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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.34 no.70 Uberlândia jan./abr 2020  Epub 06-Fev-2022

https://doi.org/10.14393/revedfil.v34n70a2020-46884 

Artigos

Humanismo do outro homem: perspectivas de uma formação a partir da sensibilidade e da ética com Emmanuel Levinas

Humanism of the other man: perspectives of a formation from the sensitivity and the ethics with Emmanuel Levinas

Humanismo del otro hombre: perspectivas de una formación a partir de la sensibilidad y de la ética con Emmanuel Levinas

*Doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professor do corpo permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação e Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail: vanderlei.carbonara@ucs.br


Resumo

As teorias da formação alcançam grande expressividade com o desenvolvimento dos ideais do humanismo moderno. Trata-se de um projeto civilizatório que visa elevar a humanidade ao seu mais alto grau de perfectibilidade. A história e a filosofia do século XX, no entanto, desautorizaram a crença no humanismo e colocaram os seus fundamentos em crise. Essa crise estende-se a tudo que foi edificado sobre o humanismo, inclusive o projeto de uma formação para o esclarecimento e para a perfectibilidade. O que o artigo propõe é uma leitura sobre a resposta à crise do humanismo a partir da filosofia da subjetividade de Levinas. Assim, assume-se o afastamento do discurso humanista da modernidade para apresentar uma perspectiva à formação orientada pela sensibilidade e pelo acolhimento a outrem. Numa revisão do conceito de formação, o texto volta sua atenção para uma ética do acolhimento à alteridade: um humanismo do outro homem.

Palavras-chave: Formação; Humanismo; Sensibilidade; Ética; Emmanuel Levinas

Abstract

The theories of formation reach great expressiveness with the development of the ideals of modern humanism. It is a civilizing project that aims to elevate humanity to its highest degree of perfectibility. The history and philosophy of the twentieth century, however, disallowed the belief in humanism and submitted its foundations to the crisis. This crisis extends to everything that has been built on humanism, including the design of a formation for enlightenment and perfectibility. What is proposed is a reading on the response to the crisis of humanism from the Levinas' philosophy of subjectivity. Thus, the article takes away from the humanist discourse of modernity, and presents a perspective for the formation now oriented by sensitivity and acceptance of others. In a review of the concept of formation, the text turns its attention to an ethic of welcoming to otherness: a humanism of the other man.

Keywords: Formation; Humanism; Sensitivity; Ethic; Emmanuel Levinas

Resumen

Las teorías de la formación logran gran expresividad con el desarrollo de los ideales del humanismo moderno. Se trata de un proyecto civilizatorio que pretende elevar la humanidad a su más alto grado de perfectibilidad. La historia y la filosofía del siglo XX, sin embargo, desautorizaron la creencia en el humanismo y plantearon sus fundamentos en crisis. Esta crisis se extiende a todo lo que ha sido edificado sobre el humanismo, incluso el proyecto de una formación para el esclarecimiento y la perfectibilidad. Lo que el artículo propone es una lectura sobre la respuesta a la crisis del humanismo a partir de la filosofía de la subjetividad de Levinas. Así, se asume el alejamiento del discurso humanista de la modernidad para presentar una perspectiva a la formación orientada por la sensibilidad y la acogida a otro. Revisando el concepto de formación, el texto vuelve su atención hacia una ética de la acogida a la alteridad: un humanismo del otro hombre.

Palabras clave: Formación; Humanismo; Sensibilidad; Ética; Emmanuel Levinas

Introdução

A modernidade deixou como um de seus legados mais caros, o humanismo. Do humanismo moderno derivam-se concepções de ser humano e de sociedade que estão implicadas ao menos na filosofia, nas ciências, na educação, na política e no direito. Até mesmo o modo como o homem moderno, relaciona-se com o meio ambiente está implicado na visão humanista. Do humanismo derivam os mais caros valores civilizatórios do Ocidente. Portanto, reconhece-se a relevância histórica do pensamento humanista para o desenvolvimento humano na história recente. Ainda assim, os mesmos ideais civilizatórios que entusiasticamente preconizaram a autonomia do sujeito e o esclarecimento social, viram-se alimentando discursos que verteram para concepções de melhoramento humano de modo eugênico e a igualdade social baseada na exclusão de todos quantos não se adequassem a ela. Desautorizando o discurso humanista, a História do século XX não mais opôs entre si a civilização e a barbárie, mas testemunhou a barbárie como decorrência da civilidade: sujeitos livres e cidadãos cultos escolheram levar a termo uma sofisticada arquitetura de destruição da própria humanidade, valendo-se dos recursos mais avançados das ciências. Bárbaros à moda antiga - aqueles alheios à cultura - jamais levariam a termo tal empreendimento. E, ainda que essa análise remeta com forte apelo ao período compreendido pelas duas grandes guerras mundiais, seus efeitos seguem-se perpetuando no início do século XXI. Tanto as macro ações, que resultam em expressivas consequências danosas a grupos humanos - tal como é o caso da fome que persiste no planeta, mesmo com recordes de produção de alimentos - quanto as micro ações que se perpetuam em discursos sobre o merecimento de distintas condições sociais - tal como se difundem as profecias do empreendimento de si - demonstram que o progresso civilizatório segue fomentando a barbárie dele mesmo derivada.

Dar-se conta desse caráter paradoxal - quanto mais civilizados nos tornamos, mais sofisticada é a barbárie daí resultante - põe-se em questão o projeto humanista. Por essa razão, assume-se aqui como ponto de partida o reconhecimento da crise do humanismo. E como o humanismo moderno estabeleceu as bases para o conhecimento e para as relações humanas, sua crise é também a crise de tudo quanto dele deriva: é a crise da filosofia, das ciências, da educação, da política e do direito. Tal crise faz perceber o esgotamento dos fundamentos do humanismo, dentre os quais, estão a metafísica da consciência que concebe o sujeito, a universalidade da razão e o esclarecimento como fim da humanidade.

