SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.34 número70Do passeio pela filosofia Deleuze-Guattariana ao encontro com o possível conceito de programa de vidaFilosofía y Educación como “Modo de vida”: cuidarse a sí mismo, al otro y agradecer a Asclepio índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Educação e Filosofia

versión impresa ISSN 0102-6801versión On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.34 no.70 Uberlândia ene./apr 2020  Epub 06-Feb-2022

https://doi.org/10.14393/revedfil.v34n70a2020-49642 

Artigos

Filosofia da educação e pesquisa educacional: fragilidade teórica na investigação educacional

Philosophy of education and educational research: theoretical fragility in educational research

Filosofía de la educación e investigación educativa: fragilidad teórica en la investigación educativa

Cláudio Almir Dalbosco* 
http://orcid.org/0000-0003-3408-2975

Eldon Henrique Mühl** 
http://orcid.org/0000-0002-8025-1680

*Doutor em Filosofia pela Universität Kassel - Alemanha (UNI-KASSEL). Professor da Universidade de Passo Fundo (UPF). E-mail: cadalbosco@upf.br

**Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor da Universidade de Passo Fundo (UPF). E-mail: eldon@upf.br


Resumo

O ensaio trata do problema da fragilidade teórica do campo investigativo educacional brasileiro e desenvolve a hipótese de que tal fragilidade deve-se ao fato da pesquisa educacional ter-se esquecido da pergunta pela validade de seu próprio conhecimento à medida que abandonou o diálogo crítico e criativo com a tradição. O texto apresenta, inicialmente, com base em Gatti, um diagnóstico da fragilidade teórica da pesquisa educacional brasileira. Na sequência, elenca e interpreta quatro fatores principais da fragilidade teórica e da frouxidão conceitual das pesquisas educacionais: o filosófico, o epistemológico, o político e o pedagógico. Por fim, problematiza o estatuto e a finalidade da filosofia da educação, concebendo o diálogo crítico com a tradição intelectual como uma das formas mais genuínas de sua contribuição à pesquisa educacional.

Palavras-chave: Educação; Pesquisa Educacional; Filosofia da Educação; Conhecimento

Abstract

The essay deals with the problem of the theoretical fragility of the Brazilian educational research field and develops the hypothesis that such fragility is due to the fact that educational research has forgotten the issue of the validity of its own knowledge as it abandoned the critical and creative dialogue with tradition. Based on Gatti, the text presents, initially, a diagnosis of the theoretical fragility of Brazilian educational research. In the sequence, it compares and interprets four main factors of the theoretical fragility and the conceptual laxity of the educational research: philosophical, epistemological, political and pedagogical. Finally, the essay problematizes the status and purpose of the philosophy of education by conceiving critical dialogue with the intellectual tradition as one of the most genuine forms of contribution to the educational research.

Keywords: Education; Educational Research; Philosophy of Education; Knowledge

Resumen

Este ensayo aborda el problema de la fragilidad teórica del campo de la investigación educativa brasileña y desarrolla la hipótesis de que tal fragilidad se debe al hecho de que la investigación ha olvidado la cuestión de la validez de su propio conocimiento al abandonar el diálogo crítico y creativo con tradición. El texto presenta, inicialmente, basado en Gatti, un diagnóstico de la fragilidad teórica de la investigación educativa brasileña. En la secuencia, compara e interpreta cuatro factores principales de la fragilidad teórica y la laxitud conceptual de las investigaciones educativas: la filosófica, la epistemológica, la política y la pedagógica. Finalmente, problematiza el estado y el propósito de la filosofía de la educación al concebir el diálogo crítico con la tradición intelectual como una de las formas más genuinas de su contribución a la investigación educativa.

Palabras-clave: Educación; Investigación educativa; Filosofía de la educación; Conocimiento

Introdução

Nesse ensaio, iremos tratar da pesquisa educacional na perspectiva da filosofia da educação. Problematizamos, inicialmente, o tema com as seguintes questões: o que significa pesquisa em educação? O que significa filosofia da educação? O que significa fazer pesquisa em filosofia da educação? E, de modo mais delimitado, qual o papel da filosofia da educação em relação à pesquisa educacional? Como o tratamento detalhado de cada uma dessas questões extrapolaria de imediato as dimensões de um breve ensaio, limitamo-nos somente à última questão, ou seja, à contribuição que a filosofia da educação pode dar à pesquisa educacional. Precisamos justificar, obviamente, ao tratar da referida questão, o significado da filosofia da educação e procuramos fazer isso na sequência do texto.

Desse modo, as questões acima indicadas, além de tocarem no âmago da pesquisa educacional, referem-se também ao estatuto e finalidade da filosofia da educação. O campo educacional, sendo orientado cada vez mais por uma tendência empirista e pragmática, limita a questão educacional à conjuntura imediata, de natureza social (econômica) e política, restringindo-se, no mais das vezes, ao mercado e às políticas educacionais públicas. Ao proceder dessa maneira, isenta de perguntar pela validade de seus próprios conhecimentos, provocando a fragilização de suas referências teóricas. A filosofia da educação - e essa é a hipótese do presente ensaio - pode contribuir para que a pesquisa educacional retome a reflexão sobre suas bases epistemológicas e pode fazê-lo na medida em que a põe novamente em contato sistemático com a tradição intelectual passada. Portanto, provocar a imersão da pesquisa educacional na tradição intelectual passada, especialmente na tradição pedagógica, é um dos papéis irrenunciáveis da filosofia da educação.

Procuramos justificar em dois passos a hipótese acima formulada. No primeiro passo, oferecemos um diagnóstico da pesquisa educacional brasileira, destacando o problema da fragilidade teórica. Na sequência, elencamos quatro fatores principais da fragilidade teórica e da frouxidão conceitual das pesquisas educacionais, definindo-os brevemente como filosófico, epistemológico, político e pedagógico. No segundo passo, problematizamos o estatuto e a finalidade da filosofia da educação, concebendo o diálogo crítico com a tradição intelectual passada como uma das formas mais genuínas de sua contribuição à pesquisa educacional. Além disso, ressaltamos que a filosofia da educação conduz às pesquisas educacionais a se confrontarem sistematicamente com a racionalidade falibilista, constituindo tal confronto numa maneira interessante de autoaprendizado da própria pesquisa educacional. Além de imunizar o campo educacional contra o risco permanente do dogmatismo, o referido confronto a municia intelectualmente para enfrentar a fragilidade teórica que lhe é inerente.

Breve diagnóstico do estado atual da pesquisa educacional brasileira

A consolidação progressiva da pós-graduação brasileira nessas últimas décadas e, com ela, o crescimento de programas de pós-graduação na área da educação, impulsionou a produção científica, gerando o aumento significativo do número de dissertações, teses, livros, capítulos de livros e, sobretudo, de artigos em periódicos científicos. Esse crescimento da pós-graduação e da produção científica alavancou também a expansão da Associação Nacional Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), provocando o aumento dos Grupos de Trabalho (GTs) e, por conseguinte, do espaço para a apresentação da produção científica dos pesquisadores.

