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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.34 no.71 Uberlândia maio/ago 2020  Epub 06-Fev-2022

https://doi.org/10.14393/revedfil.v34n71a2020-56831 

Dossiê Fenomenologia e Educação

Indecisão plena de promessas: imagens da vida e da infância na filosofia de Henri Bergson

Indecision charged with promise: Images of life and childhood in Henri Bergson’s philosophy

Indecisión cargada de promesas: Imagénes de la vida y de la infancia en la filosofía de Henri Bergson

*Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade dos Açores/NICA-UAc: Núcleo Interdisciplinar da Criança e do Adolescente da Universidade dos Açores; Instituto de Filosofia da Universidade do Porto. E-mail: magda.ep.teixeira@uac.pt


Resumo

Numa passagem da obra Évolution Créatrice, Bergson recupera a imagem da criança para afirmar que a natureza viva opera através de tendências divergentes. Apesar de não ter desenvolvido um pensamento de pendor educacional, encontram-se na obra bergsoniana referências que, por um lado, recuperam a dimensão criativa e criadora da infância e, por outro, acentuam a forma infantil dos movimentos do élan vital. Estas referências fazem parte da imagética do autor, mostrando como o seu pensamento sugestiona leituras ímpares. O convite para cruzar a imagem da vida como infância com a imagem da infância como vida revela-se, assim, sugestivo para repensar o que nos habita como constitutivamente outro: a criança que fomos e a natureza que somos. E será através da imagem - como forma de contacto dinâmico com o real - que poderemos encontrar algumas respostas para a sugestão bergsoniana de se promover nas escolas um conhecimento infantil (enfantin).

Palavras-chave: infância; criança; natureza; imagem; Bergson

Abstract

In a passage in his Évolution Créatrice, Bergson reclaims the image of the child to argue that living nature works through divergent tendencies. Although Bergson’s work doesn’t focus specifically on education, it does contain references that, on the one hand, reclaim the creative and creating nature of childhood, while on the other hand accentuating the childlike nature of élan vital’s movements (vital impetus). These references are part of Bergson’s repertoire of imagery and demonstrate how his thought evokes uneven readings. The invitation to cross the image of life as childhood with that of childhood as life ultimately evokes a rethinking of what inhabits us as constitutively other: the child we were and the nature we are. And it is through the notion of image - as a form of dynamic contact with reality - that we will find some answers for Bergson’s suggestion that schools promote a childlike knowledge (enfantin).

Key-words: childhood; child; nature; image; Bergson

Resumen

En un pasaje sobre la obra Évolution Créatrice, Bergson recupera la imagen del niño para afirmar que la naturaleza viva opera a través de tendencias divergentes. A pesar de no haber desarrollado un pensamiento de carácter educacional, se encuentran en la obra bergsoniana referencias que, por un lado, recuperan la dimensión creativa y creadora de la infancia y, por otro, acentúan la forma infantil de los movimientos del impulso vital. Estas referencias hacen parte de la imagen del autor, mostrando como su pensamiento sugestiona lecturas impares. O convite para cruzar la imagen de la vida como infancia con la imagen de la infancia como vida se revela, de esta manera, sugestivo para repensar lo que nos habita como constitutivamente otro: el niño que fuimos y la naturaleza que somos. Y será a través de la imagen - como forma de contacto dinámico con lo real - que podremos encontrar algunas respuestas para la sugestión bergsoniana de promoverse en las escuelas un conocimiento infantil (enfantin).

Palavras-clave: infancia; niño; naturaleza; imagen; Bergson

A hermenêutica da obra de Henri Bergson é parca na exploração da dimensão educativa do seu pensamento. De facto, não são abundantes as ocasiões em que o filósofo dá expressão a questões do domínio explícito da educação e, nesse contexto, este não constitui um dos eixos estruturais da sua metafísica. Não obstante, Bergson dedicou algumas reflexões ao problema geral do ensino, mormente em conferências públicas e artigos (BERGSON, 2011a, p. 39-46; 152-170; 1972, p. 1366-1379).