Frente à crise do humanismo, cabe-nos optar por: ou restabelecer o projeto humanista em suas bases originais, caso entendamos que as causas da crise não digam respeito à sua concepção, mas são derivações históricas a posteriori; ou refutar por inteiro o projeto humanista, caso suas bases estejam em absoluto equivocadas ou de tal modo comprometidas que nada mais daí possa resultar com legitimidade; ou apresentar justificativas que legitimem outras perspectivas humanistas, mais factíveis aos nossos tempos, que não mais recorram a fundamentos universais. A primeira opção é percebida em discursos institucionais que reivindicam a restauração de valores negligenciados historicamente. O direito tem se mostrado o campo mais fiel aos valores do humanismo, encontrando alcance nas instituições políticas de sustentação das democracias modernas. Também a educação possui segmentos bastante vinculados aos ideais humanistas e aos seus fundamentos metafísicos. A segunda opção está presente na obra de autores que estabelecem a ruptura radical com a metafísica e a subjetividade moderna, desde Nietzsche, chegando aos intelectuais de língua francesa que posicionam seus discursos a partir da diferença, tal como é o caso de Derrida, Foucault e Deleuze. Muito embora alguns investigadores encerrariam suas análises nessas duas primeiras opções, e vinculariam ainda à primeira quaisquer outras tentativas de afirmação de humanismos, aqui se irá seguir argumentando que a mencionada terceira opção é expressiva e merece atenção específica. Essa terceira opção é atribuída a autores e movimentos que reconhecem a crise do humanismo e a impossibilidade de sua restauração original, mas que não renunciam por completo a todo e qualquer modo de humanismo. No plano filosófico, o deslocamento paradigmático da consciência para a linguagem abre a possibilidade de que se sustente sobre a intersubjetividade uma nova perspectiva ética e, portanto, uma concepção do humano, não mais orientada por bases universalistas e por ideais predeterminados, mas orientada pelas condições que a discursividade apresenta às relações humanas.

Pois bem, o contexto até aqui apresentado é bastante amplo e se presta a um estudo detalhado ponto a ponto, que se estende para muito mais além do que é cabível num artigo. Porém, o objeto de escrita nesse momento deverá ter a pontualidade e a brevidade que é própria desse meio de divulgação característico dos periódicos. Portanto, do contexto exposto, passa-se à delimitação que será assumida nas páginas a seguir. Será feita uma breve explicitação sobre alguns aspectos do humanismo e assim se explicitará sua crise. Tendo ciência de tal, este estudo dará atenção a uma perspectiva humanista distinta daquela idealizada na modernidade. Para tanto, se seguirá apresentando aspectos da filosofia de Emmanuel Levinas sobre a constituição da subjetividade e seu acolhimento ético a outrem. Em especial, será abordada a sensibilidade como constituinte do humano. E, para além do que o próprio Levinas ocupou-se, o artigo explorará possíveis implicações dessa perspectiva humanista à concepção de formação. A formação é um dos conceitos estruturantes do humanismo e aqui será investigada a partir da referida orientação filosófica. O percurso argumentativo apresentará algumas considerações sobre o humanismo e sua crise, passando à sua ênfase na exposição de elementos de uma ética ancorada na sensibilidade na obra de Emmanuel Levinas, chegando às implicações formativas que o pensamento ético do autor poderá potencializar.

A fim de reposicionar o debate sobre educação e humanismo numa perspectiva que já não seja aquela ligada ao subjetivismo moderno, mas que também não se incline às visões sentimentais do vocabulário coloquial, propõe-se analisar aspectos do pensamento filosófico de Emmanuel Levinas para dele derivar uma teoria ético-educacional que tome a alteridade como ponto de partida para um humanismo intersubjetivamente concebido. O percurso para se chegar a essa concepção de humanismo considerará a teoria levinasiana da subjetividade, com acento para a ideia de sensibilidade, até chegar à alteridade como constituição do humano. E é essa coincidência ética entre subjetividade e humanidade que nos possibilitará reposicionar a relação entre formação e humanismo.

Esclarecimentos sobre humanismo e formação

Mas, afinal, a que é que chamamos humanismo? No uso mais informal do termo humanismo, muitas vezes, a ele são associados sentimentos de identificação com a humanidade em seu todo e virtudes como bondade, solidariedade, compaixão e outras, sobretudo de inspiração religiosa. Este, porém, não é o sentido aqui assumido para falar em humanismo. O que chamamos de humanismo na filosofia diz respeito tanto ao retorno aos clássicos gregos e latinos, tal como foi pensado no renascimento, quanto se refere à subjetividade concebida pelos grandes autores que estruturaram a modernidade: Descartes, Kant e Hegel; considerando-se aí todo o desenvolvimento do Iluminismo e do Idealismo. Nesse período, o pensamento filosófico operou uma virada decisiva: deslocou seu fundamento da metafísica do ser para uma metafísica da consciência. Do Renascimento lega-se a ênfase antropocêntrica, a que o Iluminismo levará a termo com seu projeto de razão universal e que o Idealismo dará materialidade, sobretudo, em relação à formação, à política e ao direito.

Com isso, chegamos ao ponto a que se quer dar destaque: a subjetividade moderna é o núcleo do humanismo. Vattimo esclarece: “o humanismo é a doutrina que atribui ao homem o papel de sujeito [...]” (2007, p. 32). O sujeito autônomo, esclarecido, que, pela razão, torna-se capaz de acessar a verdade em relação ao conhecimento e ao bem em âmbito ético-moral, é ele mesmo a expressão que sintetiza o pensamento humanista. Agora o homem está em vias de um esclarecimento absoluto. E sobre essa base, fundam-se os discursos sobre a educação e a formação humana: o que a educação deve promover é a ascensão do indivíduo que se eleva de uma condição em que está determinado por instintos, impulsos e paixões, para uma condição do espírito em que a razão torna-o plenamente humano. Há aqui um sacrifício de tudo quanto seja particular em benefício do universal (cf. GADAMER, 2004, p. 48). Portanto, a formação, que é um dos conceitos estruturantes do humanismo, apresenta-se como elevação ao humano - racional e universal - como superação do que não é propriamente humano - pulsional e particular.

Veja-se que a plenitude humana já não estará naquelas coisas que ligam o indivíduo à natureza ou aos seus sentimentos, mas justamente no afastamento de tudo quanto seja de ordem sensível para orientar-se sempre segundo a razão. E como o acesso à razão ocorre pela consciência - imanente - então, pode-se, até mesmo prescindir do outro para discernir sobre a verdade e sobre a moralidade. Este sujeito moderno funda um humanismo desencarnado: a pele não filosofa, a fome não filosofa, o gozo da vida não filosofa. Ao contrário, é uma consciência que, quanto mais elevar-se racionalmente e afastar-se das paixões e das particularidades, mais próxima estará da verdade.

E a referida crise do humanismo é, nesse contexto argumentativo, a crise da subjetividade moderna e da razão universal. Se o iluminismo e o idealismo conferiram um poder emancipador à razão, e reconheceram no sujeito autônomo à condição máxima de esclarecimento, outros movimentos filosóficos posteriores identificaram aí estruturas totalitárias de pensamento e de negação tanto das potencialidades humanas mais genuínas quanto do outro na relação.

