora. Como educadora, Eva passou por três escolas, em cada uma delas sofreu preconceito. Quando descobria que ela era capaz e que, portanto, deveriam competir com sua mente e não com seus tremores, o que era comiseração se transformava em ódio.

Assim, foi expulsa da escola. Prestou concurso para servente no Tribunal de Alçada, foi aprovada em nono lugar, porém, o neurologista a reprovou, “[...] porque ela tremia as mãos, porque derramaria os cafezinhos.” (BRUM, 2006, p.101). Conclui Brum (2006): “A vida é pródiga em paradoxos. O de Eva é que a odeiam porque não podem sentir pena dela. E do mundo é que as piores deformações são as invisíveis.” (BRUM, 2006, p. 102).

A segunda crônica, escrita por Robin Marantz Henig e publicada na Revista Piauí, trata do suicídio de Sandy Bem, professora da Universidade Cornell, a qual, aos 65 anos, descobre estar com Alzheimer, em maio de 2009.

Nos últimos dois anos ela vinha experimentando o que ela chamava de “esquesitices cognitivas”: esquecia-se do nome das coisas ou confundia palavras. Certa vez, reclamou de uma blizzard (tempestade de neve) no seu pé, quando queria dizer que tinha uma buble (bolha); em outra ocasião, chegou em casa com um pacote de ameixas, apanhou uma delas e, parada no meio da cozinha, perguntou a uma amiga: “Isto aqui é uma ameixa? Não consigo saber ao certo. (HENIG, 2015, p. 46).

Dias depois, Sandy é diagnosticada com comprometimento cognitivo leve, o qual, ao longo dos anos, evoluiria para um quadro completo de Alzheimer.

Sandy se depara com o inevitável declínio que se desenhava no horizonte. Aterrorizava-a a perspectiva de se tornar uma pessoa oca, sem memória, sem controle sobre sua própria mente e sem identidade, tanto quanto a irritava a impotência, o fato de não lhe restar outra coisa a não ser suportar aquilo. No Alzheimer, ela escreveria, é “extremamente difícil que a morte do corpo acompanhe o passo em que se desfaz a consciência”. Naquele dia, no consultório, Sandy jurou a si mesma que encontraria um modo de pôr fim à vida antes que a doença a roubasse dela. (HENIG, 2015, p. 46).

Depois de longas conversas com médicos e de ouvir histórias de pessoas que tiveram algum parente acometido por essa doença, Sandy estava convicta de que aquilo não era para ela. No transcorrer das semanas seguintes, revelou aos mais próximos o diagnóstico e seu plano de se suicidar, antes que perdesse a capacidade de tomar decisões. Ninguém desse círculo mais próximo tentou demovê-la da ideia do suicídio. Agora, era encontrar o momento certo.

Antes de morrer queria desfrutar de todas as alegrias intelectuais e emocionais possíveis, mas queria também ter certeza de que não esperaria demais para agir. Precisava estar suficientemente envolvida com a própria vida para poder pôr fim a ela. (HENIG, 2015, p. 48).

Sandy descobre, então, pentobarbitol (Nembul), um barbitúrico utilizado por veterinários para sacrificar animais e que é usado em suicídios autorizados pelo Estado e assistido por médicos. Prepara documentos que desresponsabilizam a família pela sua morte. Acompanhada e assistida pela família e diante do quadro avançado da doença, detendo ainda um domínio razoável de sua consciência, Sandy define a data de sua morte. Óbvio que a negociação dessa data e da morte foi dolorosa para familiares e amigos. Às cinco horas da tarde do dia 20 de maio de 2014, depois de assinar um documento se responsabilizando pelo seu ato, Sandy, auxiliada pelo ex-marido, ingere o pentobarbitol, pondo fim à própria vida.

