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Educação e Filosofia

Print version ISSN 0102-6801On-line version ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.34 no.71 Uberlândia May/Aug 2020  Epub Feb 06, 2022

https://doi.org/10.14393/revedfil.v34n71a2020-55534 

Dossiê Fenomenologia e Educação

O Movimento Escola sem Partido e a captura da docência: O professor como técnico do saber especializado

The school without political party movement and the capture of teaching: the teacher as a specialist knowledge technician

Le mouvement école sans parti et la capture de l’enseignement: L’ enseignant comme technicien spécialisé du savoir

*Doutor em Educação pela Universidade de Campinas (UNICAMP). Professor na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: marcio.danelon@ufu.br


Resumo

Este artigo tem por objetivo refletir sobre formas de captura das práticas pedagógicas do professor presentes no pensamento e no projeto de lei proposto pelo Movimento Escola sem Partido. Em nossa análise, a estratégia de vigilância do trabalho docente, a classificação do trabalho docente como doutrinação e a sobreposição da educação familiar sobre a escolar, emergem como formas de captura da docência, transformando o professor num “técnico do saber especializado”, conforme conceituação de Jean-Paul Sartre.

Palavras-chave: Educação; Escola sem partido; Fenomenologia; Sartre

Abstract

This article aims to reflect on ways of capturing the pedagogical practices of the teacher present in the thought and the bill proposed by the School Without Political Party Movement. In our analysis, the strategy of surveillance of teaching work, the classification of teaching work as indoctrination and the overlap of family education over school, emerge as ways of capturing teaching, transforming the teacher into a "specialist knowledge technician", as conceptualization. by Jean-Paul Sartre.

Keywords: Education; School Without Political Party; Phenomenology; Sartre

Résumé

Cet article vise à réfléchir sur les moyens de capter les pratiques pédagogiques de l’enseignant présent dans la pensée et das le projet de loi proposés par le Mouvement École sans Parti. Dans notre analyse, la stratégie de surveillance du travail d’enseignement, la classification du travail d’enseignement comme endoctrinement et le chevauchement de l’education familier sur l’éducation scolaire, apparaissent comme les raison de capturer de l’enseignement, transformant l’enseignant em um “technicien spécialisé du savoir”, comme conceptualisé par Jean-Paul Sartre.

Mots clés: Éducation; École sans parti; Phénoménologie; Sartre

Considerações iniciais

Desde a modernidade até os dias atuais, o discurso sobre a educação ocupa a centralidade - de forma mais ou menos efetiva, a depender do projeto de Estado de cada governo - da agenda política dos governantes. Trata-se de uma apreensão de que o projeto de nação está atrelado à tipologia de sujeito que a educação forma1. Enquanto humanização e culturalização, o ato de educar é a ação de constituir pessoas2. O lidar com pessoas que surgem no mundo e que necessitam ser formadas para introduzirem-se na civilização, constitui-se, na modernidade, a tarefa da educação. Hannah Arendt, em Entre o passado e do futuro, postula que existe educação, porque pessoas nascem, ou “a educação tem a ver com o nascimento, com o fato de que constantemente nascem seres humanos no mundo”. Assim, continua ela,

A educação está entre as atividades mais elementares e necessárias da sociedade humana, que jamais permanece tal qual é, porém se renova continuamente através do nascimento, da vinda de novos seres humanos. Esses recém-chegados, além disso, não se acham acabados, mas em um estado de vir a ser. Assim, a criança, objeto da educação, possui para o educador um duplo aspecto: é nova em um mundo que lhe é estranho e se encontra em processo de formação; é um novo ser humano e é um ser humano em formação (ARENDT, 1972, p. 234-235).

É inerente ao processo educativo a existência de três atores: (1) os “recém-chegados”, os “novos”, os que ainda estão “em formação”, as crianças, em síntese; (2) a existência de um todo já organizado, ou seja, de um mundo instituído, em sua linguagem, em seus valores, em sua moralidade, em suas regras e normas, em sua cultura, em sua política e economia; (3) e os adultos, porta-vozes desse mundo instituído, cuja tarefa de educar é apresentar e instituir esse todo organizado, que é o mundo, na criança. Tomando de empréstimo a pergunta ontológica de Heidegger em O que é isso - a Filosofia?: “Por que há o ser e não o nada?” (HEIDEGGER, 1978, p. 42) e deslocando-a para a educação, a dimensão ôntica do humano, existindo a priori ou não, recobre-se de sentido na medida em que o ser do humano é cultivado pela educação. É visceral a relação entre educação e cultura. De fato, o ato educativo é o que permite cultivar3 o ser (ontologia) no humano. Ou que somente somos seres humanos porque a educação cultiva um ser em nossa natureza. Os significados que atribuímos a nós mesmos e ao outro - que Heidegger perseguiu num esforço filosófico descomunal em O que é isso - a Filosofia?, mas também, e principalmente, em Ser e tempo - e os significados que atribuímos ao mundo, dando a ele um todo organizado - os nomes, sentido e utilidade de cada coisa, os ordenamentos de convivência, os sentidos transcendentais e espirituais, o ordenamento político e econômico, dentre outros - são significados que produzimos porque somos seres de cultura, seres que a educação cultivou num ato de separação da natureza e inserção na cultura. Aceitando a tese heideggeriana de que a linguagem é a morada do ser, ela é apresentada ao ser humano - ou “os novos”, os “recém-chegados ao mundo”, como afirmamos mais acima - pela educação. Dito em outras palavras, descobrimos a nós mesmos e o outro enquanto existências dotadas de sentido, e descobrimos o mundo, com o seu todo organizado, pela aquisição e uso da linguagem, apresentada a nós pela educação. Assim, infância, adulto e mundo se entrelaçam no processo educativo, em que a criança supera a sua infância (pré-político), adentrando no mundo da cultura (político) pelas mãos dos adultos que, por sua vez, apresentam, pela educação - dentre outras formas possíveis -, este mundo que está pronto e todo organizado. Assim, educar não é manter a criança no mundo da infância, mas transcendê-lo:

[...] sob o pretexto de respeitar a independência da criança, ela é excluída do mundo dos adultos e mantida artificialmente no seu próprio mundo, na medida em que este pode ser chamado de um mundo. Essa retenção da criança é artificial porque extingue o relacionamento natural entre adultos e crianças, o qual, entre outras coisas, consiste do ensino e da aprendizagem, e porque oculta ao mesmo tempo o fato de que a criança é um ser humano em desenvolvimento, de que a infância é uma etapa temporária, uma preparação para a condição adulta (ARENDT, 1972, p. 232).

É aqui que encontramos o ponto nevrálgico desta reflexão: sendo a educação a porta de entrada do ser humano no mundo da cultura, esta entrada é elevada a um patamar absolutamente estratégico para aqueles que assumem a responsabilidade sobre a perpetuação deste mundo. Estes sujeitos são os adultos: os porta-vozes desse mundo já organizado, conforme afirmamos acima. Sendo a natalidade a essência da educação4, e é pela educação que a infância adentra no mundo já organizado, então, a infância emerge como o “novo”, diante de um mundo “velho”. A infância assume a forma de elementos desestabilizador5 desse mundo todo organizado, ou como um elemento inovador diante desse mundo velho. Este é o paradoxo da educação: o adulto, responsável pela educação da infância é, igualmente, responsável pela manutenção do mundo que ele mesmo organizou:

Os pais [...] assumem na educação a responsabilidade, ao mesmo tempo, pela vida e desenvolvimento da criança e pela continuidade do mundo. Essas duas responsabilidades de modo algum coincidem; com efeito podem entrar em mútuo conflito. A responsabilidade pelo desenvolvimento da criança volta-se em certo sentido contra o mundo: a criança requer cuidado e proteção especiais para que nada de destrutivo lhe aconteça de parte do mundo. Porém também o mundo necessita de proteção, para que não seja derrubado e destruído pelo assédio do novo que irrompe sobre ele a cada nova geração (ARENDT, 1972, p. 234).

Para Hannah Arendt, a infância, pela educação, vem ao mundo como elemento de renascimento, renovando este mundo fechado e todo organizado pelo adulto. Aqui mora o perigo que a educação pode representar para a política. Se a essência do mundo da política, enquanto espaço de liberdade do humano, enquanto exercício da fala entre iguais e enquanto lugar da condição humana está, segundo Arendt, em crise, pois a política foi, paulatinamente desde o século XIX, sendo tomada por interesses econômicos privados, ante os interesses públicos de cidadãos, transformando o político - o cidadão que habita a pólis - em tecnocrata representante de interesses socioeconômicos privados, e se a educação é a instância pré-política e porta de entrada dos novos, e esses novos representam o renascer do mundo, a renovação do mundo velho e a inovação do novo no mundo velho, então, a infância e a educação emergem como instância desestabilizadoras desse mundo da política desvirtuado pelos interesses privados de adultos. Instaura-se, aqui, um problema de grande monta: trata-se de um conflito entre o mundo da política, cujos adultos representam a continuidade de um mundo todo organizado - na cultura, na economia, na linguagem, etc. - e a educação e a infância que emergem como desvirtuação e renovação desse mundo velho e todo organizado. A infância, enquanto portadora do novo, e a educação (instância pré-política), enquanto mecanismo de adentrar este ser novo no mundo velho da política, implicam numa fissura desestabilizadora desse mundo todo organizado. Renovar6, reinventar o mundo: este é o caráter revolucionário da infância e da educação que os adultos - representantes do mundo instituído da política - têm que se a ver e se posicionar.

É esse perigo que a educação e a infância representam para a estabilidade do mundo, que torna tão atraente, e necessária para alguns, a emergência de projetos políticos, cuja finalidade é a captura da educação e da infância através de tecnologias de controle do espaço escolar e, principalmente, das práticas do professor. Há um desejo, visceral diria, de “saber o que acontece na escola” e “o que se ensina às crianças”, mas, principalmente, “qual a finalidade da educação” e “que jovens a escola irá formar”. É na esteira desse projeto que política e educação se entrelaçam no cotidiano escolar.

1) O educador capturado: pensamentos e práticas pedagógicas

A educação é movimento. A etimologia de educação remete ao movimento de sair de um lugar - Educere, sair de. Palavra formada pelo prefixo Edu, que remete à ideia de movimento, à ideia de sair. E o sufixo Cere, que remete à ideia de lugar. Educar é estabelecer um movimento de distanciamento de si para si mesmo. Em outras palavras, este sair do estado em que se encontrava (nível de conhecimento, habilidades e competências, desenvolvimento motor, psíquico, moral, etc.) para outro estado (outro nível de ciência, de habilidades, competências e desenvolvimento motor, psíquico, moral, etc.). Uma criança alfabetizada e que domina as quantidades numéricas e suas operações matemáticas, está num outro estado - não melhor ou pior, somente diferente - se comparada a ela mesma, mas sem a ciência das letras e dos números. O universo de uma criança alfabetizada e que domina os números é infinitamente diferente do universo dessa mesma criança ainda não alfabetizada nas letras e nos números. É a educação que opera este distanciamento de si para si mesmo.