Um dos autores que abre questões ao denunciar os limites do humanismo é Nietzsche. Em vários momentos da obra nietzschiana estão presentes renúncias e rupturas para com as bases humanistas do pensamento moderno. Uma dessas ocorrências está no aforismo 125 de A gaia ciência: “Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos!” (NIETZSCHE, 2001, p. 148). Vattimo vincula diretamente o anúncio da morte de Deus com a crise do humanismo: a anunciada morte de Deus, como morte de todo fundamento metafísico, arrasta o humanismo à crise por que este não poderá mais “resolver-se num apelo a um fundamento transcendente” (2007, p. 18). A morte de Deus, portanto, determina também a morte do fundamento do sujeito moderno. Com isso, a filosofia contemporânea estará desafiada a responder à crise do humanismo por um dos seguintes caminhos: ou aceita-se a derrocada total da subjetividade e com isso despede-se qualquer tentativa de justificar algum discurso sobre o Eu; ou nega-se todo discurso pós-metafísico e se permanece buscando novas sistematizações que justifiquem uma universalidade e, por sequência, fundamente-se uma teoria da subjetividade; ou ainda buscam-se outros caminhos de compreensão da subjetividade que já não mais sejam aqueles da fundamentação universal (cf. HONNETH, 2009, p. 277-278).

Frente a uma crise que põe em questão o humanismo e, com isso, o sujeito, Emmanuel Levinas elabora uma filosofia da subjetividade que justifica o Eu, não mais em si mesmo, mas a partir da abertura ao outro. Nesse sentido, em Levinas há uma forte teoria da subjetividade, mas que não mais fundamenta o sujeito na sua consciência e na universalização da razão, mas que é saída da consciência para o acolhimento a outrem. Em Levinas, a subjetividade possível constitui-se no tempo e temporalmente é que o Eu pode abrir-se ao Outro como apelo. É como acolhimento ao apelo de outrem que o Mesmo descobre-se humano. É a esta subjetividade, para além dos humanismos, que se dará atenção na sequência desta argumentação.

Levinas, a sensibilidade e a ética

Emmanuel Levinas, lituano de nascimento, depois naturalizado francês, é comumente referido como filósofo da ética da alteridade. Ainda que essa referência seja pertinente, é possível dizer algo ainda mais assertivo sobre qual seja a contribuição determinante da filosofia do autor no contexto contemporâneo: o que chamamos de ética da alteridade em Levinas é o alcance que o conjunto da sua obra toma; mas, no percurso de seus textos, encontramos uma intensa e original filosofia da subjetividade. Ou seja: o movimento filosófico que chega a uma ética da alteridade, desenvolve-se como filosofia da subjetividade. Levinas é um fenomenólogo que se propõe à tarefa de descrever a humanidade do homem e, ao fazê-lo, inaugura uma nova teoria da subjetividade que culmina no que chamamos de ética da alteridade. É importante salientar também que, diferentemente de muitos outros autores da ética, Levinas não propõe uma teoria da ação, mas concentra-se em descrever a já referida humanidade e, nesse exercício fenomenológico, identifica a ética como condição do humano. Portanto, não cabe ler a obra de Levinas buscando indicações sobre como conduzir as decisões e as ações. A obra levinasiana tem outro propósito: compreender o que nos constitui como humanos. Por isso, as ideias do autor de que a liberdade vem depois da responsabilidade para com o Outro, ou que o Mesmo encontre-se como refém de outrem, não devem ser lidas como dever moral decorrente de um exercício da razão e nem como indicação de um agir ao qual devamos almejar. Nem há princípio e nem há télos a serem observados. Noutra forma de abordar a ética, Levinas ocupa-se de algo que poderá ser chamado de gênese do humano, mas não ao modo principialista, e sim como possibilidade. O que Levinas afirmará como humano não constitui qualquer essência e nem oferece garantias morais. A ética, segundo o autor, é uma possibilidade e não uma necessidade. Porém, a efetivação de tal possibilidade está - para Levinas - imbricada com a própria humanidade.

Esta humanidade começa a tomar forma de modo elementar: na relação do homem com as coisas no mundo. Estamos falando, portanto, de um homem de carne e sangue, de um homem encarnado que está em relação com o mundo, e não mais de uma consciência que se destaca da natureza. A constituição da subjetividade em Levinas, diferentemente das teorias modernas sobre o sujeito, começa num corpo afetado em sua relação com o mundo e, por isso, a sensibilidade ganha especial atenção. Vejamos, portanto, esse percurso de descrição de constituição da subjetividade em Levinas, tendo-se especial atenção para a sensibilidade.

Em seu Totalité et Infini (1990a), Levinas dedica a seção Interiorité et économie (Interioridade e economia) para descrever o humano que surge como resistência e separação, e que no gozo da vida feliz faz da sensibilidade sua abertura para o acolhimento. A ideia de resistência começa num aspecto natural: o homem resiste a ser parte do cosmos e se separa da própria natureza. Mas, sobretudo, a ideia de resistência justifica-se como resistir a toda a totalidade. É como resistência ao cosmos e a toda possível totalização que o Eu começa a constituir-se. Eis o Eu ateu no mundo. O Eu ateu é o homem que afirma a si mesmo sem Deus e sem pertencer a qualquer totalidade. Levinas também chama-o de Eu egoísta. Mas não se trata de um egoísmo no sentido moral da palavra, mas egoísmo como afirmação de si, ainda sem o outro. Portanto, o primeiro movimento da subjetividade humana é solitário. O Eu ateu e egoísta está só. É kath autó: constitui-se a partir de si mesmo, nele mesmo, sem ação exterior sobre si. Observe-se que Levinas aqui considera o primeiro movimento de constituição subjetiva como corporeidade e não como consciência, tal como o fizera a filosofia da modernidade. Na solidão, o homem sente fome, sede e frio e, por isso, busca saciar-se com alimento e água e proteger-se numa habitação. Essa relação aberta pela necessidade, que é saciada, inaugura o gozo da vida: existe felicidade em saciar-se com alimento quando sente-se fome, assim como existe felicidade no aconchego da casa quando a ela se volta depois de um dia chuvoso e frio. Essa felicidade é puro prazer e saciedade e, por isso, Levinas chama-a de gozo (juissance). Este Eu ateu, egoísta e feliz, já está constituindo sua subjetividade. Portanto, em Levinas, a subjetividade só é possível num eu corpóreo satisfeito que goza de vida feliz. Não se trata mais de subjetividade a partir da consciência, mas subjetividade que começa a estruturar-se a partir do corpo e suas sensações.

