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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.34 no.72 Uberlândia set./dez 2020  Epub 03-Fev-2022

https://doi.org/10.14393/revedfil.v34n72a2020-59824 

Editorial

O fim dos periódicos pode ser dito de muitas maneiras

*Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor Associado do Instituto de Filosofia (FIILO) da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). E-mail: mseneda@ufu.br


Muito se tem falado acerca de avaliação unitária do que é publicado, mas pouco se tem discutido acerca dos veículos que asseguram todo o processo de avaliação. Trata-se de um interesse ingente da época - e interesse parece uma roupa bem mais leve para encobrir a palavra moda - que recai sobre a cientometria, que é o Cíclope que domina e percorre o grande domínio da produção científica atual. Sua ingente tarefa é metrificar essa produção científica pelo número de citações.

Mas esse Cíclope não poderia estar a fazer seus trabalhos de modo tão incansável nas oficinas do norte do globo terrestre, forjando incansavelmente números sobre números, coletando citações de citações, erigindo estatísticas e mais estatísticas, sem que os resultados de seus esforços não desabassem pesadamente sobre a pós-graduação brasileira. Não se precisa ir longe para entender fenomenologicamente esse processo, nem se precisa vasculhar a bibliografia especializada em busca de alguma explicação complicada e abstrata. Basta olharmos as lives recentes do período da pandemia, de 2020, e se perguntar por que brotaram em tão grande número, e por que tantas pessoas com perfil especializado acorreram às suas discussões. No final das contas, em um processo de avaliação sem coparticipação, elas foram o único modo de expressão e organização espontânea de grupos de pesquisa muito bem enraizados e que têm levado à frente a produção científica do país há décadas. Foram esses grupos que se organizaram, espontaneamente, para dar vazão à própria voz, e para dizer que passarão a ser avaliados por critérios que nunca nortearam a própria produção. É claro que se pode argumentar que os critérios de avaliação da produção científica sempre podem e devem ser alterados, e que sempre o foram historicamente. De qualquer modo, haveria de se discutir seriamente se o critério aplicável a um quadriênio poderia ser definido no final desse quadriênio, quando todas as opções editoriais, por parte dos periódicos, e de escolha de veiculação, por parte dos pesquisadores, já foram feitas, e se encontram cimentadas e encerradas. Também seria importante discutir se deve haver um mínimo de continuidade na passagem de um sistema de avaliação a outro, e qual seria o tempo adequado de adaptação aos futuros novos critérios que viessem a ser adotados.

Fatores simples e imediatos da produção científica, bem assentados há tempos, parecem escapar à CAPES: que o impacto de trabalhos na área básica das ciências é bem diferente do impacto de artigos nas áreas que delas se ramificam; que algumas pesquisas tem interesse específico ou fortemente regional, justamente porque resolvem problemas acentuadamente aderidos a um contexto; que a língua em que se publicam trabalhos deve atender à integração e à formação de uma grande comunidade de pesquisadores; que a forte presença de artigos internacionais em um periódico pode expressar a força desse veículo, mas também pode indicar que ele atende principalmente interesses de pesquisa alheios à comunidade nacional, deixando de parte a missão de fortalecer o seu núcleo de pesquisadores, etc. E isso é apenas uma parte da história. Ainda caberia perguntar, no tocante à avidez de cientometria, qual o conúbio de interesses que ela atende: quem recolhe esses dados; com que interesses o faz; como seleciona e padroniza os dados que divulga; como os disponibiliza; como vende o seu acesso; como determina políticas de produção do conhecimento científico ao assim proceder, etc.

Uma coisa é certa, todo esse conjunto de questões passa ao largo de nossos gestores, preocupados em avaliar os PPG’s a partir da produção atomizada de seus pesquisadores. Os periódicos, que são o veículo da produção, nunca entraram em questão. Altamente penalizados com todas as políticas que visam avaliá-los, nunca foram convidados a participar desse debate. Na visão de cima para baixo, são o polo passivo, lábil, sempre pronto a se adequar aos supostos objetivos maiores que os ultrapassam. É notável como os periódicos, que sobrevivem em sua maior parte por si próprios, são tratados como algo de pouca monta, como se fosse indiferente a sua contribuição na divulgação do conhecimento científico. Eles são vistos como um produto da evolução em sua concepção mais crua: estabeleçamos os critérios e que sobrevivam os melhores.