Nesse cenário de expansão da pós-graduação em educação e da produção científica a ela associada, torna-se praticamente impossível que um pesquisador isolado tenha diante de seus olhos, de maneira detalhada, o mapa da pesquisa educacional brasileira. Se já é difícil empreender o estudo da arte no interior de um mesmo GT1, o grau de dificuldade aumenta ainda mais quando o alvo é o campo investigativo educacional como um todo. Em síntese, esse cenário em expansão põe a exigência do trabalho em redes e comunidades de pesquisa, sendo esse caminho também o mais apropriado para enfrentar a fragilidade teórica do campo educacional.

Em recente ensaio, Bernadete Gatti (2012) diagnosticou o problema de fundo que atinge as pesquisas educacionais brasileiras e que dificulta a constituição da educação como campo investigativo. Seu núcleo repousa, segundo ela, no fato de as pesquisas educacionais terem renunciado, em sua grande maioria, à pergunta pela validade do conhecimento educacional, abrindo mão, apressadamente, da reflexão sobre o rigor e a qualidade do conhecimento produzido. Permanecendo mais no âmbito descritivo, as pesquisas encontram dificuldades de aprofundar suas próprias investigações, deixando de visualizar, com isso, os limites nos quais estão inseridas. Essa situação caracteriza o estado de fragilidade teórica ou de fraqueza epistemológica das pesquisas educacionais, acarretando ao campo investigativo educacional a falta de densidade conceitual.

Gatti (2012) sustenta seu diagnóstico no conceito de densidade, o qual ela concebe como critério de validade do conhecimento educacional. Define densidade da seguinte maneira:

A densidade está associada aos modos de conceber os problemas investigativos, aos modos de observar, coletar, registrar dados, que permitem criar novas explanações, compreensões, inferências fundadas. Também depende do domínio do campo pelo investigador e de suas experiências na lida da pesquisa, dos seus interlocutores e interlocuções, de sua criatividade embasada em bons argumentos, com o suporte de fatos (GATTI, 2012, p. 27).

Em resumo, considerando a passagem acima, a densidade está ancorada no seguinte tripé: a) no procedimento teórico do pesquisador, que se relaciona com o domínio consistente da literatura especializada e com o manuseio coerente dos conceitos relacionados ao problema de investigação; b) no procedimento metodológico consistente, que permite ao pesquisador observar, coletar e registrar os dados necessários, tratando-os conceitualmente em estreita relação com o problema de investigação; c) por fim, os procedimentos teórico e metodológico, referidos ao problema de investigação, consolidam a experiência do investigador na lida da pesquisa, tornando-o criativo no momento da exposição, pois lhe permite inovar no uso dos argumentos.

Observamos que Gatti (2012), ao adotar essa noção, em certo sentido, standard de pesquisa, tem como tipo ideal de pesquisador, aquele sujeito que possui domínio teórico-metodológico consistente. Podemos inferir que o tripé reconstruído acima deve estar na base de todo o bom projeto de pesquisa, ou seja, que o mesmo precisa estruturar-se ao redor do problema de investigação, da metodologia e teoria. Nesse sentido, os instrumentos e técnicas de pesquisa, inserindo-se no âmbito metodológico, são uma pequena parte da pesquisa e não, portanto, seu centro, como ocorre em muitas pesquisas desenvolvidas no campo educacional. Em síntese, evitar a instrumentalização do método e da teoria constitui um aspecto indispensável na formação intelectual consistente do sujeito pesquisador.

Da fragilidade teórica e frouxidão conceitual do campo investigativo educacional resulta, segundo Gatti (2012), o descrédito do próprio campo em relação às outras áreas de conhecimentos. Dito em outros termos, o problema da fragilidade teórica contribui decisivamente para que a área da educação seja pouco reconhecida pelas outras áreas de conhecimento vinculadas à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nivel Superior ( CAPES). Frente a esse contexto, a referida autora põe a seguinte exigência:

É quase um imperativo para que o campo da pesquisa em educação se afirme e deixe de ser considerado “uma geleia geral”, expressão jocosa que ouvimos de profissionais de outros campos, ao se referirem aos termos poucos precisos, poucos explicitados que os profissionais do campo da educação muitas vezes usam (GATTI, 2012, p.18).

Em síntese, dessa breve referência ao texto de Gatti (2012),vamos nos ater a dois aspectos que são importantes para pensar, posteriormente, o papel da filosofia da educação em relação à pesquisa educacional: primeiro, a fragilidade teórica que caracteriza o campo investigativo educacional e; segundo aspecto, decorrente do primeiro, o fato de o campo educacional não ser reconhecido, como se desejaria, pelas outras áreas do conhecimento humano. O referido diagnóstico é preocupante porque senão houver um enfrentamento coletivo e consistente desse problema, o campo da educação continuará sendo relegado simplesmente a um papel secundário e meramente coadjuvante, não só no cenário da pós-graduação brasileira, como também, mais amplamente, nas esferas que decidem sobre os rumos políticos e pedagógicos da educação. Em síntese, sem densidade teórica e metodológica, o campo investigativo educacional enfraquece sua intervenção crítica em relação às reformas educacionais e às políticas públicas voltadas à educação.

Contudo, se Gatti (2012) fez um diagnóstico, no nosso entendimento, acertado do atual estado da pesquisa educacional brasileira, ela não aprofundou suficientemente as causas de tal estado e não é convincente o suficiente quanto à indicação de possíveis caminhos.2Em outros termos, ela não conseguiu produzir uma análise mais aprofundada e apresentar com convicção algumas alternativas, porque renuncia ao diálogo crítico com a tradição pedagógica, ignorando, desse modo, o papel que os “fundamentos da educação” e, especialmente, a filosofia da educação, podem desempenhar em relação ao problema diagnosticado. Sob nossa avaliação, o diagnóstico de Gatti (2012) é deficitário, mais especificamente, por duas razões: por um lado, porque ela não pode mais contar com o aporte epistemológico e metodológico da pedagogia, o qual se viu duplamente questionado, nas duas últimas décadas, tanto pela diluição da pedagogia em curso de formação de professores, como pela, assim denominada crise das ciências humanas.3Abrindo mão de ser um campo investigativo da educação, a pedagogia deixou epistemologicamente órfã as pesquisas educacionais. Nesse contexto, perguntar pelos fundamentos epistemológicos e metodológicos da pesquisa educacional tornou-se, equivocadamente, algo fora do lugar, quando, na verdade, tal pergunta deveria ser o fio condutor do debate teórico da pesquisa. Por outro lado, ao não ter se apoiado na filosofia da educação, Gatti (2012) viu-se impossibilitada de atacar o problema da fragilidade teórica e da frouxidão conceitual das pesquisas educacionais em sua própria raiz, ou seja, no âmbito da justificativa teórica e compreensão conceitual do campo.

