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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.34 no.70 Uberlândia jan./abr 2020  Epub 06-Fev-2022

https://doi.org/10.14393/revedfil.v34n70a2020-50879 

Artigos

“Positivista feliz” ou “hipermilitante pessimista”? Sobre os atos de problematização em Michel Foucault1

Michel Foucault: “Happy positivist” or “Hyperactivist pessimist”? On its acts of problematization

¿"Positivista feliz" o " hipermilitante pesimista "? Sobre los actos de problematización de Michel Foucault

Jean Dyego Gomes Soares* 
http://orcid.org/0000-0003-1096-9686

*Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Professor na Universidade Federal de Lavras (UFLA). E-mail: jeandyego@gmail.com


Resumo

Através do escrutínio de duas noções centrais do pensamento de Michel Foucault - crítica e genealogia-, este texto elucida o conceito de problematização, dando ênfase a seu possível caráter performativo. Numa primeira parte, construímos uma perspectiva do que seria a tarefa do pensador crítico, para, num segundo momento, elucidar a diferença entre uma história das soluções e uma genealogia dos problemas. A provocativa interrogação do título remete a duas atitudes aludidas pelo filósofo. Ao pensar os atos de problematização, esperamos fornecer uma posição acerca deles, e mostrar um modo particular do autor de moldar as noções centrais abordadas anteriormente.

Palavras-Chave: Crítica; Genealogia; Atos de Fala; Filosofia; Problematização

Abstract

Scrutinizing two main notions of Michel Foucault’s thinking - Critique and Genealogy -, this paper elucidates the concept of problematization, with an emphasis in its hypothetical performative aspect. Firstly, we build a perspective on the task of a critical thinker to, in a second moment, elucidate the difference between a history of solutions and a genealogy of problems. The provocative question mark in title refers to two attitudes alluded by Foucault. Reflecting about acts of problematization, we hope to offer a position about them, and show the particular way of this author to shape those central notions approached before.

Keywords: Critique; Genealogy; Speech Acts; Philosophy; Problematization

Resumen

Mediante el escrutinio de dos nociones centrales del pensamiento de Michel Foucault - crítica y genealogía - este texto elucida el concepto de problematización, enfatizando su posible carácter performativo. En la primera parte, construimos una perspectiva del que sería la tarea del pensador crítico, para en un secundo momento, elucidar la diferencia entre una historia de las soluciones e una genealogía de los problemas. La provocativa interrogación del título remite a dos actitudes de Foucault. Pensando los actos de problematización, nosotros intentamos fornecer una posición acerca de ellos, y mostrar un modo particular del autor de moldar las nociones centrales abordadas anteriormente.

Palabras clave: Crítica; Genealogía; Actos del habla; Filosofía; Problematización

Introdução

A relação entre crítica e genealogia é um traço marcante dos trabalhos de Michel Foucault. Se, por um lado, ele se manifesta sobre o projeto crítico revisando essa herança filosófica, por outro, sua relação com o trabalho genealógico também é marcada por essa atitude. Influenciado por essas duas tendências, ele acaba por ressignificá-las à sua maneira. Chega mesmo a fazer um paralelo elucidativo em sua aula inaugural, a saber, “que se o estilo crítico é o da desenvoltura estudiosa, o humor genealógico será o de um positivismo feliz” (FOUCAULT, 1970). Este artigo investiga primeiramente como Foucault molda a tarefa desse desenvolto estudioso - o crítico. Ao salientar suas nuances, veremos que ele desperta uma ontologia do presente, isto é, uma nova forma de pensar nossa relação com a atualidade. Como veremos, a leitura por ele desenvolvida de um opúsculo de Immanuel Kant ganha especial relevância nessa etapa. Contudo, se falamos de uma ontologia do presente, faz-se necessário compreender qual a relação desse pensamento com o passado. É nessa etapa que a moldura genealógica proposta por Foucault entra em cena com o claro intuito de discernir o modo de escrever a história por ele avalizado. Seria esse modo somente a manifestação do humor de um positivista feliz, como ele sugere em sua aula inaugural? Ou algo do hipermilitante pessimista que surge no trabalho crítico poderia ajudar a mitigar tal “positivismo”? A resposta a essas questões passa inevitavelmente, por compreender o que seria uma “genealogia dos problemas”, o que nos conduz inevitavelmente à noção de problematização. Foucault a define como o conjunto de práticas que faz alguma coisa entrar no jogo do verdadeiro e do falso, e o constitui como objeto para o pensamento. Tentaremos elucidá-la melhor, seguindo uma sugestão pouco explorada por Colin Koopman, a saber, a de atos de problematização. Como compreender problemas para além das palavras? Seria o caso de, numa analogia com os atos de fala, sugerir que em uma determinada época ao discutir determinado assunto, seus agentes estariam “criando um problema”, isto é, criando uma maneira específica de colocar uma questão em um determinado lugar e tempo?