Para além da sua atuação como homem de pensamento, Bergson foi um professor cuja notoriedade se estendeu muito para lá dos portões do Collège de France. E esse magistério foi com certeza o motor para que, nalgumas ocasiões, o filósofo manifestasse a sua posição em relação a políticas educativas e reformas públicas do ensino em França (MOSSÉ-BASTIDE, 1995). Dada a sua dupla condição de filósofo e professor, Bergson legou-nos textos cujas posições educativas não se encontram apenas explicitamente tratadas, mas se espraiam em considerações sociais e políticas, assim como em reflexões no âmbito da sua filosofia do conhecimento (SOULEZ; WORMS, 1997, p. 202-203). É sempre o filósofo que nos fala. E que filósofo poderia ficar indiferente às questões colocadas pela missão humana de levar mundo aos outros e outros ao mundo?

Neste contexto, não nos iremos ocupar de possíveis linhas para o esboço de um pensamento educacional de pendor bergsoniano, nem tão pouco das conceções do autor sobre o ensino. Ao invés, escolhemos tratar uma temática que, ainda que próxima dessas possibilidades, surge do âmago da metafísica do autor, mormente da sua filosofia da natureza. Referimo-nos às leituras que Bergson apresenta para a noção de criança (ou infância). Sendo mais um recurso imagético a explorar do que um conceito fechado, consideramos que é possível encontrar na obra de Bergson momentos sugestivos para um entendimento de infância que pode dar a pensar.

Na presente reflexão, procuraremos mostrar como o convite de cruzar dois domínios, a infância e a vida, se revela sugestivo para repensar o que nos habita como constitutivamente outro: a criança que fomos e a natureza que somos. Este percurso não nos parece displicente já que nenhum pensamento educativo, assim como nenhuma decisão pedagógica, deveriam começar sem o movimento íntimo de pensar sobre o que é a infância. A nossa reflexão será, assim, um começo esperado de futuras vozes que possam ajudar a levar mais longe os desafios impostos por quem decide pensar a natureza viva à imagem da infância, assim como a infância à imagem da vida.

Pelo meio, deter-nos-emos na própria noção bergsoniana de imagem e naquilo que ela nos poderá ajudar a traçar na nossa relação com a vida e com a infância, sobretudo em termos dos desafios que essa relação continuamente nos lança enquanto educadores.

1. A imagem como convite simpático de pensamento

Os textos de Bergson evidenciam uma vivacidade literária na forma como o filósofo compõe e urde a escrita ao ritmo das ideias. O modo como expõe o seu pensamento afasta-se de uma linguagem rígida e estritamente conceptual e os tropos linguísticos alargam a sua ação para além de meros recursos de estilo. As imagens (metáforas incluídas) tornam-se, então, a matéria-prima do filosofar, o que significa que têm um estatuto operacional próprio dentro do modo como Bergson pensa a realidade.

Segundo o autor, as imagens são formas de existência que, se quisermos reportar a concepções filosóficas tradicionais, teriam de ser ditas como meios-termos entre o que os idealistas apelidam de “representação” e o que os realistas chamam de “coisa”, num entendimento da realidade anterior à clássica dissociação operada pelas escolas filosóficas (BERGSON, 2010, p. 1-2). Para compreendermos as imagens, na sua realidade e alcance, torna-se necessário reportarmos o pensamento a uma compreensão prévia da realidade, a mesma que possui o senso comum desprovido de qualquer conhecimento sobre disputadas questões teóricas, afirma Bergson.

E, de fato, o que o leitor encontra na obra do filósofo francês são imagens enquanto ingredientes de pensamento, matéria com a qual Bergson pensa e que se assumem como testemunhos de um processo interior para o qual todos podem ser convidados. O intérprete recebe, assim, um convite para um encontro com essas imagens, traduzido num contato com os seus sentidos íntimos, não enquanto totalidades fechadas de significado, mas enquanto recursos dinâmicos de pensamento: construtores de sentidos reais.

Nesse contexto, as imagens são recursos operativos do pensamento: quer no sentido de “eficientes”, enquanto vias habilitadas de encontro na realidade; quer no sentido de “em operação”, porque trazem a cada instante novos elementos para a compreensão, impossíveis de traduzir através de simples conceitos representativos ou abstratamente construídos.