Ora, é justamente nesse momento que se faz necessário ir além do diagnóstico de Gatti (2012), sem obviamente desconhecer a contribuição de suas pesquisas à consolidação da educação como campo investigativo, e examinar os fatores que estão na origem da fragilidade teórica. Na sequência, analisamos brevemente os quatro seguintes fatores: filosófico, científico, político e pedagógico.

Do ponto de vista filosófico, a fragilidade teórica do campo educacional tem relação direta com a crise da racionalidade moderna e ao modo de dar razões a ela subjacentes. Depois das críticas filosóficas contemporâneas, iniciadas de maneira exemplar pela recusa nietzschiana ao nível de abstração especulativa alcançado pelo idealismo alemão, tornou-se habitual a crítica não só à forma metafísica de fundamentação última, como também a qualquer tipo de fundamentação. Nesse amplo movimento, a filosofia foi cada vez mais diluída em literatura, ou seja, em narrativa poética e literária. Desse modo, transformou equivocadamente a necessária crítica à metafísica baseada no princípio de fundamentação última e às grandes narrativas a ela subjacentes, na recusa a qualquer tipo de fundamentação, renunciando, com isso, a pergunta pelos fundamentos e pelo modo de dar razão às coisas. Nesse sentido, a diluição da filosofia em literatura traz água ao moinho pós-moderno, culminando esse processo, como Habermas mostrou ainda na década de 1980, no adeus apressado à razão (HABERMAS, 1985; 1990a). O campo investigativo educacional não passou incólume a esse amplo movimento filosófico, deixando-se seduzir facilmente pelas diferentes vertentes da pós-modernidade.4 Ao recusar a ideia de fundamentação, a pesquisa educacional aumenta sua fragilidade teórica e sua frouxidão conceitual.

Do ponto de vista epistemológico - e aqui referimo-nos especificamente ao campo da história e da teoria das ciências -, a fragilidade teórica do campo educacional deve-se, em grande parte, à crítica dirigida ao ideal objetivista da ciência moderna e ao modo como tal ideal é conduzido pelo positivismo e pelo neopositivismo. O critério de objetividade baseado na observação, experimentação e comprovação dos dados logo se mostrou insuficiente para dar conta da complexidade e pluralidade dos problemas humanos e sociais. Os mitos da objetividade do dado e da validade inquestionável da generalização das observações empíricas foram duramente criticados, ainda na primeira metade do século passado, pelo movimento interno à teoria epistemológica, principalmente pelo pensador austríaco Karl Popper.5 Contudo, a necessária crítica ao ideal científico da objetividade (ao positivismo científico) foi transformada pelo campo educacional, novamente nutrido pelos ares da pós-modernidade e pela vanguarda dos estudos culturais deles resultante, na recusa da pergunta pela validade do conhecimento educacional. Ora, destituída da pergunta pelos critérios de validade, a pesquisa educacional tem seus referenciais teóricos fortemente enfraquecidos.

Subjacente às razões de natureza filosófica e científica, há o aspecto político que também contribui com a fragilidade teórica do campo educacional. Referimo-nos aqui ao sentido negativo do político6, que se manifesta numa dupla dimensão, na maioria das vezes, combinada entre si, na dimensão ideológica e na instrumental. Nota-se nitidamente a presença da dimensão ideológica quando pesquisas educacionais são financiadas com o intuito exclusivo de servir aos interesses econômicos e políticos de determinados grupos ou partidos políticos e se prestam para justificar dogmaticamente tal intuito. A dimensão instrumental aparece quando o campo educacional se movimenta, em sua grande maioria, na direção de determinado tema investigativo, de modo geral, para aquele tema financiado por políticas educacionais públicas, como tem ocorrido ultimamente na pesquisa educacional brasileira referente à formação de professores. Nesse sentido, quando o governo, os grandes grupos econômicos ou o Banco Mundial determinam irrestritamente os temas investigativos, provocam a instrumentalização da pesquisa educacional. Forçada a dar respostas pragmáticas e imediatistas a tais demandas, ela deixa de pensar sobre a validade de seu próprio conhecimento, perdendo sua autonomia e comprometendo sua densidade teórica.

Por fim, no que se refere à dimensão pedagógica, há algo intrínseco à própria educação. Ela é, antes de tudo, uma prática social, diretamente colada à experiência cotidiana dos sujeitos que se educam e se deixam educar. Como prática social cotidiana, a educação se imbrica com a consciência espontânea que constitui o mundo naturalizado dos sujeitos. Ora, o núcleo dogmaticamente rotinizado de tal mundo resiste à teoria e a qualquer movimento de natureza teórica. Considerando esse aspecto, a pesquisa educacional deveria ser tomada como esforço teórico permanente de desnaturalização dos aspectos dogmáticos inerentes à consciência espontânea. Sem tal enfrentamento, ela deixa intocada a prática educacional, também não tratando adequadamente, no âmbito da educação formal, da relação pedagógica entre professor e aluno. A pedagogia, abrindo mão, por um lado, de refletir metodicamente sobre a prática educativa e, por outro, rendendo-se apressadamente aos modismos educacionais que a assolam constantemente, recusa-se a pensar sobre a natureza epistemológica e metodológica de seu processo investigativo.

Como se pode observar, há muitas razões que estão na base da fragilidade teórica e da frouxidão conceitual do campo investigativo educacional. Tais razões contribuem para que o campo renuncie à pergunta pela validade de suas próprias pesquisas. Nesse contexto, a pedagogia precisa colocar novamente na agenda do dia a reflexão sobre suas bases epistemológicas e metodológicas. Como não consegue fazer isso sem retomar o problema da razão, do qual ela se despediu apressadamente, precisa se defrontar com reflexões atualizadas tanto de teoria das ciências como de filosofia da educação.

Na sequência, pretendemos argumentar a favor de uma filosofia da educação transformada, que seja capaz de contribuir para que o campo educacional possa enfrentar o problema de sua fragilidade teórica e frouxidão conceitual. Movida pela crítica pós-moderna à tradição iluminista moderna e às grandes narrativas dela decorrentes, a pesquisa educacional, obviamente com exceções, abandonou o diálogo crítico e criativo com a tradição cultural mais ampla e, especificamente, com a própria tradição pedagógica. Torna-se cada vez mais raro, por exemplo, encontrar entre as novas gerações de estudantes alguém se ocupando com o estudo sistemático de um autor clássico do passado ou mesmo com uma de suas obras. Cabe ressaltar que a própria filosofia da educação também padece desse abandono do estudo de autores clássicos.