A tarefa do crítico. Foucault manifestará uma maneira de pensar a crítica, notadamente nos anos de 1980, que consistia não simplesmente em negar ou idealizar alteridades, mas em pensá-las de modo transformador e presente. Como ele mesmo sugere em uma entrevista a Didier Eribon de maio de 1981:

Não creio que se possa opor crítica e transformação, a crítica “ideal” e a transformação “real”. Uma crítica não consiste em dizer que as coisas não são bem como elas são. Consiste em ver sobre quais tipos de evidência, de familiaridades, de modos de pensar adquiridos e não refletidos repousam as práticas que se aceita. (...) A crítica consiste em desalojar esse pensamento [que anima os comportamentos cotidianos] e tentar mudá-lo: mostrar que as coisas não são tão evidentes quanto se crê, fazer de tal modo que o que é tido como certo não o seja mais. Fazer a crítica é tornar difíceis os gestos mais fáceis (FOUCAULT, 1981, p. 180).

A tarefa da crítica delineia-se numa zona do pensamento avessa a confortos cotidianos e ao que resta normalizado pelas práticas. A crítica se dispõe a deslocar os limites do normal, como que desejosa de oferecer uma resistência positiva, não simplesmente negando gestos fáceis. Ela não busca um novo interdito, não quer calar comportamentos cotidianos, ou censurar e denegar o direito de ser, mas quer complexificar de tal modo que, por um estranhamento inesperado, as familiaridades e as “boas maneiras” se tornem objeto de discussão, arejando as vias do pensamento. A crítica enseja uma resistência positiva, na medida em que investiga novos caminhos. Se for preciso se dedicar aos gestos da loucura, da literatura, das prisões ou das ciências humanas, o objetivo será discutir as múltiplas possibilidades práticas, de modo a resistir para permitir novas práticas. Prossegue Foucault:

Nessas condições, a crítica (e a crítica radical) é absolutamente indispensável para qualquer transformação. Pois uma transformação que repousa sobre um mesmo modo de pensar, uma transformação que só seja uma maneira de melhor ajustar um mesmo pensamento à realidade das coisas só seria uma transformação superficial. Pelo contrário, a partir do momento que se começa a não mais poder se pensar as coisas como se lhes pensava, a transformação se torna, por sua vez, muito urgente, difícil e, em todo caso, possível. Assim, não há um tempo para a crítica e outro para a transformação, não há os que devem fazer a crítica e os que devem transformar, os que estão fechados em uma radicalidade inacessível e os que são impelidos a fazer as concessões necessárias ao real. De fato, creio que o trabalho de transformação profunda só pode ser feito ao ar livre e sempre agitado por uma crítica permanente (FOUCAULT, 1981, pp. 180-1).

Há uma intenção clara de desfazer uma disjunção. Não só a crítica desestabiliza pensamentos muito arraigados, como dá vitalidade a processos de transformação. Se, sem ela, como observa Foucault, qualquer transformação soa “superficial”. A tarefa do crítico começa ao instaurar certo desconforto. Em todo caso, essa é somente metade da história. Para que a tarefa do crítico seja consumada, soa bem não dissociar seu trabalho discursivo de suas ações - crença de Foucault em sincronia com sua carreira, ao mesmo tempo combativa, capaz de estar ao ar livre para se manifestar e fazer valer sua voz, bem como agitada por uma crítica permanente a si mesmo, repleta de deslocamentos, de suspeitas diante de gestos fáceis, do sempre igual, de transformações que uniformizam sem diferenciar. A relação entre a tarefa do crítico e a exposição ao diferente constitui uma atitude basilar na formação intelectual. Sem essa relação salutar, as idiossincrasias se arraigam mais profundamente, ameaçando seu trabalho.

Em 1984, Foucault não é categórico, mas deixa claro o que lhe parece crucial, e lhe parecia esquecido:

É a função mesma do trabalho crítico que foi esquecida. Nos anos cinquenta, com Blanchot, com Barthes, a crítica era um trabalho. Ler um livro, falar de um livro era um exercício ao qual as pessoas se dedicavam de certo modo para si, para seu próprio benefício, para se transformar a si mesmas. Falar bem de um livro de que não se gostava ou tentar falar com distância suficiente de um livro de que se gostou muito, todos esses esforços faziam que de uma escrita a outra, de um livro a outro, de uma obra a um artigo, algo se passasse (FOUCAULT, 1981, pp.76-7).

Entrevistado pelo estimado Didier Eribon, seu futuro biógrafo, Foucault ressalta uma vez mais o papel do crítico. Sua tarefa é um tipo de exercício cuja repetição evita a reiteração irrefletida das próprias crenças. Exercício benéfico, ele impele o crítico àquilo cujo potencial se mostra transformador por ser estranho, desafiando as idiossincrasias. Falar bem do que não se gosta tanto quanto buscar distância do que encanta: se essa atitude não constitui um imperativo, ela sugere um exercício benéfico que faz surgir algo de diferente, de desafiador, de afirmativo. O reverso dessa tarefa - falar bem e com intimidade do que se gosta, e com distância e indiferença do que não encanta - parece uma atitude cada vez mais em voga no século XXI. Não que isso seja censurável, mas restringir as nossas possibilidades a isso pode ser extremamente empobrecedor. A carência de atitude crítica que sentimos pode estar ligada à ausência desse exercício, uma vez que só falamos do que gostamos e literalmente bloqueamos de nosso horizonte (virtual, simbólica ou realmente) aquilo em que não acreditamos ou que não gera qualquer encantamento. Foucault já detectava esse declínio na década de 80, como expressa na mesma fala: “é evidente que hoje não existe mais nenhum tipo de publicação capaz de assumir uma verdadeira função crítica”. E isso se devia à raridade de iniciativas públicas de edição e debate de trabalhos que se debruçavam sobre tal tarefa. Tendo em consideração a esfera pública mais do que a acadêmica, na qual detectava núcleos de resistência da tarefa crítica, não surpreende que o autor tenha enfatizado a importância de uma coluna de jornal de Kant como relevante para compreender tal tarefa, indo além das já tão estudadas três críticas.