Na modernidade, elegemos a escola como o lugar, mas não o único, saliente-se, privilegiado para acontecer a educação. É na modernidade que a escola irá se organizar, tanto em seu aspecto espacial quanto didático/metodológico para receber em seu interior a criança7. Também é na modernidade que as teorias e as ciências do espírito passaram a ocupar-se da infância enquanto objeto de reflexão e investigação, como também emergem as técnicas, investigações, hipóteses, pressupostos, teorias e generalizações em torno da infância e suas formas de aprendizagem e de desenvolvimento. Na modernidade, a topografia da infância é o laboratório e seu ambiente, a escola.8 A instituição escolar é uma invenção moderna pensada e construída para acolher e educar as crianças. Trata-se de:

Uma escola que instrui e que forma, que ensina conhecimentos, mas também comportamentos, que se articula em torno da didática, da racionalização da aprendizagem dos diversos saberes, e em torno da disciplina, da conformação programada e das práticas repressivas (constritivas, mas por isso mesmo produtoras de novos comportamentos (CAMBI, 1999, p. 205).

A escola conjuga em seu interior uma série de saberes - filosofia, medicina, biologia, psicologia, sociologia, direito - sobre a infância, sobre o professor e sobre o ensino e a aprendizagem, estabelecendo padrões desejáveis de formação, de comportamento e de pensamento. É a escola uma instituição que acolhe os novos, os nascituros, promovendo a entrada deles na cultura. Essa entrada acontece por meio da aquisição das diversas linguagens, das ciências e das moralidades sedimentados no mundo. Instituir o adulto na criança, tal é a tarefa precípua da escola moderna. Durkheim talvez tenha sido o pensador que melhor captou esse espírito da escola moderna. Em Educação e Sociologia, define que a educação

[...] é a ação exercida pelas gerações adultas sobre as que ainda não se encontram amadurecidas para a vida social. Ela tem por objeto suscitar e desenvolver na criança um certo número de condições físicas, intelectuais e morais que dela reclamam, seja a sociedade política, no seu conjunto, seja o meio especial a que ela se destina particularmente (DURKHEIM, 1984, p. 17).

O adulto, porta-voz desse mundo instituído, age, no ambiente escolar, sobre as crianças, dando a elas as formas desejáveis de que a perpetuação do mundo precisa. Observe que para Durkheim a escola coordena, cirurgicamente, as três instâncias presentes na educação que falávamos no início deste texto: a criança, o adulto e o mundo. O adulto age sobre a criança instituindo nela toda a organização e ordenamento do mundo, de forma que a criança se torne um cidadão responsável pela perpetuação desse mundo todo organizado. Ilustro isso com as palavras de Durkheim: “... cada sociedade tem para si um certo ideal de homem, daquilo que ele deve ser, tanto do ponto de vista intelectual, como físico e moral; que esse ideal é, em certa medida, o mesmo para todos os cidadãos” (DURKHEIM, 1984, p. 16) Mais adiante, conclui afirmando que “a sociedade somente poderá viver se entre seus membros existir uma suficiente homogeneidade; a educação perpetua e reforça essa homogeneidade, fixando, antecipadamente na alma da criança as similitudes essenciais que a vida coletiva exige” (DURKHEIM, 1984, p. 16). É evidente que o cenário com o qual Durkheim se depara é de uma escola inserida num modelo de sociedade em vias de consolidação. Trata-se de um modo de vida - muito mais do que de produção e de trabalho - capitalista que estava se tornando hegemônico no mundo ocidental e que à escola é feito o chamamento de responder a este modo de vida, ou de definir a sua responsabilidade diante deste modo de vida. Trata-se, exatamente, do mesmo cenário histórico com a qual Hannah Arendt ilustrou a crise política que a sociedade do século XIX em diante passa a atravessar, a saber, um mundo organizado para a produção desenfreada de bens destinados a sujeitos igualmente em busca desenfreada pelo consumo desses bens. Essa é a tarefa da educação escolar, que Hannah Arendt diagnostica como a crise da educação, que é formar as crianças para a perpetuação desse modo de vida e desse mundo, ambos, para a filósofa alemã, igualmente em crise.

Por se tratar de um lugar cujo propósito de existência é formação de cidadãos, que conjuga as três instâncias - educando, educador e mundo -, a escola e o trabalho do educador sempre despertaram projetos de controle a este propósito. Que mundo será apresentado, na escola, à criança pelo educador?, é a pergunta que está no cerne dos projetos de captura da escola e do trabalho do professor. Quais os princípios de vida, quais valores, quais ideologias, o que é certo e o que é errado, quais projetos de vida são aceitáveis e recusáveis e quais interpretações do mundo e dos acontecimentos serão vinculados na escola pelo professor, são questões que perpassam a mente de todos aqueles que desejam perpetuar, junto ao escolar, um modo de vida, uma ideologia e um conjunto de valores e certezas estabelecidos no mundo. É exatamente a tensão, de que falava Hannah Arendt, entre aqueles que desejam perpetuar o mundo (ou os adultos na terminologia durkheimiana acima citada) e o caráter inovador da criança e da escola. Assim, “saber o que se passa na escola”, “saber o que o professor ensina na escola”, “saber sobre a formação, sobre o que pensa, os valores, princípios e ideologias do professor”, constituem-se numa tecnologia necessária no projeto de controle e captura da escola: “A escola-como-instituição é caracterizada por um tempo solene e um local de transferência, e nela é tomado um cuidado especial para domar e monitorar os professores como ‘mestres de cerimônia’ que presidem essa transferência” (MASSCHELEIN e SIMONS, p. 2014, 55).

Como o educador esta à frente desse processo de formação, em contato téte a téte com o educando, constituindo-se, portanto, num sujeito de grande importância para a formação da criança, aquilo que o professor ensina, aquilo que ele fala em sala de aula, tornou-se objeto de cuidado para aqueles que assumem o encargo de saber o que se passa no interior da escola. É importante ressaltar que não somente o que o professor ensina é objeto de “cuidado”, mas o que ele pensa, sua ideologia, suas opções políticas, religiosas e sexuais até, são capturados pelo radar da sociedade civil - pais, profissionais da educação, religiosos e políticos. Assim, o “saber” sobre o professor, procurando conhecer quem ele é, emerge enquanto parte do processo de captura do trabalho docente, justificado à luz do “cuidado” da infância. Saber-poder-cuidado emaranham-se no projeto de uma sociedade de controle sobre a escola. O foco do olhar - o grande panóptico - é, então, sobre o professor, afinal,

[...] quem quer que seja que estabeleça uma escola de acordo com a máxima do princípio da inspeção tem que estar bem seguro a respeito do mestre; pois, da mesma forma que o corpo do menino é fruto do corpo de seu pai, sua mente é fruto da mente de seu mestre; com nenhuma outra diferença que não aquela que existe entre o poder de um lado e a sujeição do outro (BENTHAM, 2008, p. 78).

É por esse querer saber sobre o professor, um saber, em primeiro lugar, sobre o que se passa em sua mente, e, em segundo lugar, sobre o que ele ensina e como desenvolve suas práticas pedagógicas - didáticas e metodologias -, que encontramos disseminado na sociedade brasileira um sem número de bandeiras sendo erguidas para a efetivação do regime disciplinar e de controle sobre docentes. De fato, vivemos, no Brasil, realidades disseminadas de controle sobre pensamentos, valores, opções políticas, sexuais sobre os professores. Recentemente9, esse movimento de captura da escola, através daquilo que pensa a ideologia e os valores do professor, foi catapultado, em especial, a partir de 2011, por meio da temática de gênero. Naquela oportunidade, o governo brasileiro propunha políticas públicas para a escola a fim de fomentar conteúdos curriculares e práticas pedagógicas visando combater a homofobia e a discriminação sexual. Tais políticas foram denominadas de “Escola sem homofobia”. Principalmente políticos, mas também, grupos sociais, ambos ligados a religiões católicas e neopentecostais colaram, erroneamente, porém de forma oportunista, o slogan de kit gay a estas iniciativas do governo federal, ganhando grande repercussão e apoio popular,10 a ponto de ser suprimida do Plano Nacional de Educação (2014-2024) qualquer menção a ações formativas no campo do gênero a fim de combate à discriminação sexual e homofobia. Sob o argumento do “cuidado” e “proteção” para com a infância, instalou-se práticas de patrulhamento11 sobre o professor que transcendeu para aspectos religiosos, políticos e raciais além da discussão de gênero. De fato, a vigilância não é somente em torno do que o professor faz em sala de aula, ou seja, suas práticas pedagógicas, mas o que o professor pensa, seus conceitos, ideologias, ideais e valores. Na medida em que, acredita-se, há consonância entre o que o professor ensina com o que ele pensa, o processo de vigilância transcende o espaço da sala de aula, indo ao encontro do mundo da vida do professor. É o controle da mente, procedimento altamente eficaz numa sociedade panóptica, conforme descreve Bentham: “Trata-se de um novo modo de garantir o poder da mente sobre a mente, em um grau nunca antes demonstrado...” (BENTHAM, 2008, p. 17). Se Bentham pensava numa arquitetura escolar necessária para a tarefa da vigilância, encontramos na atualidade brasileira, a quebra da arquitetura física de controle rumo à elevação do olhar vigilante sobre mentes e corpos para o mundo das redes sociais12.

As formas de captura da escola e do trabalho docente não são feitas de forma fragmentada ou voluntariosa. A vigilância é a parte prática - encampadas por milhares de pessoas anônimas contaminadas pela cultura do medo - de projetos políticos. O pano de fundo das práticas de exposição, acusação e condenação de professores, está projetos políticos que objetivam estabelecer formas de controle e vigilância sobre a escola e o trabalho docente, exatamente por ela ser o local privilegiado de formação de pessoas. O adulto, responsável por este mundo e pela perpetuação dele tal como está organizado (ideologias, modos de vida, estrutura e valores econômicos, políticos e religiosos etc) lança mão de projetos políticos que alcançam e governam a escola e que objetivam a captura e a vigilância sobre o processo de educação desses novos - a infância - a fim de controlar a força inovadora e desestabilizadora que a escola e a criança representam. Dessa forma, retomamos, aqui, a tensionalidade entre os adultos e a infância da qual refletia Hannah Arendt: trata-se do conflito adulto/infância e a homogeneidade da formação das crianças num ideal de mundo criado e perpetuado pelo adulto. Controle da escola, vigilância do trabalho docente, sempre fora um canto de sereia para plataformas políticas. Como exemplo de plataformas políticas de captura da escola e do trabalho docente, trazemos, neste artigo, o projeto que está em franco debate no campo educacional brasileiro: o projeto intitulado Escola sem Partido13.

O projeto de lei que institui o Programa Escola sem Partido é o resultado de um processo de vigilância sobre a escola e sobre as práticas dos professores que remonta a 2004, quando foi fundado o Movimento Escola sem Partido. Este movimento surgiu, conforme as palavras de seu fundador, Miguel Francisco Urbano Nagib:

[...] como reação a duas práticas ilegais que se disseminaram por todo o sistema educacional: de um lado, a doutrinação e a propaganda ideológica, política e partidária nas escolas e universidades; de outro, a usurpação ‒ pelas escolas e pelos professores ‒ do direito dos pais dos alunos sobre a educação religiosa e moral dos seus filhos. (Parecer Nagib, in: http://www.escolasempartido.org/images/pfesp.pdf, p. 1. Acesso em 27 de janeiro de 2020).

A justificativa para a criação de tal movimento seria esta: “doutrinação ideológica, política e partidária” que ocorre nas escolas e que se mostra “[...] um problema sistêmico, cujas origens remontam a meados da década de 198014 do século passado. (Parecer Nagib, in: http://www.escolasempartido.org/images/pfesp.pdf, p. 1. Acesso em 27 de janeiro de 2020).