Não será difícil perceber em Levinas uma filosofia da sensibilidade. Sensibilidade aqui não é tratada apenas como propriedade perceptiva do que possa ser tomado a partir dos sentidos. Mas entenda-se sensibilidade como sensualidade: o que há de mais original na relação que o corpo possa estabelecer com a fruição da vida, com o prazer de sentir o mundo ao toque da pele ou tal como o saciar a sede e sentir o frescor de uma brisa. Cabe ressaltar que a sensibilidade é anterior à consciência. É importante distinguir: se, por um lado, a consciência é marcada por uma intencionalidade apropriadora; de outro, a sensibilidade é marcada pelo ‘desinteressamento’ da passividade, ou, no máximo, por uma intenção ao modo do desejo. Ou seja: não sentimos prazer porque determinamos que o sentiríamos, mas o sentimos mesmo sem qualquer intencionalidade para tal. Mesmo que alguém esteja com sua atenção voltada ao entendimento de um livro de filosofia que esteja lendo numa tarde quente, e uma brisa suave refrescar-lhe a pele, passivamente experimentará a sensação de frescor. Mas, claro, como o próprio autor explicita em seu De L’Existence à L’Existant (2004), o gozo não se dá apenas como passividade, mas também ali há intenção. Porém, não mais a intenção de uma consciência, mas intenção ao modo do desejo que impele o sujeito a buscar a saciedade do que lhe desperta o apetite. Quer seja pela afetação na passividade, quer seja com a intenção desejante, a corporeidade antes da consciência é que liga o homem ao mundo.

A relação com o mundo, portanto, antes de se dar pela consciência, ocorre de forma corpórea. Em questão, está que o homem aprende a relacionar-se com a exterioridade a partir das sensações que o corpo lhe permite experimentar. Observe-se que, na perspectiva levinasiana, não é atribuindo significado que se poderá ter acesso ao mundo, mas é gozando a vida que se dá a abertura à exterioridade. A relação com o mundo é muito mais uma vivência prazerosa do que qualquer formulação de juízo.

O ato de comer e beber não podem ser associados simplesmente a uma necessidade vital a ser suprida, como se viver fosse outra coisa que não o comer e o beber. Isso que é próprio da corporeidade é vida em si, em plenitude, e não mera condição para outra vida além da corpórea. Tomar uma boa sopa já é viver em si mesmo. Assim como sentir o perfume de uma flor ou pensar sobre uma ideia que ocorra já são o viver em si mesmo.

Em lugar da perenidade almejada pelas filosofias da consciência, Levinas descreve o que se apresenta como vivência inteira na duração do seu acontecimento. O prazer é sempre temporal e sua finitude é que justifica a intensidade com que é vivenciado. A sensibilidade está nessa finitude, nesse esgotamento do prazer que o torna sempre de novo desejável. Escreve Levinas: “O finito como contentamento é a sensibilidade” (1990a, p. 143). A isto que se busca como gozo sabe-se que, mesmo uma vez saciado, se esgotará e se precisará outra vez ir na busca da saciedade. A fome, uma vez saciada, não estará para sempre saciada, mas se voltará a querer o alimento. É essa relação temporal com uma saciedade que é finita que move o gozo da existência.

Assim, estamos continuamente em relação com as coisas do mundo: como resistência, nos separamos da totalidade cósmica, mas como desejantes nos saciamos no mundo. Em De L’Existence à L’Existant (2004), Levinas enfatiza a relação entre homem e mundo: “Estar no mundo é estar preso às coisas” (2004, p. 55) . Logo em seguida, associa-se a Théophile Gautier ao citá-lo: “Eu sou destes para quem o mundo exterior existe” (2004, p. 55). Nesse sentido, fazer uma filosofia sobre a subjetividade humana encarnada implica em considerar o frio e o calor que são sentidos na pele; a água do mar ou o asfalto da cidade que afetam os sentidos; o perfume de uma flor que atraia ou o odor deletério de uma carcaça animal que cause repulsa; uma carícia que dê prazer ou um golpe violento que cause dor. Por tudo isso, não é raro encontrar nos textos levinasianos referências diretas à pele: a pele tanto marca a resistência, pois é a partir dela que nos demarcamos como separados do mundo; mas é também a partir dela que tocamos e sentimos o mundo. A pele é tanto invólucro do eu ensimesmado, como é também espaço de afetação de tudo quanto nos seja exterior. Na pele, a temporalidade ultrapassa a efemeridade do instante e amplia-se como duração que guarda vestígios, tal como a pele marcada pelas rugas - vestígio de um tempo vivido. Em Autrement qu’être ou au delà de l’essence (1990b), Levinas usa duas referências sobre as rugas que marcam a pele: “pele às rugas, vestígio de si mesmo” (1990b, p. 141) e, em seguida: “... pele às rugas, vestígio dela mesma” (1990b, p. 145). A ruga que marca a pele guarda em si um tempo imemorável da existência do próprio eu e é vestígio, não de uma ideia abstraída, mas dela mesma como matéria corruptível: a pele.

Eis, portanto, o sujeito que é de carne e de sangue e que se relaciona com todo o mundo exterior a partir de uma sensibilidade anterior a toda a razão. Este sujeito, antes de qualquer ideal a alcançar como fim último que sua consciência venha a mostrar-lhe como evidente, quer apenas ser feliz, quer apenas a felicidade no gozo da vida.

Da vida feliz à ética: a humanidade que se instaura no homem

No entanto, este Eu feliz ainda não se expressa plenamente como humano, mas está constituindo-se como tal. O percurso de constituição da subjetividade até que o homem perceba-se humano terá ainda outros aspectos que seguem sendo descritos por Levinas. Até aqui toda a vida é “para si”. Este é o Eu ateu, egoísta e feliz. É importante dizer: ainda não há ética no gozo e na felicidade, pois todo o viver é “para si” e, portanto, o Outro ainda não está contemplado. Porém, a sensibilidade possibilita a abertura à exterioridade do mundo. E essa possibilidade de abertura nos interessa.

Ao se abordar a concepção levinasiana de subjetividade há demarcações que precisam estar claras. Se Levinas, com sua descrição da sensibilidade, afasta-se da compreensão tradicional da subjetividade fundada na consciência, é importante ressaltar que o autor toma uma direção distinta daquela das filosofias que respondem à crise do humanismo, despedindo em definitivo a subjetividade e recorrendo a uma individualidade estetizada. Portanto, Levinas é ainda um filósofo da subjetividade, mas que não pensa mais numa consciência fundante do Eu. Em Levinas, não há universalidade ou igualdade que possibilitem um fundamento unitário. Portanto, Levinas afasta-se do humanismo moderno. O Eu levinasiano é separado de qualquer unidade. Quem goza da vida feliz é um Eu que está só. Mesmo que viva com outros, está ainda solitário em sua experiência de felicidade. O homem feliz é ainda um homem sem ética e, portanto, ainda não se percebe humano.