Entre aquilo que o filósofo vê na simplicidade da sua intuição e a linguagem ao dispor, situa-se uma incomensurabilidade intransponível se entendermos, de forma dualisticamente redutora, que coisas e palavras compõem apenas dois mundos em correspondência. Bergson coloca a imagem precisamente nas fendas deixadas em aberto pelos reducionismos dualistas: a imagem torna-se mediadora entre a simplicidade da visão do filósofo (que é visão-contato) e a complexidade das abstrações da linguagem verbal discursiva (BERGSON, 2011b, p. 119).

O conceito representa, apresenta de novo, o que implica, por um lado, movimento de exteriorização e, por outro lado, a comunicação de algo já definido e que se limita a ser narrado. Por seu lado, a imagem é rasto de um contato íntimo porque convida a ver a partir de um centro de sentido em permanente atividade difusora e, por esse motivo, a sua primeira força é a de negação. Negação do já-dito, do já-sabido, do já-representado (BERGSON, 2011b, p. 120).

Numa peça da sua correspondência, o autor explica: “Se a vida é coisa única no seu gênero, ela não pode caber em nenhum conceito. Se o conceito, instrumento intelectual por excelência, é, como a própria inteligência, um produto da evolução vital, como é que a evolução vital entraria nos nossos conceitos? […] por isso foi-me impossível proceder por subsunção, ou redução a conceitos, tive que proceder por sugestão e a sugestão só é possível por imagens” (BERGSON, 2002, p. 195).

Subsumir consiste num procedimento de redução que implica incluir um dado elemento num conjunto mais abrangente, que assim o abarca, fechando a compreensão no que é geral e deixando de fora o que se torna específico. Mas se subsumir é fechar, sugerir pelo contrário é abrir, dar a entender, promover vias de entendimento que podem ou não ser tal qual pensadas anteriormente. Quem sugere não traça percursos feitos, não pretende sequer fazê-lo, mas aponta vias possíveis. Sugerir é correr o risco de deixar que a compreensão se espraie para o inesperado, deixando ao outro o caminho a percorrer e como percorrê-lo. Não há previsões para o que alguém vai fazer ou pensar quando for sugestionado.

E não se pense que é o filósofo que escolhe como vai sugestionar os seus leitores, de entre as metáforas e as imagens que melhor considera adequar-se ao que ele viu. Isto seria ainda situar-se na posição dualista. O filósofo é ele próprio sugestionado e, até, compelido por imagens que se apresentam e impõem com absoluta necessidade (BERGSON, 1972, p. 1526): mais uma vez, a imagem não é uma simples escolha ou recurso retórico ao dispor.

Torna-se, assim, claro que Bergson não se refere a uma espécie de epifania ou insight temporário de um espírito que procure uma fórmula única e irrepetível. Nem tão pouco se trata de perseguir um Santo Graal da compreensão. A imagem é um esforço contínuo, não é um resultado. É impulso enquanto fonte de sentidos, um movimento genesíaco de um pensamento, movimento e direção: o sentido, que transborda a palavra e a frase, “é menos uma coisa pensada do que um movimento do pensamento, menos um movimento do que uma direção”. Mais do que um embrião, é a força embrionária que produz divisão celular (e já na própria explicação da imagem, Bergson nos dá imagens) numa subdivisão crescente e espontânea (BERGSON, 2011b, p. 52). As imagens não são entidades fixas que carregam sentidos que não poderiam ser ditos de outra forma, são convites moventes que agem sobre nós, sobre o pensamento que percorremos ou que nos percorre.

Retomemos o poder de negação que a imagem transporta e que ativa sempre que é invocada. O caminho a percorrer afasta-se das direções habituais do trabalho do pensamento, sendo precisamente aí que reside o filosofar (BERGSON, 2009, p. 214). Bergson pede grandes esforços dos seus intérpretes: que eles sejam capazes de desfazer os habituais processos do pensamento, já que a filosofia tem a ver com pensar ao contrário. As imagens, pelo seu dinamismo operante, pedem que o pensamento permanentemente se coloque numa visão sempre renovada, que coincida simpaticamente com o devir enquanto interioridade simples (BERGSON, 2009, p. 180-181). As imagens acompanham o que se faz (ce qui se fait), seguem o seu movimento próprio, adotam-lhe o devir, por oposição às vias de pensamento que visam agarrar o já feito (le tout fait) (BERGSON, 2009, p. 138). Reverte-se, então, o mote das filosofias modernas de Descartes e Bacon segundo as quais seria necessário conhecer para prever e prever para dominar. O filósofo não prevê nem domina, não obedece nem comanda: procura simplesmente simpatizar com.