Foucault se manifestou algumas vezes sobre “Was ist Aufklärung?”, pequeno opúsculo jornalístico escrito por Kant como resposta a Mendelssohn. Em 1978, em apresentação à Sociedade Francesa de Filosofia, ele faz aquela que talvez seja sua primeira manifestação pública sobre esse texto, uma provocativa apresentação intitulada “O que é a crítica?”. Provocativa por algumas razões. Primeiramente, porque Foucault interpela o projeto crítico de Kant como uma atitude de intervenção na esfera pública, enquanto até ali era visto como projeto de revolução dos modos de fazer filosofia. Tratava-se de limitar as possibilidades do conhecimento ao deslocar o eixo central das reflexões filosóficas da metafísica para o homem. A atitude pública emancipatória envolvida nessa tarefa não tinha o relevo que hoje ela possui, em boa parte, graças às lições de Foucault. Em segundo lugar, porque a pretensão ontológica contida na formulação foucaultiana pode enganar desavisados: não se trata de responder universalmente à questão, mas de mostrar como cada tempo encara a tarefa da crítica. E por isso, em terceiro lugar, surpreende e provoca centralizar a reflexão em um artigo de jornal. A filosofia, que havia se dedicado por tanto tempo aos escritos de notória perenidade, é colocada diante do desafio de pensar uma questão presente, publicada no jornal, deslocada, mas inserida no ambiente da crítica. Em quarto lugar, porque Foucault buscava “falar bem” ou pelo menos “com uma distância suficiente” de algo que os filósofos não liam e talvez mesmo naquela época nem gostassem - textos jornalísticos de Kant. Dito isso, lemos a seguinte passagem de Foucault:

Diria que a crítica é o movimento pelo qual o sujeito se dá o direito de questionar a verdade sobre seus efeitos de poder e o poder sobre os discursos de verdade; e pois, a crítica será a arte da inservidão voluntária, esta de uma indocilidade refletida. Essencialmente, a crítica teria por função o desassujeitamento no jogo do que se poderia chamar, em uma palavra, a política da verdade (FOUCAULT, 1978, 39).

Quais verdades podem formar uma subjetividade? Quem? Quais são os vetores que desejam formatar esses discursos que os sujeitos consideram verdadeiros? O que tem sido feito para formar sujeitos que dócil e voluntariamente servem aos discursos de verdade? E finalmente a questão central: quais as políticas da verdade em jogo? O projeto crítico de Kant não promoveu somente uma revolução na maneira de pensarmos filosoficamente, ele suscitou questionar os limites pelos quais a verdade se forma - é isso que Foucault parece vislumbrar numa leitura polêmica de Kant. A crítica é capaz de reconhecer e estranhar - dizer que o monarca ao mesmo tempo concede liberdade aos clérigos de agirem publicamente, e exige que lhe sejam servos. Essa ousadia de “tensionar”, de mostrar o que em uma mesma prática pode emancipar e o que pode perpetuar o assujeitamento caracteriza tal atitude. Por isso o sintagma “política da verdade exprime tão bem o exercício da crítica, pois expressa essa capacidade de encontrar, através de um trabalho plural, os diversos vetores que se encontram na disputa nada pacífica sobre o que é verdadeiro para aqueles de uma época. Esse exercício só é possível ao ouvirmos vozes diferentes, radicalmente díspares que coloquem em contraste as perspectivas em que se encontram. Duas pessoas podem estar falando da mesma palavra - “branco”, “preto” ou “bacana” - mas não entenderem a mesma coisa, e iniciarem uma disputa pela verdade de seu sentido. Assim, o texto de Kant entra na disputa política sobre a verdade acerca do que é o esclarecimento.

Falar de políticas da verdade implica pensar seus jogos. Um exemplo: o proposto por Kant ao sugerir uma atitude emancipada quando a tarefa pareceria restrita. Um clérigo, que poderia se restringir “a ensinar os instruendos de catecismo” à sua comunidade em conformidade com o símbolo da Igreja, deve ousar como erudito no interior do império de Frederico II e ter, segundo o autor,

plena liberdade e até a missão de participar ao público todos os seus pensamentos cuidadosamente examinados e bem-intencionados sobre o que de errôneo há naquele símbolo, e as propostas para uma melhor regulamentação das matérias que respeitam à religião e à Igreja (KANT, 2018, p. 486).