Desde a fundação até 2014, “há poucas informações disponíveis na internet sobre as ações do movimento entre 2004 e 2014. As matérias de imprensa que tratam do assunto, em geral, mencionam a criação em 2004 e depois ações a partir de 2014” (BRAIT, 2016, p. 162). Essas ações que tornaram o movimento conhecido e influente no meio político e de grande parte da população se deu através de dois meios: (1) elaboração e apresentação nas casas legislativas municipais, estaduais e federal, de projetos de lei que propunham a instituição do que ficou consagrado como “Programa Escola sem Partido”15; (2) a divulgação na página (http://escolasempartido.org/) e no Facebook (https://pt-br.facebook.com/escolasempartidooficial/), ambos do movimento, de uma série de textos e, principalmente, de vídeos que denunciavam a chamada “doutrinação dos alunos”. De motivação legal - evitar a unilateralidade no ensino - pois consagrada na Constituição Federal (Artigo 206), o movimento combate, a rigor, aquilo que eles chamam de “doutrinação esquerdista” nas escolas e universidades, elegendo Marx e Paulo Freire como os arautos da ideologização nas escolas16.

O movimento cerca-se de uma reivindicação até simplória: a divulgação, assegurada por projetos de lei, de um cartaz com as “obrigações do professor”:

  1. O professor não se aproveitará da audiência cativa dos alunos, para promover os seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias;

  2. O professor não favorecerá nem prejudicará ou constrangerá os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas;

  3. O professor não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará os seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas;

  4. Ao tratar de questões políticas, sócio-culturais e econômicas, o professor apresentará aos alunos, de forma justa - isto é, com a mesma profundidade e seriedade -, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito da matéria;

  5. O professor respeitará o direito dos pais dos alunos a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções;

  6. O professor não permitirá que os direitos assegurados nos itens anteriores sejam violados pela ação de estudantes e terceiros dentro da sala de aula.

A simples fixação de um cartaz nas salas de aulas não traz nenhuma alteração nas práticas dos professores, exatamente porque grande parte desses deveres dos professores e direitos dos alunos está assegurada em leis maiores que essa proposta de projeto de lei. A reivindicação do movimento através da instituição de uma lei que torne obrigatório a fixação de um cartaz nas salas de aula é absolutamente inócuo se essa lei não tiver em seu âmago, na letra da lei, e nas ações que gerem práticas (que já ocorrem nas escolas) de vigilância e controle sobre o trabalho do professor. E é este ponto que queremos refletir: como que estes deveres do professor expostos no projeto de lei e as práticas, decorrentes à luz desses deveres, propagados pelo Movimento “Escola sem partido” disseminam formas de vigilância e captura do trabalho do professor? Trata-se de um movimento e de um projeto de lei que legalizam a instituição nas escolas do grande panóptico de Bentham: estratégias de vigilância sobre o pensamento e a ação do professor. Essas estratégias estão na essência deste projeto de lei, pois ele parte de uma concepção monolítica de família e, em decorrência disso, de política, de sexualidade e de moralidade, além de um esvaziamento ou anulamento da política na escola. Queremos dizer com isso que, ao generalizar a família, a moral e a política, o movimento promove uma essencialização desses aparatos culturais, ou, em outras palavras, uma metafísica da família, da moral e da política. Essa metafísica cria a possibilidade, então, de enquadrar reflexões e discursos vinculados na escola, seja pelo professor ou por qualquer ator escolar, como discurso contra “a” família, “a” moral ou como doutrinação de determinada política, pois todas as famílias, todas as morais e todas as tendências políticas cabem nessa metafísica. Se não, vejamos.

Na parte “Justificado” do modelo de lei proposto pelo movimento, lemos:

É fato notório que professores e autores de livros didáticos vêm-se utilizando de suas aulas e de suas obras para tentar obter a adesão dos estudantes a determinadas correntes políticas e ideológicas; e para fazer com que eles adotem padrões de julgamento e de conduta moral - especialmente moral sexual - incompatíveis com os que lhes são ensinados por seus pais ou responsáveis (Anteprojeto de lei e minuta de justificação: https://www.programaescolasempartido.org/pl-federal. Acesso em 27 de janeiro de 2020).

No anteprojeto de lei, especificamente no item 05 dos Deveres do professor, afirma: “O professor respeitará o direito dos pais dos alunos a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”. Está no cerne, tanto da reflexão teórica do coordenador do movimento, como no anteprojeto de lei, uma aporia da qual a fala do professor, suas formas de expressão e pensamento encontram sem ponto de fuga. Esta aporia finca-se nesta visão monolítica ou metafísica de política, de família e de moralidade. Ora, que “corrente política e ideológica” o movimento se refere? Qual padrão de moralidade ou, nos termos corretos, qual deontologia moral se refere o movimento? E como o professor pode saber o que é ensinado pelos pais e responsáveis? No fato de que o anteprojeto de lei e o movimento utilizam-se da estratégica de colocar no plano metafísico a política, a moral e a família, abstém-se de enfrentar a espinhosa seara da reflexão necessária em torno da diversidade tipológica de política, de moral e de família aderentes a toda democracia. Assim, a lei e o movimento, colocam-na num estratagema genérico em que qualquer fala sobre política, moral ou ideologia pode ser classificada por aqueles que observam o trabalho docente (o panóptico) como contrários à moral, à política ou à ideologia da família do aluno. Em outras palavras, não há uma política, uma moral, uma ideologia ou uma família, mas, ao diferente disso, há políticas, morais, ideologias, famílias, numa diversidade de aparatos culturais que permeiam nossa e toda sociedade democrática. Ao nulificar essa diversidade, numa generalização metafísica, não há saída para o professor: qualquer expressão sobre qualquer política ou moralidade poderá ser classificado como discurso a fim de promover a adesão do aluno a perspectivas contrárias à de sua família. Uma aula, por exemplo, em que o professor de História ou de Sociologia aborde a construção histórica da família e de como a família heteroafetiva, enquanto organização social e forma de amar, se tornou uma normatividade em nossa cultura, abordando nas aulas também como os movimentos feministas e LGBT lutaram pelo reconhecimento de diferentes formas de amar e de constituição familiar, esta aula do professor pode ser classificado como um discurso contra “a” família e contra “a” educação sexual dos pais do aluno. É dessa forma que a metafísica torna-se uma tecnologia de vigilância e, consequentemente, de controle sobre o discurso do professor.

Somente o procedimento metafísico de idealização e universalização da política, da moral, da sexualidade e da família, e, consequentemente, não reconhecimento da diversidade desses aparatos culturais, não é suficiente para as ações de vigilância sobre o professor. É necessário classificar o trabalho do professor como usurpador dessa metafísica. Essa usurpação se faz, segundo o movimento, através de prática de “doutrinação” dos alunos pelos professores. Assim, nas aulas, os professores “doutrinam” os alunos abordando, por exemplo, o tema da sexualidade, porque tal abordagem é contrária “à” educação sexual “da” família do aluno. No item justificado, lemos:

[...] entendemos que é necessário e urgente adotar medidas eficazes para prevenir a prática de doutrinação política e ideológica nas escolas, e a usurpação do direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções (Anteprojeto de lei e minuta de justificação: https://www.programaescolasempartido.org/pl-federal. Acesso em 27 de janeiro de 2020).

Ao afirmar a existência de doutrinação nas escolas, o projeto de lei e o movimento descem à minúcia de vigilância e controle sobre as práticas do professor. Também partindo da generalização metafísica de “doutrinação”, todas e quaisquer práticas do professor podem ser classificadas como doutrinárias e usurpadoras da política, da moral e da educação sexual desejada pela família. Ora, exatamente o que é “doutrinar” alguém? Quais critérios para classificar determinado discurso de doutrinação? Qual a linha limítrofe entre ensinar e doutrinar? Como interpretar situações em que o professor, conhecendo de forma mais aprofundada determinado assunto previsto no programa de ensino, gasta mais tempo ou leva uma diversidade maior de material sobre este assunto, este ato de ensinar este assunto poder ser doutrinário, pelo tempo e riqueza de material utilizado nas aulas? Ou mesmo, um assunto abordado com mais entusiasmo pelo professor nas aulas, se comparado com outros assuntos, pode ser considerado doutrinação? Pode ser classificada como doutrinação um professor que aborde os ganhos em educação e saúde em determinados regimes socialistas, bem como os limites da liberdade de escolha que as pessoas possuem nesses regimes e, além disso, mostre que a educação e a saúde, em muitas sociedades capitalistas, se transformaram em mercadoria e que há, portanto, a oferta de diferentes tipos de educação e saúde para diferentes classes sociais, mas que nessas sociedades é assegurada a liberdade de escolha do cidadão propagandeado como um bem e uma conquista das sociedades capitalistas? Dada a generalização do termo “doutrinação”, quaisquer dessas situações podem ser denunciadas como doutrinárias. Ao não enfrentar e, portanto, conceituar “doutrinação”, deixando-a no campo genérico da metafísica, o Movimento Escola sem Partido permite a classificação de quaisquer práticas pedagógicas do professor como doutrinação. Assim, não há rota de fuga do panóptico.

Não somente evitar a doutrinação, mas o projeto de lei obriga “ao tratar de questões políticas, sócio-culturais e econômicas, o professor apresentará aos alunos, de forma justa - isto é, com a mesma profundidade e seriedade -, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito da matéria” (Item 04 do Dever do professor). Como não é possível a classificação de que a profundidade e a seriedade foram na medida certa para a abordagem sobre determinado assunto (pelo mesmo mecanismo da metafísica), qualquer aula do professor pode ser classificada de pouco profunda e de que ele está doutrinando os alunos em determinado assunto, pois este foi abordado com mais profundidade. Nestas generalizações metafísicas do que é doutrinação, do que é ensino e abordagem justa de determinado assunto, em que qualquer avaliação e classificação é possível, o professor sempre está sob vigilância e em situação de controle de sua prática pedagógica. Trata-se da internalização do panóptico: independente se alguém está “medindo” a sua atividade docente, o professor sempre se sente vigiado.

Ora, o ensino e a aprendizagem não são uma ciência exata e a sala de aula não é um tubo de ensaio passível de quantificações e classificações. Ao contrário, a educação é uma experiência de vida subjetiva a cada ator envolvido. Portanto, a percepção e avaliação da prática do professor, a recepção do conteúdo e da forma como ele foi ministrado, é um processo subjetivo a cada consciência. Em outras palavras, cada aluno percebe e assimila as práticas do professor a partir da experiência de sua consciência (Erlebns) e de seu mundo da vida (Lebenswelt). É esta relação entre duas consciências, entre dois mundos da vida (professor a aluno) mediado por conteúdos culturais em diferentes disciplinas (na História, o fascismo, por exemplo), por tecnologias (livro, música, filme, mapas, etc.) e por estratégias (exercícios, seminários, debates, etc.) utilizados na escola, que constitui a educação e que permite o salto formativo do aluno, estabelecendo a distância de si para si mesmo, que falamos no início deste artigo. Todo esse processo, rico em significados e, por isso, formativo, permite à criança distanciar-se, através do conhecimento que adquiriu (mediado pelas tecnologias e estratégias, nessa relação pedagógica com o professor), de si para si mesma. Nesse caso, na escola, o professor atua como agente de expansão dos horizontes17 conceituais e culturais da criança, logo, necessariamente diverso daquilo que se ensina nas famílias e contraditório com a premissa do Movimento Escola sem Partido de resguardar à família o direito da criança em receber educação moral e religiosa acordado com as convicções da própria família18. Portanto, se a família cultiva valores liberais, por exemplo, e ensina isso à criança, é na escola que este horizonte político, econômico e ético será expandido, na medida em que o professor apresentar às crianças outras formas de organização política e econômica e outros valores sociais. Por isso, a escola renova19 o mundo ao transcender o universo cultural que a criança traz de sua família e de seu meio social e isso representa uma desestabilização do mundo organizado pelo adulto de que falávamos no início desse artigo. Portanto, o controle e a vigilância sobre o ensino e o pensamento do professor vinculados no projeto de lei e no Movimento Escola sem Partido, ataca exatamente esta expansão desestabilizadora, promovida pela escola, do universo cultural da criança.