A simpatia é outra das noções estruturantes do pensamento de Bergson e que se torna fundamental no encontro com as imagens. Na esteira de Plotino, um dos filósofos gregos que Bergson mais estudou e admirou, a noção de “simpatia” emerge da junção etimológica entre syn - que significa “com” - e pathos- “paixão”, “sofrimento”, “afeto” - e ainda hoje, em várias línguas, significa “compaixão por alguém ou por alguma causa”.

Bergson retoma, então, o sentido original da noção de “simpatia”, enquanto afinidade e predisposição natural diante de uma determinada ideia ou sentimento, mencionando-o como o procedimento metafísico de apreensão interior do movimento que subjaz ao dinamismo próprio da realidade (BERGSON, 2009, p. 178). Entrar em simpatia com a realidade significa captar o seu movimento e devir próprios enquanto atividade fazendo-se (se faisant).

Recorrendo à ambiência da infância, poder-se-ia dizer que a simpatia convocada pelas imagens equivale a subir num carrossel a plena velocidade, instalando o pensamento na movente realidade e assumindo o seu ritmo. No nosso caso, a imagem é a infância e a ideia que procuramos encontrar é a natureza íntima da própria vida.

O que significa, então, postular a infância como imagem? O que pode a infância, enquanto imagem, dizer-nos sobre a natureza da própria vida? E - pensando já ao contrário - o que pode a imagem da vida sugerir sobre a própria infância?

2. Referências bergsonianas à infância

A noção de infância marca algumas presenças na obra bergsoniana, mas com diferentes ênfases e configurações. De entre as várias referências, que o leitor facilmente poderá localizar através dos excelentes índices que acompanham as volumes da edição crítica da obras de Bergson publicadas pela editora Presses Universitaires de France (PUF), destacamos quatro diferentes abordagens.

Bergson refere-se à infância através das experiências específicas que um indivíduo humano pode vivenciar durante o período inicial da sua vida (precisamente quando criança), como sejam, uma memória e imaginação extraordinárias ou a vulnerabilidade ao dano.

Para além disso, a infância é também um recurso explicativo que permite ao autor justificar a variabilidade evolutiva de pais para filhos. São referências bastante comuns nas obras de Bergson, sobretudo a propósito dos longos diálogos que o autor empreende com a biologia evolutiva da época. O problema da hereditariedade constituía um dos núcleos dos debates dos trabalhos produzidos pelas ciências da vida (embriologia, por exemplo) e, como tal, as variações entre gerações marcavam lugar de destaque nas observações.

Encontramos também a menção à infância como recurso analógico utilizado para fins argumentativos, exemplificando uma ideia anteriormente apresentada. Não tanto para pensar sobre o que é específico da infância, mas partindo já de uma concepção (pouco abonatória, aliás) da criança e usando-a como exemplo. Esta utilização da noção mostra-se então menos favorável para a concepção de infância, já que é referida para ilustrar vícios reproduzidos pelo pensamento abstrato em relação à fragmentação intelectual da realidade levada a cabo pela inteligência discursiva: a linguagem abstrata é como uma criança, afirma o autor, que quer esmagar o fumo juntando as palmas das mãos (BERGSON, 2007, p. 307), ou que tenta construir um brinquedo sólido com as sombras que se projetam na parede (BERGSON, 2009, p. 194). Nestes exemplos, a infância é entendida como um período de falha epistemológica e colocada a par com a imobilidade de pensamento quando entendido a partir da abordagem analítico-conceptual.

Mas, felizmente, estas diferentes referências não esgotam as menções de Bergson à infância, nem sequer constituem a forma mais interessante através da qual o filósofo nos convida a pensar sobre a noção. Para além delas, podemos encontrar, apesar de em menor número, momentos em que a criança se torna uma imagem no pleno sentido bergsoniano do termo. Isto é, vislumbres na escrita em que a criança se torna uma sugestão metafísica que convida a abrir o pensamento à mobilidade íntima e à singularidade da vida.