Kant apresenta-nos um jogo em que as regras, tanto quanto as práticas estão em discussão. Se a atitude tradicional do clérigo é perpetuar e defender a igreja e suas práticas, uma atitude crítica consistiria em compartilhar pensamentos sobre o que há de errôneo, ou seja, pôr em litígio o considerado verdadeiro nas matérias que regulam suas práticas. São duas atitudes distintas, duas políticas da verdade distintas - numa, perpetua-se a verdade acriticamente, na outra, questões são levantadas. Só quem é capaz de entrar nesse jogo de maneira emancipada, ou seja, percebendo a relevância política de ambas (e não só de uma delas), percebe como a verdade está politicamente em disputa.

Esse mesmo texto de Kant será retomado por Foucault em outros momentos, de maneira indireta em entrevistas e notadamente no início de seu curso de 1983, marcado pelo deslocamento definitivo de sua pesquisa para o problema da parresía, do dizer-verdadeiro, do falar-franco. Em ambos os casos, a questão do governo está em causa: em 1978, como sugere Frédéric Gros, a questão seria “como não ser governado”; em 1983, por sua vez, ela passa a ser - como a tomada da palavra em público, comprometida com a verdade, pode permitir o surgimento da questão “que governo de si deve ser posto ao mesmo tempo como fundamento e limite do governo dos outros?” (GROS, 2010, p. 345). A formulação deixa sua forma negativa e reativa para se pôr positivamente, gerando um deslocamento do entendimento da tarefa pública da crítica que colabora com o tratamento de outra questão, cito Foucault,

o que é o hoje? Me pergunto se poderíamos caracterizar um dos grandes papéis do pensamento filosófico, desde a questão kantiana ‘Was ist Aufklärung?’, ao dizer que a tarefa da filosofia é dizer o que é a atualidade e dizer o que “somos nós atualmente (FOUCAULT, 1983b, p. 448).

Governar a si mesmo, ou, se quisermos pensar esse motivo foucaultiano nos termos do texto de Kant, a saída da menoridade, exige, como vimos no exemplo do clérigo, tanto a ação emancipada quanto um diagnóstico da atualidade em que se vive. Agir sem um diagnóstico pode resultar numa busca por transformação acrítica, que deseja mudar simplesmente pela mudança, sem o domínio do papel a desempenhar na ação. E diagnosticar sem agir resulta numa apatia crítica, uma vez que, a despeito de um bom discernimento, é-se incapaz de governar as próprias ações. Assim, a ousadia a que Kant se refere é esta que leva o clérigo a refletir sobre as práticas contemporâneas de sua igreja, bem como a agir no sentido de transformar o que é possível na atualidade.

Assim sendo, será que se trata de transformar o que é possível ou o que não parece possível, o impossível na atualidade? Se governar a si mesmo implica entender a atualidade, por que retornar à história? Se o iluminismo possibilitou o surgimento de uma ontologia do presente que se pergunta sobre o que somos hoje e não sobre o que sempre foi e será, qual a importância do passado?

História das soluções, Genealogia dos problemas.Arrisco uma resposta a essas questões a partir de uma distinção dada por Foucault numa entrevista em Berkeley, em 1983. Cito-a:

Não! Não procuro uma solução alternativa; não se encontra a solução de um problema na solução de outro problema colocado em outra época por pessoas diferentes. O que gostaria de fazer não é uma história das soluções e é a razão pela qual não aceito os termos “outra escolha”. Gostaria de fazer a genealogia dos problemas, das problemáticas. Não procuro dizer que tudo é ruim, mas que tudo é perigoso - o que não é exatamente a mesma coisa do que ruim. Se tudo é perigoso, então temos sempre algo a fazer. Pois minha posição não conduz à apatia mas, ao contrário, a uma hipermilitância pessimista (FOUCAULT, 1983a, p. 386).

Foucault faz eco aos dizeres do monólogo rosiano de Riobaldo: “Viver é muito perigoso” (ROSA, 2006). A defesa do risco, feita assertiva e positivamente, resulta de uma genealogia dos problemas, das problemáticas e não de um modo típico de se fazer a história. De que se trata quando se fala em genealogia dos problemas? O que a diferencia de outras práticas? Por que assumir essa postura implica assumir riscos?

A retomada da discussão anterior sobre a crítica e o iluminismo marca uma diferença de atitudes reiterada aqui de outra maneira. Primeiro negativamente, Foucault é outra vez assertivo: não procura solução alternativa, não faz história das soluções. Ao se dedicar à parresía de Sócrates, de Péricles ou de Diógenes, ao estudar as prisões, a biopolítica, a épistémè da semelhança na Idade Média, entre outros tantos exemplos, ele não pretende encontrar uma solução alternativa em uma época diferente. Ele não procura retratar com nostalgia respostas a problemas que só conhecemos pela história, como se nos dissesse - “eis aqui a escolha que não fizemos para o nosso presente, mas poderíamos ou mesmo deveríamos ter feito”. Essa atitude prescreveria uma moral, buscando assegurar que o retorno a uma origem avalizaria alguma reconciliação com um momento perdido, através da realização de um modo de viver historicamente redentor. Atitude que seria tradicionalista às avessas ao defender que reviver a história - ainda que seja aquela dos vencidos - seria uma maneira de redimir a experiência.