O Outro, portanto, lhe será estranho. Ou melhor: o outro é sempre separado. Levinas traz da tradição judaica a ideia de santidade: o santo é aquele que está apartado, separado e ao qual não se pode acessar. Por isso, o Outro não poderá ser objetivado, definido ou tematizado, mas permanece sempre com uma dimensão de mistério, enigma ou questão a interpelar. Enquanto as coisas do mundo - o alimento, as vestes ou a morada - podem ser nominadas e possuídas, o Outro mostra-se inapreensível. E o que permite outra relação, já como saída de si, para perceber o Outro, que se mostra como um mistério, nasce da sensibilidade do Mesmo e da sua abertura à exterioridade. Portanto, é a satisfação do que pode ser, uma vez, saciado, é a sensibilidade construída no gozo da vida feliz, que abre a possibilidade do que não se possa tomar para si, mas que permanecerá sempre como exterioridade de si. Neste ponto, Levinas apresenta em seu Totalité et Infini (1990a) uma construção muito própria de suas raízes filosófica e religiosa: o desejo metafísico que se volta ao Infinito. O tema é muito importante no pensamento de Levinas, mas por uma opção de delimitação à abordagem indicada para o artigo, aqui se fará apenas uma breve contextualização. Uma vez saciado e seguro, agora o Eu pode voltar-se a algo mais que não apenas suas necessidades e satisfações. O desejo metafísico volta-se ao que não pode ser saciado porque não pode ser possuído. A argumentação levinasiana segue pela ideia de Infinito em Descartes, considerando também a ideia de Deus do judaísmo ocidental, e apresenta o Outro como vestígio do Infinito que se mostra como Rosto. Não é a intencionalidade do Mesmo que apreende o Outro, mas é outrem que, como rosto, manifesta-se a um Mesmo desejante dessa epifania. Para a argumentação aqui em curso importa destacar que é a sensibilidade constituinte do Eu que lhe permite tão expressivo acolhimento à exterioridade.

O Eu, até então solitário, egoísta e ateu, pela sensibilidade agora volta-se à exterioridade e passa a desejar o que não mais pode ser possuído e causar satisfação. Agora o Eu está aberto para acolher o estranho, o separado, o mistério. E aqui a ética inaugura-se: o Outro, como mistério, mostra-se como Rosto e esse rosto é vestígio do Infinito. E, para Levinas, a ideia de vestígio é sempre muito importante, pois tal como já foi referida anteriormente em relação às rugas na pele, todo vestígio nos remete a um tempo imemorável. O Rosto não pode ser definido, não pode ser tematizado, não pode ser classificado. Frente ao Rosto cabe apenas acolhê-lo em seu mistério ou, de outro modo, ignorá-lo. Não há relação objetiva com o Outro e, sobretudo, não pode haver posse do Outro. Apenas pode-se possuir aquilo que nos possibilite saciedade. E a única possibilidade de saciar-se do Outro seria negando-lhe a sua alteridade. Mas aí não há ética. A ética começa nesse acolhimento incondicional do Outro como mistério, que nasce antes na sensibilidade e só depois toma forma na razão. Tal como alguém que se depara com um faminto e dá-lhe alimento antes de lhe pedir qualquer explicação sobre sua situação; tal como a mãe que abre mão de seus interesses para priorizar o atendimento ao filho antes de lhe perguntar se este a cuidará na velhice; a ética inaugura-se como sensibilidade que se deixa afetar pelo Rosto do Outro antes de qualquer intencionalidade da consciência.

O Rosto do Outro alcança o Mesmo, não por uma intencionalidade do Mesmo, mas pela passividade com que se deixa afetar. O acolhimento que dá origem à ética, portanto, não é resultante da deliberação do agente. O acolhimento é resposta responsável ao Outro a partir de uma sensibilidade afetada. A ética só é possível a partir do Outro. Tal concepção de passividade marca uma ruptura da subjetividade levinasiana em relação às teorias da consciência. Enquanto as éticas elaboradas a partir da consciência centram-se no “Eu” e bastam-se sem o “Outro”, a ética levinasiana só pode nascer a partir da epifania do Rosto do Outro. Não é a intencionalidade de quem se põe a conhecer que assimila o rosto de outrem, mas é o rosto que se manifesta a uma sensibilidade que o acolhe. E o que possibilita, na passividade, tal acolhimento ao Outro que se mostra é a sensibilidade constituída desde a felicidade do gozo até o desejo pelo inatingível.

Assim constitui-se uma subjetividade ética. E é deste modo que o sujeito descobre-se humano. Por isso, o humanismo levinasiano não está centrado no próprio sujeito e sua consciência, mas é humanismo do outro homem. A minha humanidade não resulta do meu esforço gnosiológico ou ontológico em acessá-la, mas vem a mim como exterioridade. O Rosto do Outro que me apela, e ao qual respondo responsavelmente, instaura em mim a humanidade.

Com este Outro - que é sempre separado de mim e inacessível à minha consciência, mas que me afeta pela sensibilidade - nunca poderei relacionar-me em definitivo. Então a relação possível será aquela da temporalidade da linguagem: relação sem relação. Observe-se que para o autor não há uma unidade entre Mesmo e Outro que possa constituir um “nós” comum a ambos, mas sempre permanecerá a separação entre Mesmo e Outro e a linguagem se dará como encontro sem assimilação e sem síntese. Na linguagem, Mesmo e Outro compartilham algo comum do mundo na duração do discurso, mas não se poderá guardar tal discurso como perenidade. Toda experiência discursiva tem sua plenitude na própria duração do Dizer e, depois, passa a pertencer a um passado imemorável que não poderá ser objetivado.

Observe-se que, em Levinas, a linguagem que importa é sempre original e não há nela a possibilidade de se apreender e comunicar sentidos estatizados. Frente ao Outro, sempre separado, percebe-se uma “diferença absoluta”. E tal diferença absoluta instaura-se na linguagem, que não mais se renderá a qualquer ontologia regradora de sentido comum. Escreve o autor: “A diferença absoluta, inconcebível em termos de lógica formal, não se instaura de outro modo senão pela linguagem. A linguagem realiza uma relação entre os termos que rompem a unidade de um gênero” (LEVINAS, 1990a, p. 212).

Em Levinas, o acolhimento é resposta à exterioridade e, por isso, nunca é assimilação. Da mesma forma, a linguagem não anula a separação entre Mesmo e Outro e não produz entendimentos ontologicamente unificados. É sempre linguagem entre separados na qual o Outro permanece inviolado em sua santidade. Relação e distância são dois aspectos comuns da linguagem e, desse processo, vem uma expressão recorrente em Levinas: relação sem relação.

A esta concepção ética como relação sem relação, Levinas chamará Religião. Isso porque a relação possível nunca é definitiva, mas sempre acontecimento original de proximidade e, portanto, sem garantias. Essa ideia de religião remete ao contínuo movimento de buscar aproximar o que está separado: o Outro é separado e a ele pode-se construir aproximações pela linguagem. Porém, não há permanência nessa aproximação, pois a linguagem é sempre acontecimento temporal. Com Levinas, estamos frente a uma ética que não contempla codificações das condutas humanas e também não supõe quaisquer princípios orientadores. Trata-se, antes disso, de uma ética inteiramente entregue ao tempo e que só poderá efetivar-se na originalidade de cada encontro humano. Por isso, a relação possível toma a forma de uma ética que se manifesta antes como sensibilidade e que, só depois, poderá tomar a forma da razão. E, ainda assim, não se trata de razão resultante da consciência, mas razão transitiva a partir da linguagem.