É o que acontece numa passagem em que Bergson recupera a imagem da criança para explicar que a natureza opera através de tendências divergentes (BERGSON, 2007, p. 100). Como vimos, esta não é a única referência de Bergson à infância, mas é a que nos parece filosoficamente mais desafiadora. Integrada no evolucionismo metafísico do autor, Bergson refere-se ao modo de ser da criança para explicar a forma como o funcionamento da vida recupera a dimensão criativa e criadora da infância, exaltando a natureza infantil do élan vital. Detenhamo-nos, pois, naquilo que pode sugerir.

2.1. A infância como imagem: tendências e virtualidade

Trata-se de uma referência que se contextualiza da obra Évolution Créatrice, relativamente próxima do evolucionismo que marcou as ciências e a filosofia na segunda metade do século XIX e com o qual Bergson dialogou em proximidade na construção do seu próprio evolucionismo biometafísico (COSTA CARVALHO, 2012). Mais especificamente, o excerto em causa surge em contraponto à ideia de que a trajetória de evolução da vida seria um caminho linear ou unidirecionado, defendendo que a vida íntima da natureza procede como uma explosão de explosões e não como uma única bala maciça disparada por um canhão (BERGSON, 2007, p. 99).

Quando o impulso íntimo da vida (a famosa imagem do élan vital) encontra a matéria inerte, o resultado é uma variedade imensa e imprevisível de formas, espécies e as suas características, indivíduos e as suas aparências, que constitui o que latamente chamamos natureza. Como o pensamento conceptualizador apenas tem acesso aos resultados exteriores dessas explosões do impulso íntimo da vida, o que a filosofia pode fazer é retomar o movimento original criador e empreender o percurso inverso que remonta do estilhaço (os resultados materiais) à força desencadeadora da explosão (os processos criadores).

Como vimos, são as imagens os recursos operativos através dos quais o pensamento coincide com a mobilidade íntima do real. E aqui surge a imagem a que pretendemos aludir: a infância enquanto indecisão plena de promessas. Para apresentar a vida como tendência, Bergson recorre então ao modo de ser da criança que, de forma indivisível, congrega em si diferentes virtualidades:

“Cada um de nós, lançando um rápido olhar retrospetivo sobre a sua história, verificará que a sua personalidade de criança, embora indivisível, reunia em si pessoas diversas, que podiam continuar juntas apenas porque estavam no estado nascente: esta indecisão plena de promessas é realmente um dos maiores encantos da infância” (BERGSON, 2007, p. 100).

A noção de tendência, ou tendencialidade, é essencial na filosofia bergsoniana e o seu alcance só se encontra na articulação operativa com essa outra noção de virtualidade. As propriedades vitais que vemos povoar toda a natureza viva são tendências, e não estados (BERGSON, 2007, p. 12-13), cuja impossibilidade de definição completa e acabada advém do facto de estarem sempre em vias de realização (Bergson dá o exemplo dos problemas experienciados pelos biólogos quando tentam definir consensualmente conceitos como a individualidade). A matéria inerte organiza-se em coisas de contornos bem delimitados, em que os efeitos apenas contam o que já estava nas causas. Mas a vida escapa a este modo previsível de ser e, não prosseguindo mediante a realização de um plano pré-definido, é conjunto sempre renovado e criador de tendências (no plural).

Como se disse, torna-se essencial integrar nesta explicação a revitalização da noção de virtual operada por Bergson, e a consequente crítica ao conceito de possível, tão acarinhadas por Deleuze (2000, p. 99-100; 2007, p. 345-348). A infância, como a vida, não podem ser entendidas através de uma concepção que as apresente como conjunto de possíveis que só se realizam quando se tornam reais (e que nunca se tornam reais antes de se realizarem, isto é, de ganharem existência). A realização de possíveis obedece a uma regra da semelhança, que obriga a ler o real à imagem do possível já nele contido, assim como a uma regra da limitação, que exige que só a alguns possíveis se possa atribuir realidade (aqueles que são tornados existentes). Não haveria novidade, nem imprevisibilidade, nem sequer lugar ao novo e ao imprevisto. Para Bergson, a limite, não faria sequer sentido distinguir, em termos conceptuais, o possível do real: tudo já estaria dado, tudo decidido, tudo definido (BERGSON, 2009, p. 99-116).