Como o projeto de lei proposto pelo Movimento Escola sem Partido procura combater a chamada doutrinação nas escolas, saber “o que se passa na escola”, saber “o que se ensina” e “como se ensina” são prerrogativas necessárias para este fim. Para isso, tornar a escola um grande panóptico, instituindo processos de controle e vigilância sobre o pensamento e as práticas do professor são processos necessários. Esses processos são propostos no próprio projeto de lei, através da filmagem e gravação das aulas. No art. 7 do projeto de lei, lemos: “As escolas que não realizarem ou não disponibilizarem as gravações das aulas deverão assegurar aos estudantes o direito de gravá-las, a fim de permitir a melhor absorção do conteúdo ministrado e de viabilizar o pleno exercício do direito dos pais ou responsáveis de ter ciência do processo pedagógico e avaliar a qualidade dos serviços prestados pela escola”. Assim, o conteúdo que o professor ensina, o que ele fala e pensa sobre o conteúdo, e como e com quais estratégias esse conteúdo é ensinado não está sob a vigilância somente dos atores escolares, mas estará sob o olhar universal na arena que se constituiu as redes sociais na internet: o professor, suas práticas pedagógicas, seu pensamento, seus valores, sua ideologia e visão de mundo no meio da arena sob o olhar universal. Ora, como não existem parâmetros para classificação da doutrinação e como muitos conteúdos, pela natureza da escola em expandir os horizontes dos alunos, são distintos e em desacordo com os cultivados pela família e como a sala de aula não é um tubo de ensaio em que seja possível medir a justeza e equilíbrio dos conteúdos ministrados, o professor e o seu trabalho de ensinar algo a alguém, sempre estará sob ataque a partir dos valores desta ou daquela família, a partir do entendimento deste ou daquele sujeito do que é doutrinação ou a partir da avaliação deste ou daquele sujeito de que houve ênfase e preferência de determinado conteúdo ministrado em detrimento de outro. A introdução do “outro” na vigilância e controle através dessa universalização do olhar sobre o professor é necessário porque o projeto de lei e o movimento acreditam que o aluno é incapaz de debater determinado assunto, arguindo o professor e expondo seu ponto de vista sobre tal. O aluno é, na ótica do movimento, “audiência cativa”.20 Contudo, na escola os alunos não formam audiência cativa. Ela pode existir em algumas famílias em que a autoridade dos pais é exercida com base na violência, ou em algumas religiões em que a autoridade do sacerdote é exercida através do dogmatismo. Mas violência e dogmatismo não são ações afetas ao espaço escolar. Pelo contrário, é da natureza da escola ser um espaço em que a arguição, a dúvida e a desconstrução de teses encontra solo fértil, sendo tarefa do professor, através das tecnologias e estratégias utilizadas nas aulas, promover o debate, o aprofundamento e a refutação de teses. E é assim que um professor forma um cidadão cosmopolita, cujo pensamento é crítico e autônomo. A tencionalidade entre os atores escolares é em torno de conteúdos, informações e produtos culturais colocados sob o escrutínio de professores e alunos. Contudo, em última instância, parece-nos que a instituição do panóptico na escola objetiva exatamente subtrair do espaço escolar essa tencionalidade inerente a toda sociedade em que a diversidade se apresenta.

A tecnologia, proposta pelo projeto de lei, de vigilância através de gravação, e a suspensão da aula do professor sob o olhar de milhares de sujeitos que avaliam, classificam, julgam e condenam as práticas do professor a partir de seu próprio entendimento de doutrinação, de seus próprios valores familiar e ideologia pessoal acabam por produzir o silenciamento e a tecnificação do trabalho do professor. O professor é um técnico que ensina um conteúdo cultural, mas não expressa seu pensamento sobre o que ensina:

Liberdade de ensinar - assegura pelo art. 206, II da Constituição Federal - não confunde com liberdade de expressão; não existe liberdade de expressão no exercício estrito da atividade docente, sob pena de ser anulada a liberdade de consciência e de crença dos estudantes, que formam, em sala de aula, uma audiência cativa (Item 04 da “Justificação”. In: https://www.programaescolasempartido.org/. Acesso em 27 de janeiro de 2020).

Num parecer do fundador do movimento, lemos:

95. Afirma-se que a proposta impõe uma censura ao professor. Mas isso também é falso. Não pode haver censura onde não existe liberdade de expressão; e não existe liberdade de expressão no exercício da atividade docente. Se existisse, o professor não seria obrigado (como é) a transmitir aos alunos o conteúdo da sua disciplina; poderia passar o tempo todo de todas as aulas em silêncio ou discorrendo sobre os mais variados assuntos (Parecer Nagib, in: http://www.escolasempartido.org/images/pfesp.pdf. Acesso em 27 de janeiro de 2020).

Trata-se de uma proposta de um ensino neutro, em que o centro do processo pedagógico é o conteúdo ensinado e não mais as relações professor-aluno. É tarefa precípua, para o projeto de lei e para o movimento, que o professor desempenhe seu papel de apresentar conteúdos culturais para as crianças e é a isso que se restringe o papel da escola na sociedade. Tornando a relação professor-aluno meramente técnica, o projeto de lei esvazia do trabalho do professor uma análise ou uma reflexão crítica sobre determinado conteúdo cultural, isenta-o de uma reflexão em que se discuta, em sala de aula, os atores e os interesses contraditórios subjacentes, por exemplo, às revoltas populares que ocorreram no Brasil (Farroupilha, Balaiada, dentre outras), ou as implicações sociais de teorias eugenistas produzidas pela Filosofia e pela Biologia. Não deve, professor e aluno, produzir reflexão crítica, mas tão somente o professor ensinar as datas, os sujeitos e as teses da teoria eugenista, por exemplo, e o aluno apreender essa informação. Essa tecnificação do trabalho docente é produzida pelas estratégias de vigilância aberta pela prerrogativa de filmar a aula e colocá-la sob o olhar de milhares de pessoas que avaliam, julgam e classificam, a partir de sua concepção de doutrinação, de sua ideologia e valores, que o trabalho do professor extrapolou a mera tarefa de ensinar determinado conteúdo, promovendo a sua liberdade de expressão sobre esse conteúdo, ou doutrinando o aluno. Dessa forma, o projeto de lei e o movimento abrem a perspectiva para o trabalho pedagógico centrado, não no ensino e nem na aprendizagem, mas nos conteúdos. Não se trata mais do trabalho docente elevar o aluno como foco do fazer pedagógico, levando em consideração seus interesses por determinados conteúdos, seu desenvolvimento enquanto pessoa e sua formação ética e cidadã, fazendo, assim, da aprendizagem, o centro da atividade pedagógica. Também não se trata de destacar o trabalho docente no ensino e as estratégias inovadoras no desenvolvimento de determinado conteúdo, já que isso pode ser julgado como doutrinação na abordagem do conteúdo ou desiquilíbrio frente aos demais conteúdos. O importante - este deve ser para os defensores do Escola sem Partido o centro do processo ensino-aprendizagem - é o conteúdo cultural em si, pois o trabalho docente é uma atividade técnica e a escola o espaço dessa atividade, transcendendo, assim, o debate de uma educação centrada no professor e no ensino, tal qual as pedagogias tradicionais (desde o Ratio Studiorum) ou uma educação centrada no aluno e na aprendizagem (conforme pensada por Rousseau e o movimento escolanovista). O trabalho do professor, então, consiste em ensinar, em transmitir ou em socializar stricto sensu os conteúdos de sua disciplina previstos nos documentos oficiais.

2) O professor como técnico do saber especializado: Uma leitura à luz da fenomenologia existencial

Em 20 de dezembro de 2017, o governo federal, através da portaria nº 1570 do Ministério da Educação, homologa o Parecer CNE/CP n 15/2017 (Conselho Pleno do Conselho Nacional de Educação), aprovado na Sessão Pública de 15 de dezembro de 2017, que, junto ao Projeto de Resolução a ele anexo, instituem e orientam a implantação da Base Nacional Comum Curricular - doravante BNCC - explicitando os direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento, a ser observada obrigatoriamente ao longo das etapas e respectivas modalidades no âmbito da Educação Básica. A BNCC

[...] é um documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidade da Educação Básica, de modo a que tenham assegurados seus direitos de aprendizagem e desenvolvimento, em conformidade com o que preceitua o Plano Nacional de Educação (PNE) (BNCC, 2017, p. 7).

O fundamento pedagógico da BNCC está centrado no desenvolvimento de competências nos alunos da Educação Básica, que foi amplamente difundido, a partir dos anos de 1990, por agências multilaterais, em especial a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o Banco Mundial. Com vistas a promover este fundamento pedagógico, em 1993, a UNESCO instituiu a Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, composto de 15 membros21 de diferentes países e presidida por Jacques Delors, ex-ministro da Economia e Finanças da França. Em 1996, a Comissão terminou seus trabalhos, entregando à UNESCO o Relatório Delors, como ficou conhecido. Este relatório foi publicado no Brasil com o título Educação: Um tesouro a descobrir22. A Comissão encarregada da produção desse documento da UNESCO tinha ciência na necessidade de formular um novo conceito de educação, conforme atesta essa passagem:

Desde o início dos seus trabalhos que os membros da Comissão compreenderam que seria indispensável, para enfrentar os desafios do próximo século, assinalar novos objetivos à educação e, portanto, mudar a ideia que se tem da sua utilidade. Uma nova concepção ampliada de educação devia fazer com que todos pudessem descobrir, reanimar e fortalecer o seu potencial criativo - revelar o tesouro escondido em cada um de nós (DELORS, 1996, p. 90).

Esse novo conceito de educação passa, segundo o relatório, pela inauguração ou aprimoramento, através de políticas públicas para a educação, de quatro áreas afetas à educação: (1) currículo por competências; (2) necessidade de se criar modelos de avaliação dos sistemas de ensino, (3) necessidade de formação continuada dos professores e (4) internacionalização das universidades. Dessa forma, é nesse documento que a concepção de uma educação por competência torna-se indutor das políticas públicas de educação dos países membros dessas agências multilaterais. No Brasil, em legislação interna, enquanto reflexo das orientações multilaterais, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB nº 9394/1996) define o foco da aprendizagem no desenvolvimento de habilidades e competências e a BNCC, articulado com a LDB assume esta concepção de um ensino para o desenvolvimento de competência como o foco das práticas pedagógicas do professor. A BNCC está organizada, tanto na etapa do ensino fundamental como no médio, em áreas do conhecimento - com suas respectivas competências específicas - e essas áreas do conhecimento organizadas em componentes curriculares - também com suas respectivas competências específicas. As competências, gerais e específicas, são desenvolvidas a partir da aquisição, por parte do aluno, de habilidades produzidas a partir dos diversos trabalhos pedagógicos organizados pelo professor e feitos em sala de aula pelos alunos. A BNCC não define conteúdos dos componentes curriculares, pois trata dos objetivos gerais da educação básica, mas deve ser articulado com outros documentos oficiais que tratam das minúcias do currículo, como as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) e as demais legislações curriculares dos Estados e municípios. Assim,

A BNCC e os currículos se identificam na comunhão de princípios e valores que, como já mencionado, orientam a LDB e as DCN [...] é também alçada dos entes federados responsáveis pela implementação da BNCC o reconhecimento da experiência curricular existente em seu âmbito de atuação. Nas duas últimas décadas mais da metade dos Estados e muitos Municípios vêm elaborando currículos para seus respectivos sistemas de ensino... (BNCC, 2017, p. 17-18).