Como veremos abaixo, uma das contribuições da filosofia da educação consiste justamente em redirecionar o campo investigativo educacional novamente ao estudo dos clássicos. Estamos convencidos, nesse sentido, que a busca de reconhecimento da área educacional em relação a outras áreas passa obrigatoriamente pelo estudo sistemático, no interior do campo educacional, de grandes pedagogos, cientistas e filósofos. Esse é um trabalho indispensável da pesquisa educacional, principalmente daquela que é desenvolvida no âmbito da pós-graduação. Todo esse trabalho investigativo dos clássicos, quando acompanhado pelas devidas mediações pedagógicas, deve se fazer presente nos currículos escolares e universitários, pois é a investigação em torno destes conhecimentos sistematizados que define as instituições formais de ensino como núcleo de estudo do saber desenvolvido pela humanidade. Este trabalho investigativo precisa ser confrontado, evidentemente, com questões emergentes da ação educativa atual.

Algumas contribuições da filosofia da educação

Tomamos como ponto de partida, no tópico acima, o diagnóstico de Bernadete Gatti (2012), colocando-nos em acordo com o déficit teórico do campo educacional por ela apontado. Contudo, vamos procurar ir além de Gatti (2012), em nossa conclusão provisória, indicando que a falta de densidade teórica tem sua origem no abandono, provocado pelo próprio campo da pesquisa educacional, da reflexão sobre suas bases epistemológicas e metodológicas. Ou seja, por ter aderido ao adeus apressado à razão, o campo educacional relegou ao esquecimento a pergunta pela validade de seus próprios conhecimentos. Em razão disso, procuramos esclarecer, na sequência, o papel indispensável que a filosofia da educação possui em relação à retomada da pergunta pela validade do conhecimento educacional. Deixamos claro que um desses papéis consiste em provocar a pesquisa educacional para retomar o diálogo com a tradição intelectual passada. Tal diálogo representa um ganho ao campo educacional, pois provoca a pedagogia a defrontar-se com seu estatuto e sua finalidade, tendo que retomar seu papel como núcleo investigativo (campo de estudos) da educação.

Ao defender o diálogo vivo com a tradição intelectual passada, não estamos requerendo obviamente a retomada ipsis litteris dos macros conceitos que estão na base de tal tradição, como razão, ciência, teoria e método. Como referimos acima, trata-se de um diálogo crítico com pretensão manifesta de se distanciar da perspectiva metafísica clássica e da ciência positivista moderna. Isso significa então que tanto filosofia da educação como pesquisa educacional não podem mais argumentar com o sentido metafísico de uma razão com pretensão de fundamentação última e nem com o ideal de objetividade ancorado no verificacionismo científico. Em síntese, filosofia da educação e pesquisa educacional não podem compactuar com o dogmatismo inerente à metafísica clássica e à ciência positivista moderna, sendo impedida de retroceder aquém das conquistas obtidas pela crítica oriunda das diversas vertentes do pensamento pós-metafísico contemporâneo.7

Cabe reter, para o momento, da crítica pós-metafísica à racionalidade moderna, um duplo resultado, filosófico e científico. Do ponto de vista filosófico, a principal conquista pós-metafísica consiste em justificar o conceito histórico, contextual e falibilista de razão, pondo em questão seu sentido a priori e transcendental. Resulta dessa conquista o tipo de racionalidade operada por um sujeito encarnado na história e na sociedade, cujo próprio pensamento é tributário dessa encarnação. De outra parte, do ponto de vista científico, o desenvolvimento das teorias pós-empiristas escancararam os limites inerentes ao princípio de generalização pretendido pelo procedimento indutivo. Em síntese, as críticas pós-metafísica e pós-empirista evidenciaram os limites inerentes tanto ao procedimento dedutivo como indutivo, possibilitando à filosofia da educação ir além do dogmatismo inerente à razão metafísica moderna e ao ideal cientificista de objetividade. Ora, é justamente no âmbito de uma razão historicizada e falibilista que a filosofia da educação contribui para que a pesquisa educacional retome novamente a pergunta pela validade de seus próprios conhecimentos.

Considerando isso, podemos balizar agora, apoiando-me no resultado da crítica pós-metafísica à racionalidade moderna, o sentido de filosofia da educação como diálogo crítico com a tradição intelectual passada. Contudo, há dois obstáculos que de antemão precisam ser enfrentados. O primeiro, eminentemente teórico, consiste em assegurar o diálogo com a tradição sem incorrer no dogmatismo inerente tanto à metafísica clássica como à ciência moderna. O segundo obstáculo, de natureza pedagógica, refere-se à distancia temporal, social e cultural que nos separa de um determinado texto legado pela tradição. Diante disso, surgem outras perguntas: por que estudar, por exemplo, um autor do século XVIII, que viveu numa época tão distante da nossa? Teria ele ainda algo a nos dizer? Seu pensamento contribui para pensar a educação atual? A superação dos dois obstáculos depende da potencialidade crítica do diálogo com a tradição, a qual não pode ser tomada como se já tivesse dado o sentido de antemão.

Temos, pois, dois termos em questão, o diálogo e a própria tradição. Que aspecto dessa questão interessa mais propriamente à educação? Há um conceito de educação que nos serve apropriadamente como ponto de partida; trata-se da definição de educação como diálogo vivo entre gerações. Não há como pensar adequadamente a relação educativa entre seres humanos ignorando simplesmente a relação dialógica e conflitiva entre gerações, ou seja, entre os mais velhos e os mais novos. Todas às vezes que buscou pensar fora do âmbito desse diálogo, atribuindo centralidade excessiva, por exemplo, tanto ao adulto como à criança, caiu-se num reducionismo perigoso que jogou a educação numa crise profunda.8

Desse modo, a própria definição de educação remete à tradição que se apresenta na forma da relação entre adulto e criança, entre pai e filho e, no contexto da educação formal, entre professor e aluno. Portanto, a relação entre pai e filho é um diálogo entre gerações que se torna ao mesmo tempo um diálogo com a tradição. Esse é o primeiro sentido de tradição que aparece imediata e espontaneamente na relação educativa. Mas há também outro sentido de tradição que se refere ao clássico, ao autor e ao texto clássico. É esse sentido que, a nosso ver, deveria predominar no âmbito da educação formal, assegurando à filosofia da educação o papel de contribuir para que as pesquisas educacionais façam a imersão investigativa na tradição cultural e pedagógica passada.

Precisamos ter presente aqui, antes de tudo, que não há consenso no interior da comunidade de investigadores, sobre quem são propriamente os clássicos: enquanto alguns autores estão fora de suspeita, outros têm sua legitimidade contestada. De qualquer forma, por clássico entendemos tudo aquilo que é capaz de cruzar os tempos, de manter seu sentido intocado pelos tempos. É aquilo que não enferruja com o tempo e, por isso mesmo, não perde seu sentido. Nesse contexto, assumimos, com Italo Calvino, que o “clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer” (CALVINO, 2007, p. 11). O autor torna-se um clássico porque possui a capacidade inesgotável de pensamento, que apesar do tempo que nos distancia dele, nos provoca ainda hoje a pensar sobre nossa própria atualidade.