Mas o tema da razão nos encaminharia para outro aspecto do pensamento de Levinas que, pelos limites deste trabalho, não será abordado para além desta breve referência. O foco esteve na apresentação da relação entre ética e sensibilidade no pensamento levinasiano a fim de enfatizar uma concepção encarnada da humanidade do homem. Para além, portanto, dos humanismos tradicionais, que relegam a um plano inferior os elementos ligados à corporeidade, Levinas apresenta uma descrição fenomenológica do humano a partir de um corpo em relação com o mundo, de um corpo que sofre com a fome e que se satisfaz do alimento; que sente prazer ou dor no que lhe toca a pele. E desse prazer primeiro avança-se a uma sensibilidade que, então, será abertura à exterioridade. Daí é que se segue a uma concepção de constituição subjetiva que se expressa de modo ético como acolhimento ao Rosto do Outro que se apresenta. Eis, portanto, o percurso de uma ética originada da sensibilidade humana, de um humanismo que se justifica a partir do acolhimento ao Outro.

Perspectivas de uma formação a partir de um humanismo do outro homem

Uma vez tendo-se feito esse percurso a partir da teoria levinasiana da constituição da subjetividade, chegando-se a uma compreensão da gênese do humano que se dá como sensibilidade e acolhimento, cabe retomar o debate sobre humanismo e formação. Vale lembrar que Levinas endossa muitos dos discursos contemporâneos que rompem com o humanismo moderno e, com outros pensadores, afasta-se de qualquer concepção de sujeito fundado na consciência. Sobre esse ponto seria possível avançar muito mais do que se expôs até o momento, pois é bastante consistente a argumentação do autor a esse respeito. Porém, tal desenvolvimento seria mais propício a um estudo monográfico do que a um artigo que apresenta uma das etapas conclusivas de pesquisa. Igualmente importante é enfatizar que, apesar desse afastamento, Levinas não se vincula às correntes filosóficas que renunciam em definitivo ao sujeito e ao humanismo. Grande parte do projeto filosófico de Levinas está orientado para elaborar a descrição fenomenológica de uma subjetividade que não se sustente na imanência da consciência, e de um humanismo justificado de outro modo, que não mais aquele da elevação racional do espírito. A subjetividade, tal como pensada pelo autor, é primeiro sensibilidade e acolhimento - como linguagem - do que razão e consciência. Trata-se de subjetividade como passividade, possível apenas a partir do Outro. Assim, a relação que a linguagem proporciona é acontecimento inaugural do humano: daí humanismo do outro homem. É esse acolhimento - possível a partir da sensibilidade - à manifestação que vem a partir de outrem, que possibilita que o Mesmo responda responsavelmente - eis a ética - e, assim, descubra-se humano. Na perspectiva levinasiana: não sou eu que fundo em mim a minha humanidade, mas é a presença de outrem que possibilita a mim perceber-me humano.

Muito embora Levinas não tenha se ocupado diretamente de estudos sobre a formação, é possível derivar da obra do autor uma concepção a esse respeito diversa daquela da tradição humanista da modernidade. O exercício que, aqui, parece ser possível e coerente fazer é o de justificar uma concepção de formação a partir do acolhimento levinasiano. Essa concepção de formação tem na sensibilidade uma relevância que não lhe foi atribuída pelos discursos originados no humanismo moderno. Num percurso de revisão do conceito de formação pretende-se justificar a primazia da sensibilidade sobre a consciência. Portanto, diferentemente do humanismo clássico, a razão e a consciência não mais serão fundantes do sujeito e da formação, assim como a autonomia do sujeito livre perderá sua centralidade nos processos educativos. Isso implica uma subjetividade descentrada: o sujeito possível já não é mais um sujeito em si, mas aquele que assim se constitui na relação. O humano possível já não está mais determinado nem por qualquer essência ou princípio, e nem por qualquer télos idealizado. Portanto, perde-se qualquer ideia de natureza humana ou outro modo de indicar algum fundamento imanente de nossa humanidade. Em lugar de uma humanidade necessária, acompanhada de promessas civilizatórias, o que temos é uma possibilidade humana que orienta uma formação sem quaisquer garantias.

Nessa linha de elaboração, a formação já não mais se ocupará perguntando pelos fins que deverá promover, mas orientar-se-á a partir do que a vivência dos encontros humanos atribuirá sentido. Frente ao que a tradição moderna tem nos legado, essa perspectiva inspirada no pensamento levinasiano poderá parecer por demais incerta e refém do efêmero. Ocorre, porém, que todas as tentativas históricas de capturar alguma essência ou perenidade do discurso formativo para gerar propostas educacionais objetivadas, tiveram em comum a crença na unidade. E a estrutura de unidade - marco dos pensamentos identitários - contrapõe-se às perspectivas da diferença. Ainda que de forma muito sutil tenha sido referida a vinculação de Levinas com um pensamento a partir da diferença, cabe enfatizar que o autor é um crítico contundente das teorias identitárias: ele rompe com as ideias de unidade e totalidade e, por conseguinte, com qualquer possibilidade de perenidade. Por isso, é que a formação, assim inspirada no fenomenólogo, nem se fundará em princípios e nem se orientará por fins a serem buscados. Resta conceber a formação como experiência intersubjetiva temporal. E é importante também complementar: essa experiência não decorre de qualquer intencionalidade, tal como algo que possa ser planejado e controlado, mas faz-se possível como passividade a partir da sensibilidade. Não há, portanto, qualquer prescrição que determine a responsabilidade formativa que um assuma frente a outros. O que é possível é o acolhimento e, a partir dele, a linguagem ao modo do diálogo que promove a relação sem relação: aquela relação como duração sustentada no acolhimento.