Muito deveria e deve ser falado sobre uma política para os periódicos, mas, para não ficarmos em lamentações nesse fechamento de quadriênio, vamos entrar no terreno dos avaliadores, para averiguar a consistência da proposta de quem nos avalia. Sob muitos ângulos que se analise, sempre será direto argumentar que o fator de impacto - principal critério erigido para o encerrado quadriênio - é uma métrica importante para a avaliação. Concedamos superficialmente que isso é pertinente para avaliar a produção unitária de cada pesquisador. Muita gente imposta a voz para nos advertir sobre o quão responsável é proceder de tal modo. Ainda assim caberia a pertinente pergunta: Em que o fator de impacto seria útil não para se avaliar a importância de um periódico, mas para uma agência estimular e aprimorar a veiculação da produção do conhecimento científico? Pode um periódico que não veicula a produção em área básica ser avaliado em nível de igualdade com outro que tem esse perfil? Se um periódico centra seus esforços em uma subárea restrita de conhecimento, pode ele ser subavaliado por ter esse recorte editorial? Para entramos no terreno prescritivo, sempre perigoso para a vida da ciência, também podemos indagar: “Deve” um periódico publicar maiormente (nota bene, essa é uma questão para o avaliador, e só ele, responder) os assuntos que reconhecidamente têm tendência a ter um maior fator de impacto? “Deve” um periódico ter como sua missão editorial prioritária publicar artigos com alto fator de impacto, e se organizar para tanto, uma vez que isso passa a medir sua excelência? E indo mais além, e penetrando no fulcro do processo de avaliação, também é pertinente perguntar: Se o fator de impacto é o do artigo citado, pode um pesquisador, que tenha publicado em um periódico de alto fator de impacto, ser bem avaliado justamente pelos outros artigos que ali se encontram e que erigiram aquele fator de impacto? Um artigo de pequeno fator de impacto, publicado junto com outro de elevado fator de impacto, pode receber a métrica que seria atribuída ao periódico? Pode, por fim, o periódico ser responsabilizado por uma métrica geral que será atribuída a cada pesquisador? Fundamentalmente é preciso se perguntar: Em que essa medida aprimora e melhora o processo de avaliação? De que modo ela ajusta os critérios de justiça, para ter um processo mais equitativo para todos os envolvidos? Em que parte das decisões tomadas para o encerrado quadriênio alguém deixou um mínimo expediente concreto voltado para valorizar e aprimorar a contribuição dos veículos que asseguram a mediação de todo o processo, a saber, os periódicos?

Para evitar fazer um Qualis dos Artigos, decidiu-se fazer um Qualis dos Periódicos, e agora nos encontramos em um momento em que essa proposta exibe toda a sua inconsistência para os mediadores, porque ela descentra o editor com questões alheias à veiculação do conhecimento científico. E de maneira irracional, sem direito à instância de apelação, sem um necessário norte estabelecido antes dos crivos orientadores do processo, nos entregaremos agora a um processo de avaliação decidido ao final do decurso do quadriênio, e que, para salvar mais um herói internacional, a ciclópica cientometria, desconsidera todo o esforço histórico dos periódicos para veicular e publicizar a produção científica no país.

Isso posto, passemos então à apresentação do septuagésimo segundo número, que sobreviveu a esse quadriênio, e viçou em terreno impróprio, contra todas as regras, antieuclidianamente.

Abre esse número o dossiê A ideia de homem em Descartes. O tema das reflexões aí apresentadas foi retirado das conferências proferidas durante a I Bienal Internacional de Filosofia de Uberlândia, associada à XX Semana de Filosofia da UFU, centradas no tema A propósito da humanidade. Coordena e apresenta o dossiê Alexandre Guimarães Tadeu de Soares, que conta com seis artigos, todos percorridos pela discussão do mesmo tema, que retira suas implicações da filosofia de Descartes. Compõe esse dossiê os seguintes artigos, escritos por leitores e estudiosos do autor: Descartes e a ideia de homem. Imperfeição e perfeição do homem, da lavra de Pierre Guenancia; Claude Clerselier, leitor de Descartes, elaborado por Siegrid Agostini; Friedrich Nietzsche e a crítica da subjetividade cartesiana, proposto por Alfredo Gatto; A admiração como princípio fenomenológico da subjetividade, composto por Wojciech Starzynski; A questão sobre o homem e a Segunda Meditação, escrito por Igor Agostini; e, por fim, Considerações sobre a impossibilidade de definir o homem a partir de Descartes, preparado por Alexandre Guimarães Tadeu de Soares. Todos os professores colaboradores são especialistas em Descartes, e oferecem aos leitores diversas facetas de um mesmo tema, mediante as quais vão retratando de modo fecundo as contribuições atuais desse grande autor. Uma descrição mais detalhada de cada artigo pode ser encontrada na própria Apresentação do dossiê, para a qual direcionamos o leitor.