Por contraponto, se entendida através da virtualidade, a vida (e com ela a infância, acrescentamos) é vista como processo de atualização permanente, de acordo com regras de criação e de diferença. Quando se opõe o possível ao real, anula-se a diferença concebida de modo criador como aquilo que potencia a verdadeira imprevisibilidade. Mas se adotarmos outra perspectiva, entendendo que o virtual é real enquanto virtual e que se atualiza pela diferenciação, quebramos o círculo fechado em que possível e real se miram em espelho de repetição. O que se atualiza não se encerra na semelhança com virtualidades anteriormente encarnadas, como se as tivesse de superar num plano ontológico superior. As virtualidades são parte das coisas, constituem-nas numa relação de diferença permanente. E a atualização é ela própria criação de novidade, duração que traz para o efeito muito mais do que estaria contido na causa.

Perante este quadro de articulação entre tendencialidade e virtualidade, sobressai o entendimento da vida da infância, assim como da infância da vida, para lá de esquemas rígidos que as reduzam a resultados unilineares e pré-definidos. Ser habitado por tendências é viver em constante estado de nascente manifestação. Quando se nasce, tudo é novidade, tudo se pode fazer, tudo se pode escolher e, por isso, a vida e a infância encantam por serem indecisão, diz-nos Bergson: indecisão entre miríades de virtualidades latentes, cada uma delas real enquanto se compenetra em todas as outras, em copresença. Indecisão não significa necessariamente falha já que, mais do que incapacidade de escolha, trata-se de impossibilidade de restrição.

Que nos sugere, então, esta imagem bergsoniana sobre a infância da vida e, através dela, sobre a vida da infância?

Por um lado, a infância que caracteriza a vida também não pode sacrificar exuberância. A prova disso reside precisamente na opulência da natureza quando deixada a si mesma. Desgovernada e ambiciosa, a vida parece estar sempre nascendo para si própria e, sempre criança, explode em todas as direções em que a deixam estar. Também para a natureza o tempo não se mede em segundos, nem em horas ou dias. A natureza demora-se o necessário para acolher ritmos que, se medir fosse possível, ter-se-iam de estender para lá de qualquer regularidade ou previsão.

Por outro lado, a vida que caracteriza a infância não pode abandonar nenhuma das suas tendências, é nascimento permanente, encanto crescente e assumido que nada quer perder, tudo procurando abarcar. Assim é a criança, movimento contínuo de um toca-e-foge que deseja abraçar toda a existência de uma só vez. Por isso, o tempo para a criança não se mede em unidades segmentadas, nem traz consigo a calendarização dos dias pulverizados em tarefas.

É o crescimento, da vida e da criança, que exige decisão. É o amadurecimento num único indivíduo, numa única linha evolutiva, que precisa de escolhas e, consequentemente, de abandono do que poderia ter sido:

“A estrada que percorremos no tempo está juncada de destroços de tudo aquilo que começamos a ser, de tudo aquilo em que nos poderíamos tornar. Mas a natureza, que dispõe de um número incalculável de vidas, não está de modo algum restringida a este tipo de sacrifícios. Ela conserva as diversas tendências que se bifurcam ao crescerem. Criou, com elas, séries divergentes de espécies que evoluirão separadamente” (BERGSON, 2007, p. 100-101).

A vida ganha, assim, à criança, já que a natureza é luxuosa na manutenção das suas virtualidades. Não atualiza todas as suas tendências, mas escapa à lei inexorável da individualidade que pede compromisso com uma só escolha. A infância da vida permanece na profusão explosiva de sons, cores e cheiros que constituem paisagens variadas. Mas o mesmo já não acontece com a vida do indivíduo que, na adultez, perde o encanto da indecisão infantil entre tendências. Ao indivíduo-criança está vedado o que à natureza é possível: alimentar a plenitude das suas promessas e garantir a vida enquanto compenetração recíproca de virtualidades.

E talvez seja por isso que Bergson entenda que a criança, exímia investigadora e inventora, esteja mais próxima da natureza do que o adulto (BERGSON, 2009, p. 93). A criança vive em permanente procura de novidade e impacienta-se com determinações repetitivas e antecipadas. Reconhece na vida natural o que se assemelha com a explosão permanente de tendências que a habitam, nela encontra ecos da convivência com inúmeras, e por vezes, contraditórias, virtualidades em que se atualiza a cada instante.