Ele procura expor o risco contínuo da atualidade. Por isso, não se trata de retornar aos gregos para reviver suas soluções, mas de, através deles, sensibilizar-se para como somos hoje, através de experiências que mostram rupturas e continuidades. Como ele mesmo sugere:

Somos mais recentes do que cremos, o que não é uma maneira de colocar todo o peso de nossa história sobre os nossos ombros. É sim de colocar à disposição do trabalho que podemos fazer sobre nós mesmos a maior parcela possível disto que nos é apresentado como inacessível (FOUCAULT, 1981, p. 182).

Se certas maneiras de governar a si e aos outros podem parecer inacessíveis, como as de um filósofo grego ou de um monarca, ainda assim, ao estudar a emergência de tais problemáticas em outros lugares, as possibilidades de compreensão do presente se ampliam, pois o trabalho crítico dedica-se não só àquilo que conhece bem, mas àquilo que não surge à primeira vista. Por isso, não se trata de um trabalho apático que tenta encaixar soluções anacrônicas no espaço criado para responder aos novos problemas que estão postos. A hipermilitância consiste em estar sempre disposto a trabalhar ainda que, por vários momentos, o objetivo traçado se mostre inacessível ou de difícil alcance. Por isso, essa hipermilitância seria pessimista, pois mesmo consciente dos seus limites, continua a militar. Um pouco antes nessa entrevista, Foucault sugeriu que uma das condições da crítica “é tornar difíceis os gestos mais fáceis”, é investigar algo “que se esconde frequentemente, mas anima sempre os comportamentos cotidianos”, é desalojá-lo em busca de alguma mudança (FOUCAULT, 1981, p. 180).

Como sugere o autor, simplesmente buscar soluções na história pode incorrer na naturalização de gestos cotidianos. Se ela naturaliza o que sempre foi feito assim, porque razão refletir sobre isso? - diria um “historiador” das soluções. A tarefa da crítica consiste em 1) expor os limites dessa prática histórica; e 2) sugerir-lhe novos caminhos. Não se trata só de uma frase de efeito: “tornar difíceis os gestos mais fáceis” reflete uma nova maneira de pensar a história capaz de, através da exposição ao risco, não apaziguá-lo, invertendo e desnaturalizando o que parece simples e fácil, isto é, garantido. A crítica faz o “natural” parecer questionável. Isso porque expõe os pontos de emergência dessa naturalidade, atribuindo-lhe uma historicidade que mostra os problemas presentes consolidados em nossas práticas cotidianas como solução. Através dessa perspectiva crítica nos tornamos mais capazes de perceber os problemas, não menosprezando suas proporções presentes.

A noção de problematização desempenha um papel central nas investigações de Foucault, embora só a tenha “isolado” suficientemente em seus últimos escritos, como admite em “O cuidado da verdade”, “as coisas mais gerais são as que aparecem em último lugar” (FOUCAULT, 1984, 670). Problematização “é o conjunto das práticas discursivas e não-discursivas que faz alguma coisa entrar no jogo do verdadeiro e do falso e o constitui como objeto para o pensamento” (FOUCAULT, 1984, p. 671). Nessa medida podemos compreender melhor a diferença entre história das soluções e genealogia dos problemas. Ao estudar a desrazão e a loucura, Foucault não estava interessado em representar um objeto teórico preexistente ou em criar, através do discurso, um objeto que não existia. Seu interesse é saber “como e porque a loucura em um dado momento, fora problematizada através de uma certa prática institucional e um certo aparelho de conhecimento” (FOUCAULT, 1984, p. 670). Como exemplo, Vigiar e punir apresenta-se como uma análise das “mudanças na problematização das relações entre delinquência e castigo através das práticas penais e das instituições penitenciárias no final do século XVIII e início do XIX” (FOUCAULT, 1984, p. 670), ou seja, não se trata de definir um objeto teórico chamado “delinquência” ou “castigo”, tampouco de criá-los como tipos ideais para compreender os problemas em questão. O expediente de Foucault é o de, através do exame genealógico-crítico minucioso, perceber como aquele problema se configurou e, assim, pensar como ele influencia nossa atualidade. Menos do que narrar a história das soluções, a saber, uma história sobre como a loucura foi sanada ou a delinquência controlada, Foucault sugere uma genealogia de como a loucura e a desrazão se transformaram em um problema específico para uma dada época, ou como a delinquência e o castigo suscitaram novos problemas no recorte histórico assinalado. Com isso, ele se desvia da exigência de encontrar uma origem escondida, uma vez que os problemas possuem emergências localizadas ao longo do tempo. Ao falar dos modos de subjetivação, ele pode abordar a “ética” não como objeto do conhecimento, mas como campo de problematizações, em que nos perguntamos como o problema do governo de si e dos outros é colocado, evitando o âmbito normativo e fundacional da ação moral (CANDIOTTO, 2013, p. 220).