A terceira crônica é um relato de Roger Angell, físico e astrônomo. Também publicado na Revista Piauí:

[...] veja isto aqui. Se observar as juntas superiores dos dedos da minha mão esquerda vai pensar que fui torturado pela KGB. Quase não enxergo do olho esquerdo. Estou com 93 anos e me sinto bem. Para ser sincero, me sinto muito bem, a menos que nas últimas quatro ou cinco horas eu tenha esquecido de tomar os comprimidos de Tylenol. [...] Tal como muitos homens e mulheres de idade avançada eu me viro com uns tantos stents arteriais que permitem que o coração continue batendo. [...] Tomo um betabloqueador cor-de-rosa e uma estatina branca já no café da manhã, junto com várias outras pílulas menos importantes, e saio rumo à academia para ruínas humanas. [...] O declínio e o desastre pairam sobre mim, mas prefiro não pensar nisso. [...] “Nossa, como você está muito bem! Qual é o segredo?”, exclamam bondosamente quando me encontram por acaso na rua ou deixando uma sala de raio X, enquanto no pequeno balão sobre suas cabeças dá para ler com toda a clareza: “Caramba - ele ainda consegue ficar de pé!” [...] No convívio com os mais jovens e familiares somos estimados, respeitados e até amados, mas não mais interessantes a ponto de valer a pena prestar atenção em nós. Você já teve a sua vez, tio; agora é a nossa. (ANGELL, 2014, p. 52-55).

O intuito ao trazer para cena essas crônicas não foi interpretá-las ou buscar desvelar o que nelas esteja velado. O interesse é de colocar em movimento corpos inertes ou desfeitos, os quais, em razão de algum limite, foram ou são renegados por não se enquadrarem em regras e padrões de normalidade, porque se movimentam de jeito estranho, porque não aprendem ou não se encaixam no ritmo e lógica do tempo presente, porque não se situam nos limites dos preceitos da tão frágil razoabilidade racional. Enfim, são aqueles que não se enquadram, porque a vida, o acaso, os acidentes, o imprevisível, o tempo, os fizeram assim. Diria, pois, que esses corpos interpelam a nossa saúde atlética: afinal, o que é isso? É isso nós mesmos?

Essas perguntas rompem com os princípios racionais e abstratos e não encontram neles acolhida, no entanto, elas podem produzir em nós um impulso pré-racional como condição para abertura ao Outro, instaurando-se, dessa maneira, a consciência dos limites no âmbito do próprio pensamento (GAGNEBIN, 2006). Esses relatos são modos de ver as situações da vida cotidiana que produzem um corte, uma interrupção, no olhar e no pensamento. Nesse caso, o ato de “[...] narrar é uma forma de sobreviver e afastar a morte” (SANT`ANNA, 2006, p. 10), mesmo quando se trata da morte iminente.

As narrativas não nos permitem afastamento das fragilidades e fraquezas que são constitutivas do nosso corpo. E muito menos, ainda, interditam a ideia da morte iminente. São aspectos que escapam ao cálculo, pois são da ordem do imprevisível e dos acidentes, embora sejam persistentemente negados pelas abundantes imagens da grande saúde perfeita. As personagens, ou as imagens dos corpos acima descritos, não se definem pelos critérios da positividade contemporânea e nem pelos padrões do autoempreendedorismo. Elas não cabem nesses critérios. Contudo, na contramão e contrariando a tais critérios, esses corpos são vidas que ganham vida e presença política, no corpo da escrita, que se espraiam para o âmbito das relações sociais. Essas crônicas-relatos trazem a lume a força que reside na fraqueza, a qual se encontra soterrada pelo culto à eficiência da força. Esse culto à força se vincula ao cultivo do sobrevivencialismo a todo custo e encontra expressão no excesso de signos que reforçam e valorizam a ideia do corpo-competência tão demandado pelo neoliberalismo, que atua como força estruturante da dimensão do homem empreendedor universal, constituindo, para Dardot e Laval (2016, p. 135), “[...] o princípio de conduta potencialmente universal mais essencial à ordem capitalista.”

Foucault (2008) se referiu a esse homem empreendedor universal, nos termos da formação de uma espécie de competência-máquina produtora de renda, subsidiada pelos investimentos em capital humano. Subjetivados por essa lógica, os indivíduos se lançam a fazer cálculos e a conduzir as suas vidas, tendo em vista a inserção concorrencial no mercado. No entanto, eles exercitam o cálculo sobre o que lhes escapa, sobre o que é incontrolável e indefinido. Essa constitui, na compreensão de Foucault, a mecânica que confere movimento ao mercado e à produção do sujeito empresarial, como sujeito de interesse individual. Essa lógica invisível orienta a racionalidade das escolhas individuais, no interior de uma totalidade. É nesse registro que se instaura o sobrevivencialismo, no qual predomina a preocupação com a mera vida que tende a transformar os indivíduos em escravos do trabalho e do consumo:

O trabalho e a mera vida estão estritamente relacionados. São reações à negatividade da morte. A defesa da mera vida exacerba-se hoje na absolutização e fetichização da saúde. O escravo moderno prefere esta última à soberania e à liberdade. Parece-se com o “último homem” de Nietzsche, para o qual a saúde constitui, enquanto tal, um valor absoluto. A saúde é elevada à condição de “grande deusa”: “Venera-se a saúde. Nós inventamos a felicidade” - dizem os últimos homens e piscam os olhos. (HAN, 2014, p. 27-28).