3. A imagem como infância: cultivar na criança um conhecimento infantil

Chegados aqui, aceitemos o repto bergsoniano sobre o que é a filosofia e invertamos a direção habitual do trabalho do pensamento percorrido. Olhamos a criança como uma imagem da vida, assim como a vida enquanto imagem da infância. E nesse movimento apreendemos o que as irmana e em que divergem.

Para além disso, e na esteira do que separa vida e infância, não será a imagem, ela própria, um modo de ser infantil que necessita de ser recuperado? A partir das pistas que os textos de Bergson nos dão, poderá a imagem entender-se como um ponto focal a partir do qual se abram compreensões (sugestões) outras do conhecimento e da educação? Formas de recuperar a infância para a vida e a vida para a infância?

Numa breve passagem do último texto original publicado por Bergson, a introdução ao volume La pensée et le mouvant, encontramos a que talvez seja uma das mais atuais e relevantes reflexões sobre o tema. E, sem que o diga explicitamente, nela o autor retoma as linhas gerais das considerações acima apresentadas sobre a imagem da infância.

Criticando o saber livresco que desconsidera a relevância do trabalho de inventividade da mão, Bergson faz notar que o ensino se mantém demasiado verbal. Como consequência, a experimentação e a reinvenção encontram-se relegadas para posições subalternas e o adulto, mais íntimo de resultados do que de processos (porque comprometido com a escolha de caminhos específicos e esquecido da profusão de virtualidades que o habitaram na infância), privilegia na educação um conhecimento já feito, já vivido, já testado.

“Ninguém duvida que cada um dos resultados adquiridos pela humanidade seja precioso. Mas trata-se ainda de um saber adulto, e o adulto o poderá encontrar quando dele tenha necessidade se aprender pura e simplesmente a procurá-lo. Em vez disso, cultivemos antes na criança um conhecimento infantil (enfantin) e evitemos sufocar, sob uma acumulação de galhos e folhas secas, produto de vegetações antigas, a nova planta que não pede mais do que crescer” (BERGSON, 2009, p. 93).

Mais uma vez, Bergson nos dá uma imagem para dizer uma ideia. A planta que procura a luz não leva consigo todas as folhas que já foi. Mas a vegetação antiga também não se pode impor à emergência do novo.

O que seria, então, um conhecimento infantil? E como promovê-lo na educação?

É este o caminho que Bergson nos deixa por fazer. Talvez o conhecimento ou, neste caso, a educação infantil seja aquela que escuta o que na vida é infância e o que na infância é vida. E o caminho pode residir na imagem, recurso refratário do pensamento que acede aos gerúndios dos processos (fazendo-se) em detrimento da atomização da vida em multiplicidades numéricas de posições fixas e resultados fechados.

Neste modo infantil de conhecimento, que Bergson nos incita a procurar, a educação rejeita as imobilidades que teimosamente pretendem reduzir movimentos vitais a conjuntos estáticos de posições sucessivas. O critério a promover seria a recusa de tudo o que pretenda substituir o dinamismo natural dos processos por descontinuidades artificiais e justapostas de resultados. A imagem como infância é, então, o pensamento em permanente estado de parto, um pensamento que nasce para o novo e que o aceita enquanto tal. Significa um pensamento que se abre ao nunca feito e ao nunca dito, ao sempre fazendo-se e dizendo-se.

Conceitos são precisos para encontrarmos entendimento, assim como relógios são necessários para dividirmos tarefas na sociabilização pulverizada dos sujeitos. No entanto, e como nos diz Bergson, o grande encanto da infância, e simultaneamente da vida, reside na indecisão e na promessa que transportam. Filosofar é inverter as ordens que, de tão habituados, já nem questionamos. Neste momento, a melhor forma de a praticarmos talvez seja pelas imagens que, infantilmente, nos desalojam dos sentidos comuns e cómodos que temos vindo a atribuir à vida, às crianças e à própria infância.

Referências

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Recebido: 20 de Agosto de 2020; Aceito: 30 de Novembro de 2020

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