A tese é de que os conteúdos curriculares presentes nas diretrizes curriculares, seja ela federal, estadual ou municipal, se constitua no elemento iniciador para a aquisição de habilidades e desenvolvimentos das competências. É a partir de um conteúdo ministrado pelo professor que o aluno adquirirá as habilidades e desenvolverá as competências elencadas na BNCC. Dessa forma, a centralidade está nos conteúdos que devem ser ministrados pelo professor, enquanto conditio para o desenvolvimento das habilidades no educando.

Conforme vimos, o Movimento Escola Sem Partido,

defende que a escola deve instruir e que educar caberia apenas à família. Nesse sentido, cabe à escola apenas informar e fazer com que o aluno conheça os conteúdos das disciplinas em uma perspectiva mais técnica. Como o professor não pode emitir opinião, supõe-se, então, que os conteúdos devem estar organizados com uma narrativa específica que evite polêmica em uma lógica bem mais instrucional (CATELLI JÚNIOR, 2016, p. 87).

Promove, dessa forma, o entendimento de trabalho docente enquanto um difusor de conteúdos curriculares. Cabe aos professores apresentar os conteúdos curriculares de suas disciplinas de forma “imparcial” e “justa”, fiando, então, o trabalho docente a de um propagador de conteúdos curriculares. Acredita, o Movimento Escola sem Partido, que o professor, de posse de um saber especializado (os conteúdos de sua disciplina), ensina esses conteúdos aos seus alunos, restringindo tão somente a isto o trabalho docente. Não cabe ao professor refletir criticamente sobre aquilo que se ensina ou sobre o status quo da sociedade a partir dos conteúdos ensinado, não lhe cabe manifestar opiniões, preferências ou aptidões sobre o que se ensina, ou mesmo, a partir dos conteúdos de sua disciplina, estabelecer críticas à instituições sociais, à ideologias ou à práticas sociais difundidas na sociedade. Tudo isso poderia ser classificado, pelo panóptico do Movimento Escola sem Partido, de doutrinação ou de práticas pedagógicas contrárias aos valores familiares do aluno. Para o Movimento, a “escola [é] representada como um espaço terrível de corrupção dos inocentes”. E quem são os agentes desta corrupção? Os professores (p. 98). Deve, então, a prática pedagógica do professor ficar restrita a um operador de conteúdos, conceitos e informações. Emprestando um conceito de Sartre, trata-se do professor como “técnico do saber especializado”. Em nossa interpretação, o projeto de lei concebido pelo Movimento Escola sem Partido vincula uma concepção de docência como “técnico do saber especializado”: possuidor de um saber especializado (História, Geografia, Gramática, Matemática, dentre outros), a docência restringe-se ao ensino desse conteúdo ao qual o professor é um especialista, abolindo de sua prática aquilo que transcende este aspecto técnico da docência. Sobre isso, vejamos.

Em 1965, em palestra ministrada nas cidades de Tóquio e de Quioto intitulada Em defesa dos intelectuais, Jean-Paul Sartre classificou determinado extrato da população, dentre eles, os profissionais liberais, os funcionários públicos e, destaco, os professores, de técnico do saber especializado. A tese central dessas palestras versava sobre a definição e a função do intelectual numa sociedade burguesa liberal. Para Sartre, numa sociedade capitalista e liberal, há uma ruptura visceral entre o momento de produção e emergência de uma ideologia e os meios de sua concretização, manutenção e universalização. Neste caso, é a burguesia liberal, de posse dos meios políticos, econômicos e, por consequência disso, culturais, que forja uma ideologia, cabendo a tarefa de universalizar e concretizar esta ideologia ao técnico do saber especializado. Este, para Sartre, possui os meios para tal fim exatamente por ter uma formação específica e por possuir as ferramentas e ocupar espaços sociais destinados aos meios de difusão dessa ideologia. Assim, no caso da educação, o professor ocupa os meios (espaço escolar), e possui as ferramentas (tecnologias para o ensino e técnicas de propagação de um conteúdo cultural) para a universalização e concretização de uma ideologia forjada pela burguesia liberal. Dessa forma, os burgueses liberais “consideram os intelectuais um mal necessário: precisam deles para conservar, transmitir e enriquecer a cultura” (SARTRE, 1994, p. 14), através da propagação de sua ideologia. Enquanto técnico do saber especializado, o professor, para a burguesia liberal, “é o homem dos meios” (SARTRE, 1994, p. 24), e “os fins gerais aos quais se referem sua atividade não são seus fins” (SARTRE, 1994, p. 24), mas aqueles propostos pela burguesia liberal, de forma que “tudo é rigorosamente definido para o técnico do saber prático. [...] Nesse sentido, seu ser social e seu destino lhe vem de fora [...] os fins gerais aos quais se referem sua atividade não são seus fins”. (SARTRE, 1994, p. 24). O Movimento Escola sem Partido concebe que a educação é a difusão - seja usando técnicas progressistas ou tradicionais, isso não é importante - de conteúdos culturais organizados nos currículos escolares (disciplinas) e materializados nos documentos oficiais (parâmetros e diretrizes); a escola é o lugar dessa difusão; o professor responsável pelo processo de difusão dos conteúdos culturais nas diversas disciplinas. É por isso que o professor acaba por se tornar um técnico do saber especializado, pois é um meio para a concretização dos fins (ensinar um conteúdo cultural) propostos pela classe dirigente. Se extrapolar esse fim, fazendo de sua aula um espaço de problematização do conteúdo ensinado, ou fazendo leituras e interpretações da realidade atual, ou questionando práticas sociais ou instituições sociais a partir dos conteúdos de sua disciplina, o professor incorrerá numa anormalidade, num fora da norma à luz do projeto de lei. Considere um professor de Filosofia que ensine aos alunos a mitologia grega, mostrando-lhes que, para os gregos, não havia um único deus criador, mas sim deuses, e que eles tinham características humanas, por isso, traíam, copulavam, cometiam assassinatos, etc. Ou um professor de Biologia que ensine o conteúdo cultural do evolucionismo, ambos podem incorrer numa ilegalidade, se na sala de aula houver algum aluno cuja família acredita, defende e ensina o catolicismo e o criacionismo. Considere, também, o professor de História ou de Sociologia que ensine que houve e ainda há culturas e povos em que a homoafetividade ou a poligamia foram ou são práticas sociais aceitas nestas culturas, também incorrerá numa ilegalidade, caso haja alunos cuja família tenha por valor a crença na constituição da família heteroafetiva e monogâmica, pois em todos esses caso o professor contraria ao inciso V do artigo 4º do projeto de lei que institui o Programa Escola sem Partido, ou mesmo que o professor, ao ensinar esses conteúdos, está se aproveitando da audiência cativa dos alunos para promover os seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas ou morais, conforme o inciso I desse mesmo artigo, ou, enfim, doutrinando seus alunos.23

Quando o Movimento Escola sem Partido, enquanto grupo de pessoas representativas de uma ideologia política - burguesa liberal, no caso -, de uma ideologia econômica - capitalista -, de uma moralidade - valores da família tradicional patriarcal e heteroafetiva em oposição à concepção de família homoafetiva, à discussões de gênero -, se articula com grupos políticos com a finalidade de propor projetos de leis que respondam a estas demandas ideológicas e de visão de mundo, todo esse espectro social busca, de fato, regulamentar a escola (em nossas palavras, capturar a escola e o trabalho docente), com a finalidade de evitar, sob o auspício de defesa da criança, dos valores da família e da forma de organização social, contestações desse mundo já organizado, defendendo e resguardando, sobremaneira, uma ideologia aceita e hegemônica. Dessa forma, a escola se torna um espaço de proteção (através da exclusão, pela legislação, de qualquer forma de contestação dos valores da família, de uma visão de política e de economia) de uma ideologia hegemônica, formando, em última instância, ao fim da educação básica, jovens alienados da capacidade de pensamento crítico acerca do próprio mundo em que vive, e, portanto, defensores e propagadores de uma ideologia hegemônica acerca da família, da política, da economia e da cultura: “A classe dominante regulamenta o ensino de maneira a lhes dar a ideologia que ela julga conveniente”, e “os conhecimentos e práticas que os torna capazes de exercer suas funções” (SARTRE, 1994, p, 23). Assim, a classe dominante constrói uma estrutura, em nossa análise específica de educação, que lhe permite a produção, manutenção e universalização de sua ideologia através da função social do técnico do saber especializado. Para Sartre, os professores são representativos dessa classe de especialistas, cuja função é criar os meios necessários para a universalização da ideologia burguesa. É significativa essa passagem de Sartre:

Os fins são determinados pela classe dominante e realizados pela classe trabalhadora, mas o estudo dos meios é reservado a um conjunto de técnicos que pertence ao setor terciário, e que são os cientistas, os engenheiros, os médicos, os professores. [...] De qualquer forma, a função social que lhe é atribuída consiste no exame crítico do campo dos possíveis e não lhe pertence a apreciação dos fins e nem, na maior parte dos casos, a realização (SARTRE, 1994, p. 17).

Esse processo de legislar sobre o professor é necessário, pois, segundo Sartre, o técnico do saber especializado possui uma contradição intrínseca: ele é formado numa visão universalista e, portanto, crítica de todo particularismo ideológico representante de um determinado segmento social. Sobre isso, reproduzo uma passagem ilustrativa da conferência de Sartre:

Assim, os técnicos do saber são produzidos pela classe dominante com uma contradição que os dilacera: por um lado, enquanto assalariados e funcionários menores da superestrutura, dependem diretamente dos dirigentes (organismo privado ou Estado) e se situam necessariamente na particularidade [...] por outro na medida em que sua especialidade é sempre universal, esses especialistas são a própria contestação dos particularismos que lhe foram injetados e que não podem contestar a si mesmo (SARTRE, 1994, p. 28).

Numa outra passagem, o técnico do saber especializado (o professor em nosso caso) é “homens-contradição, já que a ideologia particularista de obediência a um Estado, a uma política, às classes dominantes, neles entra em conflito com o espírito da pesquisa - livre e universalista...” (SARTRE, 1994, p. 26). Não se trata de dizer que o professor não possui uma ideologia, e nem que seja contra determinada ideologia particularista, ou mesmo que comungue de todas as ideologias, dado o caráter universalista de sua formação, mas, diferente disso, que todas as ideologias particulares são colocadas ao escrutínio do pensamento crítico à luz de sua formação universalista. Neste caso, o professor é, intrinsicamente, um crítico, um arguidor, um questionador das bases de sustentação que fundamentam as ideologias. Me parece que seja este exatamente o papel da escola, enquanto lugar de formação de cidadão: trata-se de um espaço de expansão da formação cultural, na esteira de uma formação universalista e humanista dos alunos. Assim, se uma família, cujo particularismo ideológico propaga uma visão de mundo liberal, que acredita e defende a hegemonia branca, e cuja única forma de agregação familiar é a heteroafetiva, será na escola que essa ideologia será expandida, seja através dos questionamentos sobre os limites dessa visão de mundo, seja através do estudar e aprender outras ideologias rumo à formação de um cidadão global, ciente e respeitoso da diversidade cultural que o mundo representa. Assim, na escola, não se trata de ir contra, mas sim agregar informações diversas, de questionar, de pensar e de refletir, a partir dos conteúdos culturais das respectivas disciplinas, autonomamente sobre os mundos particulares de cada família, de cada religião, de cada moral, de cada instituição, transcendendo essas formas instituídas de conceber o mundo, de forma a concretizar a formação de um sujeito afeto à diversidade cultural. Isso é base e condição sine qua non para a formação de um sujeito capaz de avaliar e fazer escolhas livres e autônomas sobre seu projeto de vida.