Cabe referir, nesse contexto, uma bela passagem de Jean Starobinski, na qual comenta o significado do pensamento de Jean-Jacques Rousseau como autor clássico. Embora longa, permitimo-nos citá-la na integra:

Com ele, não se termina nunca: é preciso sempre recomeçar de uma maneira nova, reorientar-se ou desorientar-se, esquecer as fórmulas e as imagens que no-lo tornavam familiar e nos davam a tranquilizadora convicção de tê-lo definido de uma vez por todas. Cada geração descobre um novo Rousseau, em quem encontra o exemplo do que ela quer ser, ou do que recusa apaixonadamente (STAROBINSKI, 1991, p. 277).

O comentário de Starobinski - ele próprio um intérprete clássico de Rousseau -, indica bem o tom do sentido que o estudo do clássico possui na formação das novas gerações: sentido inesgotável de seu pensamento; impossibilidade de compreendê-lo por inteiro e; sobretudo, o quanto o pensamento do genebrino significa na formação das novas gerações que o descobrem e o levam a sério, dialogando cuidadosamente com seu texto. Ora, justamente por ser um pensador paradoxal, Rousseau cumpre bem o difícil trabalho de levar as novas gerações a pensarem por si mesmas, independentemente se elas defendem ou recusam “apaixonadamente” o seu pensamento. Em síntese, para enfrentar o primeiro obstáculo indicado acima - o obstáculo do dogmatismo - servimo-nos do comentário de Starobinsk (1991) para mostrar o quanto é possível dialogar com a tradição sem incorrer no dogmatismo. Pensamos ter deixado claro também, e isso é o mais importante, o quanto o diálogo crítico com a tradição torna-se indispensável para as novas gerações pensarem por conta própria. Nesse sentido, o importante é que autor e texto provoquem o leitor a pensar por si mesmo, mas isso depende também da qualidade da relação que o leitor mantém com o texto.

Sobre a importância da tradição à atualidade - segundo obstáculo indicado acima - é preciso ser tratada com cuidado, considerando que o retorno à tradição não deve ser movido pelo interesse puramente intelectual ou exegético e menos ainda por uma expectativa imediatista. Nesse sentido, possuem razão os que criticam o interesse puramente filológico, pois o diálogo com a tradição deve servir em última instância à compreensão da atualidade. Um breve recurso a outro autor serve-me de amparo para refletir sobre esse segundo obstáculo. Referimo-nos à interpretação muito criativa que Michel Foucault faz do pequeno texto kantiano Resposta à pergunta o que é esclarecimento?. Esse é um bom exemplo para elucidar nosso problema porque Foucault (2009), enquanto autor contemporâneo, com pé fincado no nosso tempo, volta a Kant, autor do século XVIII, mostrando o quanto o pensamento desse autor é atual. Há dois aspectos da interpretação de Foucault que nos interessam diretamente. Primeiro, na medida em que aceita responder a pergunta posta pelo jornal berlinense (BerlinischeMonatsschrift), se a Prússia vivia em uma época esclarecida, Kant assume a filosofia como conceito de mundo (Weltbegriff). Ou seja, assume uma noção de filosofia como compromisso de pensar a atualidade. O segundo aspecto, inerente ao compromisso filosófico de pensar a atualidade, diz respeito ao fato do filósofo, ao pensar o momento presente em que vive, é levado a pensar sobre si mesmo, enquanto sujeito que pensa a atualidade. Ou seja, o pensamento filosófico da atualidade resulta no pensamento sobre si mesmo e, nesse sentido, pensar o mundo significa pensar o próprio sujeito que pensa o mundo.

Nesse contexto, Foucault (2009) considera o texto kantiano Resposta à pergunta o que é o esclarecimento? como ilustrativo de sua própria ontologia do presente, a qual se ocupa duplamente com o pensamento da atualidade e com a reflexão sobre o sujeito que pensa essa atualidade. Depois de conceber as duas grandes tradições que constituem a filosofia moderna, a tradição analítica e a tradição crítica, define essa última, na primeira aula do curso Governo de si e governo dos outros, da seguinte maneira:

A tradição crítica não coloca a questão das condições em que é possível um conhecimento verdadeiro. Ao contrário disso, pergunta: o que é a atualidade? Qual é o campo atual de nossas experiências? Qual é o campo atual das experiências possíveis? Não se trata de uma analítica da verdade, mas sim do que poderíamos chamar de uma ontologia do presente, uma ontologia da atualidade, uma ontologia da modernidade, uma ontologia de nós mesmos (FOUCAULT, 2009, p. 39).

Em síntese, encontramos em Foucault (2009) um duplo ensinamento: primeiro, ele mostra o quanto o autor clássico tem seu pensamento comprometido com o momento presente em que vive; segundo, informa também como é possível fazer a interpretação de um autor clássico evitando o duplo reducionismo, de manter-se prisioneiro à letra do texto ou simplesmente de fazer o sentido do texto desaparecer mediante as pressões utilitaristas e imediatistas da atualidade. De quebra, ganhamos ainda, com a interpretação de Foucault (2009), a importante ideia diretriz de que pensar o clássico movido pelo interesse de compreender a atualidade conduz o sujeito a refletir sobre si mesmo. Pensar a atualidade por intermédio dos clássicos - e parece-me exatamente isso que Foucault está propondo ao voltar a Kant - é uma maneira sólida e interessante de descobrirmos a nós mesmos. Ou seja, o estudo do clássico, quando bem realizado, é uma maneira instigante de formar-se a si mesmo, descobrindo seu próprio si mesmo (Self).

Em Starobinski (1991) e em Foucault (2009) encontramos, portanto, dois exemplos de como tratar o clássico, no caso, Rousseau e Kant, respectivamente, e o quanto o estudo do clássico é indispensável à compreensão da atualidade e do próprio sujeito que a pensa. Nesse sentido, é de importância decisiva, no âmbito da educação formal, a exigência posta ao pesquisador para fazer chegar o texto clássico até aqueles que estão se iniciando na pesquisa e, sobretudo, fazendo-o chegar de maneira adequada.

Sob esse aspecto, consideramos dois procedimentos hermenêuticos como fundamentais na introdução do pesquisador principiante ao texto clássico. O primeiro consiste em entregar-se ao texto, escutando o que ele tem a dizer e deixando-se impregnar pelo processo de estranhamento que ele causa. Trata-se de evitar, nesse contexto, o procedimento usual de simplesmente impor ao texto algo estabelecido previamente, ou seja, de querer fazê-lo responder somente as inquietações do leitor. O segundo procedimento, decorrente do primeiro, refere-se à necessidade que o leitor possui, orientando-se pela escuta, de por questões ao texto, fazendo-o respondê-las. Segundo Flickinger: “É o próprio texto que nos leva a colocar-lhe perguntas adequadas; que conseguem abri-lo à nossa compreensão. Por isso mesmo, a pergunta adequada é mais importante e difícil do que a resposta certa” (FLICKINGER, 2010, p. 36).