Na sequência vem os artigos que compõe esse número, com diversos temas nas áreas de Educação e Filosofia. No artigo Alumnos con discapacidad: modelo de inclusión de la Universidad Federal de San Carlos, Miriam Viridiana Verástegui Juárez e Cristina Broglia Feitosa de Lacerda analisam o problema da inclusão dos alunos com deficiência no ensino superior, que está diretamente relacionado à questão do acesso desses alunos à universidade. Trata-se de pesquisa qualitativa, que visa salientar as dificuldades concretas enfrentadas por esses alunos em meio à comunidade e à administração universitárias. Em Às voltas com a questão do sujeito: da transparência à encarnação, Renato Santos tece uma reflexão que urde a modernidade com a reflexão contemporânea, traçando um itinerário entre Descartes e Merleau-Ponty. Desinstalando o sujeito de sua identidade, o autor procura situá-lo no mundo da vida, com toda a alteridade que o corpo encarnado lhe confere. A partir da noção de corpo próprio, central na fenomenologia francesa, o autor mostra como a corporeidade é uma categoria importante para entrelaçar fortemente o homem e a natureza. Apresentando reflexões feitas a partir do Projeto de Extensão “Educação, Cinema, Outros Territórios”, realizado em um Lar de Idosos, o artigo Cinema no abrigo: encontros, gestos e acontecimento, escrito por Fernanda Omelczuk Walter e Giovana Scareli, procura, por meio da filmografia, capturar elementos como tempo, vivência familiar, envelhecimento, memória, tentando articular sua significação em torno do processo de produção de subjetividades. Em A comunidade dos amantes: anacronismo e aforismo em questão em Blanchot e Derrida, Mayara Joice Dionizio e Gabriel Bonesi Ferreira articulam a reflexão de vários pensadores para visitar as questões propostas por Blanchot e Derrida, e para entrecruzar conceitos como alteridade, distância, comunhão, procurando recuperar o conceito de comunidade enquanto acontecimento. Hegel ocupa destaque central no texto Educação e experiência, de Rainri Back dos Santos. Arrimando-se nas interpretações de Jean Hypollite e de Heidegger, o autor procura recuperar a experiência mediante uma concepção filosófica de educação. Valendo-se da obra Fenomenologia do Espírito, a autor analisa os sentidos da consciência para tentar entender o significado de experimentar. Ao final dessa reflexão, o autor defende a força formadora da educação, que é exercida pela educação como uma forma de experiência. Conduzindo o pensamento de Wittgenstein até às origens da filosofia antiga, Eder Marques Loiola recupera o sentido do termo imagem para a filosofia analítica do autor em Filosofia, linguagem e formação: algumas observações de inspiração wittgensteiniana. Para tanto, começa com os problemas para se dizer o ser na filosofia antiga, mostrando o debate entre Platão, Parmênides, e os sofistas. Depois adentra na discussão da forma para Platão, e retoma esse problema no interior da obra de Wittgenstein. Em A metafísica de Os Princípios da Matemática de Russell e a controvérsia à respeito da suposta semelhança entre essa metafísica e a ontologia meinongiana, Eduardo Antônio Pitt põe em foco uma obra importante de Russell, Os princípios da matemática, com vistas a examinar os fundamentos de uma metafísica atemporal do ser. Analisando no decorrer do artigo teses do realismo lógico e de Moore, o autor procura explicitar os problemas lógicos acerca do uso dos nomes próprios vazios. Em Para o “descanço dos Mestres, e utilidade dos Discipulos”: direções para a educação dos infantis no manual pedagógico Nova Escola de Meninos (Portugal, século XVIII), Fernando Cezar Ripe da Cruz e Giana Lange do Amaral apresentam uma reflexão historiográfica e filosófica acerca do texto Nova escola de meninos [...], do presbítero português Manoel Dias de Sousa (1753-1823). São examinadas então as concepções da infância e o modo como elas enquadram os corpos infantis, visando discipliná-los e prepará-los para o ingresso na sociedade civil moderna. O impacto da pobreza na formação do educando é o tema de André Márcio Picanço Favacho e Geovana Mendonça Lunardi Mendes em Pobreza e educação: diálogos entre o passado e o presente, entre conformações e resistências docentes. Tomando por base uma experiência histórica do Estado brasileiro na ampliação da educação pública, os autores se perguntam pelo papel paradoxal do professor na tarefa da inclusão social, na medida em que essa tarefa deve não somente inserir os educandos na esfera do desenvolvimento econômico, mas deve ao mesmo tempo emancipá-los e libertá-los.

