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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.34 no.71 Uberlândia maio/ago 2020  Epub 06-Fev-2022

https://doi.org/10.14393/revedfil.v34n71a2020-52940 

Artigos

O embate do encontro: o currículo cultural da educação física como lugar de conflitos

The fight of the meeting: the curriculum of physical education as a place of conflicts

La lucha de la reunión: el currículo cultural de la educación física como lugar de conflictos

Fidel Machado de Castro Silva* 
http://orcid.org/0000-0002-8289-7733

Mário Luiz Ferrari Nunes** 
http://orcid.org/0000-0003-0680-5777

*Doutor em Educação Física na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). E-mail: fidel_machado@yahoo.com.br

**Doutor em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP). Professor na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). E-mail: mario.nunes@fef.unicamp.br


Resumo

Neste artigo, tenciona-se aproximar, problematizar e refletir sobre a relação entre duas divindades gregas: Dionísio e Apolo - e o Currículo Cultural da Educação Física. Buscamos amparo metodológico na criação filosófico conceitual, pois sua utilização pode redesenhar relações estabelecidas e permitir jogar com elementos distintos e, inicialmente, não aproximáveis. Influenciados por Dionísio, ao final, trazemos duas criações pedagógicas a fim de transgredir os limites dados pelo "excesso de Apolo" na escrita acadêmica.

Palavras-chave: Educação Física; Currículo Cultural; Filosofia

Abstract

In this article, we intend to approximate the relationship between two Greek deities: Dionysus and Apollo - and the Cultural Curriculum of Physical Education. We seek methodological support in the conceptual philosophical creation, as its use can redesign established relationships and allow us to play with different and, initially, not approximable elements. Influenced by Dionísio, at the end, we bring two pedagogical creations in order to transgress the limits given by the "excess of Apollo" in academic writing.

Keywords: Physical Education; Cultural Curriculum; Philosophy

Resumén

En este artículo, tenemos la intención de aproximar la relación entre dos deidades griegas: Dioniso y Apolo, y el Currículo Cultural de Educación Física. Buscamos apoyo metodológico en la creación filosófica conceptual, ya que su uso puede rediseñar las relaciones establecidas y nos permite jugar con elementos diferentes e, inicialmente, no aproximables. Influenciado por Dionísio, al final, traemos dos creaciones pedagógicas para transgredir los límites dados por el "exceso de Apolo" en la escritura académica.

Palabras clave: Educación Física; Curriculum Cultural; Filosofia

Introdução

A promessa da conquista da autonomia ou a formação do sujeito crítico e emancipado tem sido balizadora para a Educação (Física). Entretanto, a tese possui um fim pré definido para todos agirem de acordo com as normas postas. “Trata-se de uma qualidade atribuída ao homem, no sentido de enquadrá-lo num sistema normativo, fazendo com que possa ser julgado e submetido a prêmios e castigos” (BARRENECHEA, 2008, p. 19). O resultado tem sido a arrogância epistemológica e a centralização em um ponto de vista totalizante que mantém as estruturas sociais que quer combater (SILVA, 1993).

A luta intensa da escola moderna é para definir o que se é, o que se deva ser, em suma: fixar identidades. Uma tentativa de frear o fluxo contínuo do movimento da vida e uma busca inglória de cristalizar e controlar o corpo. Entendemos os efeitos sobre os corpos que o apego às identidades produz. Tal atitude promove uma interrupção do devir. Não intentamos atribuir à diferença o posto de ídolo e hostilizar toda construção identitária, mas percebemos na sociedade contemporânea uma exacerbação da necessidade da sua produção dado o seu caráter ilusório de segurança.

Em contra-posição às teorias transcendentais que pautam a modernidade (e, por conseguinte, a Educação escolarizada), Friedrich Nietzsche (1844-1900), filósofo alemão, atentou-se para questões referentes à exacerbação da racionalidade socrática, à criação dos valores morais e os efeitos provocados pela incorporação desses preceitos. O filósofo apresenta um olhar sobre a Educação e busca o que seria a potencialização do corpo e as questões que são por ele emanadas. A Educação, dessa forma, ocupa lugar relevante no pensamento do filósofo. A indagação e a problematização das questões que interferem no agir e nos discursos humanos apresenta-se como tarefa prioritária para o filósofo da suspeita.

Admirador dos gregos pré-socráticos, constituiu um panorama em que o mundo da arte helênica pode ser compreendido a partir da vinculação de duas divindades: Apolo e Dioniso. Tais deuses são possuidores de comportamentos contraditórios ecomplementares. Apolo, deus da bela aparência, do limite, das artes plásticas, ligado à harmonia da forma; já Dioniso corresponde às forças de criação e destruição, da música e da embriaguez (ALMEIDA, 2005).

Tenciona-se aqui aproximar a relação entre essas divindades gregas e o Currículo Cultural da Educação Física (CC). Para isso, buscamos amparo metodológico na criação filosófico conceitual, que visa a produção de novos sentidos e a proposição de ressignificação dos conceitos (MARTINS, 2004), o que poderá contribuir para redesenhar relações estabelecidas e permitir jogar com elementos distintos e, inicialmente, não aproximáveis. Tal metodologia permite pensar problemas conceituais oriundos de outros domínios que não foram os propostos pelos pensadores quando criaram seus sistemas e seus conceitos. Ademais, por possuir um caráter construtivo, a metodologia filosófica-conceitual promove reconceitualizações que nos permitem propor modos de ver o mundo sob outras lentes, de uma outra maneira que não seja a convencional, a fim de ser suporte para a construção e/ou reflexão de novos conceitos, valores e formas de conceber os assuntos aqui discutidos e promover novas afecções na vida (MARTINS, 2004). Para os fins aqui pretendidos, aproximaremos a relação conflituosa e, paradoxalmente, complementar entre Apolo e Dioniso para pensar o molde educacional moderno e a sua tara pela racionalidade e manutenção de identidades.

Dessa forma, intentamos refletir sobre essas questões para que, com o suporte do pensamento de Nietzsche, possamos contribuir para o debate sobre a Educação (Física) e alguns de seus constituintes, como o currículo, o professorado e o alunado. Ratificamos que não objetivamos erigir verdades absolutas, nem tampouco superestimar a diferença e, por sua vez, repudiar toda e qualquer forma de construção de identidades. Destarte, pretendemos gerar uma reflexão acerca dos excessos e problematizar a primazia das identidades. Intentamos, ao nos debruçarmos sobre a diferença, borrar os limites e produzir outros modos de viver para que possamos afirmar a vida.

O excesso da mesura de Apolo

A Educação, ao apropriar-se da razão como espinha dorsal, reduziu as pulsões do corpo. A vida, como reflexo dessa relação, passou a ser pautada e balizada por saberes teoréticos e, muitas vezes, desencarnados, que distanciam a própria educação do viver. Devido à superabundância de Apolo, temos que o véu da aparência expressa a sua ilusão de um projeto para um vir-a-ser, portanto, não real. Os impulsos são silenciados. Dioniso está ofuscado e inerte em uma sociedade em que o corpo é educado, praticamente, para escutar e obedecer, para reproduzir ou, simplesmente, adaptar ao já dado. Ademais, o corpo passa a adquirir um caráter utilitário e subserviente à razão. Ressaltamos que na filosofia de Nietzsche a crítica à razão se estabelece no que tange à sua exacerbação em relação aos demais instintos presentes e constituintes do corpo. Destarte, ocorre um embrutecimento e enrijecimento dos corpos devido à redução dos instintos vitais em virtude dos saberes teoréticos. O corpo, com isso, deixa de ser um lócus de conflito e embate de multiplicidade de forças para tornar-se algo manipulável, mensurável, classificável e controlável.

A Educação, nesse molde, propicia um distanciamento da vida, do instante e do momento presente, pois suas promessas visam um futuro incerto e, ainda, inexistente. O modelo de educação tradicional e até mesmo a educação crítica, por vezes, fomentam medidas ostensivas em que o corpo assimila, cada vez mais, comportamentos binários e utilitaristas (eficiente/deficiente - incluído/excluído -consciente/alienado). A escola baliza-se pela afirmação de identidades interessadas. Os corpos, por obrigatoriedade, adentram ao âmbito escolar e são moldados no decorrer de um longo período. Tal comportamento possui relação com a incapacidade de tolerar a crueza da ausência de sentido da vida:

O que a humanidade até agora considerou seriamente não são sequer realidades, apenas construções; expresso com mais rigor, mentiras oriundas dos instintos ruins de naturezas doentes, nocivas no sentido mais profundo - todos os conceitos: “Deus”, “alma”, “virtude”, “além”, “verdade”, “vida eterna”... (NIETZSCHE, 2008, p. 47).

Tais elementos possuem como característica a tentativa de adestrar o corpo dentro de determinadas crenças, costumes e ideais. Tal comportamento possui relação direta ao sentimento e, sobretudo, ao medo da punição introjetado nas nossas formas de agir que mitiga e, muitas vezes, coíbe a problematização de determinadas ações. Nietzsche (2009, p. 52) afirma: “[...] o bicho “homem” aprende afinal a se envergonhar dos seus instintos”. Ainda nas palavras de Nietzsche (2009, p. 12) toda essa produção de valores é parcial, reivindica um modelo de ser corpo e é atravessada por interesses. Haja vista a sua condição humana demasiada humana:

Tomava-se o valor desses “valores” como dado, como efetivo, como além de qualquer questionamento; até hoje não houve dúvida ou hesitação em atribuir ao “bom” valor mais elevado que ao “mau”, mais elevado no sentido da promoção, utilidade.

Tal excesso de razão pode culminar no disciplinamento das volições estéticas. O corpo humano, nessa conjuntura, passa a ser foco constante de uma tentativa de pasteurização inglória. A necessidade do controle, constantemente, alerta os dispositivos morais que atribuem aos valores o posto de absoluto e incontestável. Todavia, verdades "imutáveis" têm pés de barro.

Para Nietzsche (2009), é necessário, portanto, que o humano suspeite e questione o cumprimento dos valores e a adequação às normas, pois, muitas vezes, a realização de tais elementos implica em cerceamento dos prazeres corporais, ou melhor, uma redução do potencial da vida. Desse modo, o filósofo propõe uma investigação minuciosa da procedência genealógica dos valores morais e dos valores referentes a esses próprios valores. Ou seja, para o alemão vitalista, a investigação das sentenças morais serve como um instrumento de diagnóstico e critério principal para a avaliação dos valores (NIETZSCHE, 2009).

Da negação a potência da diferença

No pensamento de Nietzsche, o corpo é incessantemente dinâmico. Todo esse dinamismo tem como matriz os conflitos das forças em luta. Barrenechea (2009, p. 51) afirma: “o corpo é a expressão do dinamismo do vir-a-ser, jamais se fixa, jamais se estabiliza, mudando conforme o impulso ou o grupo de impulsos que, num instante efêmero, impõe sua vontade à comunidade orgânica”. Resumir as experiências do viver a formas estáticas é reduzi-las, pois a ética do viver e do dizer “sim” à vida tem como prerrogativa basilar o devir. A vida, sob essa perspectiva, nada mais é do que uma sucessão de instantes que ocorrem no aqui e no agora. Nietzsche afirma o corpo, mas não um corpo idealizado por saberes e discursos teoréticos. Um corpo instintivo que pulsa e sente (ONFRAY, 2014).

O movimento do corpo possui a ambivalência de adequar-se ou criar fissuras capazes de transvalorar os valores postos, metamorfosear as intempéries e vicissitudes do viver e fazer da diferença um instrumento potente para a afirmação da vida enquanto um fenômeno estético. A instituição escolar, por vezes, evita o conflito e, nesse ínterim, o corpo é alvo frequente de anestesias. Juízos de valor sobre a vida, são, para Nietzsche, parciais e fomentados por interesses que denunciam a moral daqueles que o formulam, pois advogam sobre determinados modelos e concepções de vida. Nietzsche alerta sobre os intuitos e as pretensões modernas de produzir um pensamento com caráter universal, fundamentado e pautado em instâncias fixas. Nesse contexto, a potência dionisíaca pode possibilitar uma aproximação ao fluxo do devir.

Nietzsche (2008, p. 76) alerta que para uma reformulação ser possível, tem de iniciar-se “[...] uma transvaloração de todos os valores, em um desprender-se de todos os valores morais, em um confiar e dizer “Sim” a tudo o que até aqui foi proibido, desprezado, maldito”. Reavaliar e recriar os valores sociais que nos afastam da vida em detrimento de um ideal inventado se apresenta como uma estratégia para lidarmos com a nossa incapacidade de nos relacionarmos e vivermos as mudanças e vicissitudes do corpo e possibilitar uma afirmação da vida. A potência dionisíaca pode auxiliar no combate às características e comportamentos silenciados pelas imposições morais. Possibilitar uma reconciliação do corpo com o momento presente e afirmar a condição incerta e mutável do viver tal como ele se apresenta. Se deixar afetar pelo mundo que é e não pelo mundo que se espera ou se idealiza. Afirmar as diferenças é característica alicerçada por ações dionisíacas (NIETZSCHE, 2014).

Educação e vida não podem se restringir a conjectura e apreciação. Aventurar-se em viver a vida sem garantias prévias ou elucubrações transcendentes consiste na afirmação da integralidade da existência, na leveza dessa crueldade para quem a diferença e o risco não são objeções contra a vida, não são entorpecentes, mas estimulantes. Uma atitude estética-ética. Uma posição ativa que profere um sonoro sim à vida e a concebe, afirmativamente, em sua totalidade. Uma obra que não carece de nenhum sentido transcendente e, qualquer tentativa de acréscimo, acarreta em dano. A vida não é no além-mundo, ela se faz imanente nessa tarefa de transformar-se em uma obra de arte.

Segundo Nietzsche (2016, p. 250): “A serpente que não pode mudar de pele perece. Assim também os espíritos aos quais se impede que mudem de opinião, eles deixam de ser espíritos”. O sistema educacional nos reveste por camadas cada vez mais espessas e vistosas. Somos tentados a acreditar que tais peles são imutáveis e devem permanecer. Passamos a ser e a agir de acordo com determinados ditames. De acordo com o filósofo alemão, o espírito que adota essas falácias como valor absoluto, perece. Sucumbe ao comodismo e passa a não mais se movimentar, logo, deixa de ser espírito. Nota-se uma relação imbricada entre o corpo, a vida e o movimento. Tal afirmação não denota a um determinismo e nem se refere a uma irreversibilidade. O espírito que se adéqua às imposições restringe seu movimento apenas para a manutenção da estagnação. Contudo, há possibilidade de transformar esse estado e retomar o movimento como potência criadora de si mesmo.

Os instintos são alvos frequentes de imobilizações. A tentativa de controle e pasteurização dos corpos são mandamentos corriqueiros nas tábuas de valores vigentes. A instituição escolar evita o contato, o encontro, o conflito e foge do risco. Juízos, sobretudo, juízos de valor sobre a vida, são, para Nietzsche, distorcidos, parciais e fomentados por interesses que denunciam a moral daqueles que o formulam, pois advogam sobre determinados modelos e concepções de vida e visam uma forma universal de ser corpo.

Viver norteado por ideais e modos corretos de ser corpo com pretensas universais implica em negar a vida como fluxo e movimento inexorável de forças distintas que se encontram em um frequente jogo agonístico. O filósofo alemão afirma que tais ideais têm como intuito instaurar um conceito fixo, imutável e objetivo:

Pois uma vida ascética é uma contradição: aqui domina um ressentimento ímpar, aquele de um insaciado instinto e vontade de poder que deseja senhorear-se, não de algo da vida, mas da vida mesma, de suas condições maiores, mais profundas e fundamentais; aqui se faz a tentativa de usar a força para estancar a fonte da força; aqui o olhar se volta, rancoroso e pérfido, contra o florescimento fisiológico mesmo, em especial contra a sua expressão, a beleza, a alegria; enquanto se experimenta e se busca satisfação no malogro, na desventura, no fenecimento, no feio, na perda voluntária, na negação de si, autoflagelação e autossacrifício (NIETZSCHE, 2009, p. 99).

Nietzsche destaca e vocifera sobre os intuitos e as pretensões modernas de produzir um pensamento com caráter universal, fundamentado e pautado em instâncias fixas que, aos olhos do filósofo, só mostra o intuito de manter um determinado tipo de valor em vigência e, sobretudo, um único modo de criar. Tais pressupostos estão, estritamente, pautados em ideias a serviço de lógicas que reduzem a vida e convocam para uma ação ressentida, uma educação passiva. A contemporaneidade nos impele a criar, incessantemente. Todavia, essa criação tem de estar pautada e ser subserviente a determinados modelos do bem, corretos e já estabelecidos.

Para essa transvaloração estética-ética da vida é preciso promover um reencontro do corpo com ele mesmo. Nesse contexto, a potência dionisíaca pode possibilitar uma aproximação ao fluxo do devir e expor as raízes que sustentam o modelo moderno de Educação. O intuito da produção de um tipo de rebanho formativo, não pensante, automatizado e estimulado a agir livremente como autômatos foi exibida e grupos políticos com determinados propósitos escusos insistem em retorná-los. A criação do ethos em que o corpo é impossibilitado, muitas vezes, de expressar suas pulsões agora já está desvelada. Nietzsche (2005, p. 121-122) denunciou: “Zelantes e aos gritos, empurravam o rebanho para a sua estreita ponte; como se houvesse apenas uma ponte, levando ao futuro! Na verdade, também esses pastores ainda faziam parte do rebanho”. Onfray (2014, p. 102) corrobora: “É verdadeiro o que autoriza a expansão e o gasto de energia; é falso tudo o que entrava e convida à falta”.

A potência dionisíaca pode auxiliar no combate das características e comportamentos silenciados e apequenados pelas imposições morais. Possibilitar uma reconciliação do corpo com o momento presente, com o acaso, com o instante e com a imanência em contraposição às fórmulas métricas que, por muitas vezes, promovem movimentos ativos para corpos reativos.

Acreditar na vida pressupõe uma aproximação ao momento presente. Apostar no viver tal como ele se apresenta pressupõe um risco e não possui garantias. Se deixar afetar pelo mundo que é e não pelo mundo que se espera. Afirmar as diferenças é uma característica alicerçada por ações dionisíacas (NIETZSCHE, 2014).

Educação e vida não podem se restringir a uma mera conjectura e apreciação contemplativa e distante. Ao contrário, o pensamento tem de ser produzido das próprias entranhas, das vísceras, das dores e dos prazeres do viver. As intempéries do tempo, os conflitos e as perdas são inevitáveis e, portanto, devem ser vividas e afirmadas, pois elas nos estimulam a superarmos, expandirmos e irmos além de nós mesmos. Aventurar-se em viver a vida. Uma atitude estética-ética que consiste na afirmação da integralidade da existência na medida que se transfiguram em beleza na construção da obra de arte de uma vida.

A vida não é no além-mundo nem tampouco justifica-se no início ou no fim da história. Ela se faz imanente nesse jogo de encontros e embates das multiplicidades dos conflitos. Aceitar, passivamente, não refletir e, simplesmente adequar-se às formas imediatistas, é negligenciar nossa forma criativa de inventar, é reduzir a vida. É permanecer reativo.

O currículo cultural: a multiplicidade de forças

Baseado nas contribuições anunciadas pelas teorias pós-críticas do currículo, principalmente aquelas decorrentes do pensamento pós-estruturalista1, o currículo cultural toma como central a questão da produção do sujeito por meio de dispositivos/ práticas historicamente constituídos, isto é, sua centralidade está na cultura. Considera que não há uma identidade fixa das coisas do mundo e que a definição dessas se transforma nos diferentes tempos e lugares e são dependentes de jogos de força.

Esse escopo somente é possível se, por um lado, considerarmos a produção simbólica de cada grupo cultural, dentre as quais as práticas corporais2, enquanto resultado de confrontos entre grupos e sujeitos que visam a controlar o processo de significação, logo a verdade3 das coisas do mundo. Por outro, há de se considerar o sujeito como efeito desses jogos, pelos quais é instado a estabelecer relações com a verdade, logo, consigo mesmo, com o mundo. Há que se destacar que essas relações não são causais. Tratam-se de relações de poder, conforme divulgou Michel Foucault ao longo de sua obra. São relações permeadas por estratégias que objetivam conduzir condutas, tanto as de uma população como as de si mesmo.

O currículo cultural também é um jogo de forças. Sua configuração é um acontecimento produzido no encontro entre a prática pedagógica da Educação Física pautada nas humanidades com a teoria cultural contemporânea, que tem influenciado o campo dos estudos de currículo (SILVA, 1999). Pode-se dizer que ele emerge das inquietações docentes produzidas pelas incertezas vividas entre as verdades das teorias da educação (física) e os conflitos da sala de aula que as desestabilizam (NEIRA; NUNES, 2018).

Coerente com as teorias que os sustenta, o currículo cultural não pode ser definido, tampouco relativizado. Está sempre em produção em função das significações que seus sujeitos (professores e discentes) fazem mediante o encontro que estabelecem entre a teoria, a prática pedagógica e os modos de produção de sentidos e regulação das práticas corporais, da cultura escolar e da cultura mais ampla, sem, no entanto, afastar-se do que o produz (NUNES, 2018). Assim como o pensamento pós-estruturalista, é mais fácil identificar o currículo cultural a partir do que seus professores-artistas fazem: um ethos4 comum a todos, porém repleto de singularidades (BONETTO; NEIRA, 2019). Uma atuação pautada em princípios5 (NEIRA;NUNES, 2009a), que não estão apartados da prática pedagógica, destarte conduzem as condutas dos docentes, a fim de organizarem as práticas pedagógicas.

A centralidade da cultura faz com que as práticas corporais se tornem o objeto de suas análises, tencionando desestabilizar suas formas de regulação e produção de significados, identidades e formas de subjetivação. As práticas corporais sofrem um longo processo de transformação e são significadas de diferentes formas, em tempos e locais distintos e por diferentes grupos culturais. Com esses pressupostos, o currículo cultural da EF propõe estudos sobre as possibilidades de como praticá-las; a respeito dos personagens que compõem os diferentes cenários da prática e do local onde se encontram no contexto social. Contudo, não basta experimentar e reconstruir práticas corporais e cenários ao longo do ano letivo nem reconhecer representantes. Há muito mais o que fazer!

O currículo cultural apresenta-se ancorado às questões da própria prática pedagógica (NEIRA; NUNES, 2006; 2009b) e busca uma afirmação do instante e dos conflitos pertinentes à vida (NUNES, 2016). Esta proposta considera que o significado de um elemento da comunicação presente nos esportes, nas danças, nas ginásticas, nas lutas e brincadeiras não é uma essência que traz consigo uma identidade originária. A identidade produz representações que se estabelecem em meio às relações de poder que produzem os elementos da cultura. Dessa luta pelo controle do que venha a ser a realidade, decorrem processos de exclusão e pertencimento de sujeitos, grupos e práticas culturais (HALL, 2000), que precisam ser destacados, avaliados, desestabilizados.

Permitindo aberturas criativas, o currículo cultural apresenta alguns encaminhamentos didáticos-metodológicos6, que não são lineares e tampouco se caracterizam como sequência didática ou atividades de ensino. Os encaminhamentos são costurados por meio da tematização e da problematização, tencionando fornecer aos alunos e alunas elementos para melhor leitura das práticas corporais assim como outras possibilidades de escritura - a construção de novas formas de fazer e falar acerca das práticas corporais e, principalmente atuar politicamente diante delas. A prática da EF nessa perspectiva é um convite à vida dionisíaca.

O mapeamento dos saberes e práticas dos discentes e comunidade educativa realizados pelos docentes estabelece o ponto de partida dos trabalhos. O resultado dessa ação é um mapa que, como tal, dobra e se desdobra, se expande e se conecta a outros mapas. Tal e qual um cartógrafo, que a medida que observa o território traça novas linhas, o professor tem diante de si um território e à medida que o descreve, o inventa, e, com isso, artista um plano de trabalho constantemente retraçado frente aos percalços da caminhada, da navegação, da experiência da sua viagem aos prazeres e desprazeres do acontecimento-aula e seus conhecimentos. O mapa é o que promove a escolha do tema de estudo a ser colocado em (tematiz)ação.

A tematização do tema de estudo é o que mobiliza esforços dos docentes e discentes para que o fazer que acontece nas aulas permita o acesso a saberes diversos, quer aqueles produzidos pelas Ciências, quer os subjugados, esquecidos, até mesmo os infames, assim como a produção de outros.

As problematizações são potencializadas pelas vivências de situações ímpares, agenciadas pelos encontros entre todos os envolvidos e as múltiplas linguagens que envolvem as práticas pedagógicas e as corporais, o corpo dos sujeitos com suas histórias e seus afetos, ocasionando uma multiplicidade de encontro de forças. São os efeitos inesperados das problematizações que ensejam o ethos docente, pois a ação pedagógica se dará mediante os eventos que emergem nas aulas, permitindo o devir. Cabe assinalar que a noção de vivência se afasta de qualquer perspectiva fenomenológica. Nesta, a vivência só ocorre quando o sujeito mobiliza seus conhecimentos para ao ser afetado pela vivência atuar sobre ela. O currículo cultual aproxima a noção de vivência ao pensamento de Nietzsche, para quem a vivência incita emoções, pois toca sua subjetividade e antecede qualquer reflexão racional. A vivência considera os processos inconscientes antes que qualquer forma de linguagem promova a determinação dos significados das coisas.

As diversas vivências produzidas por múltiplas práticas linguageiras (cinéticas, audio-visuais, gêneros textuais diversos, debates, discussões etc.) permitem a promoção de identificações e resistências. É nesse jogo de choque de representações que ocorre a possibilidade da ressignificação (SILVA JÚNIOR, 2020). Trata-se da oportunidade dos alunos abalarem fronteiras da identidade, do limite do âmago e abrir a possibilidade de viver, sentir, afirmar a diferença

Diante das resistências e identificações, o currículo cultural da EF afirma que docentes e discentes precisam ampliar e aprofundar os conhecimentos acerca do tema estudado, a fim de perceberem os jogos de força que os instituem e tentam controlar representações. Esse processo escancara e coloca em disputa posicionamentos, concepções e visões de mundo distintos acerca de uma mesma prática corporal. São esses caminhos que darão para os alunos possibilidades de construir outros significados para o objeto de estudo e perceber a confusão dos jogos de força que caracterizam a cultura (NUNES, 2016).

Com Deleuze (2000), o currículo cultural percebe a aprendizagem como a experiência da problematização. Aprender implica um meio de lançar-se fora da fronteira, dos limites do corpo como se fosse a primeira experiência das percepções de si, do movimento e do tempo. A ação de lançar-se engendra mudanças sobre as percepções das possibilidades de atravessar os limites do ser.

A noção de aprendizagem deleuzeana provoca o currículo cultural a produzir, coma ajuda de Foucault (2009), situações ancoradas na possibilidade da transgressão, nas quais a experiência de si torna-se uma experiência-limite, transgressora de limites do próprio ser.

Cabe destacar que Foucault (2009) nega qualquer aspecto subversivo ou escandaloso da transgressão. A morte de Deus, anunciada por Nietzsche em várias obras, transforma a experiência do sujeito moderno ao suprimir de nossa vida o limite do ilimitado, dada pela revelação da Verdade. Livre de qualquer determinação da força Divina, o homem percebe-se como uma produção contingencial, situada historicamente, sem uma essência que o liga a uma identidade. O sujeito está, assim, diante da possibilidade de identificar as forças que o tornaram o que ele é.

O currículo cultural possibilita a produção incessante de rupturas dos limites, criando inúmeros outros que poderão ser transpostos, incessantemente. Condições que permitem ao ser discente resistir aos processos de assujeitamento dados pelas práticas corporais, pelas práticas pedagógicas, pelos discursos que produzem o ser-aluno e, quem sabe, aprenda a condição da possibilidade transgressora na vida. Essa possibilidade também coloca o docente diante da possibilidade de transgredir o si-docente. Afinal, atuar nessa dinâmica, abrir as portas para a diferença, favorece ao professor escapar das amarras das identidades docentes projetadas nos discursos pedagógicos que o cercam e o imobilizam.

Por não ser da ordem da violência e da subversão, a ação transgressora pauta-se no ethos que conduz o sujeito ao cuidado de si. Isso implica que o currículo cultural não é um vale tudo. Ele é um convite a subversar, a versar de outro modo. Se se está a propor a crítica aos processos de assujeitamento e a criação de possibilidades que permitam a transgressão do limite do ser, o currículo cultural tem um compromisso árduo com a afirmação desses processos para posteriormente estabelecer uma postura de enfrentamento às crenças dogmáticas, aos valores irrefletidos, à ausência de pensamento criativo e crítico, à apatia e à inércia.

Diante do exposto, é o mundo do acaso e do inevitável que passa a ser afirmado. Almeida (2014, p.119), afirma: “Isto significa que a luta e a reivindicação por uma transformação da educação - tanto na universidade quanto no ginásio -só podia fazer-se no seio mesmo das instituições de ensino onde ela era praticada”. Reaproximar o ser humano da vida é reacender o seu princípio criativo, é compreender e afirmar a sua condição conflituosa:

E agora imaginemos como nesse mundo construído sobre a aparência e o comedimento, e artificialmente represado, irrompeu o tom extático do festejo dionisíaco em sonâncias mágicas cada vez mais fascinantes, como nestas todo o desmesurado da natureza em prazer, dor e conhecimento, até o grito estridente, devia tornar-se sonoro [...] (NIETZSCHE, 1992, p. 41).

A Educação moderna individualiza multiplicidades quando deveria multiplicar diferenças. No contexto nietzschiano, a Educação seria um compromisso estético e ético de afirmação da vida. Um mergulho nas profundezas, no escuro das pulsões e do corpo. O escuro amedronta as estruturas vistosas e frágeis do sistema educacional. Dioniso apresenta uma ação de insurreição aos comportamentos padronizados e combate aquilo que impulsiona para uma diminuição da vida. O homem torna-se assim não mais operário, mas uma obra de arte capaz de criar-se a si mesmo (NIETZSCHE, 1992). A potência dionisíaca compromete a aparência de uma Educação (Física) para o futuro. Um projeto para um vir-a-ser.

(In)conclusões

Pensar a educação a partir de concepções dionisíacas nos permite deslocar a perspectiva vigente. O objetivo não é negar Apolo, pois sua dimensão é imprescindível. Ressaltamos a relação entre Apolo e Dioniso, ou melhor, o jogo existente entre a identidade e a diferença.

No caso de alguns elementos constituintes do alicerce que subsidia a educação moderna, como a exacerbação da racionalidade e da forma, remete a alguns atributos relacionados à divindade grega de Apolo, deus da bela aparência, da medida e do limite. Destarte, a sobreposição dessas características pode culminar em uma fragilização do espontâneo e do devir. A luz demasiado forte de Apolo parece ter trazido os ramos dessa árvore para um mesmo lado. Essa luz é a supremacia da identidade para a qual se orientam os troncos da escolarização, da individualidade em detrimento da coletividade, do conflito e dos embates de forças.

O currículo cultural da EF apresenta-se como uma possibilidade de estabelecer essa relação conflituosa entre as divindades. O que aqui propomos é o borramento dos limites, pois, produziríamos identidades temporárias e assumiríamos a diferença enquanto constituinte da vida. Ao afirmar as diferenças abre-se precedentes para a confusão dos conflitos. A dinâmica do conflito que se instaura no convívio diário que as aulas produzem pode possibilitar outras formas de relação e construção de outras ações. O elemento de potência reside nessa dinâmica: na arte do encontro; no questionamento de propostas tradicionais alicerçadas em princípios idealizados e em expectativas consolidadas; na (re)construção frequentemente revisitada e eticamente ressignificada; na compreensão da dinâmica do devir; na incapacidade de se capturar a vida em movimento.

Nietzsche (2006) inicia um adeus às velhas verdades. A criação das identidades são apenas interpretações que, por sua vez, resultam de relações de força. Uma sociedade apolínea, por sua vez, é possuidora de uma necessidade de racionalizar, delimitar e construir formas fixas e bem definidas. O borramento desses limites, para o argumento aqui explorado pode ser facilitado pelo agir dionisíaco.

Compreender que a vida se faz nessa dinâmica incessante do movimento de criação-destruição das construções sociais. O não apego ao peso da tradição. A espinha dorsal da temática aqui apresentada, não está na expressão de Apolo, mas na sua supremacia e hegemonia moderna em relação a Dioniso. No fluxo dos contrários, ora separadas, ora unidas, essas forças estão em constante luta, pois uma se inclui na outra. No incessante desejo do devir, no criar e, afirmativamente, destruir para reiniciar um novo processo de criação. Indubitavelmente o processo de criação de identidades se faz presente em qualquer sociedade, pois, sem ele não há como estabelecer modos de comunicação, nexos de convivência. Todavia, sabemos que por ser de alguma forma resultante de sua eficácia discursiva, material ou política, a identidade tem que ser abordada sob rasura (HALL, 2000), para, desse modo, se efetuar a revisão constante dos seus valores e a abertura de seus limites constitutivos para a sua possível destruição.

Se uma educação do corpo se restringir ao aspecto mecânico ou funcional, ignorando que a ação do corpo é sempre a ação de um ser existencial, talvez haja aí um dispositivo de controle moral. Criar outras lentes, outras formas de ser, de sentir, de pensar e de agir. Conceber a multiplicidade dos corpos se o jogo agonístico das forças pode ser um modo de afirmar a vida como um convite à criação.

A fim de permitirmos aberturas para pensarmos de outro modo, para fazermos da escrita e da vida acadêmica outra possibilidade, assim como fizeram os intelectuais em Vincennes7, assim como acontecem em tantos espaços transgressores como, por exemplo, as rodas de samba, os bailes e saraus das periferias, a seguir, apresentamos alguns enredos de práticas artística-pedagógicas sem análise, sem mediações. O que se quer é que eles sejam o que são: formas de comunicar existências; narrações de experiências-limites, que trazem as forças dionisíacas para a escola, para a academia, para os periódicos científicos, para a vida.

Na gira da aula e a poética das vidas Felipe Nunes Quaresma Flávio Nunes dos Santos Júnior8

“Quando a gira girou ninguém suportou...”

Zeca Pagodinho

No presente texto, a gira está inspirada no sincretismo religioso de matriz africana. Sua origem está na palavra nijra, que significa caminho, rota. Além disso, carrega consigo também a ideia de encontro. É neste contexto que a gira/aula foi se constituindo, afastada de determinismos, pré-fabricações. Docentes e estudantes tocaram-se por algumas manifestações de afeto, dores, resistência, sorrisos, lagrimas, pé inchado, sangue, unha quebrada. A cada momento vivido sentíamos a energia, dilatávamos o(s) corpo(s).

As rodas de patins, skate e bike num gira-gira fizeram da quadra uma não quadra. Nós, professores, fizemos a opção por permitir construir com os discentes momentos em consonância com a própria vida. Na mesma aula estudantes de 6º e 3º ano teceram encontros múltiplos. Fund I não era fund I e fund II não era fund II. Não sabíamos ao certo o que eram. Não tínhamos a preocupação de sabermos quem éramos. Os caminhos se cruzavam, transbordavam, entrelaçavam-se. As manifestações de sorriso não perguntavam a idade, o gênero, a sexualidade, nem se tinha habilidade. Na aula/gira os conhecimentos foram produzidos.

Para os senhores da verdade a produção era estranha. “Isso é Educação Física? Bicicleta? Patins? Skate?”. Esqueciam do presente e anunciavam: “na minha época não era assim”. Uma demonstração de pensamento inerte. “Esporte, esporte, esporte” repetiam incansavelmente. Deparados com a nossa justificativa sobre a escolha do tema, entoavam em reuniões docentes: “esporte, esporte, esporte”; “ele salva, é preciso competir, disputar, vencer, ensinar o aluno a lidar com a vitória e com a derrota”.

Precisamos de material. “Material? Qual?”, “Bicicleta, patins, skate”, “Isso a gente não consegue, não dá”. “Por quê?”. "As solicitações não foram atendidas". A hierarquização apareceu com sede de interdição. O poder acenou com desejos de provocar barreiras. Um esforço de realinhar, de enquadrar, de provocar um pedagogícidio, uma asfixia da criatividade.

Entretanto, a aula/gira foi mais potente. As crianças se contagiaram com a possibilidade de viverem, discutirem, dialogarem. Permitiram-se tocar pela energia da aula/gira. Nos retiramos do lugar docente detentor do saber. Camila, estudante da tarde, praticante, foi convidada para participar da aula a fim de partilhar com as turmas aquilo que sabia sobre a ocorrência do patins. Deixou exalar por seus poros a potência do patins em sua vida; iniciou no roller, mas com o tempo mudou para o quad após assistir uma série de TV. O tênis saiu do pé, olhares atentos, cadarços se desataram, Camila calçou o quad, levantou e após algumas remadas seu corpo parecia flutuar sobre o solo azul da não-quadra. As linhas pintadas no chão perderam sua força de imposição. As balizas ganharam outra conotação. As crianças observam, aplaudem, gritam, transpiram dúvidas, falam para ir mais rápido. O sinal toca, não percebemos, a aula acaba, a gira não. A burocracia tenta a suspender. Intensos efeitos atingem os olhos, o corpo, discentes. Não desgrudam da Camila, não querem voltar à sala. Camila não quer ir embora. “Foi legal, hein!”.

A gira/aula manifesta mais encontros, dessa vez entre estudantes do sexto ano e primeiro ano. Os tamanhos se perdem, a idade enquanto categoria de divisão se dissolve. Quem possuía conhecimentos partilhava com o coletivo. Enquanto Marcos do primeiro ano dava grau com a bike, Tereza, do sexto ano, observava atentamente. Ao ser percebida por ele, o freio traseiro foi acionado e em tom de zoeira surge: “quer andar?”: “Eu não sei”. Marcos saiu em gargalhadas pedalando. O sinal tocou, o tempo sufocou. No caminho da sala, os dois corpos se reencontraram. Marcos novamente ri, achou um absurdo a colega não saber andar de bicicleta. Tereza alega: “eu faço as atividades da escola, e você? Bicicleta não dá futuro. Bicicleta não é lição. Bicicleta não vai me ajudar a dar emprego”.

Alguns estudantes apareceram na gira com bicicleta. “Trouxe para gente andar na aula, prof”, “Mas está com a roda ruim”, “tem que arrumar”. Cristiano se anima, de chave 15 nas mãos desaperta o parafuso, puxa a roda traseira mais para trás, diz que a corrente está frouxa, passa graxa, ajusta os freios.

Ao se depararem com o anúncio do tema selecionado em meio a aula/gira, o pensamento estudantil sacudiu. A imaginação girou no tempo e a recordação daquilo que já tinha sido vivido apareceu na cena. “Já passou da época de andar de bicicleta, não sou mais criança para andar”. “Nada a ver, meu avô anda”. “Yellow”. “Eu nunca andei de yellow, tem que baixar aplicativo, pagar com cartão de crédito”; “Aprendi a andar com meu irmão”; “Eu com a minha tia”; “Meu pai me ensinou”; “Quase fui atropelado pelo carro”; “E eu que quase atropelei uma menina”; “Eu tomei um capote, apertei o freio da frente”; “As meninas que andam lá na rua são chamadas de Maria Macho”; “Eu uso a bike para dá fuga da minha mãe quando ela quer me bater”; “Meu irmão foi pro racha com a minha bike e o polícia pegou ele dando fuga e rasgou o pneu”.

Pensando na possibilidade de intensificar as discussões sobre os processos de afetos que acompanham a ocorrência da bicicleta pela sociedade, assistimos alguns vídeos, analisamos imagens. Diferentes tipos de bicicleta foram projetados na tela: com banco de mobilete, rebaixada, com rodinha, de dois andares, maria mole, elétrica, com motor, de 2 e 3 lugares. “Lá na minha rua tem mais bicicleta com banco de mobi”. As questões de gênero novamente ressurgem. As vidas autorizadas a usufruírem ao longo da história foram apontadas. “No começo somente homens podiam andar, mas não era qualquer homem”. “Quando a mulher passou a andar muita coisa mudou em sua vida”. “Mulher não anda porque não quer”. “Será?”. “A gente tem que fazer um monte de coisa durante o dia. Como que anda?”.

De nádegas na lixa, o shape se envergava, as rodas de gel no cimento misturadas com terra quase não faziam barulho, apenas giravam. Os gritos dos estudantes descendo a rampa de acesso à quadra assustou quem observava. Foi neste contexto que se deu o uso do skate durante os encontros com a criançada. Sentados um em frente ao outro, o primeiro guia, enquanto o segundo confia. Vai o primeiro, o segundo, o terceiro. Colisões, risadas. Entram embaixo do carro estacionado, colidem com o veículo da diretora. “Cuidado”; “Sai da frente”; “Vixi”; “Ai minha unha, passou por cima do dedo”. Choro, lágrimas, sangue - "corre para lavar!"

Samba, samba ôlelê! Marina Blasques Masella9

EMEI Nelson Mandela. Turma multietária composta por crianças de 4, 5 e 6 anos. Zona Norte da cidade de São Paulo. Uma pequena África Paulistana. Império da Casa Verde, Unidos do Peruche, Mocidade Alegre. Rosas de Ouro, Tucuruvi, X-9 Paulistana. Famílias usam camisetas e abadás dessas escolas de samba quando deixam e buscam as crianças na EMEI. O coletivo de professoras da escola decide: vamos nos dedicar ao estudo de práticas promotoras para a equidade racial e de gênero nos nossos horários de formação esse ano. Samba, eu pensei. Vamos de samba!.

“Eu sei sambar, prô”. “Eu também, eu também!”. “As mulheres só vestem pouca roupa”. “É verdade, tem uma fantasia mais maior pro homem”. “Tem que arrumar o cabelo, se maquiar... mas a mulher só! Não o homem”. “O homem pode maquiar também se quiser”. “Tem pandeiro, violão, tambor e chocalho”. “Eu sambo na escola de samba”. “Eu na rua”. “Eles tocam no meu prédio”. “Eu conheço a música que fala samba, samba, samba o lelê”. Todos cantamos!

Ligo meu celular e a caixa de som, coloco uma playlist de "samba de raiz" para sambarmos. Vejo meninas e meninos fazendo gestualidades diversas. Algumas crianças se ajoelham e imitam o movimento do pandeiro com as mãos. Outras fazem trenzinhos e dançam de mãos dadas. Algumas rodam e giram. Outras deixam a música embalar o samba no pé e fazem movimentos diversos com os braços. Registro tudo com fotografias e vídeos.

Revejo as falas anotadas e as imagens capturadas. Percebo que precisamos saber mais sobre o samba, sua gestualidade, seus sujeitos, sua história. As crianças e eu. Nós, juntas! Inicio minhas pesquisas. Vejo vídeos no Youtube, entrevistas, documentários. Adquiro dois livros e leio sobre a história do samba no Brasil, seus verbetes, suas gírias. Vejo imagens e fotografias. Coloco samba para escutar enquanto estou em casa. Converso com amigas que frequentam escolas de samba.

Me arrisco então na elaboração de uma narrativa a partir dessas pesquisas e a transformo em uma contação de histórias para as crianças usando fantoches, mapas, brinquedos e tecidos. Procuro construir junto com elas nessa contação o percurso e história do samba no Brasil. Narro sobre a condição da chegada dos negros africanos no nosso país, a origem do samba na Bahia pela mistura dos ritmos musicais, o samba de umbigada, a migração de parcela dessa população para o Rio de Janeiro, desenvolvendo o samba carioca em um espaço chamado por eles de “Pequena África”, os primeiros instrumentos musicais e a figura de Tia Ciata.

“Eu já fui na Bahia prô, minha vó mora lá”. “O ano passado a gente apresentou um samba da Bahia na festa, lembra?”. “Minha vó mora no Rio de Janeiro, mas ela não sabe sambar”. “Eles sentiam saudades da África e se juntavam pra fazer festa, cantar, dançar, comer...”.

Penso como é lindo ver as discussões sobre africanidades, fazendo parte do universo de algumas crianças, uma vez que a escola aborda essa temática em seus projetos anualmente. Narro sobre os instrumentos musicais. Algumas crianças me fazem perguntas sobre eles, curiosas por saber mais sobre o ganzá e o reco-reco. Lembro que a coordenadora pedagógica da escola toca em um grupo de Maracatu. Peço para ela levar esses instrumentos para nos ajudar. Fazemos uma grande roda. As crianças pegam os instrumentos. Tocam! Escutam o som que produzem! Brincam com eles!

“Eles tocam no meu prédio”. Essa fala não saí da minha cabeça. Convido então o Kleber, sambista do grupo Descontrole para ir à escola conversar com as crianças. Elas quiseram saber tudo. Sobre as roupas que ele se apresentava nos shows, sobre suas tatuagens, do que brincava quando era criança. Kleber nos contou que desde criança tocava samba com seus familiares, que já desfilou em diversas escolas de samba da cidade de São Paulo. Explicou um pouco como elas funcionam, contou que sabe tocar 10 instrumentos musicais e que atualmente faz shows em bares, festas, restaurantes e demais estabelecimentos com a sua banda. Ele também levou seu cavaquinho, explicou um pouco sobre esse instrumento e propôs que fizéssemos uma roda de samba. As crianças pediram: “toca samba ô lelê!”. Dançamos e cantamos.

Penso mais uma vez sobre as falas levantadas pelas crianças sobre as roupas que as mulheres e homens usam para sambar. Decido então selecionar algumas imagens de diferentes sujeitos e corpos sambantes para projetar na sala multimídia da escola. Passistas de escola de samba, homens e mulheres se arrumando para o desfile, grupos de samba compostos apenas por mulheres, grupos compostos por homens e mulheres e de sambas de roda do recôncavo baiano. Em cada uma delas, parávamos para conversar sobre nossas impressões.

“As mulheres sempre usam pouca roupa, prô”. Questiono as crianças se há algum problema para elas nesse fato mais uma vez levantado. Silêncio. Uma menina fala. “Quando a gente vai na praia, também usa roupas parecidas com elas, só que sem o brilho e a maquiagem”. Outra complementa: “igual quando tá calor e a gente tira a blusa no parque”. Iniciamos então uma conversa sobre o corpo de cada um, da outra pessoa, esteja ela com muita ou com pouca roupa. Falamos também que os desfiles das escolas de samba ou as diversas rodas de samba existentes são momentos de festa, de celebração e que as pessoas se arrumam, se vestem e se maquiam de diferentes formas para esse momento e o importante era a pessoa se sentir bem com o jeito que está vestida ou maquiada, seja homem ou mulher.

Recebemos um convite inesperado. Ingressos para a peça de teatro “Bento Batuca”, em cartaz por apenas dois finais de semana em um teatro próximo. Fico muito empolgada quando tomo contato com a sinopse da peça. O texto narra a história de Bento, um menino que batuca em tudo e em qualquer lugar desde que nasceu e que ao receber uma notícia que vira a sua vida de ponta-cabeça, parte em uma viagem a procura da batida do seu coração, passando pela Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro, mergulhando na Capoeira, no Frevo, no Maculelê e no Samba, reencontrando suas origens. Lá fomos nós! Aproveitamos muito o espetáculo. Quando o personagem Bento estava mergulhando na história do samba, apareceu a personagem da Tia Ciata. Nesse momento vi muitas cabecinhas virando em minha direção e dizendo: “É a Tia Ciata, prô! É a Tia Ciata!”.

Na volta para a escola, sentamos para conversar sobre o teatro. Aproveito esse momento e conto para as crianças que por algum tempo as práticas corporais retratadas pela peça eram proibidas, que as pessoas que as praticavam tinham que fazer isso escondidas e questionei se elas sabiam o porquê desse cenário. “Acho que tinham pessoas que não gostavam do barulho que eles faziam”. Provoquei perguntando se isso era motivo o suficiente para que eles fossem proibidos de dançar. O não foi unânime. “Acho que já sei, prô! Era porque eles eram negros, né? As pessoas que dançavam? Aí teve um apartheid igual o do Nelson Mandela na África do Sul!”. Me arrepio toda ao ouvir isso. As crianças estavam estudando a vida de Nelson Mandela nesse período e o apartheid era pauta de nossas investigações. Noto que o que discutimos em outros momentos da escola reverberava e afetava o estudo do samba. Conversamos então sobre racismo e preconceito e sua relação com práticas corporais africanas e afro-brasileiras.