Ao se afirmar a formação sem fundamentos e sem garantias não se está diagnosticando qualquer deficiência por conta disso. Entende-se que a potencialidade da formação faz-se maior ao renunciar as suas bases unitárias. Mas, claro, se redimensionarmos muitas das expectativas que habitualmente colocamos sobre a formação e sobre os processos educativos a partir dela orientados. Da perspectiva que aqui está sendo proposta não caberá esperar a efetivação da perfectibilidade humana e nem a consolidação de projetos civilizatórios. Em lugar disso, agora, a ética faz-se decisiva na concepção da formação e, por conseguinte, terá algo relevante a contribuir com a derivação de processos educativos. Quanto mais há garantias e certezas, menos se recorrerá à ética; assim como é válido seu contrário. Por isso, o discurso com que se opera, tem uma contínua recorrência à ética. Pensar o humano como potencialidade, originado na sensibilidade, inspira discursos formativos com maior abertura estética e processos educacionais em que o encontro humano seja mais importante do que quaisquer desenvolvimentos de competências e habilidades preconcebidas. Assim, o que se aprende com o Outro é mais decisivo do que aquilo que se aprende do Outro ou sobre o Outro. Há muito se sabe que, no caso dos processos educacionais familiares, o exemplo dos pais tende a ser mais significativo à formação dos filhos do que as admoestações que tentam direcionar condutas. Do mesmo modo, ocorre nos processos educacionais escolares, em que as aprendizagens resultantes do envolvimento direto dos estudantes em projetos, tendem a ser mais significativas do que aquelas proporcionadas pela recuperação de discursos cristalizados para além do seu tempo. E, na referência a esses exemplos, não se quer fazer qualquer refutação a elementos da tradição - cuja relevância entende-se continuar sendo expressiva - mas se quer enfatizar a premência da proximidade na formação: quanto mais a formação promover condições favoráveis ao encontro humano - e, portanto, assumir uma orientação ética - maior será a sua contribuição para que daí resulte algo significativo à constituição desses sujeitos.

Considerações finais

Conforme já foi indicado no início deste artigo, frente à crise do humanismo cabe-nos assumir uma posição: ou de restabelecimento o mais próximo possível à sua origem, ou de refutação total, ou, ainda, de proposição de outro humanismo. A argumentação aqui desenvolvida, a partir do pensamento de Emmanuel Levinas, orienta-se pela terceira possibilidade, que inclui o reconhecimento da crise do humanismo e a insuficiência de suas bases, abrindo a possibilidade de constituição de outro humanismo, não mais centrado numa metafísica da consciência, mas orientado por uma perspectiva intersubjetiva. E, em especial, aqui estão recebendo atenção as implicações desse debate à concepção sobre a formação. A partir da argumentação já apresentada, cabe agora dar ênfase à estrutura ética com que é assumida a formação nesse movimento de revisão do humanismo.

Em comum aos discursos formativos está sempre algum tipo de expectativa de constituição da humanidade do homem. E, em qualquer dos discursos formativos, tal expectativa exige uma crítica rigorosa. Se o humanismo moderno não resiste às críticas contemporâneas, tanto à sua fundamentação, quanto aos seus ideais, qualquer outro humanismo que se queira conceber - e seus desdobramentos à formação - terá de atentar-se a essas mesmas críticas. Assim, cabe perguntar: o humanismo do outro homem, tal como é proposto a partir de Levinas - será capaz de sustentar-se para além dos limites do humanismo clássico? A resposta a essa questão não é simples, mas dela dependerá o alcance da argumentação até aqui apresentada. Dois aspectos foram analisados para que se chegue a algum esclarecimento sobre a questão apresentada: as implicações da metafísica ao humanismo levinasiano e a avaliação de um possível télos formativo decorrente da concepção de humano na obra do autor.

Muito embora Levinas afaste-se da metafísica da consciência e seja um crítico contundente da ontologia, ainda assim, elabora sua filosofia da subjetividade numa estrutura metafísica. Será preciso esclarecer, portanto, como é que a metafísica levinasiana responde às críticas contemporâneas ao humanismo para avaliar sua legitimidade e seu alcance. Algumas das críticas contemporâneas mais expressivas à obra de Levinas, voltam-se sobre o seu caráter metafísico. Nesta argumentação, se pretenderá menos defender a metafísica do autor, e mais analisar o alcance de um humanismo com teor metafísico. Ainda que seja difícil justificar qualquer discurso com conteúdo metafísico num contexto contemporâneo de refutação desse tipo de filosofia, destaca-se no autor a ausência de pressupostos ao modo de princípios ou essências. O que o autor chama de metafísica guarda uma dimensão que é de transcendência, mas não recorre a qualquer determinação prévia. É, portanto, uma metafísica a posteriori. E, ainda, diferentemente do que ocorre nas tradições mais consolidadas na filosofia, em Levinas o conteúdo metafísico opera no tempo e, por isso, sem perenidade. Assim, se comparada aos discursos clássicos, trata-se de uma metafísica “fraca”. Ela não serve para garantir fundamentos ou ideais. O aspecto decisivo da metafísica levinasiana está em justificar que a humanidade se instaura no sujeito a partir da exterioridade, a partir de um movimento de transcendência: o acolhimento que decorre da sensibilidade e do desejo metafísico, é que possibilita perceber o rosto do Outro (exterioridade) como apelo à ética. E porque o Outro não é captado como dado objetivo e, por isso, não pode ser apreendido pelo Mesmo, só se poderá justificar a resposta a essa exterioridade como movimento de transcendência. Assim, a transcendência coloca-se como refutação à objetivação do Outro e, por isso, a metafísica é que possibilita a ética. Desse modo, temos a relação sem relação, sensibilidade antes da razão, o humano sem qualquer unidade de gênero: eis a ética da alteridade como resposta responsável ao apelo de outrem.

Para este estudo, o foco não está em validar a metafísica levinasiana, pois é aceitável que lhe sejam feitas ponderações. Porém, o que se intenta enfatizar a esse respeito é a peculiaridade de uma metafísica que não se vale dos determinismos de outras matrizes. Assim, assume-se a posição do autor como plausível aos desafios da contemporaneidade, de modo a propor um humanismo livre de matrizes essencialistas e teleológicas, e que poderá justificar uma concepção de formação igualmente aberta à diferença.

O outro aspecto a ser avaliado diz respeito a possíveis elementos teleológicos do humanismo. A modernidade é objeto de crítica em razão do caráter idealista que orienta o humanismo e que dá à formação uma estrutura eminentemente teleológica. Para a modernidade, há um ideal de humanidade a ser perseguido e a formação é concebida de modo a orientar os meios que permitam alcançar essa imagem idealizada. Nesse sentido, será preciso esclarecer se o humano descrito por Levinas não acaba por converter-se em um outro modo de idealização que oriente o agir. Sobre este ponto, a resposta mostra-se mais clara, mas não óbvia. Não são tão raras as recorrências em que a filosofia levinasiana é lida a partir de uma perspectiva prescritiva e, disso, resulta a ideia de que devamos assumir eticamente nossa responsabilidade pelo Outro. No entanto, como já foi abordado, Levinas não desenvolve sua obra ao modo de uma teoria da ação, e sim como descrição do humano. Assim, decorre que o autor não estabelece critérios para juízos sobre o agir humano e menos ainda faz qualquer prescrição sobre esse agir. A fenomenologia levinasiana aproxima-se mais ao exercício de um observador que descreve o que é manifesto. Portanto, se o indivíduo irá ou não responder responsavelmente por outrem é algo que não poderemos nem saber previamente e nem intervir para garantir que ocorra. Não há uma ação formativa que conduza os sujeitos a se constituírem eticamente e, assim, se reconhecerem como humanos. A filosofia levinasiana é bem menos pretensiosa do que isso: quer especular sobre como se constitui a humanidade do homem que está aí no mundo. Portanto, trata-se de uma filosofia livre de qualquer pretensão teleológica e, portanto, de um humanismo sem qualquer ideal de humanidade.