Diante de uma visão particularista de mundo, o professor retoma seu papel formativo de agregar ao aluno uma visão cosmopolita. Assim, “recuperar seu fim próprio (a universalização do saber, a liberdade de pensamento, a verdade), vendo nisso um fim real...” (SARTRE, 1994 p. 49), de forma a tornar possível a realização da noção de educação que apontamos no início deste texto, a saber, a educação enquanto processo que torna possível um salto formativo de si, num distanciamento de si para si mesmo. Assim, uma criança, formada na visão particularista de sua família ou das instituições que ela frequenta, encontrará na escola, no trabalho docente e no livre exercício da cátedra, conteúdos culturais que lhe permita aprender diversas visões de mundo, transcendendo, assim, aquele estado formativo, e operando, enfim, o distanciamento de si para si mesmo, característico da educação. A escola emerge como um espaço em que a criança exercita, a partir dos conteúdos culturais ali ensinados, o livre pensar para além da ideologia que a formou, para além do mundo instituído pelo adulto e ensinado por ele nas famílias e instituições sociais. Isto é condição para que as novas gerações reinventem o mundo e se constituam a si mesmas como uma nova geração, diferente da anterior, tal qual afirmamos com Hannah Arendt no início deste artigo. O Movimento Escola sem Partido advoga pela preservação da ideologia particularista da família, alienando, com esse processo, a possibilidade dessa nova geração constituir-se como novidade, como uma nova geração, criadora, portanto, de uma nova ideologia, de uma nova visão de mundo. Presa no particularismo de seu entorno social e alienada de outras visões de mundo, resta a geração da criança perpetuar este mundo organizado pelo adulto, perpetuar esta ideologia particularista em que ela foi formada. Não há movimento, dessa forma. Não há inovação, mudança, não há educação. Em última instância, ao alienar a criança da aprendizagem de diferentes visões de mundo e de ideologias diversas, num ato de captura da escola e do trabalho docente, o Movimento Escola sem Partido aliena a criança da possibilidade de exercício da liberdade de escolher e de tomar para si, como algo constitutivo de seu ser e de sua identidade, uma determinada ideologia dentre as diversas visões de mundo e ideologias que ele aprendeu, seja aquelas aprendidas na família, nas instituições que frequenta ou na escola.

A experiência vivida pela criança de aprender, na escola e através do trabalho docente, os mais diversos conteúdos culturais vinculados em diversas disciplinas e, a partir deles, interrogar, refletir criticamente e opinar, com a maioridade que a racionalidade autônoma permite, sobre a própria ideologia a qual foi formada, sobre seus entornos sociais e de convivência e a visão de mundo comungada pelos seus pares próximos, produz naqueles que vinculam esta ideologia e visão de mundo desconforto e mal-estar típico de todo questionamento, de toda crise e de paradigma. A criança que experiencia, a partir dos conteúdos aprendidos na escola, os limites do particularismo ideológico que foi criada torna-se um ser desestabilizador deste particularismo e desta instituição representada. Daí a necessidade de captura do trabalho docente. A concepção do Movimento Escola sem Partido de um professor puramente técnico, cuja trabalho docente restringe-se a ensinar, de forma isenta, conteúdos culturais primando, assim, pelas técnicas de ensino e não pela leitura do mundo ou pela reflexão dos entornos culturais da criança, responde a um projeto de sociedade ordenada, respeitosa e reprodutora de uma ideologia e de uma visão de mundo. Desestabilizar os paradigmas políticos, econômicos, morais, religiosos e culturais, a partir de conteúdos culturais aprendidos na escola, é uma dimensão da prática docente em formar sujeitos críticos e reflexivos de sua própria existência bem como a do mundo. Por esta dimensão, a atividade docente deve ser vigiada, capturada e controlada, de modo a não desestabilizar a visão particularista de mundo aprendido pela criança em seu entorno social. É nesse projeto político de educação que as práticas do professor, para o Movimento Escola sem Partido, devem “colocar o universal a serviço do articular; pratica a autocensura e torna-se apolítico e agnóstico” (SARTRE, 1994, p. 29). Para esse movimento, e nos projetos de lei que o representam, não cabe ao professor ensinar conteúdos ou desenvolver práticas que permitam às crianças pensar criticamente os valores e a ideologia que constituem a tessitura social, ou que fundamentam instituições sociais. Educar a criança com determinados valores numa ideologia política, religiosa, econômica e cultural é tarefa da família e não cabe à escola e às práticas docentes apresentar conteúdos culturais nas disciplinas que proporcionem o conhecimento de outras ideologias, outros valores. Isso, definitivamente, não é “da conta do professor”, segundo o Movimento Escola sem Partido. Por isso, concebe o professor como um técnico do saber especializado: aquele que ensina conteúdos culturais, mas não reflete sobre o mundo, sobre a cultura, sobre as instituições sociais, sobre os ordenamentos sociais. O professor, ao fazer isso, torna-se um intelectual, tudo aquilo que o Movimento Escola sem Partido deseja evitar:

Se constata o particularismo de sua ideologia e não se satisfaz com isso, se reconhece que interiorizou em autocensura o princípio de autoridade, se, para recusar seu mal-estar e sua mutilação, é obrigado a pôr em questão a ideologia que formou, se ele se recusa a ser agente subalterno da hegemonia e o meio de fins que ignora ou que é proibido contestar, então o agente do saber prático transforma-se num monstro, quer dizer, num intelectual, que se mete no que não é da sua conta (em exterioridade: princípios que guiam sua vida, e interioridade: seu lugar vivido na sociedade) e de que os outros dizem que se mete no que não é de sua conta (SARTRE, 1994, p. 29).

Refletir criticamente sobre os entornos sociais24 do estudante; questionar paradigmas que permeiam as práticas sociais; suspender, sob o escrutínio do pensamento autônomo e de teorias diversas e plurais, valores econômicos, políticos, morais e culturais; compreender a sociedade como um lugar da diversidade e da diferença, em que formas distintas de conceber a si, o outro e a união de pessoas emergem na pluralidade cultural, são, para o Movimento Escola sem Partido e os projetos de lei por eles concebidos, práticas pedagógicas que “não é da conta do professor”. Essas práticas pedagógicas caracterizam a “monstruosidade” do professor: sua intelectualidade, sua prática cosmopolita e universalista.

Reflexões finais

A escola é um lugar de abertura para o mundo, local em que se formam pessoas para adentrar na cultura. Para Hannah Arendt, a educação é pré-política e a escola é a intermediação entre a vida privada e o mundo público da política. Assim, como adentrarão os mais jovens na vida pública sempre fora a preocupação dos governos. Se os mais jovens perpetuarão os valores de trabalho, de moralidade, de religião, de política e economia instituídos na cultura, ou se os colocarão em suspensão (époche), reinventando os valores e constituindo-se como uma nova geração numa atitude de transcendência da geração adulta, este sempre fora um grande ponto de interrogação e preocupação, portanto, dos governos responsáveis pela escola. Práticas de disciplinamento e políticas públicas de controle sobre a escola foram e são estratégias utilizadas por governos e instituições sociais com o objetivo de produzir um fim específico do processo formativo, a saber, um tipo ideal de sujeito. Tal é o caráter social da educação diagnosticava Durkheim25. Lugar de transcendência ou de perpetuação do instituído, tal é a dialética a que a escola está envolvida no aparato social. Se a perpetuação do instituído realiza o caráter social da escola, a possibilidade de transcendência é objeto de cuidado dos que governam ou desejam governar a escola.

Em defesa da escola, Masschelein e Simons afirmam, a partir de um resgate histórico da instituição escolar, que a escola opera uma intervenção democrática na sociedade, tornando o mundo público para os escolares, e oferecendo, a partir da democracia e da publicidade, uma renovação deste mundo. Assim, democracia, público e renovação são três características dessa invenção grega chamada escola.26 Enquanto democrática, a escola é um lugar em que todas as diversidades, se fazem presente. Assim, a escola não é um lugar de particularismos, pois compromete seu caráter democrático, tornando-a um espaço para proselitismo de classes hegemônicas, seja econômica, religiosa ou cultural, situadas na escola. Enquanto espaço de publicidade, a escola é o lugar para todas as ideologias, todas as visões de mundo, aquilo que chamamos, a partir de Sartre, de universalismo. O tornar público, no interior da escola, as mais diversas teorias, permite aos alunos movimentar-se num ato de transcendência dos particularismos. E enquanto renovação, a escola é um lugar de transcendência do mundo instituído e de invenção de culturas diversas. É na escola que a criança se apropria da cultura presente em seu entorno social e, num exercício de reflexão e produção de conhecimento, transcende esta cultura, emergindo como uma nova geração, como uma inovação.

Esses três elementos foram, segundo os autores, fontes instauradoras de ansiedades e de emergência de projetos de vigilância, captura e domação da escola, por parte daqueles que são responsáveis pela transmissão e perpetuação de um modo de vida instituído:

Devido a essas qualidades democrática, pública e de renovação, não é surpresa que a escola tenha provocado certo medo e perturbação desde as suas origens. É uma fonte de ansiedade para aqueles que podem perder alguma coisa através da renovação. Então, não surpreende que tenha sido confrontada com tentativas de domá-la desde o seu início. Domar a escola implica governar seu caráter democrático, público e renovador (MASSCHELEIN e SIMONS, p. 2014, 55).

Em nossa reflexão, o Movimento Escola sem Partido, ao fazer uso da estratégia de estabelecer relações políticas nas instâncias de governo - casas legislativas e poder executivo - de forma a influenciar para a incorporação de seu projeto de lei como política pública para a educação, objetiva exatamente domar a escolar, suspendendo seu caráter democrático, público e renovador. Ciente de que na escola as crianças encontram conteúdos culturais que podem afrontar e transcender uma visão de mundo instituída e coerente às gerações que desejam perpetuar o mundo tal qual ele está organizado, o Movimento Escola sem Partido faz da política uma forma de controle sobre a escola, pois enxerga, nela mesma, exatamente o lugar mais profícuo para dissipar qualquer forma de renovação da cultura. Estabelece, assim, uma compreensão da escola como um lugar de particularismo, de perpetuação de uma concepção de mundo, uma escola colonizada pela família, pela religião, pela moralidade ou pela política. Trata de um projeto de lei que captura a escola, tornando-a uma instituição moderna de controle social:

A escola, como uma “instituição moderna” - a forma que assumiu no século XVIII e começo do século XIX no Ocidente - é um exemplo da tentativa de dissipar a renovação, o potencial radical e a “capacidade de começar” que ela oferece. Isso acontece ao se apresentar algo e, simultaneamente, deixar claro que “é assim que deve ser feito, e esses são os materiais de aprendizagem que devemos usar” (MASSCHELEIN e SIMONS, p. 2014, 55).