Por fim gostaríamos de dar destaque ao artigo de Jakob Hans Josef Schneider, intitulado Teorias do Intelecto na Idade Média Latina. De anima III, cap. 5 de Aristóteles e sua tradição medieval. Trata-se de uma longa, refletida e erudita contribuição, que mostra bem o perfil de professor e pesquisador de Jakob Schneider. Principiando pelo sentido do termo “nous”, o autor chama a nossa atenção para o papel que desempenhou o De anima de Aristóteles para o pensamento árabe e ocidental, indicando historicamente a contribuição de Aristóteles para as teorias do intelecto ou da mente. Com farta documentação, e sempre respeitando a análise direta dos originais, o autor perpassa detalhadamente por momentos decisivos do pensamento filosófico, mostrando a penetração e abrangência desse escrito de Aristóteles. Infelizmente, durante o processo de avaliação desse precioso texto, veio a falecer de modo inesperado, em 31 de dezembro de 2020, em Uberlândia, Jakob Schneider. Em 2021, em sua homenagem, a Revista Educação e Filosofia publicará um dossiê, coordenado por Anselmo Tadeu Ferreira, que coleta o material de um colóquio realizado por Jakob Schneider na Universidade Federal de Uberlândia no ano que se passou, a saber, “Da Universidade: história, conhecimento e pesquisa”, realizado de 03 à 14 de novembro de 2020, tendo sido transmitido através do Canal da Coordenação do Curso de Filosofia. O tema do surgimento das universidades na Idade Média e da importância crescente que elas alcançaram na vida ocidental era um tema da predileção do pesquisador, conseguindo estabelecer suas ramificações até os dias atuais.

Aqui talhamos, por fim, um breve retrato desse erudito Professor, cujo passamento consternou a todos os seus amigos. Jakob Hans Josef Schneider recebeu o Doutorado em Filosofia pela Friedrich-Wilhelms-Universität de Bonn, na Alemanha, em 1995, com tese sustentada sobre Thomas Hobbes e a Escolástica tardia (Thomas Hobbes und die Spätscholastik). Também tinha formação completa na Alemanha, tendo recebido a Habilitação ou Livre Docência pela Eberhard-Karls-Universität de Tübingen. Inicialmente teve contato com a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, por intermédio de Luis Alberto de Boni. Por concurso público, a partir de 2008, começou a lecionar e pesquisar na área de história da filosofia medieval na Universidade Federal de Uberlândia. Com o apoio inicialmente da FAFCS e posteriormente do IFILO da UFU criou o Centro Internacional de Estudos Medievais da Universidade Federal de Uberlândia (CIDEMUFU), do qual era o coordenador no momento do seu passamento. Deixa como herança um material de muita erudição vivida e refletida no domínio da filosofia medieval, podendo-se destacar livros, traduções, artigos, capítulos de livros e verbetes em importantes enciclopédias. No final do artigo aqui publicado deixa a observação de que estavam sendo preparadas traduções bilíngues (Latim-Português) dos tratados medievais sobre o intelecto, em desenvolvimento no Centro Internacional de Estudos Medievais da UFU - que se encontra como seu último projeto de pesquisa registrado na plataforma Lattes. Os membros do Conselho Editorial da Revista Educação e Filosofia registram aqui o seu apreço e reconhecimento pelo trabalho do Professor Jakob e convidam a todos para a leitura desse texto e de outro, publicado aqui anteriormente, e que versa sobre a filosofia do jardim, a saber: Philosophie des gartens. Zu Immanuel Kants Kritik der Urteilskraft (publicado no número 46, referente a jul./dez. de 2009, p. 209-246).

É este número, a encerrar o volume 34 de Educação e Filosofia, a idade atual da Revista, que pede e aguarda sua leitura, reflexões, reelaborações e curiosidades!

Marcos César Seneda
Conselho Editorial da Revista Educação e Filosofia

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