Esses dois procedimentos contém o núcleo hermenêutico do que entendemos por diálogo crítico com a tradição: o processo inicial do leitor de se deixar estranhar pelo sentido do texto e, simultaneamente, a irrupção autônoma do leitor, na medida em que provoca o texto a responder as perguntas postas pelo próprio leitor ao entregar-se à leitura. Nesse sentido, concebemos a pergunta como aspecto estruturante não só da relação entre leitor e texto, como também da própria construção do problema de investigação que orienta o projeto de pesquisa.

Considerando o que foi dito acima, vamos dar um passo adiante e tratar, sob outra perspectiva, o problema do dogmatismo, pois caso o mesmo não seja enfrentado satisfatoriamente, sua influência provoca a estagnação do campo educacional. Isto nos coloca frente a duas questões: como enfrentar a fragilidade teórica do campo educacional, levando em consideração certo dogmatismo inerente à predominância do empírico nas pesquisas educacionais? De que modo, então, as pesquisas educacionais podem ser empíricas sem serem dogmáticas, criticando a cultura investigativa que persiste sutilmente na crença de que os dados falam por si mesmos? É justamente aqui que entra em cena o papel das epistemologias pós-empiristas, especialmente a epistemologia do racionalismo falibilista, como indicação dos limites intrínsecos à generalização do empírico.

Parafraseamos, brevemente, dois aspectos do racionalismo crítico: sua crítica ao princípio da indução e seu conceito falibilista de teoria. Popper (1982), como seu principal representante, notabilizou-se, ainda na primeira metade do século passado, por ter refutado o princípio da indução e, com ele, a suposta cientificidade requerida pelo verificacionismo. O princípio do verificacionismo ancora-se na premissa básica que atribui validade à generalização oriunda de observações testadas empiricamente. Ou seja, segundo reza tal princípio, quando testadas empiricamente, as observações atingem um grau válido e inquestionável de generalização. Contra isso, Popper objeta: “não há regra que possa garantir uma generalização inferida de observações verdadeiras, por maior que seja sua regularidade” (POPPER, 1982, p. 83). Popper (1982) quer dizer, na prática, que a validade do conhecimento não avança das observações à teoria e, mais ainda, que as próprias observações testadas não podem ser tomadas como critério último de demonstração da validade de uma teoria.

Além de mostrar os limites da observação empírica no processo investigativo, Popper (1982) quer dizer também, em outros termos, que a própria pesquisa empírica não avança sem teoria. Isso parece ser muito trivial, simplesmente porque, para organizar e esclarecer suas observações, o pesquisador precisa recorrer a pressuposições teóricas; ele também precisa de teoria inclusive para obter suas observações. Contudo, o problema persiste porque a própria teoria precisa ser esclarecida, ou seja, não pode ser inserida ad hoc no contexto investigativo. É nesse âmbito do problema que cobra importância, então, o segundo aspecto nuclear do racionalismo crítico, ou seja, sua concepção falibilista de teoria.

Referimos o sentido falibilista de teoria mediante três considerações.9A primeira diz respeito ao seu caráter hipotético, intrinsecamente vinculado à tensão constitutiva do conhecimento humano, entre conjecturas e refutações. Vamos reconstruir, de maneira muito breve, o pensamento de Popper (1982) a esse respeito: o pesquisador formula conjecturas sobre a realidade, as quais permanecem válidas até que não sejam refutadas por outras conjecturas. Ou seja, se a conjectura é a afirmação não conclusiva sobre algo, a refutação é o questionamento justificado sobre a afirmação feita, buscando invalidá-la. Nesse sentido, a refutação nada mais é do que o esforço intelectual incansável de invalidação da conjectura. Em síntese, nenhuma teoria está imune à refutação, inclusive aquela que é resultado de observações empíricas exaustivamente testadas. Assim afirma Popper: “Enquanto uma teoria resiste aos testes mais rigorosos, ela é aceita; quando isso deixa de acontecer, ela é rejeitada” (POPPER, 1982, p. 84). Podemos inferir dessa afirmação de Popper que por mais rigoroso que possa ser o teste, ele não pode imunizar por completo e de maneira definitiva a teoria.

A segunda consideração depreende-se da primeira e refere-se ao caráter aberto e processual da teoria. Não há conjectura definitiva, que possa colocar-se acima da refutação. Isso explica porque o racionalismo crítico torna-se o principal antídoto contra o dogmatismo, invalidando também, com sua crítica, a ideia de uma verdade última que comandaria o conhecimento humano. De outra parte, a noção de evolução aparece nitidamente no sentido de que o conhecimento humano evolui de níveis ingênuos para níveis mais sofisticados, ou seja, do estágio menos resistente ao mais resistente às refutações. Cada vez que nossas conjecturas são refutadas, somos obrigados a reformulá-las ou simplesmente elaborar novas conjecturas e, para que nosso conhecimento tenha sentido, devemos considerar as refutações já recebidas. A consistência da pesquisa resulta da capacidade que o pesquisador possui para submeter à prova suas próprias conjecturas. Nesse sentido, concebendo amplamente o problema, quanto mais à pesquisa for submetida ao crivo crítico de seu próprio autor, melhores chances ela possui de receber aprovação pública.

Por fim, a terceira consideração: há um aspecto notadamente formativo inerente à noção falibilista de teoria, o qual repousa na reivindicação popperiana de que o ser humano precisa ser capaz de aprender com seus próprios erros. Ou seja, ele se torna inteligente porque é capaz de aprender com os erros que comete. Nesse contexto, o pesquisador, ao admitir que o conhecimento humano é falível, precisa formular o problema de investigação, escolher os conceitos e manuseá-los de maneira mais modesta. A admissão da falibilidade do conhecimento humano coloca-o na situação semelhante àquela de Alcebíades, que ao ser duramente interpelado por Sócrates, teve que descer de sua mais bruta arrogância e reconhecer o estado de “vergonhosa ignorância”, na qual se encontrava (FOUCAULT, 2004, p. 47). Em síntese, a posição falibilista exige uma postura intelectual mais modesta do sujeito pesquisador, uma vez que ele precisa ser antes de tudo um sujeito crítico de si mesmo. Ora, é nesse sentido que a noção de crítica exige o processo permanente de autocrítica, obrigando o sujeito pesquisador recusar a razão arrogante que o seduz permanentemente.

Considerações conclusivas

Baseando-nos no diagnóstico de Bernardete Gatti (2012), constatamos a fragilidade teórica e a frouxidão conceitual como duas marcas distintivas de grande parte do estado atual da pesquisa educacional brasileira. Na sequência, contrapomos a essa fragilidade a ideia de filosofia da educação duplamente ancorada: primeiro, no diálogo crítico com a tradição, pois é daí que ela reconstrói seus referenciais tanto para entender o momento presente, como para balizar o sentido e a direção da educação formal; em segundo lugar, no diálogo com as epistemologias pós-empiristas, especialmente, com o racionalismo falibilista popperiano. Esse duplo movimento da filosofia da educação serve, por um lado, para caracterizar seu estatuto próprio como núcleo problematizador das teorias educacionais e, por outro, como crítica ao dogmatismo inerente às orientações empiristas que dominam o campo educacional.