Isso fica particularmente claro quando presenciamos grupos, adeptos do Movimento Escola sem Partido, exercer pressão e influência ao ponto de excluir qualquer discussão de gênero do Plano Nacional de Educação, ou quando presenciamos verdadeiros tribunais virtuais inquisitórios sobre as práticas pedagógicas dos professores que ousam instituir-se enquanto intelectuais, caminhando com os alunos numa visão crítica e alternativa sobre a sociedade, a política e a cultura, conforme vimos exemplos neste artigo. Os argumentos centrais do Movimento Escola sem Partido presentes na proposta de projeto de lei, a saber, de que a educação moral e religiosa é da dimensão familiar; de que conteúdos culturais de cunho político-partidário27 devem estar proscritos da escola; de que o professor deve se ater ao ensino isento de sua disciplina de forma a não doutrinar os alunos, todas essas teses advogam e instituem no âmbito da lei, uma escola colonizada por uma ideologia representativa de um segmento social, cuja tarefa precípua é iniciar os jovens que ali chegam nos valores desse segmento social. Abstrair da escola o enfrentamento da política, da economia, da moralidade, da diversidade de gênero, dentre outros conteúdos, reflete um projeto de escola em que o professor não é um intelectual, mas o representante, na escola, de um status quo instituído cujo objetivo é a sua perpetuação.

O que defendemos, neste texto, é um resgate da escola como um espaço de inovação, um território em que as novas gerações (crianças) que chegam à escola, encontrem neste lugar um espaço em que todo o universo cultural em que ela estava inserida (ordenamento ideológico, crença religiosa, opção política e econômica, valores morais) esteja suspenso em nome da aprendizagem, em nome do contato com o pluralismo de ideias, de valores e de ideologias que lhe permitam transcender este universo cultural que ela estava inserida, permitindo-lhe dar outros sentidos e significados ao mundo. São esses novos sentidos e significados que permitem a esta nova geração que chega à escola constituir-se como uma geração diferente dos adultos, diferente da de seus pais, inovando e construindo, assim, um novo mundo. A educação, finalmente, como acontecimento escolar precisa ser diferente daquela promovida dentro do âmbito familiar, uma vez que essa educação familiar se propõe ser reprodutivista da sua perspectiva de mundo, da sua moral, da sua ideologia, e da própria família, enfim. Se assim não for, não há, então, risco, não há superação de si mesmo e, no limite, não há um processo educativo (BIESTA, 2017).

Referências

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1Ver, por exemplo, ROUSSEAU, J.-J. Considerações sobre o governo da Polônia e sua reforma projetada. São Paulo: Brasiliense, 1982 e CONDORCET. Cinco memórias sobre a instrução pública. São Paulo: Editora UNESP, 2008. Em ambas as obras são apresentadas propostas de uma educação que atende a um projeto de nação. Na obra de Rousseau, a educação emerge como instância formativa de um espírito patriótico necessário para regenerar uma Polônia corrupta e sem uma identidade nacional, fruto do arco de influência da Prússia e da Rússia. As crianças, formadas num espírito nacionalista, iriam se constituir numa população que resgataria o valor do povo polonês, necessário para a construção de um novo país. Trata-se de um projeto de nação construído também pela via da educação. Em Cinco memórias sobre a instrução pública, escrito em 1791, o autor propõe um projeto completo de educação à luz do movimento revolucionário francês e a emergência de nova nação, fruto desse movimento revolucionário. Aqui, a educação é parte integrante de um projeto republicano de Estado. A despeito de ser uma obra de educação absolutamente avançada para a época e ainda se constituir numa bandeira de muito movimentos pró educação, trata-se de uma obra que associa, umbilicalmente, a educação num projeto de nação.

2É na modernidade que emerge o projeto de uma educação que forma pessoas, que institui o ser no humano, distanciando-a da natureza ou que cultiva o humano como condição para a civilidade. Chamo a atenção, por exemplo, para De pueris, de Erasmo, obra na qual o filósofo apresenta a educação como a forma de instituir e formar o humano no homem, processo necessário para a civilidade. Filho da natureza, o homem é um animal que precisa ser moldado pela educação a fim de alcançar a humanidade e a civilidade: “A natureza, quando te dá um filho, ela não te outorga nada além de uma massa informe. A ti cabe o dever de moldar até a perfeição, em todos os detalhes, aquela matéria flexível e maleável. Se não levares a cabo a tarefa, terás uma fera. Ao contrário, se lhe deres assistência, terás, diria eu, uma divindade [...] Não podes conservar aquela massa sempre informe. Se não imprimires a imagem de homem, ela se degrada por si mesma e vira monstruosidade à guisa de fera”. (ERASMO, s/d, p. 33). Numa outra passagem, deixa claro: “... o ser humano, sem meticulosa aprendizagem que lhe advém dos moldes instrucionais, não passa de um animal inútil” (ERASMO, s/d, p. 26). Destaco, também, Sobre a pedagogia, obra em que Kant define a premissa da educação enquanto mecanismo de afastamento do homem em relação à natureza, bem como o cultivo do racionalidade e do esclarecimento. “O homem não pode se tornar um verdadeiro homem senão pela educação. Ele é aquilo que a educação dele faz [...] quem não tem disciplina ou educação é um selvagem”. (KANT, 1999, p. 15-16). Segue, numa passagem adiante, o raciocínio: “Na educação, o homem deve, portanto [...] Tornar-se culto. A cultura abrange a instrução e vários conhecimentos” (KANT, 1999, p. 25). Observe que, na modernidade, o nascimento não é garantia de humanidade. Mas esta, diferente, é cultivada, formada e construída pela educação. É no auge da modernidade, que o termo Bildung torna-se, no século XVIII, o conceito mais importante e proficuamente usada na educação, em particular com os Bildungsroman, com destaque para O jovem Wether de Goethe, Leonard e Gertrudes de Pestalozzi e Emílio de Rousseau.

3O termo cultura, desde aonde nos apropriamos para designar o ato educativo como instituição da cultura, ou que pela educação, o homem adentra na cultura, pertence, no primórdio, à ordem da natureza. Cultura é cultivar a terra, conforme Hannah Arendt (1972, p. 265): “É de origem romana, a palavra cultura origina-se de colere - cultivar, habitar, tomar conta, criar e preservar - e relaciona-se essencialmente com o trato do homem com a natureza, no sentido do amanho e da preservação da natureza até que ela se torne adequada à habitação humana”. Somente na evolução semântica é que cultura passou a designar o trato de ordem espiritual. Esse movimento, segundo Eagleton (2005), se deu em consonância com a passagem do mundo agrário para o urbano. Assim, a mudança semântica do termo cultura é herdeira da emergência da vida urbana, de forma que “... cultura denotava de início um processo completamente material, que foi depois metaforicamente transferido para questões do espírito” (EAGLETON, 2005, p. 10). Sobre a origem semântica e evolução do termo cultura, sugiro ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994, em especial o segundo volume e, também, o estudo de LIMA, Sílvia Cristina F. Cultura e formação nos primeiros escritos de Nietzsche. 2012. 103f Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2012.

4Conforme Hannah Arendt (1972, p. 223): “É a oportunidade, proporcionada pelo próprio fato da crise - que dilacera fachadas e oblitera preconceitos -, de explorar e investigar a essência da questão em tudo aquilo que foi posto a nu, e a essência da educação é a natalidade, o fato de que seres nascem para o mundo.

5“Exatamente em benefício daquilo que é novo e revolucionário em cada criança é que a educação precisa ser conservadora; ela deve preservar essa novidade e introduzi-la como algo novo em um mundo velho que, por mais revolucionário que possa ser em suas ações, é sempre, do ponto de vista da geração seguinte, obsoleto e rente à destruição” (ARENDT, 1972, p. 243).

6Uma passagem de Entre o passado e o futuro (ARENDT, 1972, p. 247), é, particularmente, significativa desse caráter revolucionário que a infância e a educação possuem. Cito: “A educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las aos seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum”. O adulto, ao mesmo tempo em que responde (tem responsabilidade) por este mundo, tal como está organizado, e, por isso, faz a introdução do nascituro neste mundo já organizado, ele tem que se haver com a educação dessa infância e com o fato dessa infância emergir, vir à tona, algo inesperado pelo adulto. Esse “inesperado” é a renovação do mundo operado pela infância, pelos novos que chegam ao mundo pelo nascimento. É nesse hífen que o educador se encontra: entre a responsabilidade por este mundo e a inovação e desestabilização desse mundo, advindo da educação da infância.

7Acordado coma tese de ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. São Paulo: Editora LTC, 1981, a infância é descoberta entre os séculos XIII e XVI. Trata-se da invenção da infância na modernidade e da escola como o lugar de formação dessa criança.

8Ver, por exemplo, o projeto rousseauniano de pensar a especificidade da infância no Emílio ou de Kant com suas reflexões sobre a educação das crianças, especificamente em Sobre a pedagogia. Mas, não somente estes pensadores modernos, mas desde o renascimento a infância ocupa grande parte das reflexões dos filósofos sobre a educação. Aqui refiro-me a Erasmo de Roterdam, com A civilidade pueril, e Comenius, com a Didática magna. Salientamos que a modernidade marca a emergência de uma tríade na educação que a marcará e a acompanhará até os dias atuais, a saber, a descoberta da infância, a emergência da instituição escolar e o nascimento das ciências do espírito que irão se ocupar do desenvolvimento psíquico e social da criança.

9Esse movimento de vigilância sobre o professor não é fenômeno de nossa década, mas remonta inúmeras experiências na história do Brasil e do mundo, inclusive. Práticas de controle sobre as mentes do professor no processo de sedimentação da educação jesuítica e durante o regime militar são conhecidas, bem como as práticas de vigilância na educação alemã do III Reich, são bastante documentadas.

10A título de exemplo, o vídeo vinculado pelo deputado Federal Jair Bolsonaro que acusa o governo federal de sexualizar precocemente as crianças com essas ações formativas no campo do gênero, somavam, até o mês de outubro de 2018, 8,6 milhões de visualizações. Posteriormente, em novo vídeo, agora denunciando o chamado kit gay, soma 3,5 milhões de visualizações.

11Em 03/04/2017, o vereador pela cidade de São Paulo, Fernando Holiday (DEM), ligado ao Movimento Brasil Livre e apoiador do projeto intitulado Escola Sem Partido, fez uma, conforme ele mesmo intitula, “visita surpresa” à Escola Municipal Constelação do Índio, no Jardim Campinas, zona sul de São Paulo. O objetivo: “... verificar, claro, a estrutura da escola, mas também para analisar se há doutrinação no conteúdo que está sendo dado na sala de aula” (Folha de São Paulo, 04/04/2017). Sobre essas formas de vigilância sobre o trabalho docente, estamos finalizando um artigo que trata especificamente disso, ao mostrar como as propostas de legislação da Escola Sem Partido, bem como as práticas propagadas pelo Movimento Escola Sem Partido baseiam-se numa estratégia de vigilância e controle sobre o trabalho do professor, ao defender e incentivar o tribunal virtual das redes sociais, como locais de avaliação do trabalho do professor.