As narrativas acima põem em xeque o nosso sobrevivencialismo, o qual insiste em nos dizer que a vida vale a pena ser vivida, mesmo quando não há mais vida. Há mais vida na morte do que numa vida ausente, oca, vazia, governada pela circularidade, pela repetição do sempre igual. Mesmo no gesto que escolhe a morte, há uma vida que palpita em sua “opacidade ofensiva”. Talvez haja mais vida nesse gesto do que no nosso comportamento sobrevivencialista, o qual, cotidianamente nos mortifica, transformando-nos numa espécie de mortos-vivos que, guiados pelo cálculo rentista, imaginam poder livrar-se do inferno criado pela própria racionalidade calculista. Sobre essa figura do sobrevivente, assinala Han (2014, p. 33, grifos do autor): “O sobrevivente equivale ao não morto, que é demasiado morto para viver e demasiado vivo para morrer.”

Nas imagens dos corpos das narrativas, fala uma forma-de-vida sobre a qual não se pode ter controle. Essas imagens são como rostos que nos lançam aquela pergunta que surge do espanto diante do que não se deixa nomear: “Quem és tu?”, de que trata Judith Butler (2015). Deixar-nos interpelar pela narrativa desse tu pode resultar no começo do reconhecimento do Outro como uma presença política. É por essa via que o sujeito ético é lançado numa espécie de vertigem que ameaça a sua centralidade narcísica. Exercitar a radicalidade a que somos lançados, pela pergunta “Quem és tu?”, constitui uma das maneiras pelas quais ainda parece possível nos aproximarmos da vida e da opacidade que a cerca. Todavia, é importante ressaltar tratar-se de uma opacidade que não se deixa transpor em sua negatividade. Por essa razão, ela nega a inércia do nosso ativo sobrevivencialismo que, paradoxalmente, produz uma vida excitada, ao custo do sequestro da nossa vitalidade e da nossa libido.

Considerações Finais

Ao final desta reflexão, uma questão vem à tona: qual a importância de se estabelecer o contraponto entre o sobrevivencialismo engendrado pela lógica da racionalidade neoliberal contemporânea e as imagem dos corpos deficientes, presentes nas narrativas comentadas no decorrer do artigo?

A primeira resposta à pergunta decorre do esforço em reaproximar a filosofia da educação dos aspectos que compõem a imediaticidade da vida cotidiana, nos quais se revelam as relações contraditórias entre o singular e o universal. É nessa relação que se explicitam os elementos de injustiça e de violência, os quais são exercidos contra aqueles e aquelas que não cabem no arco da dominante racionalidade eficiente, razão pela qual sãos tratados como inadequados, inadaptados e, por conseguinte, como resistentes ao governamento da vida. No caso de Eva, é um corpo que treme e se movimenta de forma desordenada, mas, mesmo assim, se recusa a aceitar o lugar de coitada e de incapaz que a escola e a sociedade quiseram lhe reservar. Sandy decide antecipar sua morte, contrariando o espírito do sobrevivencialismo a qualquer custo. Roger Angell é a imagem do corpo deformado pela idade a afrontar a nossa “atlética saúde”. Todas essas imagens produzem uma fratura no pensamento, que nos instiga ao exercício da alteridade.

Obviamente, esses relatos trazem sempre o risco de falarmos de modo imediato sobre o que é imediato. No entanto, essas narrativas lançam o singular contra a universalidade abstrata que o subjuga. Ao mesmo tempo, elas produzem um certo desconforto que quebra a harmonia da nossa morada moral. Estão presentes, nessas imagens, o que Foucault (2010a, p. 205) encontrara nos “homens infames”, uma espécie de “existências-relâmpagos”, de “poemas-vidas”, que brilham como vagalumes. Esses poemas-vidas nos ensinam, como escreve o poeta Afonso Romano Sant`Anna (2006), a “desver” mundo e a pôr em xeque os nossos modos de existência.