Ora, uma vez demarcados os afastamentos levinasianos em relação ao humanismo moderno, agora, cabe revisar alguns pontos que caracterizam um novo humanismo e suas implicações ao discurso formativo. A partir do que foi exposto ao longo do artigo, assumem-se duas dimensões da obra de Levinas para que se conceba a formação a partir de um humanismo do outro homem: a primeira, é marcada pela sensibilidade, a partir da qual justifica-se o acolhimento como ética da alteridade; a segunda dimensão orienta-se pela concepção de linguagem apresentada pelo autor, que nos possibilita elaborar uma perspectiva dialógica da formação.

A sensibilidade, tal como aqui vem sendo apresentada, remete a um sujeito corpóreo que goza da existência e que, a partir da felicidade como saciedade, passa a desejar o que está mais além da possibilidade de ser tomado para si. É aí que nasce o acolhimento: abertura ao estranho e sensibilidade em deixar que se mostre o Outro que não pode ser objetivado. É nesse desdobramento da sensibilidade que o humano se constitui eticamente. Assumir esse percurso argumentativo num discurso formativo, abre-se a possibilidade de se conceber uma educação a partir das experiências corpóreas, em que as vivências prazerosas sejam potencializadoras de uma sensibilidade para com o Outro. Não se trata, no entanto, de estágios necessários de desenvolvimento ou de técnicas para aquisição de habilidades ou competências. Pensa-se, nesta perspectiva, a formação como possibilidade humana, sem garantias e sem pretensão de resultados objetiváveis. Ainda que não se possam dar garantias, algumas conclusões são justificáveis por coerência argumentativa: as experiências educativas com maior grau de vivência corpórea e de encontro com o Outro, terão maior possibilidade de favorecerem a constituição ética do sujeito, se comparadas a experiências de indiferença à presença alheia (um exemplo simples dessa prática na ação educativa: são os modos de disposição dos estudantes em fileiras, círculos ou grupos, que possibilitam distintas vivências de encontro humano). De outro modo, uma educação que segmenta indivíduos e os estimula à competitividade com vistas a serem empreendedores exitosos e inovadores que vençam nas relações de mercado e trabalho, estimulará muito mais a indiferença ao Outro do que seu acolhimento. Portanto, uma formação orientada a partir de um humanismo do outro homem se expressará como educação favorável ao desenvolvimento da sensibilidade e do acolhimento. Observe-se que sensibilidade e acolhimento não são fins educativos, mas meios constituintes da própria humanidade. Portanto, não estão indicados os fins da educação. Nesse sentido, a ideia de formação vincula-se à ética: a formação do sujeito se dá na própria constituição da sua humanidade e, portanto, do seu descobrir-se responsável pelo Outro. O percurso descritivo levinasiano nos permite inferir que a formação ou possibilita a constituição do sujeito ético, ou ela não ocorre. A ênfase está no acontecimento em curso, como vivência formativa. Não se trata de ideal a ser alcançado. Trata-se apenas de descrever o que se manifesta como humano.

E para afastar ainda mais qualquer associação dessa argumentação a visões idealizadas de humanidade, cabe enfatizar o caráter temporal e de linguagem que a formação aqui assume. Aquilo que nos constituímos como humanos não é algo definível. Do movimento descritivo apresentado não se poderá chegar a algum tipo de extrato ou essência comum a ser, então, atribuído a toda a humanidade como se fosse uma descoberta do humano. Aquilo que chamamos de humano é muito mais transitivo do que perene. Nesse sentido, o grande desafio da formação está em dialogar com a transitividade. A nossa humanidade é acontecimento no tempo, está em movimento. Quando se tenta capturar um instante, ao extraí-lo do movimento temporal, perde-se sua originalidade. Esse é o modo do acontecimento da linguagem: encontro humano num tempo, encontro em transição, que perdura enquanto entre seus partícipes houver alguma proximidade. Nesse sentido, a linguagem é sempre acontecimento singular, que se perde da sua originalidade quando se tentar capturá-la para a perenidade. Para os debates hodiernos acerca da formação, especialmente aqueles com alcance direto aos processos educativos institucionalizados, esse é um aspecto bastante difícil de ser compreendido. Isso porque os discursos formativos desse viés tendem a buscar algo que seja tangível e que ofereça seguranças e até mesmo padrões de ação. É importante enfatizar que o percurso teórico sobre a formação aqui em construção, a partir do pensamento de Levinas, toma uma direção diversa: pensa-se a formação no plano do intangível, sem oferecer garantias de resultados e contrapondo-se às objetividades que justificariam padrões de ação.

O desafio posto é pensar a formação como encontro humano original. Trata-se de formação a partir do encontro do Outro a partir do rosto que se manifesta. Com Levinas, assume-se que “o face a face funda a linguagem” (LEVINAS, 1990a, p. 228). É na linguagem - que se efetiva como acontecimento temporal em transição - que se dá a formação do humano. Nada de formativo se pode dizer do Outro ou sobre o Outro. O dizer formativo é encontro com o Outro. Não se forma o Outro, mas a formação é acontecimento ao modo do encontro, em que aqueles que na linguagem se aproximam, tem a possibilidade de formarem-se em sua humanidade.

Enfim, empreendeu-se aqui um percurso argumentativo que demarcou seu afastamento das visões humanistas clássicas acerca da formação, mas também precaveu-se de não negar a humanidade do homem como possibilidade formativa.

Nesse contexto, já não mais se quer defender qualquer discurso civilizatório de uma educação redentora e garantidora de perfectibilidade humana. Ao contrário, entende-se que todas as tentativas de vincular a formação a ideais de perfectibilidade, tiveram como um de seus efeitos algum tipo de negação dos indivíduos que não corresponderam a esse standard de humanidade idealizada. Nesse sentido, os mais nobres projetos civilizatórios foram também produtores de uma barbárie interna a si próprios.

Os elementos teóricos aqui abordados a partir do pensamento filosófico de Levinas visaram contribuir para os debates sobre a formação a partir das perspectivas da diferença e da pluralidade, pensando o humano sem essências ou ideais determinantes. Porém, de modo diverso daqueles que negam qualquer possibilidade de humanismo, aqui se defende a formação como acontecimento que só se pode justificar na linguagem e, portanto, no encontro.

O humano, portanto, é o que assim se manifesta como encontro. No encontro humano, o acolhimento parece ser o que mais possibilita ampliar a duração desse acontecimento de proximidade. Daí a ênfase ética de uma formação pensada a partir do humanismo do outro homem.

Referências

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Recebido: 04 de Fevereiro de 2019; Aceito: 30 de Outubro de 2019

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