A filosofia da educação, sendo confrontada com as mais diferentes formas de pensamento pós-metafísico, aprende a recusar a razão metafísica e objetivante, assumindo com isso um conceito mais modesto, plural e falibilista de racionalidade. Deixando-se orientar pela guinada pós-metafísica, a filosofia da educação entende que não pode despedir-se apressadamente da razão, pois não pode abdicar da pergunta pelo modo de dar razão às coisas. Contudo, tocada pela razão pós-metafísica, sabe que precisa criar novas formas falibilistas de fundamentação. Ora, é justamente deixando-se orientar pela racionalidade de tipo falibilista que ela pode contribuir com as pesquisas educacionais, provocando-as a enfrentar seus dois principais obstáculos, a saber, a fragilidade teórica e o dogmatismo inerente à predominância do empírico.

O racionalismo crítico imuniza, desse modo, a pesquisa educacional contra o dogmatismo, na medida em que a alerta para os limites intrínsecos do primado do empírico. Nesse sentido, como vimos acima, a crítica popperiana ao princípio de indução torna-se instrutiva à pesquisa educacional porque mostra o limite da generalização pretendida pelas observações empíricas. Tal crítica põe a exigência à pesquisa educacional de reconstrução e teorização permanente dos dados empíricos. De outra parte, a consciência sobre os limites da observação conduz à revalorização da teoria, a qual é fortalecida por intermédio do diálogo crítico com a tradição.

Em síntese, o diálogo com racionalismo crítico permite repor novamente, ao campo educacional, o questionamento sobre a verdade (validade) da pesquisa educacional e sobre a predominância concedida ao empírico. Contudo, é preciso considerar que o próprio racionalismo crítico não está imune a objeções. Cabe lembrar aqui, entre outras, a objeção que lhe foi dirigida por Theodor W. Adorno, no âmbito da clássica disputa acerca do positivismo na sociologia alemã (ADORNO, 1973, p. 121-138).10 Segundo o filósofo frankfurtiano, Popper aborda somente o sentido lógico do pensamento, deixando de lado sua materialidade, ou seja, todos os condicionantes de natureza histórica, social e cultural. Nesse mesmo contexto, Adorno (1973) acusa Popper de conceber o problema de investigação somente pela perspectiva epistemológica, ignorando sua dimensão prática. Assim afirma ele: “em Popper o problema é de natureza exclusivamente epistemológica, ao passo que para mim também é algo prático, em última instância, uma circunstância problemática do mundo” (ADORNO, 1973, p. 125). Por prático, entende Adorno, tudo o que se refere à ação humana no sentido ético e político e, portanto, tudo o que diz respeito à liberdade do sujeito encarnado histórica e socialmente. Deste modo, entende por prático a responsabilidade do sujeito perante o mundo.

No fundo, está em jogo, nesse âmbito, uma concepção de teoria que precisa estar irmanada com os problemas reais, não se deixando reduzir ao formalismo lógico. Desse modo, Adorno (1973) reivindica uma teoria crítica da sociedade, atribuindo-lhe o papel de evidenciar as condições históricas, sociais e culturais do conhecimento e do próprio sujeito pesquisador. Essa objeção geral de Adorno tem significado importante ao aspecto epistemológico da pesquisa educacional, pois mostra que o sujeito investigador não é somente um sujeito pensante (lógico), mas também um sujeito agente, que possui um corpo, que está inserido no mundo e que deve sentir-se por ele responsável.

Essa objeção de Adorno (1973), posta justamente no momento em que as questões de história e teoria das ciências dominavam o cenário do debate epistemológico alemão e mundial - década de 1960 -, abre espaço para pensar a dimensão ética (“circunstância problemática do mundo”) inerente à pesquisa educacional e à formação do sujeito pesquisador. Contudo, o preenchimento de tal espaço, indo além de Adorno e das perspectivas por ele apontadas, encontra no pensamento foucaultiano, na atualidade, um caminho promissor. Com sua noção de espiritualidade desdobrada nas noções de cuidado de si, ascese, parresia e escuta silenciosa ativa, Foucault (1999) põe a questão da verdade - questão indispensável para tratar do problema da validade da pesquisa educacional - além do âmbito lógico-semântico (analítica da verdade), localizando-a no âmbito ético da necessária transformação do sujeito.

Para se colocar a questão da verdade e pleiteá-la adequadamente, o sujeito pesquisador não só precisa estar disposto a se colocar na situação de pesquisa, como também sofrer certa transformação. Além das condições lógicas e semânticas, a busca pela verdade depende de condições éticas, ou seja, de uma ética do eu que conduz à própria transformação do sujeito. Com a colocação da verdade nesses termos, o que interessa à pesquisa não é mais exclusivamente seu aspecto epistemológico como produção do conhecimento, mas sim seu aspecto formativo e autoformativo, incluindo o pesquisador e os envolvidos no processo investigativo. Desse modo, a perspectiva foucaultiana assegura a passagem da noção de pesquisa educacional como produção de conhecimento à noção de pesquisa pedagógica formativa (MASSCHELEIN; SIMONS, 2014, p. 56).

Isso significa dizer então que depois de todas as críticas dirigidas ao primado do epistemológico, da redução da questão da verdade às condições lógicas que tornam possível ao sujeito acessar a verdade, faz-se necessário retomar o problema da validade da pesquisa educacional, mas orientando-se agora pelo horizonte de questionamento ético e político, cuja perspectiva foucaultiana é uma das referências possíveis. Pois, com o Foucault tardio, influenciado tanto por Nietzsche como por Heidegger, aprendemos o aspecto formativo (a ideia de formação como cuidado e exercício de si) inerente ao processo investigativo.

Nesse contexto, o longo e detalhado trabalho interpretativo do estoicismo antigo empreendido por Foucault (1999) permite colocar em cena novamente a ideia de pedagogia como psicagogiae, com isso, “revisitar, filosoficamente, a noção de formação humana como forma de fazer face à crise da racionalidade pedagógica em suas múltiplas manifestações” (FREITAS, 2014, p. 278). Ora, o cuidado de si foucaultiano chama atenção para o fato de que estão subjacentes a qualquer empreendimento educacional investigativo questões éticas. Isso significa dizer, em outras palavras, que questões de conhecimento só adquirem sentido e ganham validade porque se encontram entrelaçadas com aspectos pedagógicos e formativos do próprio processo investigativo. O vínculo da pesquisa educacional com o cuidado de si leva a pensar que as questões de conhecimento precisam estar diretamente referidas ao âmbito da ação humana e ao modo como o sujeito, por meio de sua experiência de si, constrói ou deixa de construir sentido para aquilo que faz ou deixa de fazer. Em síntese, por ancorar o cuidado de si no saber de espiritualidade, Foucault (1999) permite retomar o âmbito ético inerente à questão da verdade da pesquisa educacional, mostrando que sua natureza não diz respeito somente à produção de conhecimento, mas à transformação do próprio sujeito, ou seja, à pedagogia da formação humana.