As narrativas nos lançam um segundo desafio, que é o de pensar sem os excessos de compreensão próprios dos saberes especializados e da racionalidade eficiente, para que possamos ver e escutar de outros modos. Nesse sentido, as imagens dos corpos presentes nas crônicas podem funcionar como um dispositivo que auxilia na ampliação dos nossos horizontes mentais, produzindo-nos o estranhamento e a experiência da diferença, abrindo-nos para o exercício da alteridade. A escrita literária é uma espécie de “experimento sem verdade”, uma experiência de pensamento que falha em sua “[...] relação com a verdade.” (AGAMBEN, 2015, p. 35). Assim se referia Agamben à escrita de Herman Melville, no conto Bartleby, o escrevente. Agamben toma esse conceito de “experimento sem verdade” e propõe que o mesmo seja alargado como “paradigma da experiência literária.” Do mesmo modo que, na ciência, são feitos experimentos, na literatura também se preparam experimentos.

No entanto, se a ciência está preocupada com a verdade ou a falsidade de determinado enunciado, na literatura, põe-se “[...] em questão o próprio ser antes ou para além do seu ser verdadeiro ou falso.” (AGAMBEN, 2015, p. 36). Agamben deixa entrever que a escrita literária, pelo menos no caso específico de Melville, é uma estratégia que põe em risco os próprios modos de existência. No “experimento sem verdade”, não está em jogo o ser ou não ser de algo, mas o seu ser em potência. Esse é o lugar da absoluta contingência. Nas crônicas aqui abordadas, a potência dos corpos deficientes se explicita na contingência. E, nesse sentido, são pura potência que se subtrai às condições de verdade. Há nos corpos deficientes uma potência que está na fraqueza, a qual, paradoxalmente, porta uma força que implode o “Yes, we can”, mantra repetido à exaustão pela ordem capitalística contemporânea.

Para finalizar, talvez valesse lembrar aqui a forma como Foucault, no prefácio a O Anti-Édipo, de Deleuze e Guattari, estabelece a relação entre fascismo e vida, desafiando-nos a lutar por uma vida não-fascista. Nesse sentido, a biopolítica não seria importante apenas para caracterizar os regimes totalitários, nos moldes do que foram o nazismo e o stalinismo, mas essa análise de Foucault tem um alcance para se pensar o entrelaçamento entre fascismo e vida cotidiana: “[...] o fascismo que está em cada um de nós, que persegue nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar essa coisa que nos domina e explora.” (FOUCAULT, 2010b, p. 105).

No livro Nascimento da Biopolítica, ao analisar a teoria dos neoliberais da Escola de Chicago e os processos de empresariamento de si, de investimento em capital humano e o aumento da competitividade entre os indivíduos defendidos pela teoria do capital humano, Foucault evidencia a maneira como vida e fascismo se entrelaçam, na atualidade. Vida e fascismo se associam com a extensão da racionalidade de mercado a todas as instâncias da vida social. O livre mercado é pensado como uma força suprema que passa a ditar a verdade acerca dos modos de organização da vida social. É assim, assinala Duarte (2009), que o Estado soberano perde seu poder irradiador do fascismo, à maneira do fascismo clássico, para a forma como o capital se espraia para todas as instâncias do vivido, produzindo práticas e discursos que padronizam comportamentos e modos de pensar, silenciando e desqualificando todas as formas de diferença. É por essa lógica que os corpos que não se enquadram nos padrões do autoempreendedorismo, da competividade do mercado, são tratados como vidas supérfluas, descartáveis, no limite, infames. Impera nesse tipo de avaliação e julgamento uma visão de corpo fascista. É dessa perspectiva que os corpos deficientes afrontam o fascismo da ordem econômica contemporânea, por não se ajustarem ao ritmo e à lógica da temporalidade do presente.

De outro modo também, os corpos deficientes, os corpos adoecidos e velhos, os corpos desqualificados para o trabalho insurgem com uma pergunta no mínimo perturbadora: o que fazer com os corpos, com as vidas daqueles indivíduos, grupos e comunidades inteiras que não se submetem ou que se recusam a se enquadrar à lógica do empreendedorismo? A resposta a essa questão transcende, sem dúvida, as pretensões do presente artigo, todavia, persiste nela o incômodo político provocado pela presença do ingovernável que há nos corpos deficientes.

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Recebido: 30 de Julho de 2020; Aceito: 23 de Setembro de 2020

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