Colin Koopman (In LAWOR, 2014, p. 399-403) nota dois sentidos do termo problematização, tornando mais perceptível a importância desse termo-chave. O primeiro enquanto verbo “denota algo que o investigador faz, a saber, se questiona sobre os meios de compreender a nós mesmos através de nossos problemas de modo que podemos responder de maneira mais prática sobre o que somos” (In LAWLOR, 2014, p. 400). Então, se Foucault problematiza algo, assim o faz porque o que emerge no curso dos acontecimentos se mostrou problemático, não se apresentando de modo coerente e sensibilizado numa história das soluções. No segundo sentido, enquanto substantivo, problematização “se refere a um feixe de materiais problemáticos que achamos problemáticos, sobre os que quais sentimos angústia e mais ainda tendemos a ficar obcecados, tanto enquanto indivíduos quanto em um nível mais geral enquanto sociedade e cultura” (In LAWLOR, 2014, p. 400). Ao refletir sobre a loucura, sobre a ética ou sobre a sexualidade em chave foucaultiana, o investigador se coloca um problema que o é a nível individual, ou seja, é importante para governar a si mesmo, mas também o é num nível mais geral, isto é, importante para os modos pelos quais todos somos governados. Ele busca uma maneira de tornar o problema sensível, de modo que isso colabore para que cada um e o todo reflitam sobre os caminhos a tomar.

Por fim, Koopman sugere uma interessante noção, a saber, a de “atos de problematização”. Cito sua definição: “um modo de sumarizar a noção de problematização de Foucault em seus dois sentidos é ver atos [acts] de problematização como dando coerência à problematização existente que é o objeto sobre o qual o ato opera. A atividade de problematizar torna o objeto de problematização mais coerente, mas também mais desafiador” (In LAWLOR, 2014, p. 400). No verbete citado, o estadunidense restringe-se a essa breve sugestão.

Gostaríamos de, todavia, confrontá-la com uma noção importante, a noção de enunciado. Estudada por Foucault em A arqueologia do saber, ela guarda proximidade com os atos de fala [speech acts] propostos por John L. Austin (1990). No capítulo Estratégias do enunciado (SOARES, 2018), argumento que, apesar de ambos os autores se assemelharem na defesa de que as palavras não só dizem como fazem algo, a noção de enunciado proposta por Foucault guarda a possibilidade de que inclusive desentendimentos, disputas e falhas do discurso sejam relevantes para análise, contemplando algo que a teoria dos atos de fala, bem como sua doutrina das infelicidades pouco contemplam, ou não contemplam de maneira tão afirmativa.

Ao falar de “atos de problematização”, Koopman nos remete inevitavelmente aos atos de fala. Esses atos consistiriam numa formulação madura da atitude de Foucault diante de suas investigações discursivas ou não, porque não se trata somente da apresentação de um problema, como no caso da filosofia tradicional. Indo um pouco além do sugerido pelo estadunidense, em certa medida, ao problematizar - ao agir no sentido de expor desentendimentos, disputas, descontinuidades, falhas, proximidades, emergências de certos problemas em determinados recortes históricos - Foucault faria um novo problema para o nosso presente. Ao mesmo tempo em que ele mostra como um problema emergiu em determinado momento da história de uma maneira diferente, como nos casos supracitados da loucura ou da punição, ao expô-lo a sua atualidade, Foucault possibilita não a retomada plena e a-histórica de um problema, como se ele fosse também um problema com as mesmas disposições para nós, mas faz dele um problema outro que colabora para a compreensão de nossos problemas atuais. Se a atividade de problematizar simultaneamente torna o objeto mais coerente e desafiador, isso assim o é porque passamos a elaborar o problema de uma forma que não elaborávamos anteriormente. Ele se torna mais desafiador, porque coloca novas questões também para a atualidade em que vivemos, uma vez ampliado o horizonte das possibilidades de modulação.

Um pouco como o enunciado permite buscar as falhas do discurso, se pensarmos a pesquisa sobre os enunciados como um ato de problematização, perceberemos as distâncias e as proximidades que esses enunciados guardam em relação ao nosso presente. Uma genealogia das problematizações seria assim a pesquisa sobre os diversos modos pelos quais um determinado conjunto de práticas foi problematizado, ou seja, se tornou objeto de questões, em uma determinada época.

Uma possível objeção parcial a essa atitude de ênfase na problematização e não nas soluções pode ser observada na discussão sobre o politicamente correto conduzida por Slavoj Žižek (2016, 2017, 2018). O autor nota que simultaneamente a uma desintegração da esfera pública de debate e da eticidade dos costumes por figuras que afirmam sua postura imprópria (casos de Donald Trump, Benjamin Netanyahu, Jair Bolsonaro, além de diversos outros exemplos no cenário político brasileiro atual), há também um crescimento do “politicamente correto” que simplesmente prescreve o que deve ou não ser dito. Cito Žižek:

Para demonstrar esse ponto, basta retomar o impasse do politicamente correto: a necessidade de regras “politicamente corretas” surge quando os valores não ditos de uma sociedade não são mais capazes de regular efetivamente as interações cotidianas - no lugar de costumes consolidados seguidos de forma espontânea, ficamos com regras explícitas (“negro” se torna “afro-americano”, “favela” se torna “comunidade”, um ato de “tortura” passa a ser denominado oficialmente de “técnica aprimorada de interrogação”... de tal forma que “estupro” poderia muito bem passar a ser chamado de “técnica aprimorada de sedução”). O ponto fundamental é que a tortura - um ato de violência brutal praticada pelo Estado - passa a ser tornada publicamente aceitável a partir do momento em que a linguagem pública se verte ao politicamente correto para proteger as vítimas da violência simbólica. Os dois fenômenos são lados da mesma moeda (ŽIŽEK, 2016, p.).