Referências

ADORNO, T. A. et al. La disputa del positivismo en la sociología alemana. Trad. Jacobo Muñoz. Mexico/Barcelona: Ediciones Grijalbo, 1973. [ Links ]

ARENDT, H. Zwischen Vergangenheit und Zukunft. München: Piper, 1994. [ Links ]

_____. O que é política? Trad. Reinaldo Guarany. Rio de Janeiro; Bertrand Brasil, 1998. [ Links ]

BÜTTEMEYER, W.; MÖLLER, B. (Hrsg.). Der positivismusstreit in der deutschen Erziehungswissenschaft. München: Wilhelm FinkVerlag, 1979. [ Links ]

CALVINO, I. Por que ler os clássicos. Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. [ Links ]

FLICKINGER, H. G. A caminho de uma pedagogia hermenêutica. Campinas: Autores Associados, 2010. [ Links ]

FOUCAULT, M. A Hermenêutica do sujeito. Trad. Márcio A. da Fonseca e Salma T. Muchal. São Paulo: Martins Fontes, 2004. [ Links ]

FOUCAULT, M. El gobierno de si y de lós otros. Trad. Horacio Pons. México: Fondo de cultura económica, 1999. [ Links ]

FREITAS, A. S. de. A parresía pedagógica de Foucault e o ethos da educação como psicagogia. In: OLIVEIRA, A. da R.; VALLE, L. do (Orgs.). Filosofia da educação: posições sobre a formação humana. Curitiba: Editora Appris, 2014, p. 259-281. [ Links ]

GATTI, B. A construção metodológica da pesquisa em educação: desafios. RBPAE, Porto Alegre, v. 28, n. 1, 2012, p. 13-34. [ Links ]

HABERMAS, J. Der Philosophische Diskurs der Moderne. Frankfurt amMain: Suhrkamp, 1985. [ Links ]

HABERMAS, J. O discurso filosófico da modernidade. Trad. Ana M. Bernardo et al. Lisboa: Dom Quixote, 1990a. [ Links ]

HABERMAS, J. Pensamento pós-metafísico. Estudos filosóficos. Trad. Flávio b. Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990b. [ Links ]

JAPIASSU, H. A crise das ciências humanas. São Paulo: Cortez, 2012. [ Links ]

JOAS, H.; KNÖBL, W. Sozialtheorie. Zwanzig einführende Vorlesungen. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2004. [ Links ]

LYOTARD, J. F. O pós-moderno. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990. [ Links ]

MASSCHELEIN, J.; SIMONS, M. A pedagogia, a democracia, a escola. Trad. Alain François et al. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. [ Links ]

POPPER, Karl. Conjecturas e refutações. Trad. Sérgio Bath. Brasília: Editora da UnB, 1982. [ Links ]

POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. Trad .Leonidas Hesenberg e Octanny S. da Mota. São Paulo: Cultrix, 1993. [ Links ]

PAGNI, P. A. Da polêmica sobre a pós-modernidade aos ‘desafios’ lyotardianos à Filosofia da Educação. In: Educação e Pesquisa, v. 32, n. 3, 2006, p. 567-587. https://doi.org/10.1590/S1517-97022006000300010Links ]

PAGNI, P. A.; DALBOSCO, C. A. As produções do GT-17 da ANPED e o seu papel para o desenvolvimento da filosofia da educação no Brasil. In: OLIVEIRA, A. da R. & VALLE, L. do (Orgs.). Filosofia da educação: posições sobre a formação humana. Curitiba: Editora Appris, 2014, p. 23-56. [ Links ]

STAROBINSKI, J. A Transparência e o obstáculo. Trad. Maria L. Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. [ Links ]

TOULMIN, S. Voarussicht und Verstehen. Ein Versuch über die Ziele der Wissenschaft. Frankfurt amMain: Suhrkamp, 1981. [ Links ]

TREVISAN, A. L. Da reificação ao reconhecimento das pesquisas qualitativas em educação. In: Educar em Revista, Curitiba, n. 52, 2014, p. 211-228. https://doi.org/10.1590/0104-4060.32200Links ]

Agradeço ao CNPQ o financiamento da Bolsa PQ que tornou possível a realização desta pesquisa

1Ver o balanço crítico empreendido por Pedro A. Pagni e Claudio A. Dalbosco, especificamente, sobre os 20 anos de história do GT Filosofia da Educação da ANPEd (PAGNI; DALBOSCO, 2014, p. 23-56).

2Amarildo L. Trevisan, deixando-se orientar nitidamente pela ótica da filosofia da educação, mostra em que termos a crítica ao ideal objetivante do positivismo terminou jogando as pesquisas qualitativas, pelo menos parte significativa delas, ao perspectivismo teórico que beira perigosamente um relativismo destrutivo (TREVISAN, 2014, p. 211-228).

3Sobre o problema da crise das ciências humanas, ver Hilton Japiassu (2012).

4Referimo-nos às versões caricaturadas que ganham corpo no campo educacional e que, de modo geral, não dialogam seriamente com os motivos filosóficos que deram origem a leituras mais sólidas da própria pós-modernidade, como aquela empreendida por Jean-François Lyotard (1990). Para uma crítica à própria expressão “pós-modernidade” e de sua respectiva banalização, ver Pagni (2006).

5Nesse contexto, cabe destacar, como trabalho mais importante desse autor, A lógica da pesquisa científica, cuja primeira publicação ocorreu em 1932 (POPPER, 1993).

6Por aspecto positivo da política, entendemos aquele sentido normativo que é tomado inclusive como referência critica ao sentido negativo. Como uma das referências vale aqui o sentido arendtiano de política como forma de assegurar a pluralidade dialógica do espaço público (ARENDT, 1998).

7Jürgen Habermas diagnostica bem os diferentes motivos de pensamento pós-metafísico, referindo, ao mesmo tempo, as principais tendências filosóficas que compõem o amplo movimento filosófico pós-metafísico. Sobre esse tema, ver seu livro intitulado Pensamento pós-metafísico (HABERMAS, 1990b).

8Ver sobre isso o ensaio Crise na educação, de Hannah Arendt (1994).

9Para um uso criativo do racionalismo crítico no âmbito das teorias sociológicas ver o interessante trabalho de Hans Joas e Wolfgang Knöbl (2004).

10Esse mesmo debate também repercutiu fortemente no campo da pedagogia, sendo documentado por Büttemeyer e Möller (1979), com o título Der Positivismusstreit in der deutschen Erziehungswissenschaft (Disputa positivista na ciência da educação alemã).

Recebido: 16 de Julho de 2019; Aceito: 30 de Outubro de 2019

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons