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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.34 no.71 Uberlândia maio/ago 2020  Epub 06-Fev-2022

https://doi.org/10.14393/revedfil.v34n71a2020-53402 

Artigos

Entre Mead e Heidegger: a interioridade desdobrada e a formação humana

Between Mead and Heidegger: the unfolded interiority and the human formation

Entre Mead y Heidegger: la interioridad desarrollada y la formación humana

Marli Teresinha Silva da Silveira* 
http://orcid.org/0000-0003-1775-0935

Raísla Girardi Rodrigues** 
http://orcid.org/0000-0002-3194-8481

Angelo Vitorio Cenci*** 
http://orcid.org/0000-0003-0541-2197

*Doutora em Educação na Universidade de Passo Fundo (UPF). E-mail: marli19silveira@gmail.com

**Doutoranda em Educação na Universidade de Passo Fundo (UPF). E-mail: raislag@gmail.com

***Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor na Universidade de Passo Fundo (UPF). E-mail: angelo@upf.br


Resumo

O artigo visa aproximar a abordagem da psicologia social de Mead e a perspectiva fenomenológico-existencial de Martin Heidegger da noção de interioridade desdobrada. Tal aproximação permite sustentar que há uma radical e inseparável reciprocidade entre homem/mulher e mundo. A radicalidade de tal reciprocidade suplanta a dicotomia interioridade e exterioridade, reaproximando o corpo do tempo, lugar mesmo da abertura existencial humana. Apresenta-se a noção de “self” como processo e a mente como resposta comportamental interativa com vistas a relacioná-la ao modo de ser-no-mundo. Também, uma breve incursão à psicologia de viés fenomenológico-existencial, buscando articular o interacionismo de Mead e a analítica existencial de Heidegger e suas implicações para o campo da formação humana.

Palavras-chave: Self; Dasein; Interioridade desdobrada; Formação humana

Abstract

The article aims to approximate Mead's approach to social psychology and Martin Heidegger's phenomenological-existential perspective to the notion of unfolded interiority. Such an approach allows us to maintain that there is a radical and inseparable reciprocity between man / woman and the world. The radicality of such reciprocity supersedes the dichotomy interiority and exteriority, bringing the body of time closer together, the very place of human existential openness. The notion of “self” as a process and the mind as an interactive behavioral response is presented in order to relate it to the way of being in the world. Also, a brief foray into existential-phenomenological psychology, seeking to articulate Mead's interactionism and Heidegger's existential analytics and their implications for the field of human formation

Keywords: Self; Dasein; Unfolded interiority; Human Formation

Resumen

El artículo tiene como objetivo aproximar el enfoque de Mead a la psicología social y la perspectiva fenomenológica-existencial de Martin Heidegger a la noción desplegada de interioridad. Tal enfoque nos permite mantener que existe una reciprocidad radical e inseparable entre el hombre / mujer y el mundo. La radicalidad de tal reciprocidad suplanta la dicotomía de interioridad y exterioridad, devolviendo al cuerpo al tiempo, el lugar de la apertura existencial humana. La noción de "yo" se presenta como un proceso y la mente como una respuesta interactiva de comportamiento para relacionarlo con la forma de ser-en-el-mundo. Además, una breve incursión en la psicología del sesgo fenomenológico-existencial, buscando articular el interaccionismo de Mead y el análisis existencial de Heidegger y sus implicaciones para el campo de la formación humana.

Palabras clave: auto; Dasein Interioridad desplegada; Formación humana

Introdução

Pode-se dizer que, em certo aspecto, a ciência moderna encobriu os sentidos do mundo, desconfiada do seu alcance e das suas possibilidades, e foi justamente com base na desconfiança dos sentidos advindos do mundo que se produziu a alienação do homem frente ao próprio mundo, erguendo-se as condições para o desenvolvimento das ciências a partir dos séculos XVI e XVII (ARENDT, 2007). O homem não é fundamentalmente um animal que pensa ou um mero organismo biológico, mas um modo de ser no mundo e a sua emergência provém da sua condição inabalável de estar aberto como um ser-no-mundo com outros e para as próprias possibilidades. A ênfase na subjetividade fez com que tomássemos o interior “de modo a poder identificar, definir, localizar aquilo que obstrui a verdadeira expressão do sujeito ou os seus aspectos desadaptados” (FEIJOO, 2011, p. 14).

E mesmo as tentativas psicológicas que surgiram no século XX, com apoio efetivo das ciências empíricas e a partir de uma perspectiva positivista (FEIJOO, 2001, p. 15), como foram os casos dos estudos de Watson e Skinner, entre outros, chegando ao Behaviorismo, que parte da compreensão de “sujeito” como resposta condicionada ao mundo, não conseguiram reposicionar o modo de acesso ao “eu” sem cair em um campo de aderência, no caso, à estrutura comportamental. “Desconsideram o ‘eu’ em sua interioridade, posicionando-o como tábula rasa que se constitui por meio de estímulos oriundos do mundo” (FEIJOO, 2001, p. 15). Se, de um lado, procuram deslocar o campo de mostração do fenômeno da interioridade encapsulada para o mundo, de outro, passam a considerar “como a verdade sobre o psiquismo aquilo que se apresenta como passível de comprovação empírica, agora denominado comportamento ou rede de comportamentos” (FEIJOO, 2001, p. 16). Essas tentativas psicológicas acabam, por sua vez, por reduzir o “eu” a uma estrutura comportamental, podendo ser formada por condicionamentos. Essa concepção parte do pressuposto igualmente questionável do caráter originário da estrutura biológica, orgânica, do psiquismo humano (FEIJOO, 2001, p. 16), concepção estranha tanto ao interacionismo simbólico de Mead, quanto à analítica do Dasein heideggeriano, uma vez que ambos desdobram o seu escopo teórico a partir da estreita relação entre o indivíduo e o mundo/sociedade.

O ser humano, aqui pensado enquanto “self” ou si mesmo, para se ficar nesse par, deve ser compreendido a partir do seu desdobramento no mundo, pois, na psicologia social de Mead, o “self

é essencialmente uma estrutura social, e ele emerge na experiência social. [Depois] do self ter emergido, em certo sentido ele fornece a si mesmo suas experiências sociais, e então podemos conceber um self absolutamente solitário. Mas é impossível conceber um self emergindo fora da experiência social1 (MEAD, 1972, p. 140, tradução nossa).

Em outros termos, o self é entendido como processo, em que a conversação de gestos é internalizada e a mente humana é concebida como uma espécie de resposta comportamental decorrente da interação social, ou seja, da interação com os outros no contexto social. Já assumindo os desdobramentos da psicologia fenomenológico-existencial, a exemplo de Feijoo (2001)2, enquanto uma das variantes da analítica existencial de Martin Heidegger, temos um deslocamento radical da cisão mente e corpo, interioridade e exterioridade, alojando o que seria a singularidade na relação afetiva e antecipada de mundo. Trata-se de uma “apreensão” de si concernido ao encontro com os outros no mundo.

Compreender o homem-mulher como relacional e aberto para as suas possibilidades implica entendê-lo para além das definições biológicas, pois cabe ao humano ser determinado diferentemente de uma espécie composta de alma e corpo, ou mesmo de um homem enquanto ‘vivente que calcula’, ‘vivente que explora’, ‘vivente com mentalidade pré-definida e enquadrada’ (HEIDEGGER, 2001b; 1993). Tais definições acabaram por explicitar um modo de ser que é próprio da condição humana pelo viés do antropocentrismo e do substancialismo, implicando o modo de ser humano por uma interioridade densa e profunda, deixando de lado a pertinência da interação social e a sua primazia na constituição da subjetividade e singularidade do homem-mulher. A implicação do “dentro” como medida de todas as relações e desdobramentos daí advindos resulta por deslocá-lo de sua íntima relação com o espaço/tempo.

A pretendida aproximação entre a psicologia social de Mead e a psicologia existencial, desdobrada pelo viés da analítica existencial (HEIDEGGER, 1993), fundamenta-se na perspectiva de que não nos descobrimos humanos “entrando” cada vez mais para “dentro”, como se existisse uma organicidade da “mesmidade” presa nas entranhas da nossa mente. Diferentemente, o nosso modo de ser é implicado no e pelo mundo, na tensão permanente entre o “dentro” e o “fora”, uma vez que “a unidade e a estrutura de um self completo, reflete na unidade e estrutura de um processo social como um todo” 3 (MEAD, 1972, p. 143, tradução nossa).

Por essa razão, partimos da premissa fundamental de que o indivíduo humano integra uma rede de relações e interações no interior da qual a sua identidade emerge. É dessa matriz intersubjetiva que cada um e todos vão constituindo os seus modos específicos e compartilhados de ser no mundo com outros, de onde se constitui a identidade, a consciência e o self dos indivíduos humanos (MEAD, 1972). E, embora a tarefa de Heidegger (1993) seja a de desconstruir os desdobramentos da tradição, a radicalidade da sua analítica impôs novas formas de compreender o existente humano de modo a ser possível aproximá-lo da tese interacionista de Mead.

Para tanto, apresentamos, na primeira parte deste artigo, a tematização da constituição social do self na perspectiva de Mead (1), seguido das implicações da pertinência da constituição ontológica do ser no mundo heideggeriano (2), aproximando-os pelo escopo da “interioridade desdobrada”, compreendida enquanto identidade constituída a partir de uma relação dinâmica entre o “dentro” e o “fora” (3). No encalço do presente desdobramento reside a possibilidade de estabelecer-se uma aproximação entre o modo como Mead confere ao campo relacional, entendido como o “fora”, a constituição do self, e o empreendimento ontológico de mundo (“fora”), enquanto possibilidade da emergência do humano em Heidegger.

Alargada na direção da educação, na medida em que se apresenta uma nova e radical compreensão da condição humana, tributária das redes de relações/sentidos e das mediações sociais, abandonamos a concepção de uma subjetividade isenta das suas relações de temporalidade e historicidade4, bem como de identidades que poderiam ser constituídas de forma estanque, ensimesmadas e fixas. A formação humana teria de partir então de uma nova concepção, marcada pelo reiterado exercício de si desdobrado pela perspectiva de um “eu” com bases relacionais.

1. Mead e a constituição social do self

Pode-se dizer que G. H. Mead5 (1972) apresenta uma noção pós-metafísica da origem do self, o si mesmo. O self é compreendido como resultado da interação humana, implicação que repercute em uma psicologia de cunho fundamentalmente social, deslocando a noção de uma interioridade introjetada na mente/corpo do homem, substancializada, para a sua relação com os outros. O self é processo, resultado das relações que os seres humanos estabelecem com os outros na sociedade. Mead desloca, de igual forma, o paradigma da consciência, articulado pelo pensamento moderno, especialmente o cartesiano, em torno de um “eu” como medida de todas as coisas, para o da comunicação intersubjetiva. Isso leva um autor como Habermas a defender, na esteira de Mead, a ideia de que “não é possível haver individualização sem socialização e nem socialização sem individualização” (HABERMAS, 1996, p.26).6 Por essa mesma razão, também Honneth (2000) afirma que a teoria de Mead desenvolveu melhor do que nenhuma outra teoria contemporânea a ideia de que a identidade dos sujeitos humanos resulta fundamentalmente da experiência do reconhecimento intersubjetivo.

Mead propunha que a psicologia deveria ser um espaço de “reconstrução filogenética e ontogenética do self humano, demonstrando que a individuação supõe a socialização” (CASAGRANDE, 2014, p.13). Expresso de forma mais assertiva, para Mead, o self humano, bem como a mente e a consciência, é constituído na convivência com os outros e na relação social. A intersubjetividade engloba as consciências individuais, nasce e desenvolve-se pela e na sociedade, sendo impossível afastar individualização de socialização, e vice-versa. Há um caráter social que é próprio da vida humana e a sua existência depende da interação, comunicação e cooperação entre os indivíduos. Mead defende que “não há nenhum organismo vivo, de qualquer tipo, cuja natureza ou constituição é tal que ele possa existir ou se manter sozinho, em completo isolamento dos demais seres vivos” 7 (1972, p. 228, tradução nossa). Compreendemos, portanto, que, desde os animais mais primitivos até os seres humanos, a vida dá-se através da relação com o outro. “Todos os organismos vivos estão determinadamente ligados a um ambiente ou situação social geral, em um complexo de inter-relações e interações sobre as quais a continuação de sua existência depende” 8 (MEAD, 1972, p. 228, tradução nossa).

A principal diferença, portanto, do ser humano é que ele desenvolve um self através da comunicação significante com os outros, além de poder participar, pelo seu caráter social intrínseco, intencionalmente de projetos que são comuns:

Certamente, qualquer tratamento psicológico ou filosófico da natureza humana9 envolve o pressuposto que um indivíduo humano pertence a uma comunidade social organizada, e sua natureza humana deriva de suas interações e relações sociais com aquela comunidade como um todo, e com os outros indivíduos membros dessa10 (Mead, 1972, p. 229, tradução nossa).

Pela comunicação, os indivíduos humanos são capazes de interagir, planejar, queixarem-se e viverem em uma comunidade. Através da linguagem11, os anseios, desejos e atitudes do grupo são captados, compreendidos e respondidos, pois só por meio da linguagem e da possibilidade de utilizarem de símbolos que sejam significantes é que o indivíduo pode internalizar as atitudes do grupo social no qual está inserido. Neste sentido, o indivíduo pode adotar em relação a si as atitudes que os demais adotam em relação a ele. Indivíduo e sociedade estão implicados, são interdependentes, havendo uma simultânea “construção-reconstrução pessoal e social sob o prisma de uma fundamental interdependência” (CASAGRANDE, 2014, p.27). Assim, a interação entre os indivíduos através da linguagem produz não apenas um indivíduo diferente como também uma sociedade diferente das já organizadas até então.

Na psicologia social de Mead, existe um princípio de indissociabilidade entre o indivíduo e a sociedade, condição que corrobora o aspecto intersubjetivo presente na constituição da consciência e da subjetividade humana. Estamos implicados em uma rede de relações e interações significativas no interior das quais emerge a consciência humana, que, por sua vez, depende de ações de comunicação, cooperação e participação social12: “o indivíduo humano que possui um self é sempre um membro de uma ampla comunidade social, um grupo social mais extenso, do que aquele em que ele imediatamente e diretamente encontra-se, ou ao qual ele imediatamente e diretamente pertence” (MEAD, 1972, p. 272, tradução nossa). Tais relações fazem surgir não apenas a consciência, mas a identidade da sociedade e os sentidos do mundo.

Essas relações dão-se pela comunicação que, para Mead, é compreendida como interação simbólica, ou seja, ocorre quando dois ou mais indivíduos reagem uns aos outros através de ações ou expressões. Tal interação dá-se, de forma primária, através do gesto, - do simples ao gesto significativo -, sendo a linguagem verbal a terceira e mais complexa forma de comunicação. Compreende-se os gestos simples como aqueles em que não há a antecipação do gesto do outro, bem como as ações e reações sem reflexibilidade, geralmente implicadas pelo caráter impulsivo da ação ou reação. Nos gestos significativos, eles adquirem conteúdo simbólico e exigem dos indivíduos reações refletidas e sua adaptação; de modo especial, nestes há a antecipação do gesto do outro: “A importância do que chamamos “comunicação” repousa no fato de que ela fornece uma forma de comportamento na qual o organismo ou os indivíduos devem tornar-se um objeto para si mesmos” 13 (MEAD, 1972, p. 138, tradução nossa). Mead crê, portanto, que tal comunicação ocorre no sentido de símbolos significantes, uma comunicação direcionada não apenas para os outros indivíduos, mas também a si mesmo.

Para evoluir de um gesto, “uma vez que a conversação de gestos é o começo da comunicação” 14 (MEAD, 1972, p. 141, tradução nossa), o qual em si mesmo não possui relevância e não perfaz uma linguagem significativa, é necessário que ele torne-se implicado pelo grupo, adquira caráter significativo no contexto social em que está inserido. Tanto aquele que o emprega quanto o receptor devem conhecer o significado do gesto e dar-lhe sentido. Nesse processo, o gesto adquire significado e transforma-se em um símbolo e em um mecanismo de adaptação social, pois ocorre a “adoção, por parte de cada um dos indivíduos, das atitudes dos outros em relação a ele” (CASAGRANDE, 2014, p. 35). Por essa razão, os gestos constituem-se como eficazes para essa adaptação social, tendo em vista a exigência da reciprocidade. Tal reciprocidade tem início na troca de gestos que até mesmo os animais são capazes de exercer:

Primeiramente, há uma conversação de gestos entre animais envolvendo algum tipo de atividade cooperativa. Lá, o começo do ato de um é um estímulo para o outro responder de certa forma, enquanto o começo dessa resposta torna-se novamente o estimulo para o primeiro para ajustar sua ação para a resposta que está se aproximando15. (MEAD, 1972, p. 144, tradução nossa).

Também entre os seres humanos essa reciprocidade é essencial, uma vez que, a partir do momento em que o indivíduo internaliza o gesto do outro, antecipando a atitude alhures, que a sua mente e o seu self poderão emergir, pois se constitui no primeiro passo para o processo de estruturação simbólica da comunicação e interação social. A consciência de si mesmo emerge justamente no interior desse processo, no qual o indivíduo é solicitado a cooperar, refletir e colocar-se na condição e ou em reação ao outro. “Adotar a atitude do outro” é tema central e recorrente na psicologia social de Mead e implica a aquisição dos símbolos significantes, o diálogo interior do pensamento humano, a obtenção - enquanto mecanismo comportamental - da sua autoconsciência, a estrutura social do self humano, além de repercutir na forma mesma de organização social humana e possibilitar aos indivíduos viver e conviver em sociedade.

A antecipação dos gestos do outro, ou a adoção da atitude do outro, é o processo mesmo que, de acordo com Mead, origina o pensamento e a identidade de cada um. Assim como os gestos e os diálogos, até mesmo o pensar exige a presença do outro. Os grupos sociais, as relações familiares e de amizade fazem com que os sujeitos interiorizem o outro e passem a ter atitudes que englobem o todo:

A internalização das diferentes atitudes e papéis sociais abre a possibilidade da emergência da mente e do self. Isso se torna possível porque, no mecanismo social de adoção da atitude do outro, o sujeito tem a possibilidade de formar uma noção de si mesmo enquanto um self organizado, unitário e contínuo (CASAGRANDE, 2014, p. 39).

Mead também distingue consciência de consciência de si (self). Para o autor, a consciência não é algo suprassensível, mas o resultado de processos sociais entre os indivíduos e os demais organismos. Não se trata de um atributo exclusivo do ser humano, pois está presente também entre animais e outros seres vivos, capazes de modificar e criar formas de manterem-se vivos, atuando, assim, no ambiente no qual se desenvolvem. A busca pela sobrevivência de si, dos outros e de futuras gerações é o que constitui essencialmente a consciência. E é socialmente que a consciência passa a ser consciência de si, pela linguagem, pelos estímulos dos outros e de si mesmo. Essa capacidade dá-se na medida em que o sujeito é capaz de individualizar-se reflexivamente e, ao mesmo tempo, manter-se parte de um grupo.

Pode-se dizer, portanto, que a mente é um tipo de resposta comportamental decorrente da interação social e que, por tal mecanismo e ou habilidade, desenvolvida nas relações humanas comuns e cotidianas, o indivíduo adapta-se ao mundo, fazendo dele a sua casa, e torna-se capaz de controlar os seus impulsos. Acima de tudo, o indivíduo poderá atribuir e criar sentidos para as suas ações, implicadas pelos outros. Mead não apresenta a mente como uma estrutura orgânica acoplada no corpo humano, nem mesmo afirma a sua primazia em relação ao mundo. Para Mead, a mente é originada do processo social e da comunicação, pois é por meio da conversação de gestos, “num processo social ou contexto de experiência” (Mead, 1992, p. 50), que ela surge:

A mente, em nosso enfoque, aparece simplesmente quando o organismo é capaz de assinalar significados para os outros e para si mesmo. Este é o ponto no qual a mente aparece, ou se preferirem, emerge. O que precisamos reconhecer é que estamos tratando da relação entre organismo e o meio selecionado por sua sensibilidade. [...] A habilidade para selecionar essas significações e indicá-las aos outros consiste numa habilidade que proporcionou um poder peculiar ao indivíduo humano. O controle foi possível pela linguagem. Eu afirmo que é esse o mecanismo de controle sobre a significação, no sentido que indiquei, que se constitui o que denominamos de “mente” (MEAD, 1992, p.132-133).

Interessa destacar, por oportuno, que, neste sentido, o corpo não garante ao indivíduo o seu “eu”, pois somente recebe o seu status de self, de ser um “si mesmo”, quando “desenvolveu uma mente dentro do contexto da experiência social” (CASAGRANDE, 2014, p. 46). Somente na medida em que o indivíduo é permeado pela internalização dos significados que ele pode dialogar consigo mesmo e com os demais que se entrecruzam socialmente. A mente é produto dos processos sociais e da internalização dos gestos significativos verbais, ou seja, podemos falar de mente, inteligência ou racionalidade se partirmos do pressuposto de que estas são habilidades ou funções originadas no contexto da interação social.

Tais funções, ou habilidades, formam-se exclusivamente na presença do outro generalizado. “A comunidade ou grupo social organizada que dá aos indivíduos suas unicidades de self pode ser chamada de ‘o outro generalizado’. A atitude do outro generalizado é a atitude de toda a comunidade” 16 (MEAD, 1972, p. 154). O outro generalizado, portanto, é, para Mead, toda a sociedade e os seus desejos, costumes, metas, leis, etc. O self estará em sua forma mais completa quando o sujeito internalizar o outro generalizado, compreender as formas de ser, pensar e agir de sua comunidade:

É na forma do outro generalizado que o processo social influencia o comportamento dos indivíduos nele envolvidos e que o levam adiante, isso é, que a comunidade exerce controle sobre a conduta de seus membros individuais; pois é nesta forma que o processo social ou comunidade entra como um fator determinante para o pensamento do indivíduo17 (MEAD, 1972, p. 155, tradução nossa).

Mead defende uma concepção de mundo ancorada na interação, na compreensão e na participação da vida em sociedade. Os seres humanos não possuem previamente um self e uma consciência, mas os desenvolvem ao longo de sua existência e baseados nas relações que desenvolvem em conjunto à sociedade, sendo essa uma característica exclusiva dos seres humanos. O que determina o self, portanto, é a experiência social.

2. Heidegger e a primazia do mundo

Heidegger não desenvolveu pontualmente uma nova antropologia ou psicologia humanas, pois o seu vértice teórico reside na ontologia fundamental desdobrada pela fenomenologia de cunho existencial. A radicalidade da compreensão do modo de ser do homem/mulher como um ser lançado e aberto para as suas possibilidades implicará uma nova e revigorada compreensão da condição humana. Esta passa a não mais ser compreendida como cindida entre interioridade e exterioridade, mas ancorada fundamentalmente na temporalidade do seu acontecer do humano, do seu ser-aí aberto no mundo.

Foi justamente orientada pelo questionamento pelo ser e seu sentido que a tematização ontológica proposta por Martin Heidegger18 (1993) deparou-se com a necessidade de explicitar um modo de ser específico, o Dasein19 e o ponto de partida da sua constituição ontológica, seu modo de ser-no-mundo. A analítica heideggeriana parte, no âmbito de Ser e Tempo, dessa condição básica, que é o ser-no-mundo, e isso se deve ao fato de que é no modo cotidiano do relacionar-se consigo mesmo e com os demais entes que se constituirá o campo para a indicação do ser em geral.

O campo fenomenal do qual parte a analítica existencial aparece, assim, demarcado, implicando que, do ponto de vista ontológico, interessa situar a compreensão não mais na ótica da atividade racional, de um ente dotado de razão ou consciência, mas da prévia compreensão que o indivíduo humano tem ao relacionar-se com o seu ser e o mundo. Existência e mundo não podem ser separados ou mesmo justapostos. “Como existencial, o ‘ser-junto’ ao mundo nunca indica um simplesmente dar-se em conjunto com coisas que ocorrem. Não há nenhuma ‘justaposição’ de um ente chamado Dasein e um outro chamado ‘mundo’” (HEIDEGGER, 1993, p. 93).

O Dasein, o indivíduo humano, não se aproxima ou distancia do mundo em um relacionamento do tipo cognitivo-proposicional, a partir de uma relação sujeito-objeto, pois o mundo não é mais tido como um conjunto de entes que estão aí disponíveis para serem conhecidos, descobertos. Emergem “misturados” na projeção compreensiva do existente humano. “[...] Um ente só pode tocar outro ente simplesmente dado dentro do mundo se, por natureza, tiver o modo do ser-em, se, com sua presença, já se lhe houver sido descoberto um mundo” (HEIDEGGER, 1993, p. 93).

O modo de ser próprio da condição humana, ser-no-mundo, indica que o existente humano difere, ontologicamente, dos demais entes existentes, implicado pela sua abertura em direção ao ser em geral e a pertinência do mundo, de tal modo que ser-em no mundo abre-se no contexto de uma familiaridade própria do existir humano:

O ser-em não pode indicar que uma coisa simplesmente dada está, espacialmente, ‘dentro de outra’ porque, em sua origem, o ‘em’ não significa de forma alguma uma relação espacial desta espécie, ‘em’ deriva de innan - morar, habitar, deter-se; ‘na’ significa: estou acostumado a, habituado a, familiarizado com, cultivo alguma coisa; possui o significado de colo, no sentido de habito [...] (Heidegger, 1993, p. 92).

A analítica do Dasein, proposta por Heidegger (1993), parte da compreensão de que o ser humano lança-se no mundo através de modos de ser e é como ser-no-mundo que compreende o homem como um ser lançado e aberto para suas possibilidades. Disso decorrem duas inovadoras questões, condição do existente humano: que ele responde por uma totalidade unitária do homem, podendo assumir autêntica ou inautenticamente as suas próprias possibilidades, e que, ao retomar a questão do ser, Heidegger não tem em mente fazer uma nova antropologia.

O modo de ser próprio do indivíduo humano, que pode possibilitar-se autêntica ou inautenticamente no mundo, não está misturado ao ser natural, o que não significa que o homem deixa de pertencer à natureza, mas que o seu modo de ser transforma-se no da facticidade. “O corpo do homem é qualquer coisa de essencialmente diferente de um organismo animal” (HEIDEGGER, 1995, p.92). Diferentemente da tradição que encerrou o homem em um modo fechado20, o modo de ser-no-mundo irá caracterizar-se por uma relação com o próprio ser e, em se relacionando com o ser, o existente humano retira o seu próprio modo de ser. Isso significa que. ao relacionar-se com o ser, o Dasein tem do ser o seu próprio ser e que, por sua vez, constitui a sua abertura ao mundo. Tal abertura consiste na capacidade de cada ser-aí orientar-se por sentidos, uma capacidade que inaugura um horizonte múltiplo de significados, possibilitando que o ser-aí determine autenticamente as suas possibilidades de ser no mundo. Trata-se de um modo de ser do existente humano, comportando-se como um modo em constante trânsito com o ser, implicando-o pelas possibilidades nas e pelas quais se desdobra no mundo. No dizer de Stein, “Dasein e mundo são cooriginários. Mundo e Dasein se dão numa unidade” (2003, p.16), ou seja, é da sua relação originária com o ser, estar implicado por tal relação, que o Dasein tem, no mundo, o seu campo de mostração de sentido para o qual está desde sempre aberto.

Lançado no mundo, a relação de abertura que o Dasein, o modo de ser próprio dos entes humanos, tem a si não é a do tipo da reflexão, mas passa necessariamente pelo mundo. Claro que é possível fazer-se ontologias regionais (antropologia, sociologia, psicologia, etc.), mas é na medida em que nossa compreensão primeira do que somos dá-se pelo modo de ser-no-mundo com outros e demais entes que o mundo emerge como a nossa condição mesma. É dessa afinação existencial, desse habitar com outros e sentir-se situado na sua abertura que o homem lança-se em direção a si mesmo e ao próprio mundo, tonalizando o encontro e a compreensão do estar de algum modo possibilitado. Neste sentido, Heidegger compreende o humano como ser lançado em um mundo de possibilidades e a sua distinção em relação a outros entes deve-se justamente à sua condição de abertura à compreensão de seu ser e do mundo. O homem constitui-se, então, como “formador de mundo” (HEIDEGGER, 1995).

A radicalidade da analítica existencial heideggeriana, que compreende e explicita o modo próprio do existir humano como ser-no-mundo, implica balizar um contraponto vigoroso à tradição, tendo em vista que se há uma “mesmidade”, uma identidade, ela desentranha-se advertida de propriedades, pois se todo o ser é ser de um ente21 e ao mesmo tempo o ser não o retém em suas entranhas, acaba por lançar o homem no mundo em possibilidades, de onde se compreende originariamente como relacionado por referenciais de sentido abertos, histórica e temporalmente. Não há o que seria uma “mesmidade” deslocada do mundo e dos seus sentidos.

A metafísica, que colocou o sujeito como o fundamento inabalável de todo o saber, caracterizou-se, desde Platão, como ‘humanista’, por faltar à essência da subjetividade humana (da metafísica tradicional) a explicitação da sua pobreza, pois o homem não é o que é, mas se dá em uma relação com o ser que ele mesmo não pode ser ou possuir (HAAR, 1990, p. 95). Lança-se sempre para fora de si mesmo, transitando entre a estranheza e a familiaridade cotidiana. De forma mais explícita, o ser humano responde por um modo de ser lançado no mundo e, enquanto modo, não carrega em si uma organicidade (mental e corporal) acabada e desimplicada do mundo. É dessa relação íntima com o ser e os seus sentidos que vai temporalizando-se no mundo, sem jamais chegar a um fim de si mesmo.

Propor que o homem seja compreendido como Dasein, ser-aí, é recompor a trajetória em direção ao ser, ampliando as possibilidades de outras projeções de sentidos em que o mundo é o solo fértil, o lugar mesmo de onde e para onde todos seguimos. Tal compreensão implica um constante exercício de si mesmo em busca de um modo que vai plasmando identidades dinâmicas e abertas para possibilidades que são próprias desse modo. O existente humano não é um ente fechado ou em cujos predicados encerram-se todas as suas possibilidades, mas ente de possibilidade entranhadas no mundo e justamente por isso se tornam compreensivas para todos aqueles que igualmente desentranham-se como coimplicados pelo modo de ser-em no mundo.

Recai sobre a análise do homem como ser-no-mundo certa desconfiança quanto ao seu si-mesmo no mundo, como se o Dasein não tivesse carne, pele. Essa neutralidade específica deve-se, contudo, ao fato primordial de que tal intepretação, ser um ser-no-mundo lançado, mostra o ser anterior à concreção fática. Disso não decorre que o ser-aí seja, de modo indiferente, ninguém ou toda a gente, mas a “positividade e o poder originários da essência” (HEIDEGGER, 1984, p. 137). O impessoal, que é justamente o modo básico e mais comum do ser do Dasein no mundo, de acordo com Heidegger, não se refere a um vazio ou a exclusão de alguém. “Os outros que vêm ao encontro no mundo não respondem por algo acrescentado pelo pensamento a uma coisa já antes simplesmente dada” (HEIDEGGER, 1993, p. 169). Os outros, assim como cada um dos que são no modo humano, não significam todo o resto dos demais além de mim, “do qual o eu se isolaria” (HEIDEGGER, 1993, p. 169). São, sou, aqueles com os quais ninguém propriamente diferencia-se e se está, pois “O ser-em-si intramundano destes outros é co-presença” (HEIDEGGER, 1993, p. 170).

Na medida em que o homem não se pertence originalmente, mas à clareira onde pode encontrar-se a si mesmo, a ideia de uma interioridade entranhada “dentro” do indivíduo humano não procede, pois o homem é expulso do seu próprio “eu”. “O vir-a-si nunca é precisamente uma representação de um eu primeiro desprendido, mas antes tomado a responsabilidade da pertença à verdade do ser, salta para o aí” (HEIDEGGER, 1989, p. 320). Para Heidegger, desse modo, o indivíduo humano não é um “eu” e nem um “nós”, mas um ente chamado a ser Dasein.

O reencontro com o mundo expõe a tradição balizada pela metafísica ao seu descompasso com o tempo, com a história, encobrido por formas de conhecimento estanques e objetivadas, ou até mesmo balizadas por um sujeito pendente da originária relação com o ser, como se houvesse uma cisão entre o modo de ser humano e o mundo. A cisão entre corpo e tempo, dissociado do lugar da abertura, retirou o homem da sua morada, o mundo, reconfigurando uma natureza separada e unida pelo pensamento ou pelos modos de dizer o mundo, entregue por conceitos e ou definições subtraídos da sua historicidade. A unidade do todo humano, da sua totalidade existencial, dá-se no justo afastamento da compreensão que foi isolada metafisicamente e que explicitou um modo ensimesmado, concernente a uma racionalidade destituída do tempo e das nuances dos sentidos do mundo.

3. A interioridade desdobrada

Como já apontamos na apresentação do presente artigo, a ciência moderna encobriu os sentidos do mundo desconfiada do seu alcance, visto que os sentidos das relações cotidianas, abertas nessa rede de compartilhamentos e referências socialmente significantes, não seriam capazes de constituir um modelo para a recepção da verdade. As ontologias regionais, como a antropologia e a psicologia, acabaram obscurecendo a necessária compreensão dos sentidos abertos pelas relações estabelecidas na genuína compreensão de ser o indivíduo humano um modo de ser-no-mundo atravessado pelos outros e pelos demais entes, codificando comportamentos, estruturas e sistemas balizados por relações solipsistas dos indivíduos humanos e o mundo ou ainda respondentes por uma lógica de causa-efeito, desconsiderando as implicações originárias, fundamentais e intrincadas entre indivíduo e sociedade, ou indivíduo e mundo.

O homem pode ser explicitado como um animal que pensa, mas a sua condição ontológica fundamental é ser no modo de um Dasein no mundo e a sua emergência provém justamente da sua condição inabalável de estar aberto como um ser-no-mundo com outros e para as próprias possibilidades. Como refere Stein, com o Dasein, a questão do homem passa a ser estabelecida acima da problematização dos entes em geral. Ocorre que “o ser humano não é um ente entre os entes que simplesmente se dão aí (simplesmente são)” (STEIN, 2003, p.17). Isso indica que a ênfase na subjetividade, sobretudo a de tipo solipsista, fez com que tomássemos o interior “de modo a poder identificar, definir a localizar aquilo que obstrui a verdadeira expressão do sujeito ou os seus aspectos desadaptados” (FEIJOO, 2011, p. 14):

A partir do pressuposto da interioridade como espaço onde as fissuras psíquicas se dão, na maioria das vezes, pela influência maléfica do mundo, surge outra questão relativa ao modo de acesso a essa subjetividade, a fim de que ela possa, então, ser recomposta. O problema do acesso passa a ser resolvido por meio de teorias que partem dogmaticamente do suposto modo de funcionamento dessa interioridade e dos efeitos maléficos da exterioridade (FEIJOO, 2011, p.15).

Neste sentido, há que se presumir uma anterioridade de mundo na medida em que o indivíduo já se compreende a partir de relações dadas originariamente, seja pensada pelo viés de Heidegger (1993) ou da interdependência entre indivíduo e sociedade, pelo escopo da psicologia interacional de Mead (1972). Esta, especificamente, defende que a sociedade e o indivíduo constituem-se mutuamente e que isso já implica um reconhecimento do caráter social e de anterioridade dessa vida humana em relação ao indivíduo. Há um deslocamento da substancialidade do “eu” e a negação de sua dicotomização, religando o homem ao mundo/interação social. Desdobrado como self respondente ao conjunto de relações significantes e significativas, ou desdobrado na sua condição de ser o ser-aí (Dasein), os autores propõem uma tentativa de superar a tendência reificante do homem. Em outros termos, “o paradigma histórico do que ele (Heidegger) denomina como presença à vista” (FEIJOO, 2011, p.23), ou seja, interpretando, tomando o homem como um ente para ser descoberto, explicado fora do tempo e cindido do mundo. O mundo então tem de ser compreendido como a anterioridade do modo de ser do indivíduo humano e a sua interioridade desdobra-se na direção do outro.

Explicitado dessa forma, o modo de ser do homem/mulher, a sua condição, não mais responde, de imediato, pelo caráter cognitivo e representacional, muito menos por um indivíduo determinado e com predicados que imputem uma organicidade psíquica, garantindo uma forma a um “eu” entranhado dentro da carne humana. O que temos é um modo que se desdobra em direção ao mundo, ao outro, que emerge das relações sociais e suas implicações de sentido.

Para Mead (1973), um dos pré-requisitos da gênese do self é o desenvolvimento da capacidade do indivíduo humano de colocar-se a si mesmo como outro em um contexto sócio interacional, um movimento de si consigo mesmo, mas que se desdobra por meio de processos interativos e simbólicos. A consciência e a consciência de si mesmo, self, “são processos que podem ser diferenciados na experiência humana. Ou seja, a consciência e o self somente podem ser reconhecidos na ação e na interação no decorrer da vida” (CASAGRANDE, 2014, p. 58).

A consciência humana, no caso, não pode ser identificada como uma substância entranhada na mente dos indivíduos humanos, ou independente das relações intersubjetivas, mas se desdobrada como processo vital interativo, demandando a necessária relação humana com o contexto social. É somente no contexto social, interagindo e podendo compreender-se como outro para si mesmo que o indivíduo humano pode ter consciência. No caso de Mead, a consciência é uma conquista da contínua ampliação e potencialização do outro generalizado; em Heidegger, do poder demorar-se na abertura da própria condição existencial de ser-aí no mundo. Quanto mais se demora sobre a sua própria condição para o seu aí, mais o indivíduo pode ter consciência de si mesmo e dos outros e de tudo o que há. Neste sentido, para Mead,

O self possui um caráter distinto do organismo fisiológico propriamente dito. O self é algo que tem desenvolvimento; não está presente inicialmente, no nascimento, mas surge no processo da experiência e da atividade social, ou seja, se desenvolve no indivíduo como o resultado de suas relações com esse processo como um todo e com os outros indivíduos que se encontram no interior desse processo. (1992, p. 135)

Para que o indivíduo humano desenvolva uma consciência de si-mesmo, o seu self, ele precisa necessariamente colocar-se como um objeto para si. Neste aspecto, Mead aponta a existência de uma estrutura bipartida do self: o “eu” correspondente ao “I”, do “me/mim” correspondente ao “me”. “O “eu” é uma reação do organismo às atitudes dos outros; o “mim” consiste na série organizada de atitudes dos outros que cada um assume” (MEAD, 1992, p. 175). Para desenvolver a habilidade de modo a reconhecer a si mesmo, possuir uma imagem de si mesmo, o indivíduo precisa necessariamente agir e reagir em contextos sociais. “Não existiria um “eu”, no sentido em que usamos esse termo, se não houvesse um “mim”; não haveria um “mim” sem uma reação na forma do “eu”” (MEAD, 1992, p. 182).

O ser humano pode humanizar-se e individualizar-se na medida em que interage, em que vai se desdobrando mediante os processos de socialização, implicando-se. No processo de desenvolvimento dessas habilidades respondentes ao outro e de tomada de consciência de si mesmo (enquanto implicação social), percebemos que Mead atende à perspectiva da evolução humana, reconhecendo, em algumas atividades - como o brincar e o jogar - campos imprescindíveis para o pleno reconhecimento do outro generalizado e das experiências significativas que pautam as referências próprias do contexto social e humano. Nessa perspectiva, a criança é entendida como criadora e renovadora de significados e essa formação de significados resulta de um processo social - interativo e cooperativo - sendo que, para tal, a organização dos espaços e situações de aprendizagem é chave. Sob essa ótica, é central a participação criativa da criança. Esta necessita de condições que “privilegiem a criação de significados através da interação, da mediação pedagógica e das experiências significativas” (CASAGRANDE, 2014, p.88). O desenvolvimento propriamente dito dá-se em três estágios. O primeiro é o brincar (play), em que a capacidade para assumir papeis é bastante limitada. O segundo estágio é o do jogar (game) e, neste, a criança já consegue assumir papeis simultaneamente com múltiplos outros. Todavia, é no terceiro estágio, o da adoção de papéis com o outro generalizado, que o self encontra o seu mais pleno desenvolvimento. Se o brincar e o jogar constituem estágios iniciais do desenvolvimento, no terceiro estágio, os indivíduos podem generalizar as atitudes variadas dos outros e conseguem tanto ver a si próprios quanto regular as suas ações a partir de uma perspectiva mais ampla, não mais específica a cada situação.

Embora Heidegger não possa ser incluído na perspectiva evolucionista e muito menos possuir uma teoria do desenvolvimento humano, como encontrada em Mead, a sua analítica existencial em muito pode ser aproximada da psicologia interacionista. Essa aproximação talvez se dê menos pelo próprio escopo da obra Ser e Tempo (1993) e mais pelas aproximações realizadas pela psicologia de cunho fenomenológico-existencial. E isso se deve ao fato de que, pelos desdobramentos da analítica existencial, encontram-se indicações que permitem aproximar a ontologia fundamental heideggeriana de pressupostos psicológicos de cunho existencial. Esses são mais bem explicitados de dentro desse campo conceitual, pois, com exceção dos Seminários de Zollikon (2001a), em que Heidegger transita na interlocução entre saúde (psicologia, medicina) e filosofia, a sua analítica (nosso campo de análise) tem como tarefa responder pelo sentido do ser, âmbito no qual o modo de ser humano tem implicação originária e fundamental.

A tarefa da ontologia fundamental tal como proposta por Heidegger consiste em buscar o sentido do ser, partindo do ser-aí como o lugar no qual acontece historicamente tal sentido. Esse lugar baseia-se, por sua vez, no aí, no mundo e na inseparabilidade homem-mundo; portanto, não possui nenhuma determinação que se associe essencialmente a ele, justamente porque a sua única determinação consiste no caráter do poder-ser, sempre atravessado pelo horizonte histórico em que se encontra (FEIJOO, 2011, p. 34).

Decorre, por conta dessa condição, que o existente humano não possui determinações essenciais e nem propriedades que possam ser generalizáveis, cabendo à psicologia de cunho existencial indicar o caráter residual do mundo (histórico) na condição do desdobramento psíquico humano. “Passamos a falar do ser-aí, ser que, sendo, coloca necessariamente em jogo o seu ser” (FEIJOO, 2011, p. 36).

É por ser por meio dos seus modos possíveis que o existente humano precisa da sustentação de um mundo sedimentado a fim de poder receber dele as orientações para a realização do seu poder ser. A cotidianidade mediana é o campo mesmo das orientações e referências humanas fundamentais para o desdobramento do seu modo de existir. É na direção do mundo, ek-sistindo, para fora, que o Dasein perfaz a sua condição, insistindo para além de uma interioridade encapsulada.

Destituído de uma interioridade entranhada, o existente humano lança-se em direção ao mundo, de onde se compreende a si mesmo e os demais entes existentes. Alargado em direção aos seus futuros desdobramentos teóricos (não discutidos no presente), Heidegger desloca a historicidade do seu enraizamento absoluto no existente humano e realoca no aí, no campo do próprio acontecimento, condição que também abre implicações importantes para a psicologia, tendo em vista que passa a acompanhar os transtornos psicológicos não mais como sequelas de uma interioridade, mas interpretados à luz da atmosfera de uma época FEIJOO, 2011, p. 44). A questão de fundo é como pensar uma psicologia que não opere com uma noção de um modo de ser (humano) que se relaciona com o exterior a partir da descrição do modo de funcionamento das estruturas da interioridade, ao modo de uma máquina orgânica. Feijoo parte da evidência fundamental, presente na fenomenologia heideggeriana, de que “[...] problemas psíquicos não são problemas da interioridade, nem do orgânico, nem da semântica interna, enfim não são problemas do eu, mas, ao contrário, são problemas do projeto existencial, da relação ser-aí-mundo” (2001a, p. 60). A psicologia de viés fenomenológico-existencial não se estabelece a partir das pressuposições de uma subjetividade determinada, da mesma forma que busca escapar da pressuposição de um psiquismo dicotomizado em interioridade e exterioridade, ou mesmo em normalidade e anormalidade (FEIJOO; MATTAR, 2016, p. 270).

O existente humano não pode ser compreendido, de acordo com Heidegger, como o resultado de determinações somáticas ou psíquicas, ou mesmo que certo comportamento pode determinar, de forma absoluta, o modo do indivíduo humano ser/estar no mundo. Há uma negatividade originária no encalço do modo de ser que é próprio do homem/mulher, condição que impede de compreender-se o indivíduo humano pelo viés substancialista e próprio da antropologia metafísica. E é o mundo que irá fornecer os sentidos e significados que são articulados nos modos de ser de cada existente que é Dasein. Mundo pode ser compreendido como uma rede de significados e sentidos compartilhados pelos que são homens e, por conta disso, por corresponder ao horizonte de sentidos, que os indivíduos estabelecem relações e têm compreensões que são familiares. “O Dasein recorre às referências fornecidas pelo mundo para poder agir, sem que a estranheza torne-se tão presente, essas mesmas referências fazem com que ele se acostume a responder sempre do mesmo modo às solicitações do mundo [...]” (SILVA; FEIJOO; PROTÁSIO, 2015 p.283).

Assim como a estreita e inseparável relação com o mundo, também a consciência, para Heidegger, é um demorar-se no aberto. Para ele, a consciência, do ponto de vista linguístico, fala de um saber, de um conhecer, de ter visto um algo e isso ser evidente como algo (HEIDEGGER, 2001a, p.265). Contudo, a ‘consciência’ [Bewissen] significa que alguém é consciente (bewisst), ou seja, orienta-se (HEIDEGGER, 2001a, p. 265) e é justamente por poder demorar-se no aberto do ser-aí que alguém pode orientar-se. Inversamente, é o poder de demorar-se no aberto que possibilita que alguém tenha consciência. O Dasein dá-se na relação com outros que são Dasein, ser-aí, bem como demais entes intramundanos e simplesmente dados, ou seja, é ser-com: está aberto, dá-se em contexto relacional. Expresso de uma forma mais explícita, o Dasein somente poderia pensar em isolar-se tendo em vista ser em um modo relacional, já ser com outros, aberto em um horizonte de sentidos, o mundo.

A interioridade desdobrada, apresentada como o ponto de convergência entre o interacionismo simbólico de Mead e a analítica existencial de Heidegger, reverbera aspectos fundamentais para o campo educacional, tendo em vista deslocar a interioridade de uma espécie de organicidade mental, presa ao corpo dos indivíduos humanos, para o campo das relações sociais, para o mundo. Decorre que pensar um processo de formação com bases na dinamicidade do acontecer humano descentrado de si repercute na compreensão de formação como um contínuo exercício de si, ou seja, a formação não como apropriação de informações/conhecimentos e etapas estanques de um “eu” em evolução, mas uma reiterada busca de si, nunca garantida, mas sempre possível.

A formação humana de base relacional e interacionista parte da compreensão de que não há uma natureza humana determinada de antemão e deslocada da historicidade do acontecer humano no mundo com outros. Que respondemos por um modo de ser vazado de outros e de mundo, indicando que compomos uma corporeidade porosa, fluida, sentida das relações e sentidos compartilhados de tal maneira que, distanciada da ideia de uma subjetividade ensimesmada, a formação humana implicará o reconhecimento de que os indivíduos são modos respondentes à sua condição existencial. Por conta disso, precisa estar comprometida com experiências capazes de sustentar os indivíduos no aberto do seu próprio acontecer no mundo.

Apontamentos “finais”: interioridade desdobrada e formação humana

A psicologia interacionista de Mead (1972) e a analítica existencial de Heidegger (1993) não pertencem ao mesmo contexto teórico. Pode-se dizer, quem sabe, que tampouco se aproximam no percurso intelectual pretendido por ambos, vinculados aos seus campos de estudo e horizontes intelectuais dos seus espaço/tempo. Mead reverbera a sua compreensão da “natureza” social do indivíduo no pragmatismo e no evolucionismo, interpondo uma nova compreensão da condição humana alicerçada no caráter social intrínseco da vida. A tentativa de Mead é situar a vida humana, bem como a sua evolução, em bases naturais, ressaltando-se que a condição da existência humana irá consistir em experiências de interação, comunicação e cooperação (CASAGRANDE, 2014).

Heidegger tem a sua concepção teórica ancorada na fenomenologia husserliana, além das influências da hermenêutica (Dilthey) e do historicismo e os limites vividos pelo período marcado pela ascensão da ciência, cuja racionalidade de base culmina na técnica moderna. À altura de Ser e Tempo, Heidegger busca retomar a questão do ser e o seu sentido, direcionamento que o coloca no encalço de um modo de ser que o conduz originariamente à resposta ao questionamento acerca do existente humano. O fato é que o existente humano não é compreendido por meio da sua racionalidade e dos predicados trazidos pela tradição, mas por seu desdobramento ontológico, antevisto pelas estruturas existenciais que o conformam ao mundo. É por isso que temos uma analítica (analysis) pensada pelo recorte grego de resolução e dissolução, pois a ideia é libertar, soltar o Dasein da sua trama. Trata-se, para Heidegger, de explicitar o modo de manuseio (estruturas existenciais) em que o existente humano tece e destece a sua existência, implicado por sua originária relação com os outros e demais entes no mundo.

A perspectiva da psicologia interacionista de Mead e a analítica existencial de Heidegger apresentam uma nova e radical compreensão da condição humana, ambas ancoradas na implicação social/relacional em que se desdobra a existência do indivíduo humano. Se, por um lado, Mead explicita a inegável e fundamental função da comunicação e da linguagem no processo de individualização e socialização humanas, alojadas na sua interdependência intrínseca, condição que possibilita o desenvolvimento de um modo de existência e de sociedade próprios aos homens/mulheres, Heidegger desdobra o modo de ser próprio do existente humano pela sua originária e ontológica relação com o ser. Dessa relação primaz com o ser é que o existente humano perfaz o seu modo e abre-se ligado ao mundo umbilicalmente. Para Heidegger, os modos de existir serão elucidados justamente pela maior ou menor relação intrínseca/ontológica com o mundo, por isso, o Dasein tem mundo, os animais são pobres de mundo e os demais entes não têm mundo22.

Para Mead, o indivíduo humano está inscrito em uma espécie de matriz intersubjetiva, rede de relações e interações, lugar de onde emergem a sua identidade, a sua consciência e o seu self. Embora Heidegger não tenha como mote teórico, em Ser e Tempo, apresentar uma nova antropologia nem formular bases renovadas para a psicologia, mas muito antes lhe interessa destruir ou desconstruir os desdobramentos da tradição, a radicalidade da sua analítica impôs novas formas de compreender o existente humano e, por conseguinte, aproximou-o de promissoras tentativas no campo das ontologias regionais. Na base da analítica existencial heideggeriana está a compreensão de que o existente humano já se lança no mundo compreendendo ser, tendo em vista a sua relação ontológica com tudo o que há, existe, dele retirando as indicações para o seu modo de ser. É no mundo que se encontram as indicações para a compreensão de ser, lançado na impessoalidade cotidiana de onde emerge a copertinência social e relacional dos que são no modo do Dasein. O encontro com os outros não se dá por meio de uma apreensão prévia em que um sujeito, já dado desde o início, distingue-se dos outros, “nem numa visão primeira de si onde então se estabelece o referencial da diferença” (HEIDEGGER, 1993, p. 170), mas já sempre em um contexto dentro do qual emerge a sua relação originária no mundo. O indivíduo humano encontra-se a si mesmo no seu empenho de mundo, seja realizando, desviando, esperando ou afetando-se no e pelo mundo.

No caso de Mead, é a linguagem que estabelece as condições para a internalização de gestos e conversação simbólica, oportunizando aos indivíduos sua socialização e individualização e produzindo uma forma de existência peculiar ao existente humano. No caso de Heidegger, é a compreensão aberta originariamente na relação com o ser que torna o mundo o lugar mesmo da existência, pertinência e convivência humana. O existente humano estabelece relações balizadas pelos sentidos abertos no e pelo mundo, compartilhando referências, significados originariamente compreendidos pelos que são no mesmo modo.

Influenciado pela teoria evolucionista, Mead propõe uma teoria do desenvolvimento humano, elucidando a cada vez a maior complexificação das experiências com vistas ao reconhecimento do outro generalizado. Heidegger não apresenta uma teoria do desenvolvimento humano, pois a natureza de sua teoria é de outra ordem, a saber, uma ontologia fundamental desejosa de reconstituir um novo fundamento para a elucidação do sentido do ser. Mesmo que Heidegger apresente as bases ontológicas do nascimento e as repercuta no parágrafo 72 de Ser e Tempo, estabelecendo um lastro “entre” o nascimento e a morte, o que temos é uma analítica afeita ao modo de ser-no-mundo para o fim (finitude). De qualquer forma, é por poder antecipar-se em direção ao seu fim que o existente humano pode apreender a sua própria condição existencial, ou seja, a sua singularidade.

A primazia do social e do mundo converge para uma aproximação entre a psicologia interacionista de Mead e a ontologia fundamental de Heidegger. A condição humana, em ambos, já não pode mais ser desdobrada pelos tradicionais modos de dizê-la, pois, distante da hermenêutica da sua abertura no mundo, ou da sua relacional interdependência, não se pode explicitar o modo de existir do indivíduo humano, já que ambos, seja a relação umbilical com os outros quanto à forma de “eu”, somente podem ser pensadas como desdobramentos em direção a. Portanto, se há uma interioridade, algo que possa “mostrar” uma imagem de um self próprio, somente é possível se for explicitada a cada de um nós. Um nós que se insinua sem impedir que cada um possa minimamente apresentar-se a si, seja enquanto self, seja enquanto Dasein. É por essa razão que, como salientam Feijoo e Mattar, “as representações encapsuladas objetivantes de uma psique, um sujeito, uma pessoa, um eu, uma consciência (...) devem, ao ver de Heidegger, desaparecer na visão Daseinsanalítica, dando lugar a uma compreensão diferente” (2016, p.267).

Alargada na direção da formação humana, pressuposta por bases relacionais e interacionistas, podemos apresentar pelo menos algumas consequências fundamentais do que foi exposto até aqui. Primeiro, que não há uma natureza humana determinada antecipadamente e/ou desvinculada da condição histórica dos indivíduos, podendo-se pensar formas de potencializarem-se as mediações (espaços e experiências) entre os indivíduos com vistas ao cuidado implicado de si e de outros. Fundamentalmente, isso significa que não há separação entre corpo e mente ou dentro e fora, que respondemos por um modo de ser atravessado pelo outro e pelo mundo, ou seja, corpos fluidos que quanto mais são possibilitados autenticamente, mais são afetados e respondentes às relações humanas, sociais. Deslocada, portanto, da ideia de uma subjetividade às voltas consigo mesma, a formação humana implicará o reconhecimento de que os indivíduos são modos respondentes à sua condição existencial, às relações compartilhadas de mundo, colocando em xeque padrões e modelos que poderiam sustentar uma concepção de natureza humana determinada e encapsulada. No encalço dessas considerações, podemos compreender que a condição humana é um colocar-se a caminho, portanto, não sendo acabada, e que, por essa razão, pode ser compreendida como um contínuo e dinâmico exercício de si.

A formação humana articulada a partir da interioridade desdobrada, implicada pela aproximação entre o interacionismo de Mead e a ontologia fundamental de Heidegger, aqui abordada pelo escopo da sua analítica existencial, assegura-se por novas bases epistemológicas em que o “dentro” passa a corresponder aos sentidos do mundo, das relações humanas nas quais o indivíduo lança-se enquanto projeto existencial inacabado. Se, em Heidegger, a existência só se torna possível na abertura de sentido articulada ao horizonte no qual está mergulhado, e o homem e o mundo formam uma totalidade, só é possível pensar em formação humana a partir de um horizonte prévio de sentido; em Mead, ela se torna possível na medida em que o sujeito adota as atitudes dos outros indivíduos em um meio social ou contexto de experiência em que está envolvido com os outros sujeitos. A escola, sob esse prisma, possui um papel fundamental na formação do self e do humano enquanto lançado em um mundo de possibilidades em sua condição de abertura à compreensão de seu ser e do mundo. Em última instância, compartilha a função de, mediante os processos de socialização, garantir a integração social e de individualização que acontecem no seu interior, assim como a de “formação para a cidadania e para a participação democrática (...)” (CASAGRANDE, 2014, p.91).

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STEIN, Ernildo. Nas proximidades da antropologia: ensaios e conferências filosóficas. Ijuí: Editora Unijuí, 2003. [ Links ]

1No original: “The self, as that which can be an object to itself, is essentially a social structure, and it arises in social experience. After a self has arisen, it in a certain sense provides for itself its social experiences, and so we can conceive of an absolutely solitary self. But it is impossible to conceive of a self-arising outside of social experience”. Fornecer título. Cidade: ano, página.. Sem parântesis.

2Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo é psicóloga e professora no Programa de Pós-graduação da UERJ. Coordena o Laboratório de Fenomenologia e Estudos em Psicologia Existencial (LAFEPE/UERJ). É Vice-diretora do Instituto de Psicologia. Bolsista produtividade - PQ2 - CNPQ e Procientista da UERJ. Participa do GT Psicologia & Fenomenologia da ANPEPP (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia). Sócia fundadora do Instituto de Psicologia Fenomenológico-Existencial do Rio de Janeiro (IFEN), vice presidente da Asociacón Latino-americana de Psicoterapia Existencial (ALPE), no Brasil. Membro Honorário da Sociedad Peruana de Psicologia Fenomenológico Existencial (SPPFE) e Membro of the Honorary Scientific Committee the International Journal of Psychoterapy.

3No original: “The unity and structure of the complete self reflects the unity and structure of the social process as a whole”.. Fornecer título. Cidade: ano, página. Sem parêntesis.

4Ambos os conceitos são, para Heidegger, fenômenos constituintes dos seres humanos: a temporalidade é o reconhecimento tanto do vínculo entre passado e futuro, quanto das implicações desse vínculo no momento presente. Já a historicidade, sendo modo de ser do Dasein, é o que possibilita o acontecimento histórico.

5Como o objetivo do presente artigo é aproximar a psicologia interacional de Mead da analítica existencial de Martin Heidegger pelo viés da psicologia fenomenológica-existencial, não vamos tematizar outros aspectos que seriam pertinentes à envergadura da obra e atuação de G.H. Mead, inclusive da ainda pouco expressiva entrada no cenário intelectual e acadêmico brasileiro. Destacamos, para melhor compreensão do que será tematizado, que, na base da psicologia social de Mead, persiste a “formalização de uma hipótese naturalista do desenvolvimento da personalidade humana sob o prisma da teoria da evolução e da psicologia comportamentalista” Fornecer título. Cidade: ano, página. Sem parêntesis, reconhecendo-se um duplo processo de desenvolvimento - biológico e social - implicados ao mesmo tempo. Revisar a nota depois disso.

6No original: “no individuation is possible without socialization, and no socialization is possible without individualization”. Fornecer título. Cidade: ano, página. Sem parêntesis.

7No original: “There is no living organism of any kind whose nature or constitution is such that it could exist or maintain itself in complete isolation from all other living organisms. Fornecer título. Cidade: ano, página. Sem parêntesis.

8No original: All living organisms are bound up in a general social environment or situation, in a complex of social interrelations and interactions upon which their continued existence depends. Fornecer título. Cidade: ano, página. Sem parêntesis.

9Vertemos “human nature” por natureza humana por considerarmos o mais aproximado do sentido textual, contudo, não sustentamos que Mead avalize, com esse conceito, a ideia da existência de uma natureza humana determinada, fechada, como uma essência humana. Entendemos que o autor a concebe em um sentido pós-metafísico e, por esse viés, aproxima-se muito do “modo acontecimental”, de Heidegger, ou da noção de “condição humana”, de Hannah Arendt - mesmo sendo esses autores distintos da vertente pragmatista.

10“Indeed, any psychological or philosophical treatment of human nature involves the assumption that the human individual belongs to an organized social community, and derives his human nature from his social interactions and relations with that community as a whole and with the other individual members of it”.Referência. Fornecer título. Cidade: ano, página.

11Consideramos que a linguagem em Mead não se resume ao significante e ao significado, mas como meio (Medium) no e a partir do qual o indivíduo humano se movimenta compreensivamente na sua relação com o mundo e com os outros. Isso se deve ao fato de que, para o autor, a base da formação da linguagem - assim como também da mente e do Self - é a ação social.

12No original: The human individual who possesses a self is always a member of a larger social community, a more extensive social group, than that in which he immediately and directly finds himself, or to which he immediately and directly belongs. Fornecer título. Cidade: ano, página.

13No original: The importance of what we term “communication” lies in the fact that it provides a form of behavior in which the organism or the individual may become an object to himself Fornecer título. Cidade: ano, página.

14No original: “The conversation of gestures is the beginning of communication”. Fornecer título. Cidade: ano, página. Sem parêntesis.

15“First of all there is the conversation of gestures between animals involving some sort of co-operative activity. There the beginning of the act of one is a stimulus to the other to respond in certain way, while the beginning of this response becomes again a stimulus to the first to adjust his action to the oncoming response. Fornecer título. Cidade: ano, página. Sem parêntesis.

16No original: “The organized community or social group which gives to the individual his unity of self may be called “the generalized’ other.” The attitude of the generalized other is the attitude of the whole community”. Fornecer título. Cidade: ano, página. Sem parêntesis.

17No original: “It is in the form of the generalized other that the social process influences the behavior of the individuals involved in it and carrying it on, i.e., that the community exercises control over the conduct of its individual members; for it is in this form that the social process or community enters as a determining factor into the individual’s thinking”. Fornecer título. Cidade: ano, página. Sem parêntesis.

18Heidegger fundamentou o que ele mesmo denomina de ontologia fundamental, em oposição à ontologia tradicional que, desde os gregos, de modo especial Platão, constituiu-se enquanto o modo de pensar o ser ancorado sobre a dissonância essência-existência. Influenciado pelo seu mestre Edmund Husserl, desdobra a sua analítica do homem com bases fenomenológico-existenciais.

19De acordo com Dastur e Cabestan, , a palavra Dasein surgiu na língua alemã no século XVIII, no momento em que buscou uma tradução para a palavra de origem latina existentia e conserva o sentido de o “ser aí” ou “estar aí” de algo, enquanto presença efetiva da sua factualidade, opondo-se à “quididade” ou essência. Heidegger designará com o termo Dasein apenas o existente humano e com um novo sentido “em que o acento não se põe mais no simples fato de ser aí, mas na relação intrínseca do homem com o ser, de modo que o homem pode ser compreendido como o “aí” ou “sítio” da compreensão de ser.

20A esse respeito, vide a crítica de Norbert Elias à concepção de homo clausus presente na filosofia ocidental desde Platão e que teve forte influência em filósofos como Descartes. A noção de homo clausus, que tanto incomodava Elias, pode ser entendida como a dualidade entre sujeito e objeto, entre indivíduo e sociedade e significa o entendimento do indivíduo como um ser atomizado e completamente livre e autônomo em relação ao social.. Fornecer título. Cidade: ano, página. Sem parêntesis.

21A distinção entre ser e ente é, para Heidegger, uma distinção ontológica, os entes possuem formas de ser, mas essas formas não se reduzem a uma substância, ideia ou conceito, especialmente quando se fala do ser do ser humano.

22Heidegger tematiza a pobreza de mundo e as implicações da “vida”, de modo privilegiado, em HEIDEGGER, Martin. The Fundamental Concepts of Metaphysics: world, finitude, solitude. Bloomington and Indianapolis. Indiana University Press, 1995. (Versão utilizada no presente artigo).

Recebido: 27 de Março de 2020; Aceito: 08 de Dezembro de 2020

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