Os exemplos de Žižek buscam mostrar que essas duas formas de manifestação em um debate público concorrem para a mesma degradação. Se a ausência de crítica turva os olhos do que é inaceitável, o excesso de crítica, manifesto na necessidade de regras “politicamente corretas”, faz incidir sobre os gestos mais cotidianos uma espécie de censura histórico-crítica que normatiza aquilo que fora consolidado e já ressignificado de forma espontânea. Em resumo, corremos o risco de ser tão críticos, de problematizarmos tanto os gestos que herdamos que podemos escamotear e perpetuar preconceitos através de uma atitude politicamente correta. Isso porque ao exigir a normatização do politicamente correto, acabamos por reforçar uma postura normativa que, apesar de correta, incita uma normatividade contrária que apela exatamente para posturas vulgares anteriormente inaceitáveis na esfera pública, mas agora acolhidas por uma parte da maioria cansada da posição moderada “racional” - cujo exemplo público do texto em questão seria Hillary Clinton, mas poderíamos pensar, por exemplo, em Dilma Rousseff.

Não diria que Foucault escapa a essa objeção, porque ele não se enquadra nela, uma vez que ele não está interessado em normatizar os novos caminhos da história: fazer o “natural” se tornar problematizável não implica em demandar necessariamente a naturalização de novas práticas, mas ressignificá-las ao questioná-las. Como sugere Nehamas, duas premissas centrais governam o pensamento de Foucault: a primeira é a de que “a maior parte das situações em que nos encontramos são produtos da história e não de fatos naturais” e isso nos previne diante da contingência dessas situações, do caráter disputável do sentido dos enunciados. Por isso, sua capacidade louvável de mostrar a emergência de novos objetos “onde outros detectavam somente uma mudança na aparência de realidade imutáveis”, casos da loucura, da doença e mesmo do homem: em meio à naturalização dos costumes, ou da normalização politicamente correta de uma história, ele mostrava a emergência de algo que não poderia ser naturalizado. Segue assim a segunda premissa, a saber, a de que “ele sempre esteve apto - certamente, ávido - por ver o lado escuro de cada passo iluminado, por agarrar o custo pelo qual qualquer avanço teve que ser conquistado” (NEHAMAS, 1998, p. 169-70). A conclusão que se segue dessas duas premissas é a de que os atos de problematização não sucumbem ao excesso ou à falta de crítica porque tanto desnaturalizam o que parecia imutável, quanto permitem repensar passos recentes de nossa história.

Como sugere Paul Veyne, em seu conhecido texto sobre Foucault e os modos de escrever a história:

Tudo o que Foucault diz aos historiadores é o seguinte: vocês podem continuar a explicar a história como sempre o fizeram. Somente, atenção: se observarem com exatidão, despojando os esboços, verificarão que existem mais coisas que devem ser explicadas do que vocês pensavam; existem contornos bizarros que não eram percebidos. Se o historiador se ocupa não do que fazem as pessoas, mas do que dizem, o método a ser seguido será o mesmo; a palavra discurso ocorre tão naturalmente para designar o que é dito quanto o termo prática para designar o que é praticado. Foucault não revela um discurso misterioso, diferente daquele que todos nós temos ouvido: unicamente, ele nos convida a observar, com exatidão, o que assim é dito. Ora, essa observação prova que a zona do que é dito apresenta preconceitos, reticências, saliências e reentrâncias inesperadas de que os locutores não estão, de maneira nenhuma, conscientes. Se se prefere, há, sob o discurso consciente, uma gramática, determinada pelas práticas e gramáticas vizinhas, que a observação atenta do discurso revela, se consentimos em retirar os amplos drapeados que se chamam ciência, filosofia, etc. (VEYNE, 1998, p. 252).