Me lembro que no ano anterior, as crianças tiveram algumas oficinas de capoeira e samba de umbigada e em vários momentos de nossas vivências comentam sobre isso. Decido então adentrar nessa modalidade para contemplar a fala das crianças que já estudavam na escola o ano passado e também as crianças novas. Vamos até a sala multimídia novamente para assistir dois vídeos: uma entrevista com uma mulher negra contando brevemente sobre a história e alguns aspectos do samba de umbigada do recôncavo baiano e outro que mostrava homens e mulheres em uma roda de samba. As crianças que já estudavam na escola explicaram para as demais o que já sabem sobre o samba de umbigada. Demonstram, executando o movimento da umbigada e dizendo para que serve.

Pego então saias de modelo três Marias e instrumentos musicais de brinquedo disponíveis na escola e vamos até o gramado fazer a nossa roda de samba de umbigada. Giros e mais giros. Risadas e rodopios. Alguns meninos se sentam para tocar. A maioria prefere não dançar, apenas tocar e observar. As meninas dominam a roda. Entram e saem dela encostando os seus umbigos umas nas outras.

Vejo com o passar das semanas essa roda se transformar. Pequenos galhos passam a fazer parte dos batuques. Um menino pega uma saia e arrisca alguns rodopios. Algumas meninas não querem mais usar as saias e passam a dominar os instrumentos. Algumas usam saias e tocam ao mesmo tempo. A nossa grande e única roda inicial se transforma em duas, três pequenas rodas. Algumas crianças preferem apenas observar de longe. Convidamos outras turmas para sambar com a gente. Sambamos muitas e muitas vezes.

Converso com a diretora da escola sobre o nosso mergulho no samba. Ela me conta que a avó de uma criança da outra sala trabalha na quadra da Rosas de Ouro. Decidimos entrar em contato com ela para tentar uma visita com as crianças nesse espaço. Enquanto isso, investigo com as crianças sobre as escolas de samba do nosso bairro e os aspectos que as constituem. A visita acaba não dando certo. Mas na festa de celebração aos cem anos de Nelson Mandela, que fizemos alguns meses depois, a bateria mirim daescola Rosas de Ouro esteve presente. Famílias, crianças e educadoras dançando juntas. As crianças foram a loucura. E eu, também!

Olho para trás. Vejo o percurso que construímos. Vejo meses depois as crianças ainda me pedindo para colocar samba na caixa de som quando vamos para o parque. Vejo rodas se formando. Vejo meninos virando a lata de lixo de ponta cabeça para batucar. Vejo uma menina me entregar um pandeiro de plástico, que encontrou misturado na caixa de brinquedos e pedir para cuidar porque ele é do samba.

Samba ô lelê. O nosso samba o lelê. Ele se misturou com a gente. Ele faz parte de nós e nós dele. Quer saber? Não dá pra separar mais não.

Conversas com...

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1O movimento pós-estruturalista não é uma linha filosófica. Ele é mais reconhecido por pensadores como Michel Foucault, Gilles Deleuze, Jaques Derrida, Julia Kristeva e outros, que, apesar das particularidades, elaboraram um "variado, rigoroso e profundo questionamento de tradições e estruturas" (WILLIAM, p. 216), afirmando a diferença como possibilidade de contestar e superar as exclusões e desigualdades produzidas na sociedade moderna.

2No âmbito da Educação Física, a partir dos anos de 1980, intensificaram-se os estudos e pesquisas vinculados às Ciências Humanas. Essa larga produção gerou questionamentos que incidiram em uma nova configuração na prática docente. A Educação Física passou a considerar para além das ginásticas e dos esportes, as danças, as lutas, as brincadeiras e uma infindável lista de atividades, expressas na noção de práticas corporais, que se reinventam a cada dia influenciadas pelas culturas e que, por isso, compõe uma cultura corporal (SOARES et al, 1992). Como efeito, intensificaram-se as formas de fazer a Educação Física e os modos de dizer a respeito dessas práticas corporais e dos seus representantes.

3A suspeita, conduta recorrente na filosofia e pensamento de Nietzsche, caracteriza-se por em suspensão interpretações vigentes e hegemônicas com possíveis associações e interferências de elementos da moral para, posteriormente, dar-lhe outras perspectivas. Perspectivar é analisar atentamente o conflito entre as forças, pois cada interpretação só encara os fatos a partir do ponto de vista do seu próprio crescimento (KOSSOVITCH, 2004). É observar de formas distintas e sobre outros prismas, posições com pretensões absolutas e universalizantes. Logo, toda interpretação é perspectivista. O filósofo propõe que mantenhamos nossas crenças e nossos valores sempre sob suspeita, pois tais verdades são apenas o fruto da criação humana a partir de determinadas relações de forças (NIETZSCHE, 2009).

4 Foucault (2004) explica que o termo ethos para os gregos e romanos antigos referia-se como uma escolha voluntária referente ao modo de ser e de se conduzir na vida. O pensador francês entende a modernidade como um ethos e não como um período.Tomamos aqui o termo no mesmo sentido, com o devido cuidado de assinalar as diferenças entre a nossa época e a dos antigo no que tange às práticas que adotamos para conduzir nossas condutas.

5São eles: articulação da tematização com o projeto pedagógico da escola, a justiça curricular, ancoragem social dos saberes, evitar o daltonismo cultural, descolonizar o currículo, reconhecer o patrimônio cultural dos estudantes. Em outra obra, Nunes (2018) excluiu este último e inseriu entre os princípios "afirmar a diferença". Defende que reconhecer o patrimônio pode ser uma ação didática, que pode ser feita para promover aproximações entre os sujeitos e a escola. Mas, não pode se constituir como um princípio ético-político, pois reconhecer significa partir de um modelo original. O que dificultaria qualquer possibilidade de abertura à diferença.

6Denominados na literatura como mapeamento dos saberes e práticas dos alunos e da comunidade educativa; ressignificação, ampliação, aprofundamento, avaliação e registro (NEIRA; NUNES, 2006; 2009ª; 2009b; NEIRA, 2011), eles permitem a produção de infindáveis procedimentos para a sua realização.

7Na França, pós os movimentos revolucionários de 1968, instalou-se o Centro Experimental de Vincennes (atualmente Universidade Paris VIII). Professores do porte de George Canguilhem, Roland Barthes, Michel de Certeau, Gilles Deleuze, Michel Foucault entre outros buscaram democratizar o acesso ao ensino superior francês e torná-lo um lócus de inovação e subversões pedagógicas, com a supressão dos exames, atividades não diretivas etc..

8Nomes dos professores artistas que viveram, produziram o enredo narrado.

9Nome da professora artista que viveu, produziu o enredo narrado.

Recebido: 02 de Março de 2020; Aceito: 05 de Agosto de 2020

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