12Há uma orientação, em postagem de 28 de março de 2018, no Facebook do Escola sem Partido, para que pais acompanhem o que os professores de seus filhos postam nas redes sociais para descobrir se, nas palavras postadas, são “militantes disfarçados de professores”. (https://www.diariodocentrodomundo.com.br/essencial/escola-sem-partido-instrui-seguidores-a-inspecionar-postagens-de-professores-nas-redes/. Acesso em 27 de janeiro de 2020). Ver, também, em http://sinprogoias.org.br/escola-sem-partido-prega-perseguicao-a-professores-nas-redes-sociais/. Acesso em 27 de janeiro de 2020.

13É necessário esclarecer que não é objetivo deste artigo analisar esse projeto político, ou mesmo fazer uma reflexão crítica sobre ele. Mas, objetivamos tão somente demonstrar como esse projeto emerge como prática política de controle e vigilância sobre a escola e o trabalho docente.

14Não podemos deixar de fazer referência quanto à data, segundo o fundador e coordenador do movimento, que a doutrinação nas escolas passa a ocorrer: 1980 é exatamente a década de redemocratização brasileira, da anistia, da volta da eleição direta, da liberdade de organização partidária, da construção de uma nova Constituição, do retorno da liberdade de expressão e do fim do governo militar. Datar a suposta doutrinação nas escolas com o fim do governo militar e o processo de redemocratização revela muito da visão que este movimento tem da escola durante o regime militar, do próprio governo militar e da redemocratização brasileira.

15Foram apresentados projetos de leis nas seguintes câmaras legislativas: Câmara dos Deputados: PL 867/2015. Assembleias Legislativas: Rio de Janeiro - PL Nº 2974/2014; Ceará - PL nº 91/14; São Paulo - PL nº 960/2014; Goiás - PL nº 2861/2014; Espírito Santo - PL nº250/2014; Distrito Federal - PL 53/2015; Rio Grande do Sul - PL 190/2015; Alagoas - PL nº 7800/2016. Câmara de Vereadores: Santa Cruz do Monte Castelo/PR - PL nº 002/2014; Toledo/PR - PL nº191/2014; Foz do Iguaçu/PR - PL nº 130/2014; Rio de Janeiro/RJ - PL nº 867/2014; Curitiba/PR; Palmas/TO; Joinville/SC; Vitória da Conquista/BA; Cachoeira do Itapemirim/ES; São Paulo/SP. (https://www.programaescolasempartido.org/pls-em-andamento. Acesso em 27 de janeiro de 2020).

16Conforme artigo de Jonas da Silva Azevedo Por que o pensamento pedagógico de Paulo Freire leva à doutrinação ideológica, política e partidária?, vinculado na página do Movimento Escola Sem partido. Disponível em http://escolasempartido.org/artigos/por-que-o-pensamento-pedagogico-de-paulo-freire-leva-a-doutrinacao-ideologica-politica-e-partidaria/. Acesso em 27 de janeiro de 2020. Conforme vídeo no yotube e vinculado na página do movimento: https://www.youtube.com/watch?time_continue=68&v=0Ec20JZNr24. Acesso em 27 de janeiro de 2020. Também em https://www.programaescolasempartido.org/movimento

17No Parecer do fundador do movimento Escola sem Partido, lemos: “70. Como já se observou, se a família desfruta de especial proteção do Estado, a lei não poderia deixar de reconhecer e assegurar aos pais o direito natural de dirigir a educação religiosa e moral dos seus filhos. Por outro lado, o dever dos pais de criar e educar os filhos menores implica necessariamente o direito de fazê-lo de acordo com suas próprias convicções religiosas e morais. 71. [...] Se os pais ensinam aos seus filhos que “isso é pecado”, mas na escola eles aprendem com seus professores que ‘pecado não existe’ ‒ ou vice-versa ‒, qual a chance de os filhos respeitarem seus pais? E, se não os respeitam, qual a chance de haver alguma harmonia no seio da família?” (http://www.escolasempartido.org/images/pfesp.pdf, p. 20-21. Acesso em 27 de janeiro de 2020. Itálicos no original). Educar e formar um sujeito implica, sine qua non, em expandir o universo cultural em que esse sujeito se encontra. Isso é formar um cidadão e esse é o papel da escola e do trabalho do professor. Se a criança vem de um seio cultural em que aprendeu a existência do pecado, é exatamente na escola que ela expandirá seu universo cultural e aprenderá que a noção de pecado não existiu em todos os períodos históricos e nem em todas as culturas e povos; ou se a família comunga da tese de que o holocausto judeu era necessário para a concretização da eugenia nazista e criação de um mundo melhor, é na escola que ela se deparará com discursos distintos e contraditórios a este, expandindo seu horizonte cultural e formativo. Com o objetivo de formar um cidadão cosmopolita, afeto a uma formação diversa, plural e universal, a escola deve ir de encontro e suspender, em muitos aspectos, o aprendizado e a formação que a criança adquiriu, não somente na família, mas em igrejas, clubes e círculos de amizade. Não se questiona o papel e o direito da família em educar seus filhos, ensinando a eles os valores, religião e ideologias que lhe são caras. Contudo, é igualmente incontestável a tarefa da escola em apresentar conteúdos culturais que expandem o universo cultural das crianças, sendo distinto, portanto, daqueles que ela aprende na família, em muitas situações.

18Isso é particularmente importante, pois, a família, o sindicato, a igreja (os entornos sociais que a criança frequenta), podem se constituir enquanto meios de difusão de ideias e valores excludentes, discriminatórios e contrários, portanto, a uma sociedade democrática, plural e cosmopolita que, pela força de persuasão e influência sobre a criança, torna-se dogmas para elas: “Eliminar discussões sobre temas controversos e a possibilidade de que os valores familiares sejam discutidos pelos estudantes e pelos professores são ações que têm como objetivo reificar a opinião familiar (que pode ser radicalmente oposta à defesa democrática da pluralidade) e fazer com que valores que são respeitados por alguns, por escolhas religiosas, passem a ser entendidos como valores universais e, mais grave, inquestionáveis” (GUILHERME e PICOLI, 2018, p. 08).

19Para Masschelein e Simons (2014, p. 63), “a escola consiste em expropriação, desprivatização e dessacralização, e, portanto, na radical - ousamos até dizer na potencialmente revolucionária - oportunidade de renovar o mundo”. Essa renovação do mundo feita pela escola, ocorre num processo de dessacralização dos saberes instituídos, bem como através da profanação dos usos e utilidades que os saberes têm para a sociedade. Em outras palavras, aquilo que a criança aprende em sua família, ou nos entornos sociais que a rodeiam, bem como as utilidades sociais e econômicas que os saberes instituídos e a ela transmitido pelas gerações adultas, ganham, no espaço escolar e sob o olhar inovador das novas gerações, outros significados, outras utilidades, outros usos econômicos, políticos e sociais. Assim, “a comunidade de alunos é uma comunidade única; é uma comunidade de pessoas que não têm nada (ainda) em comum, mas, por confrontarem o que é fornecido, os seus membros podem experimentar o que significa compartilhar alguma coisa e ativar sua capacidade de renovar o mundo” (MASSCHELEIN e SIMONS, p. 2014, 44).

20“O professor não se aproveitará da audiência cativa dos alunos para promover os seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias”. (Item 01 “Dos deveres do professor”: https://www.programaescolasempartido.org/. Acesso em 27 de janeiro de 2020).

21Jacques Delors, In’am Al-Mufti, Isao Amagi, Roberto Carneiro, Fay Chung, Bronislaw Geremek, William Gorham, Aleksandra Kornhauser, Michael Manley, Marisela Padrón Quero, Marie-Angélique Savané, Karan Singh, Rodolfo Stavenhagen, Myong Won Suhr, Zhou Nanzhao.

23Art. 4º. No exercício de suas funções, o professor: V - respeitará o direito dos pais dos alunos a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções. Apesar da Biologia, da História e da Sociologia não serem disciplinas de educação religiosa e nem moral, elas abordam assuntos que dialogam e dizem respeito à religião e à moralidade.

24O lugar em que o sujeito é situado em relação ao mundo é definido por Sartre como a “ordem espacial e a natureza singular dos ‘istos’ que a mim se revelam sobre o fundo de mundo. E, naturalmente, o lugar que ‘habito’ (meu ‘país’, com seu solo, seu clima, suas riquezas, sua configuração hidrográfica e orográfica), mas, também, mais simplesmente, a disposição e a ordem dos objetos que presentemente me aparecem” (SARTRE, 1999, p. 602). É do lugar que o homem ocupa no mundo que emerge diante de sua existência os arredores, os entornos, “as coisas-utensílios que me circundam, com seus coeficientes próprios de adversidade e utensilidade” (SARTRE, 1999, p. 619). Os arredores são as coisas - consciências e objetos - que circundam o sujeito e que aparecem como obstáculos ou utilidades para os projetos que ele constrói para si mesmo. Trata-se, de fato, daquilo que os alemães chamavam de Umwelt, o mundo-circundante. Assim, é o lugar em que o sujeito se encontra, com os objetos e outros sujeitos, que constitui a realidade com a qual cada subjetividade tem que se a ver com seus projetos e fracassos.

25Em Educação e Sociologia (1984, p. 17), Durkheim afirma: “[...] a educação consiste numa socialização metódica da nova geração. Poder-se-á dizer que, em cada um de nós, existem dois seres [...] um é aquilo que poderíamos chamar de ser individual. O outro é um sistema de ideias, de sentimentos e de hábitos que expressam em nós, não a nossa personalidade, mas sim o grupo, ou diferentes grupos que fazemos parte; é o caso das crenças religiosas, credos e práticas morais, tradições nacionais oi profissionais, opiniões coletivas de qualquer espécie”. O caráter social da educação forma um tipo ideal de sujeito, a saber, aquele que se insere na sociedade, realizando-a e perpetuando-a. Vejamos uma passagem dessa mesma obra: “Não existe povo onde não existir um certo número de ideias, de sentimentos e práticas que a educação inculcar em todas as crianças, indistintamente, qualquer que seja a categoria social a que pertençam. [...] Conclui-se destes fatos, que cada sociedade tem para si um certo ideal de homem, daquilo que ele deve ser, tanto do ponto de vista intelectual, como físico e moral [...]. Assim, é a sociedade, no seu conjunto, e cada meio social particular, que determinam esse ideal que a educação realiza. A sociedade somente poderá viver se entre seus membros existir uma suficiente homogeneidade, fixando antecipadamente na alma da criança as similitudes que a vida coletiva exige” (DURKHEIM, 1984, p. 15-16).

26“É uma intervenção democrática no sentido de que “cria” tempo livre para todos, independentemente de antecedentes ou origem, e, por essas razões, instala a igualdade. A escola é uma invenção que transforma todos em um aluno - e, nesse sentido, coloca todos numa situação inicial equivalente. O mundo é tornado público pela escola. Ela não consiste, portanto, na iniciação em uma cultura ou estilo de vida de um grupo específico (posição social, classe, etc.). Com a invenção da escola, a sociedade oferece a oportunidade de um novo começo, uma renovação” (MASSCHELEIN e SIMONS, p. 2014, 55).

27Trata-se de uma estratégia para retirar da escola conteúdos culturais e práticas pedagógicas que tratam da política, pois é absolutamente simples vincular um tema político a um partido. Assim, ao tomar ciência de que na escola seu filho está aprendendo sobre o comunismo - enquanto crítica e superação do capitalismo liberal, com uma concepção de sociedade, bem como os avanços e retrocessos desse sistema de governo -, a família pode avocar que o professor está fazendo proselitismo aos partidos comunistas.

Recebido: 17 de Junho de 2020; Aceito: 26 de Novembro de 2020

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