Veyne advoga que, ao contrário de historiadores anteriores, o modo de fazer a história levado a cabo por Foucault não é dependente de uma instância pré-conceitual, uma vez que não pensa o que é dito como diferente das práticas, ou seja, das ações que produzem algo no mundo. Ele sugere que, ao trabalhar com práticas discursivas e não-discursivas, Foucault entrelaça esses dois domínios e conduz a nossa atenção não a algo escondido, mas ao que está diante de nós e não vemos. Se observadas as nossas ações com uma atitude crítica - ou seja, atenta aos riscos, às diferenças, ao que Veyne chama de “reticências, saliências e reentrâncias inesperadas” - estaremos diante do que não se é consciente, mas não constitui um substrato histórico único escondido e anterior. Trata-se de uma gramática que está manifesta nesse entrelaçamento entre as palavras, as coisas e os corpos - um modo de governar a si e aos outros, presente na superfície dos comportamentos cotidianos. Ao expor essa gramática, esse modo de conduzir as práticas discursivas, Foucault incita a pensar sobre esses gestos sem se restringir aos amplos drapeados tradicionais da filosofia, da ciência, dos saberes. Gostaríamos ainda de destacar um ponto específico da leitura de Paul Veyne, qual seja, o de que o genealogista apresenta uma gramática presente na superfície das práticas e não nas profundezas de algum lugar do universo. Para pensarmos sobre os problemas do presente, a exposição dessa gramática que a sensibilidade cotidiana naturaliza constitui o primeiro passo rumo a novos caminhos para a história.2

Crítica e genealogia. Sugerimos, assim, compreender a tarefa da crítica e da genealogia dos problemas como colocadas lado-a-lado por Foucault. Desde a aula inaugural em 1970, ele sugere haver um apoio mútuo, um trabalho de complementação entre essas partes:

A parte crítica da análise liga-se aos sistemas de recobrimento do discurso; procura detectar esses princípios de ordenamento, de exclusão, de rarefação do discurso. Digamos, jogando com as palavras, que ela pratica uma desenvoltura aplicada. A parte genealógica da análise se detém, em contrapartida, nas séries da formação efetiva do discurso: procura apreendê-lo em seu poder de afirmação, e por aí entendendo não um poder que se oporia ao poder de negar, mas o poder de constituir domínios de objetos, a propósito dos quais se poderia afirmar ou negar proposições verdadeiras ou falsas. Chamemos de positividades esses domínios de objetos; e, digamos, para jogar uma segunda vez com as palavras, que se o estilo crítico é o da desenvoltura estudiosa, o humor genealógico será o de um positivismo feliz (OD: 69-70 [71-2], grifos nossos).

As diferenças notáveis que o tempo gera não devem desviar do que aí possa ser central: como, através da problematização de positividades, de domínios de “objetos”, bem como através de uma atitude aplicada, crítica, atenta e apta a captar os riscos de nossas heranças, podemos exercer nossa liberdade. É claro que é preciso perceber qual a distância entre “o humor genealógico” do tipo “positivismo feliz” e uma “hipermilitância pessimista”. Se por um lado, Foucault assume que a análise genealógica se debruça sobre aquilo que se afirma, sobre o que forma uma positividade, se ela expõe pensamentos ainda que aparentemente cotidianos, entendendo tudo isso como parte constitutiva do que foi naturalizado ao longo da história; por outro lado, a desenvoltura estudiosa do crítico estabelece distâncias para perceber ordenamentos, exclusões, rarefações - em um termo, os limites do que nós somos hoje na esteira da atitude crítica kantiana. Ambas as partes, a genealógica e a crítica são “ferramentas” de um hipermilitante pessimista, de um problematizador. Apostas, elas promovem um desconforto contínuo entre as partes: a tarefa da crítica passa a conviver com o efeito historicizante da genealogia; e o trabalho genealógico passa a ser formulado nos termos de uma ontologia do presente, ou seja, ele responde à questão do que somos em nossa atualidade, assim “positivada” (com grossas aspas), isto é, não voltando os olhos para uma origem remota.

Com isso, menos do que propor soluções através do detido estudo da história, Foucault expõe os riscos de nossas atitudes cotidianas àquele que o lê. Somadas em um esforço conjunto nos trabalhos de Foucault, tanto a genealogia quanto a crítica permitem a insurreição dos saberes diante dos limites normalizados em busca da ampliação da liberdade. Se quisermos, essa conjunção serve não para simplesmente negar a formação dos saberes como resultados abjetos da história, mas para tratá-los com o maior cuidado possível para que a assimilação deles não resulte em algo que pareça solução atemporal, e sim objeto sob contínuo escrutínio crítico.

Nessas condições, a problematização, esse cruzamento entre a crítica e a genealogia, é absolutamente indispensável para qualquer transformação. Pois uma transformação que permaneça pensada do mesmo modo, que seja uma maneira de melhor ajustar o pensamento à realidade será somente transformação de superfícies, repaginação branda. No entanto, a partir do momento em que se começa a não mais poder pensar as coisas como se as pensava, a transformação, dessa vez, se torna urgente, muito difícil e finalmente possível.

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1Financiamento: CNPq

2Adrian Switzer (IN LAWOR, 2014,p. 416) sinaliza uma importante discussão sobre a relação entre esse ponto exposto por Veyne, relativo à gramática de nossas práticas, e a psicanálise, cito-o: “Ao combinar etnologia e psicanálise, Foucault tinha em vista a ‘descoberta de que o inconsciente... é em si mesmo, uma certa estrutura formal’ (VEYNE, 1982, pp.525-6). Considerando que a caracterização de tal inconsciente estrutural seja linguística, Foucault faz eco aqui a afirmação de Lacan de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem”.

Recebido: 03 de Outubro de 2019; Aceito: 27 de Maio de 2020

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